Arte e Antropologia George Marcus

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    O intercmbio entre arte e antropologia:

    como a pesquisa de campo em artes cnicas pode informar

    a reinveno da pesquisa de campo em antropologia1

    George E. Marcus

    Joseph D. Jamail Professor e Chair of Anthropology na Rice University,

    Department of Anthropology em Houston, Texas, EUA

    RESUMO: As crticas do projeto Writing Culture, endereadas ao textoetnogrfico, alm de no atingirem o mtodo antropolgico por excelncia,a pesquisa de campo nos moldes malinowskianos, ajudaram a dissemin-lanas humanidades e nas artes. A pesquisa de campo tradicional, contudo, mos-tra-se inadequada aos novos temas de investigao da antropologia em um

    mundo mais complexo, integrado e frgmentado produzido pela globalizao.Este trabalho, originalmente escrito para uma conferncia, sugere a reinven-o do imaginrio da pesquisa de campo antropolgica a partir de sua apro-priao pelo teatro e pelo cinema. Baseado no trabalho do cengrafo venezue-lano Fernando Calzadilla, o autor prope a substituio do distanciamentoe da limitao espacial da mise-en-scnemalinowskiana pela cumplicidadeentre observador e observado e pela pesquisa em campos multilocalizados.

    PALAVRAS-CHAVE: pesquisa de campo, etnografia, antropologia e tea-

    tro, reflexividade crtica, pesquisa de campo multilocalizada.

    Os profissionais da antropologia e das artes enfrentaram-se em algumasocasies durante a histria das diferentes modernidades e dos modernis-mos do sculo XX, e mesmo antes. Mas, claro que o mais recente em-

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    bate que conduz aos interesses desta conferncia, no qual as cenas e os

    procedimentos da prpria pesquisa de campo etnogrfica so questio-nados, tem uma ntida origem nas chamadas crticas de Writing Culturedos anos 1980. Como parte de um momento, ento muito mais disse-minado, de efervescncia interdisciplinar, essa colaborao bastante efe-tiva de estudiosos situados, por formao, em pontos muito diferentesdas artes, humanidades e cincias sociais permitiu um exame crticorevelador do mecanismo textual de produo de conhecimento de auto-ridade sobre os outros e sobre as culturas. Ao faz-lo, incentivou, e temincentivado at o presente, uma esperana e um imaginrio por tiposconstantes de colaboraes recprocas altamente convergentes como ummodus operandido trabalho intelectual [aqui, estamos trabalhando nointerior desse imaginrio muito recente de trabalho intelectual], por umlado; e, por outro, que esse trabalho pode tornar a atividade em ques-to, a etnografia e a pesquisa de campo que a produz, algo inteiramentediferente das formas assumidas por ela no interior da tradio empiricista

    da qual surgiu uma tradio comprometida com uma funo docu-mental e uma representao naturalista, impulsionadas pela participa-o e observao distanciadas e disciplinadas nos e dos mundos vitais deoutros tomados formalmente como objeto de pesquisa.

    Nesta palestra, pretendo examinar algumas das atuais ironias, ten-ses e possibilidades, manifestadas neste momento, da relao entre an-troplogos e artistas em sua atrao mtua por uma certa experinciadisciplinada de investigao que coloca buscas intelectuais diretamente

    em contato com os modos do mundo.Antroplogos, por mrito prprio, estavam abertos a essa crtica e

    ficaram aliviados em que, aparentemente, ela fosse hermeticamente tex-tual e no tocasse a profisso quase religiosa de sua atividade de pesquisade campo uma formao folclrica de cultura profissional sobre a qualirei falar mais. Ela, no entanto, teve efeitos profundos na pesquisa de

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    campo, no tanto sobre como era feita, metodolgica e empiricamente

    [ela de fato reforou o que chamo a mise-en-scnemalinowskiana clssi-ca, que tem criado problemas no presente e que tambm pretendo dis-cutir], mas em como era pensada e concebida, bem como ampliou ascomunidades intelectuais para as quais a pesquisa de campo se tornouum atraente objeto de interesse e de potencial apropriao. Para grandeambivalncia dos antroplogos, as prticas que, caracteristicamente, osdefinia e os tornava uma corporao nas cincias sociais, viraram modano mundo das artes e nas humanidades. Assim, os tropos clssicos dapesquisa de campo foram remitologizados conforme as sensibilidades eteorias do momento, e no apenas para antroplogos, mas tambm paraoutras comunidades intelectuais que a consideraram til para seus pro-

    jetos e apertos. Em certo sentido, desde ento a antropologia vem li-dando com essa revitalizao e apropriao combinadas de seu mtodoclssico. Antroplogos ficaram tanto desdenhosos como lisonjeados como mimetismo. Alm disso, eles ainda no avaliaram como esse fluxo no

    intercmbio entre antropologia e artes pode ser benfico nas condiescontemporneas, ainda pobremente articuladas, em que a pesquisa decampo feita, as quais, finalmente, esto remodelando o poderoso ima-ginrio malinowskiano da pesquisa de campo, o qual permaneceu comomtodo para a antropologia.

    A ferramenta e doutrina intelectual partilhada que definiu a colabo-rao no projeto Writing Culture e, desde ento, espalhou-se pelo dis-curso terico, pelos textos interpretativos e pelas obras de arte como uma

    espcie de marca definidora foi o exerccio de uma reflexividade crticaaguda e por vezes incansvel, que, primeiro, pretendia desmascarar etransgredir um regime hegemnico de modos naturalistas de narrao erepresentao e, depois, incentivar diferentes tipos de relaes e de co-munidades normativas de produo de conhecimento no prprio atode pesquisa ou de criao artstica. A reflexividade crtica respondeu aos

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    impulsos revolucionrios/reformistas da vida intelectual de esquerda/

    liberal no perodo extremamente conservador dos anos 1980 e 1990.Agora, nas confuses do ps-guerra fria de esperanas e pesadelos danova ordem mundial, esses impulsos duradouros carecem totalmentede qualquer limite social contemporneo, e o exerccio da reflexividadecrtica est menos a servio de vises polticas normativas que dos meiosde descobrir o que pode ser a crtica em novos arranjos sociais, cujoscontornos polticos e culturais ainda no esto claros.

    A utilizao dessa ferramenta ocorreu de modo bastante diferente nosdomnios em que foi empregada autoconscientemente. Na produo deobras de arte e deperformances, ela tem sido um meio poderoso e abertode introduzir o propsito de crtica social e cultural em diversas mani-festaes. Em nome da quebra de todas as formas de representao eatuao naturalista [o antinaturalismo como um grito de guerra dura-douro da crtica e da produo de arte modernistas], ela tem rompidolimites, questionado efeitos e levado a arte para domnios onde nunca

    esteve. Na antropologia, a reflexividade crtica foi o meio de tornar vis-vel e, deste modo, apontar para alm dos tropos da escrita etnogrfica,mas ao invs de romper com a mise-en-scneda pesquisa de campo, comoo cronotopo a partir do qual toda esta escrita imaginada [talvez nohouvesse, no mundo dos anos 1980, o mpeto, na verdade, a necessida-de de destruir esse cronotopo, como h hoje], ela terminou por refor-la e foi por ela ludibriada. A reflexividade crtica levou, sobretudo, a g-neros de auto-etnografia de grau e qualidade variados, nos quais a cena

    malinowskiana de pesquisa de campo foi feita e refeita de acordo comcritrios exploratrios acerca das condies de produo do saber antro-polgico alm das fronteiras da diferena cultural e da traduo, masfalhou em conceber novas estratgias, formas e normas de prtica paraenfrentar os mundos mais complexos, paralelos e fragmentados, com osquais muitos projetos de pesquisa de campo devem, hoje, negociar.

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    Enfim, a reflexividade crtica, em sua forma antropolgica, no pde

    romper com o propsito de documentao e interpretao realista ounaturalista historicamente imbudo na etnografia e que dela emerge.Relaes em pesquisa de campo podem ser concebidas de maneira dife-rente, e o velho naturalismo empiricista da representao etnogrficapode estar sendo profundamente solapado pela prtica da reflexividade,mas a prpria forma genrica permenece resolutamente associada fun-o documental. Em minha opinio, essa persistncia do propsito rea-lista no tanto uma coisa m ou condenvel, mas uma dimensoinevitvel, ou at desejvel, do trabalho intelectual, principalmente emforma de etnografia. H muito, Raymond Williams, inspirado pelo tea-tro brechtiano e pela possibilidade do que designou estratgias crticassubjuntivas na arte de representar, contestou aqueles que atacam o rea-lismo como uma forma burguesa e a ele no propem alternativa espe-cfica alguma, salvo um tipo diferente de crtica. Apenas flertando mo-mentaneamente com crculos de expresso e recepo de vanguarda, a

    fora, o apelo e a efetividade da antropologia dependem da capacida defixar a expresso realista em formas inusitadas e crticas. A tradio dapesquisa de campo est altura disso, mas unicamente em novas confi-guraes. Artistas, que se viram atrados para a pesquisa de campo emseu modo crtico-reflexivo, enxergam esse potencial em suas prticasantropolgicas. Os prprios antroplogos, em minha opinio, no o en-xergam, ou no o fazem de modo to claro. Nessa diferena repousa,creio, a direo para ulteriores discusses e colaboraes estimulantes

    entre artistas e antroplogos quanto prtica da pesquisa de campo.Em meados dos anos 1990, a apropriao artstica dos mtodos etno-

    grficos, estimulada pelas crticas de Writing Culture, que tambm re-pousavam no apelo a polticas de identidade, que seguiram essas crticas,foi submetida a um comentrio crtico incisivo em um ensaio bem curtode Hal Foster, Artist as Ethnographer? [Artista como etngrafo?],

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    inserido em um volume que Fred Myers e eu editamos. Foster afirmou

    que o outro cultural ou tnico substituiu a classe operria, em cujo nomeo artista luta. O que era o local da pesquisa de campo etnogrfica tornou-se o local da transformao artstica, que tambm o local da potencialtransformao poltica. A clssica mise-en-scnemalinoswskiana da antro-pologia define um lugar de marginalidade e alteridade que, para a polticade identidade que sucedeu a crtica do projeto Writing Culture, se tornouo espao primrio da subverso da cultura dominante. Nessa poltica cul-tural da marginalidade, desempenhada pela obra de arte, Foster v o peri-go de clientelismo ideolgico, para o qual Walter Benjamin advertira.

    Adicionalmente, Foster previu que a prxima luta pela cultura noestaria situada em espaos marginais, ou enclaves, mas em um campode imanncia definido pelo funcionamento de um capitalismo multi-nacional globalizante, no qual antigos modelos geopolticos de centro eperiferia (em cujos termos tambm a etnografia foi fundada e se desen-volveu) no teria mais lugar. Hoje, o artista como pesquisador de cam-

    po pode buscar trabalhar com comunidades estabelecidas diz Foster com as melhores intenes de engajamento poltico e transgresso ins-titucional, s em parte, para ter esse trabalho recodificado por seus pa-trocinadores como proselitismo social, desenvolvimento econmico,relaes pblicas ou arte.

    Esse pendor pelo etnogrfico tambm acompanhado por algunsdesenvolvimentos da arte avanada nas metrpoles anglo-americanas.Nos ltimos 35 anos, Foster nota o deslocamento da investigao dos

    componentes objetivos da obra de arte para suas condies espacias depercepo, em primeiro lugar, e, depois, para a base corprea dessa per-cepo mudanas observadas desde as obras minimalistas do inciodos anos 1960 at a arte conceitual, a arte performtica, a body arte asobras site-specific, nos anos 1970. Nesse percurso, a instituio artsticano pde mais ser descrita simplesmente em termos de espao fsico (es-

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    tdio, galeria, museu); ela tambm era uma rede discursiva de outras

    prticas e instituies, outras subjetividades e comunidades. E quais fo-ram os resultados para a arte? O mapeamento etnogrfico de determi-nadas instituies, ou de uma comunidade afim, uma forma elemen-tar assumida pela arte site-specifichoje. Mas as novas obras site-specificameaam tornar-se uma categoria de museu um instrumento para acrtica mundana bem-comportada. Aqui, valores como autenticidade,originalidade e singularidade, banidos como tabus cruciais da arte ps-moderna, retornam como propriedades do local, da vizinhana ou dacomunidade da qual o artista se ocupa. Tais obras servem aos propsitosdaqueles que as patrocinam, diz Foster, a exposio se torna o espetcu-lo onde o capital cultural acumulado. E ele termina com este cenrio,que admite ser uma caricatura:

    Um artista contatado por um curador a respeito de uma obra site-specific.

    Ele, ou ela, vai at a cidade para mobilizar a comunidade, indicada pela

    instituio, a colaborar. No entanto, h pouco tempo, ou dinheiro, paramuita interao com a comunidade. No obstante, um projeto concebi-

    do e se realiza uma instalao no museu e/ou uma obra na comunidade.

    Poucos dos princpios do observador-participante da etnografia so obser-

    vados, muito menos criticados. E apesar das boas intenes do artista, ape-

    nas um envolvimento parcial do outro localizado [sited other] efetuado.

    Quase naturalmente, o foco passa da investigao cooperativa para uma

    autoconfigurao etnogrfica na qual o artista no tanto descentrado

    quanto o outro configurado maneira artstica.

    Embora concorde com muitos dos argumentos de Foster, gostaria deindicar trs objees a suas crticas:

    1. Ao dirigir sua crtica aos artistas como etngrafos, Foster pareceassumir a perspectiva e a voz do que poderia ser o antroplogo tradicio-

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    nal, com seu toque de ressentimento: os artistas s esto brincando com

    a sria atividade da etnografia, aqum do padro exigido, no interessede acumular capital simblico no etos experimental do empreendimen-to artstico. Talvez isso seja verdade para a instalao site-specific, masuma acusao to genrica de m-f ou ingenuidade no se justifica.Deve-se admitir o fato de que a pesquisa de campo empregada em al-guns projetos artsticos , de um modo sofisticado, bem concebida eadequada aos seus propsitos. Isto sugere que, uma vez que a pesquisade campo/etnografia tenha se disseminado por comunidades mais am-plas como uma prtica ideal, como ocorreu com as crticas do projeto

    Writing Culture, ento suas virtudes no podem ser exclusivas antro-pologia ou, ao menos, uma apropriao benevolente dela a orienta-o mais sbia a se adotar. Alm disso, no caso de algumas reas da arte,como no teatro e cinema, que desejo abordar logo mais, importantereconhecer que, desde muito, h prticas investigativas e preparatriasque, embora similares pesquisa de campo quanto forma, tm, de

    fato, genealogia e propsito completamente independentes no modocomo se encaixam em uma configurao caracterstica das prticas arts-ticas. com esses casos e essas arenas de produo artstica, uma vezidentificados, entendidos e respeitados como paralelos mas separadosda voga do mimetismo (mesmo que cuidadoso) de prticas antropol-gicas, que os antroplogos podem aprender algo vlido com relao asconsiderveis instabilidades da aplicao do modelo tradicional de pes-quisa de campo em seus projetos atuais. [H aqui um tpico tangencial,

    de importncia e interesse considerveis, sobre os perigos da inveja m-tua, ou do querer-ser, que discusses recentes entre a antropologia e aarte s vezes produz. Foster tambm examina esse fenmeno e suas fon-tes comuns como parte de suas crticas. Prefiro encarar essa questo emtermos de instncias especficas de projetos em colaborao, ambas his-tricas e recentes, envolvendo determinados artistas e antroplogos que

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    ocupam a mesma, tradicionalmente concebida, cena malinowskiana de

    pesquisa de campo. O problema no tanto a postura acadmica dis-tanciada de inveja mtua, mas a criao de tendncias, inclusive maisfortes, de exorcizar o terceiro presente o nativo local para quem a pes-quisa de campo comum orientada. Essas colaboraes intelectuais socom freqncia bem-sucedidas, mas ao preo de como os nativos se tor-nam objeto dessas colaboraes.]

    2. ao padro da modalidade tradicional de pesquisa de campo an-tropolgica o que chamei a mise-en-scnemalinowskiana , que Fosterresponsabiliza o mimetismo artstico da pesquisa de campo, e com efeito essa modalidade tradicional que artistas acham atraente apropriar,como Foster explicou em detalhe. Para os artistas, a pesquisa de campofora da antropologia uma prtica estvel contudo, invalidada porsua associao profunda com a produo de uma forma distinta de na-turalismo documental. Entretanto, h um espao, especialmente sereimaginado conforme as crticas do projeto Writing Culture, no qual

    uma arte de interesse pode ser feita. Mas, a partir do que acontece naantropologia contempornea (antropologia que marcadamente dife-rente, at mesmo da dos anos 1990, em alguns dos seus mais recentesinteresses), a pesquisa de campo como uma prtica exclusiva cada vezmais instvel, como demonstrarei. A prpria pesquisa de campo quaisso so suas fronteiras espaciais e seus limites temporais, quais so suasformas, o que se quer hoje dos informantes, como construda,delineada e concebida durante o aprendizado , em vez do texto etno-

    grfico e sua forma, atualmente o objeto de experimentao na pedago-gia e prtica antropolgicas, principalmente para etngrafos estudantesem formao, na medida em que desenvolvem novos tpicos em cir-cunstncias completamente diferentes das de seus professores e antepas-sados. Embora no merea o termo crise (como na crise da representa-o dos anos 1980), certamente h um sentimento disseminado mas

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    ainda pobremente articulado especialmente entre os estudantes de

    que o etos da pesquisa de campo e os modos de inculc-la na culturaprofissional no encontram as realidades de sua execuo nas circuns-tncias atuais de investigao. Nesse sentido, a crtica emergente da pes-quisa de campo em antropologia est onde a crtica aos textosetnogrficos estava antes de ser enunciada pela iniciativa de WritingCulture nos anos 1980. Do lado da antropologia, ao menos, a questo que valor pode ter o exemplo das apropriaes de sua prtica centralpelo mundo da arte, embora em sua forma tradicional, para sua prpriasituao atual de reimaginar a modalidade tradicional de pesquisa decampo, talvez at incorporando aspectos de estilos de investigao maisamplos, constitutivos de alguns tipos de obras de arte que incorpora-ram, elas mesmas, a pesquisa de campo em seus processos? Que reper-cusso as apropriaes experimentais das modalidades tradicionais depesquisa de campo em antropologia feitas pelo mundo da arte, para seuspropsitos complexos, podem ter para uma antropologia que, por neces-

    sidade, est passando da mise-en-scnemalinowskiana para a reinvenodela? Gostaria de pensar que h muito mais nessa conjuntura dereinveno que a antropologia pode aprender de certos domnios arts-ticos, onde o que parece pesquisa de campo foi incorporado a prticasde investigao mais complexas. Um exame dessas prticas artsticas temmuito o que mostrar para a antropologia, enquanto ela enfrenta a ulte-rior diminuio de sua funo documental caracterstica e se envolveem projetos para os quais a modalidade clssica de pesquisa de campo

    insatisfatria. Creio que novas tcnicas, ou ao menos uma nova estticada tcnica, mesmo de um tipo formal, so necessrias para aperfeioar amise-en-scnemalinowskiana, as tcnica que j so cultivadas por algu-mas artes que mostraram afinidade e desejo por aspectos da prpria arteda etnografia em seus prprios processos. Mas que artes? [O que meleva ao terceiro ponto acerca de Foster.]

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    3. Gostaria de concordar que a apropriao da pesquisa de campo

    etnogrfica pela tendncia de arte site-specifice de instalaes, s quaisela parece adequada, vulnervel, da maneira como Foster caricaturouem sua crtica. Entretanto, onde encontro apropriaes similares ou pr-ticas paralelas pesquisa de campo etnogrfica, nos bastidores, por as-sim dizer, no teatro e no cinema, que no so to vulnerveis espciede crtica que Foster fez arte site-specificcom pretenses etnogrficas.Embora a contribuio do que parece com a pesquisa de campo nas fa-ses preparatrias da produo teatral ou cinematogrfica possa ser tocurta quanto (e aparentemente superficial, do ngulo da auto-estima esensibilidade antropolgicas no modo clssico), no to facilmenteassimilada quanto o capital cultural de instituies culturais mais pode-rosas e ricas. Ao contrrio, o que investigao etnogrfica nas comple-xas aes coletivas que resultam em uma produo teatral ou cinemato-grfica est profundamente imiscuida nesses processos, de tal modo que,o que parece um momento ou fase da pesquisa de campo etnogrfica

    em tais esforos, talvez deva ser repensado, ampliado ou prolongado emtermos do poderoso conceito de pesquisa de campo que regula a culturaprofissional da antropologia. Trabalhar com o que se parece com pesqui-sa de campo nos ofcios de teatro e de cinema, aplicando-lhes uma pers-pectiva metaetnogrfica, poderia oferecer para a antropologia tanto umcanal novo para continuar as discusses e colaboraes com a arte, paraalm das balizas desse intercmbio nos anos 1990, como fornecer ummodelo apropriado de prtica alternativa para enfrentar os desafios atu-

    ais das modalidades tradicionais de pesquisa de campo. A questo no tornar a pesquisa de campo antropolgica uma forma de teatro maisdo que j mas usar experincias e tcnicas deste para reinventar oslimites e as funes da pesquisa de campo em antropologia.

    Minha experincia e opinio pessoais quanto ao valor da prticateatral para uma etnografia realista comeou com os comentrios de

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    Raymond Williams, em um livro de entrevistas de 1981, sobre o poten-

    cial das tcnicas do teatro brechtiano para resgatar a tradio realista dacincia social e da escrita histrica esquerdistas. Ele delineou o que, paramim, seria um projeto de etnografia crtica baseada em roteiros explora-trios de possibilidades em locais de pesquisa de campo a substituiodo indicativo pelo modo subjuntivo para a pesquisa de campo etnogr-fica, mas ainda na tradio realista. O que me impressionou foi como astcnicas de uma das maiores correntes do teatro modernista podem serempregadas para esse propsito em uma atividade como a etnografia.Nos anos seguintes, atravs da crtica do projeto Writing Culture, edepois, mantive o interesse e a ateno pelas dimenses paraetnogrficasdas investigaes, dos workshops, e dos processos pelos quais planejadaa aparncia de produes flmicas e teatrais, bem como pela pesquisa deque resultam estilos de atuao. Por exemplo, eu estava particularmenteinteressado na construo deA batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, eno trabalho de pr-produo para diversos filmes do diretor indepen-

    dente norte-americano John Sayles, especialmenteMatewan. Ao mes-mo tempo, quanto ao teatro, comecei a prestar ateno na histria dascolaboraes entre artistas de teatro e antroplogos, os ltimos quasesempre no papel de dramaturgos. Havia os exemplos conhecidos deColin Turnbull e a dramatizao de seu primeiro livro e as colaboraesde Victor Turner com Richard Schechner, ao final da vida e da carreirado primeiro. Mais recentemente, aproveitei um rico material de comoprodues teatrais incorporam investigaes etnogrficas ao acompanhar

    o ingresso de Dorine Kondo no mundo do teatro asitico-americano e,especialmente seu trabalho, nos anos 1990, como membro de um grupode dramaturgos, na criao e produo da pea de Anna Deaver SmithTwilight : Los Angeles, 1992[Crepsculo: Los Angeles, 1992] (para a qualKondo produziu uma narrativa dialgica includa em um dos volumesde minha srie Late Editions de anurios que documentam os anos 1990

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    como fin-de-sicle). A obra teatral de Smith produzida por meio da

    pesquisa mais etnograficamente engajada que conheo no teatro con-temporneo, fazendo do processo dramatrgico do qual Kondo partici-pou um acesso nico ao comentrio e debate acerca da pesquisa de cam-po construda no processo da prpria produo teatral.

    Enfim, no final dos anos 1990, envolvi-me no co-patrocnio, emHouston, de uma srie de instalaes de um grupo de artistas cubanos evenezuelanos. Uma delas, Market from here, era baseada nos temas dacrtica de Writing Culture, na natureza da pesquisa de campo e na refle-xividade do antroplogo. Foi criada pelo artista e crtico cubano AbdelHernandez e por um importante cengrafo do teatro venezuelano,Fernando Calzadilla. A instalao foi criada, aps meses de pesquisa decampo cooperativa, em Catia, o mercado urbano de Caracas, e foi recria-da em Houston. Admirava a parte de Cazadilla nesse projeto, especial-mente a traduo de sua pesquisa de campo no plano da instalao. Pos-teriormente, mantive uma troca ativa com Calzadilla e meu interesse

    transferiu-se para o seu trabalho como criador de produes teatrais naVenezuela e em outros lugares, pelo qual angariou uma reputao consi-dervel. O profundo conhecimento terico e prtico de Calzadilla sobretodos os elementos da produo teatral apenas elevou o nvel de nossadiscusso sobre cenografia. Relacionados ao meu pensamento sobre a si-tuao da modalidade tradicional de pesquisa de campo em antropolo-gia e sobre a necessidade de reinvent-la para o mbito dos projetos depesquisa, que sobretudo os jovens antroplogos esto assumindo, achei

    aspectos de minha discusso com Calzadilla durante os ltimos trs anosmuito relevantes para pensar esses problemas da pesquisa de campo emantropologia, alm de seu relato de como a pesquisa de campo serve aoseu ofcio e da imagem mais ampla de produzir teatro pessoalmentesatisfatrio, de um modo que muitas narrativas recentes de pesquisa decampo em antropologia no tm sido. Ainda no est completamente

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    claro, para mim, o que na atividade de Calzadilla como cengrafo pre-

    enche uma sensao de necessidade na reimaginao da pesquisa de cam-po em antropologia, mas quero dedicar os resduos dessa conversa paraespecular um pouco sobre isso. Depois de uma discusso sobre o que namise-en-scnemalinowskiana requer a reinveno de suas normas e for-mas, quero retornar ao meu intercmbio com Calzadilla para centrar-me brevemente em um exemplo particular que discutimos, a preparaoda montagem de uma pea de Garcia Lorca em Caracas em 1994.

    Agora, quero mudar de assunto e dar uma noo do que, nos lti-mos anos, tornou os ideais reguladores tradicionais da pesquisa de cam-po em antroplogia instveis, um objeto a ser reinventado ou reimagi-nado. Em parte, isso se deve falncia do carter folclrico dominante,a partir do qual, por muito tempo, a pesquisa de campo foi regulada,concebida e idealizada para articular algumas dimenses que sempre es-tiveram na mise-en-scnemalinowskiana, mas que agora so mais im-portantes do que nunca; e inadequao deste carter para orientar,

    principalmente, os aprendizes de etngrafo nos tipos de pesquisa quecada vez mais esto realizando no est claro, baseado nos velhos troposnormativos, o que deva ser a experincia da pesquisa de campo nessesprojetos e que tipos de dados ela deve gerar. E parte da desestabilizaotem a ver com as condies que esto dando nova forma aos projetos depesquisa e demandando tanto mais como diferentes intensidades dovelho etos, em sua viso e imaginao do que a pesquisa de campo.Nesse caso, dificilmente pode-se aplicar o termo crise, como na crise de

    representao dos anos 1980; mas, como ocorreu com o aumento dastendncias crticas reflexivas, difusamente articuladas antes da crtica daescrita dos anos 1980, h agora uma situao comparvel com a pesqui-sa de campo a mise-en-scnemalinowskiana no , de modo algum,um termo ou marco vazio mas apenas cobre as formas e normas queefetivamente assume quando aplicado hoje.

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    Em meu trabalho recente, tenho utilizado argumentos de outra or-

    dem sobre essa mudana de natureza da pesquisa de campo, principal-mente para estudantes em novos mbitos temticos, agrupados em tornoda noo do que os campos multilocalizados [multi-sited] dos projetoscontemporneos fazem concentrada mise-en-scnemalinowskiana, e emtorno do conceito de cumplicidade como redefinidor da relao nuclearde colaborao em pesquisa de campo, de que sempre dependeram aspretenses de autoridade do conhecimento etnogrfico.

    Primeiramente, a respeito da situao do modo folclrico pelo quala pesquisa de campo foi constituda em cultura profissional da antropo-logia e do papel-chave que ele desempenhou na iniciao dos estudan-tes em projetos de pesquisa de campo definidores de suas carreiras.

    No usei, um punhado de vezes, descuidadamente o termo mise-en-scneem referncia ao imaginrio que medeia e regula a manifestaode mtodo em antropologia. A pesquisa de campo tem sido um objetode reflexo, intensamente teatral ou flmico, da antropologia com um

    ntido estilo visual desde sua estria e consolidao ideolgica comMalinowski, como um smbolo-chave, rito de iniciao e mtodo an-tropolgico [a saber j no comeo deArgonautas do Pacfico Ocidental,no qual a pesquisa de campo evocada e suas prticas inculcadas, Mali-nowski salmodia: Imagine-se, de repente, sentado, rodeado por todosos apetrechos, sozinho em uma praia tropical perto de uma aldeia nati-va, enquanto a lancha ou escaler que o trouxe navega at desparecer devista]. Antroplogos sempre imaginaram a pesquisa de campo, uns dos

    outros e ao ensin-la aos iniciandos, no apenas como histrias, contosdo campo, mas como imagens e roteiros, mesmo em momentos maisanalticos. Um regime de mtodo to dramatrgico tanto mais efetivoquando a experincia de pesquisa de campo de fato corresponde, aomenos aproximadamente, ao imaginrio que antroplogos entrevm apartir do que mutuamente relatam de experincias distantes, que so

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    apenas deles. H uma grande recompensa posta na etnografia que ca-

    paz de escolher cenas nas quais se pode entrar por meio de experimen-tos mentais concretamente visualizados e situados. No momento, gos-taria apenas de salientar que h uma afinidade ou adequao particularem pensar o ofcio cenogrfico como uma forma de etnografia.

    Outro aspecto caracterstico, se no peculiar, do saber profissionalsobre a pesquisa de campo em antropologia de que ele muito parti-cular s fases iniciais da experincia de pesquisa de campo, quando constantemente evocado (como em Malinowski) sob a imagem do pri-meiro contato e da exaltada alteridade mental. A experincia de pes-quisa de campo do iniciando quanto o imaginrio est enviesado,mesmo quando exprime a experincia de pesquisadores calejados. Mase quanto a pesquisa continuada de um antroplogo que trabalha emdeterminado local por uma dcada, ou por dcadas? H, na antropolo-gia, algum modelo de mtodo que se assemelhe pesquisa de campovirtuosa? Ou que, ao menos, seja reconhecvel como pesquisa de campo

    de acordo com a mise-en-scnemalinowskiana?Minha hiptese que as obras tardias dos antroplogos maduros ge-ralmente operam livres dos tropos de suas obras anteriores. E argumen-taria que, de algum modo, pesquisas de campo iniciatrias, em certosmbitos em que muitos antroplogos mais jovens esto trabalhandohoje, requerem algo da idia aberta e difusa do que pode ser a pesquisade campo, idia que parece ser caracterstica da pesquisa de campo vir-tuosa, apenas se articulada ao imaginrio tradicional no qual os etngra-

    fos em formao so treinados. Portanto, um problema de pedagogia.Estudantes ingressam na antropologia inspirados por teorias sociais eculturais complexas, bem como pelos exemplos das segundas ou tercei-ras obras maduras de antroplogos experientes que admiram e querememular, e ento se defrontam com uma cultura de mtodo ainda pode-rosa, insistindo que faam algo menos ambicioso. Aqui, prenuncio mi-

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    nha tese ao sugerir que h aspectos do ofcio cenogrfico, especialmente

    a cenografia que incorpora a pesquisa de campo do tipo malinowskiano,que so teis de se cogitar tendo em vista um imaginrio alternativopara a pesquisa de campo que possa levar em considerao a aporia doque a pesquisa de campo em obras de maturidade, obscurecida peloforte vis do contato inicial com a mise-en-scnemalinowskiana. As nor-mas de pesquisa de campo precisam ser libertadas do enftico e vigoro-so estar l do imaginrio clssico da pesquisa de campo.

    Agora, mudando para os desafios efetivos ao imaginrio da pesquisade campo tradicional, o que no mundo (hoje) levou a pesquisa de cam-po a se envolver em locais de investigao mltiplos e heterogneos eem formas de colaborao, baseadas na cumplicidade, que mudaram sig-nificativamente o que os antroplogos querem dos nativos como ob-

    jeto de pesquisa e comprometeram profundamente as pretenses deautoridade do conhecimento etnogrfico, mesmo aqueles revisados oureexemplificados pelas crticas reflexivas dos anos 1980? O entendimento

    convencional desses desenvolvimentos repousa em algumas suposiessobre a natureza da ps-modernidade, que circularam amplamente nasarenas de efervescncia interdisciplinar nas ltimas duas dcadas, sobre-tudo quando as culturas e populaes estabelecidas se fragmentaram,tornaram-se mveis e transnacionais, bem como mais cosmopolitas (ou,ao menos, mais invadidas ou ingeridas!) localmente; assim, a pesquisade campo teve simplesmente de acompanhar, quando pde, esses pro-cessos no espao. Alm disso, o peso da crtica poltica e tica da relao

    tradicional na pesquisa de campo que gera os dados etnogrficos, comofoi revelada pelas provas reflexivas escrupulosas da perspectiva ps-mo-derna, quebrou o tantinho de inocncia e ingenuidade necessrias paramanter a distncia na relao entre o etngrafo e o objeto por isso, acumplicidade. Um estado de ambigidade e uma aliana de aparnciaimprpria agora atravessam a mise-en-scneda pesquisa de campo, assi-

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    nalando uma perda de inocncia e de ingenuidade, no encalo das reve-

    laes ps-modernas. Com isso, tanto a intensidade do foco quanto aintegridade da relao que modelou a cena malinowskiana foram pos-tos em xeque.

    Embora seja solidrio a essa compreenso tradicional dos desafios autoconfiana tradicional da pesquisa de campo, eles no surgem ape-nas das complexidades de um mundo ps-moderno ou, atualmente,globalizado. Afinal, muitos antroplogos podem facilmente continuarfazendo a mesma coisa de sempre, e muitos fazem, e em muitas situa-es at vlido faz-lo. Mas minha impresso do que, hoje, produzmultilocalizao [multi-sitedness] e relaes de cumplicidade em proje-tos de pesquisa de campo tem mais a ver com a auto-estima da antropo-logia, com a diminuio de sua funo documental caracterstica emmeio a muitas formas de representao, mais competitivas e apropria-das quando comparadas a sua. De fato, todo projeto de etnografia seinsere nos locais de pesquisa de campo atravs de reas de conhecimen-

    tos colaterais, correspondentes, os quais no pode ignorar ao abrir seucaminho em direo s cenas preferidas da vida comum, cotidiana, comas quais, tradicionalmente, est vontade. S essa condio torna a pes-quisa de campo intrinsecamente multilocalizada, logo heterognea, etambm cmplice de alguns objetos. O problema fundamental aqui confrontar a poltica de conhecimento, que qualquer projeto de pesqui-sa de campo envolve, e a tentativa do etngrafo de marcar posio emrelao a esta poltica, fazendo do prprio lugar parte do plano de inves-

    tigao da pesquisa de campo.Assim, desde os anos 1980, qualquer antropologia crtica merecedo-

    ra do nome no apenas tenta falar a verdade ao poder poder comoconceitualizado e teorizado; verdade como subalterna e entendida nointerior da vida cotidiana de pessoas comuns observadas de perto , mastambm tenta entender o poder e suas agncias, nos mesmos termos

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    etnograficamente empenhados e nas mesmas fronteiras de pesquisa de

    campo nas quais o subalterno est includo. A prpria compreenso et-nogrfica, nos termos de Bourdieu, como um segmento dominado nointerior do dominador, sugere uma modalidade alternativa relevantepara as circunstncias da pesquisa de campo atual, na qual incorporaruma perspectiva de segunda ordem em discursos, com freqncia, coin-cidentes, aparentados, oficiais, especializados e acadmicos como cor-respondentes ao do prprio etngrafo uma reinveno essencial e com-plexa da mise-en-scnetradicional. Sem dvida, isso o que mais contana luta para tornar a pesquisa de campo contempornea mais multi-localizada e poltica. O que tambm a torna um pouco alienada e umpouco paranica de um modo tanto inevitvel quanto produtivo.

    A antropologia crtica intensamente reflexiva posterior aos anos 1980 adequada para incorporar as culturas do racional como uma parte es-tratgica de seus locias de pesquisa de campo. Com efeito, se houve umgrande sucesso das crticas dos anos 1980, foi criar uma antropologia

    dos conhecimentos atuais e de sua distribuio, de um modo comple-tamente novo e original. Em certo sentido, toda antropologia, desdeento, tem sido, da maneira mais eficaz, uma crtica ntima das prrticasdifusas do conhecimento ocidental em nome de comunidades espec-ficas de sujeitos mal-representados, excludos, aliciados ou vitimizadospor essas prticas. A inovao que surge da pesquisa de campo contem-pornea tratar tais poderes/conhecimentos como objetos de pesquisade campo equivalentes em suas conexes, complexas e obscuras, com as

    cenas da vida cotidiana, o meio favorito cultivado pela etnografia cls-sica. Mas, para ser efetiva, tal pesquisa de campo tem de fazer algo maisdo que apenas a descrio e a interpretao distanciadas, embora re-flexivas, desse campo complexo de engajamentos. No momento, um dis-curso e uma retrica difusos, por vezes copiosos, de redeno moral ocu-pam esse espao vazio de uma alternativa, de uma funo alternativa

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    inteiramente imaginada e concebida para a etnografia. Ao cabo, talvez

    essa retrica seja substituda por tcnicas mais ativas, moldadas num arcode idias entre a experimentao e o ativismo. nesse momento queconsidero que os conceitos e ofcios de montagem, criao e atuaodos mundos do cinema e do teatro talvez sejam estimulantes. [Se pos-svel, mencionar o jogo inspirador de Paul Farmer, relatado em um li-vro recm-lanado por Tracey Kidder: um mdico e antroplogo,Farmer, trabalha entre o Wall Street do establishmentmdico a HarvardMedical School e uma clnica no miservel Haiti, ele desafia as moda-lidades de assistncia com uma srie de intervenes e tticas que soteatrais, efetivas e extremamente humanas.]

    Assim, a antropologia, em meio a essa transio, quanto ao que apesquisa de campo deva fazer e do que ser capaz, est carente de prticasque lhe sirvam de exemplo, que faam avanar e produzam formas deconhecimento nesses espaos de investigao reconfigurados. Nessa con-

    juntura, isso que algumas prticas artsticas, como a cenografia, que

    tem uma afinidade com a modalidade clssica de pesquisa de campo,podem devolver antropologia, e, ao faz-lo, posteriormente desenvol-ver tambm o intercmbio entre arte e antropologia, regulado pelo in-teresse mtuo na pesquisa de campo.

    Assim, a etnografia crtica contempornea se orienta pelos imagin-rios de outros especialistas e trabalha em novas reas do poderoso co-nhecimento oficial ou especializado, exercitando para encontrar obje-tos de pesquisa mais tradicionais para si. Mas o que ela quer com as

    colaboraes cmplices que faz com os objetos equivalentes nessesdomnios? E o que faz da cena etnogrfica? Isso claramente no diz res-peito a uma etnografia de culturas de elite, mas antes ao acesso cons-truo de um imaginrio para a pesquisa de campo que s pode sermoldado por alianas de cumplicidade com criadores de conhecimentovisionrio, que j esto na cena ou no interior dos limites do campo. Os

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    imaginrios de criadores de conhecimento que precederam o etngrafo

    so a matria de que so feitos os sonhos dos pesquisadores de campocontemporneos. Mas quais so as prticas/estticas da tcnica queacompanham tais investigaes de campo multilocalizadas, cmplices?Com isso, voltamos, em concluso, ao humilde, delicadamente sutil,ofcio de cengrafo.

    Eis um exemplo colhido das minhas trocas com Fernando Calzadilla:seu relato de como preparou a cenografia deA casa de Bernarda Alba, deGarca Lorca, para uma produo de 1994, em Caracas. Como Calza-dilla afirma: Os princpios bsicos da produo eram sobre descoberta,desvelamento; evitando artificialidades, expor as narrativas que com-pem nosso imaginrio coletivo; transformar fatos cotidianos em atosexcitantes; dar suporte pea, pois tudo comea com ela, e evitar umaproposta naturalista que funcionaria simplesmente como um dcor. Nohouve adaptao do texto original: foi Garca Lorca at a ltima vrgu-la Dia aps dia, aqueles de ns diretamente envolvidos na produo,

    intuitivamente, sabamos que a pea deveria ser situada em uma cidadevenezuelana. Em conseqncia, Calzadilla e sua esposa passaram trsmeses em duas comunidades com uma tradio de 400 anos de vidarural, fechada e conservadora: Essas cidades partilham uma caracters-tica incomum na Venezuela: permaneceram perdidas no tempo, indife-rentes ao frenesi modernizante causado pela economia do petrleo nosanos 1930. Seu relato do perodo que passou nessas cidades assemelha-se em muito com a experincia inicial de pequisa de campo na mise-en-scnemalinowskiana. Dadas as presses do tempo na produo teatral,foi um perodo inusualmente longo para esse tipo de pesquisa de cam-po preparatria, que no uma atividade to incomum na dramaturgiavenezuelana: Trs meses parecem um perodo particularmente longose voc o compara com o tradicional perodo de seis semanas de ensaio/produo que a maioria das companhias profissionais de teatro conce-

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    dem, diz Calzadilla. Quanto a isso, ele potencialmente concorda com

    a crtica de Hal Foster, endereada aos artistas site-specific, sobre a bre-vidade e superficialidade da prtica da pesquisa de campo. Mas, no casode Calzadilla, a pesquisa de campo, desse tipo emblematicamente tra-dicional, s pode ser avaliada pelas transformaes que sofre no plane-

    jamento da montagem da pea de Lorca. Desde o incio, a pesquisa decampo tinha sua razo de ser no texto complexo da pea de Lorca e nopapel que, nele, a cenografia desempenha. [A imerso de uma expe-rincia de pesquisa de campo tradicional e delimitada no interior de umplanejamento multilocalizado maior instrutiva a idia de planeja-mento pode mudar as normas e formas da pesquisa de campo, confor-me a direo que, circunstancialmente, ela tome em trabalhos madu-ros ou em qualquer trabalho multilocalizado, ela s avana medidaque criticada pela montagem.]

    Simples e materialmente, a pesquisa de campo de Calzadilla produziuobjetos e artefatos com os quais planejou a montagem e o aspecto visual

    da produo. Mais sutil, porm, uma certa sensibilidade originada dapesquisa de campo e no a habilidade de representar outros , quemigra ou se tranfere para outra situao de trabalho intelectual nocaso da cenografia, criando um singular espao-tempo local para a re-presentao do texto da pea de Lorca em Caracas. Isso pesquisa decampo, como indiquei antes, adequada aos propsitos do cengrafo,talvez no aos tradicionais da antropologia, mas que envolve um senti-do claro de tica, funo e propsito. O que reconhecvel como pes-

    quisa de campo antropolgica aqui organicamente imbudo em umprocesso mais amplo de planejamento. Calzadilla prossegue, descre-vendo seu principal efeito criativo na encenao dessa pea: Eu estavanuma situao delicada, andando numa corda bamba entre realidade eiluso, e tinha de arrumar o hic et nuncda atuao. Tive de criar umespao onde esses elementos se tornassem significantes, e no uma amos-

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    tra de nosso bom trabalho como pesquisadores de campo. Assumi o ris-

    co, apoiado pelo resto da trupe, de expor a estrutura da casa, removen-do todas as paredes em uma pea cujo tema central o confinamento ea opresso. O que fizemos, com esse passo, foi criar uma fico no inte-rior da realidade da atuao, assim nossa experincia de pesquisa de cam-po no foi traduzida diretamente, mas mediada por um espao irrealque centrava a ateno no drama, contrastivamente, e no nos objetos.Se tivssemos apresentado os objetos em um ambiente naturalista, elesse transformariam em peas de colecionador, enfeites. A presena mas-sacrante do objeto real em um espao naturalista teria salientado o as-pecto ficcional dos personagens corporificados, ao invs de amparar asatrizes em suas atuaes uma objetificao da pessoa, especificamentecrtica quando o elenco todo feminino. Do que precisvamos, era sa-lientar a realidade do evento, a realidade dos atores e do drama que iriamrepresentar. Traduzir a experincia da pesquisa de campo no palco, paracriar um espao onde os atores pudessem representar o mito (nesse caso,

    o texto de Lorca), dando-lhes material suficiente para resistir e relacio-nar-se com as caractersticas, fsicas ou no, do espao em questo.Calzadilla deixa claro que a contribuio mais substantiva da pesqui-

    sa de campo para a produo no est no que a platia pode literalmen-te ver, mas em constituir o que ele chama as narrativas internas da pro-duo, ignoradas pela platia, que se originam das matrias-primasfornecidas pela pesquisa de campo. Calzadilla conta: Elas podem pare-cer totalmente sem conseqncias para a atuao mas sei, a partir de

    conversas com as atrizes e da resposta da platia, que no so. A pea foipremiada por melhor iluminao e cenografia e algumas atrizes forampremiadas pela atuao em Bernada. Lembro como uma atriz identifi-cou seu personagem to intensamente com o espao que lhe dei que elacontinuava acrescentando coisas, tornando o espao dela. Calzadillaprossegue, dando detalhes primorosos de como a montagem criou um

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    imaginrio eficaz e visceral para a produo por exemplo, ele descreve

    quais foram os efeitos de sua deciso em construir um cho de ladrilhoverdadeiro no palco sobre a qualidade emotiva do movimento, algo quea platia no podia ver mas que conformava um ambiente, devido sen-sao dos ps descalos no ladrilho.

    A etnografia antropolgica, obviamente, no cenografia, emboras vezes eu gostaria que fosse, mas dadas as difceis situaes que o para-digma da pesquisa de campo em antropologia atualmente enfrenta, achoque o ofcio da cenografia, como praticado por Calzadilla, entre outros,pode fornecer inspiraes, mais do que simples analogias, para sua rein-veno. Posso apenas me referir brevemente a algumas delas:

    1. Calzadilla desessencializa os tropos da pesquisa de campo clssica,ao empreg-los e incorpor-los em um processo mais amplo de investi-gao e de trabalho intelectual. o que inevitavelmente acontece napesquisa de campo multilocalizada contempornea o ultrapassar doslimites da mise-en-scnemalinowskiana sem que o resultado seja pre-

    concebido ou nomeado. A movimentao de Calzadilla entre os con-textos de trabalho e as funes cambiantes de investigao algo que experimentado com regularidade nos projetos de pesquisa de campocontemporneos. A pesquisa de campo em antropologia necessita, parao seu imaginrio, de um diferente cronotopo de realizao; por muitosoutros aspectos a cenografia um bom modelo a se considerar.

    2. Quando novos projetos de pesquisa ultrapassam locais isolados epropsitos puramente documentais, um conceito de planejamento,

    como usado em ofcios como a cenografia (e h muitos modos de ati-vidade artstica que empregam a idia do planejamento), pode dar umaidia de processo que poderia ser usada em antropologia para afetar asituao privilegiada da pedagogia no treinamento de estudantes em seusprimeiros projetos etnogrficos. Antroplogos gostam de seus meios fol-clricos de inculcar a pesquisa de campo na cultura profissional, mas a

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    invocao da morte deve lhes dar mais e diferentes coisas para conver-

    sar. Assim, o conceito e exemplo do planejamento poderia, de maneiraaplicada, incorporar conceitualmente a mise-en-scnemalinowskiana emum regime de conjuntos alternativos de expectativas, da pesquisa decampo escrita, para o processo etnogrfico em antropologia.

    3. O processo de Calzadilla d nfase idia e realidade das colabo-raes de vrios tipos e condies , na verdade, o processo de traba-lho do cengrafo um emaranhado de colaboraes progressivas desdeo incio de qualquer projeto. A idia de colaborao como ncleo daproduo do conhecimento etnogrfico foi criticamente salientada pe-las crticas dos anos 1980, mas, posteriormente, a nfase recaiu sobreum gnero especfico, um estilo de escrever etnografia. No espao multi-localizado, colaboraes e cumplicidades definem a poltica do conhe-cimento, que tambm conforma o planejamento da investigao. O queCalzadilla conhece a partir da pesquisa de campo, apenas como a cola-borao inicial, leva a uma srie complexa de outras colaboraes, que

    nunca so menos do que preeminentes no relato de seu trabalho e dosresultados delas. A etnografia contempornea parece operar de um modobastante similar, mas ainda no de acordo com as normas e formas queela narra para si mesma profissionalmente. Isso, obviamente, cria novosproblemas para assegurar a autoridade do conhecimento especializado epara a tica de estabelecer relaes em um campo complexo de colabo-raes. Mas o regime de colaboraes, no nvel que praticado em cr-culos artsticos que produzem teatro e cinema, algo a que a antropolo-

    gia deve aspirar, como de costume.Trazendo-as mais para perto, as discusses entre antroplogos e ar-

    tistas sobre seu interesse mtuo em pesquisa de campo, parece-me, po-dem avanar mais longe nessa conjuntura, ao incitarem, por um lado, adesestabilizao da modalidade tradicional de pesquisa de campo emantropologia, que est ocorrendo inexoravelmente, e, por outro, as pr-

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    ticas manifestas de pesquisa de campo em configuraes variadas de uma

    profuso de atividades artsticas especficas. Em particular, o que, emminha opinio, parece certo hoje, ao menos para a antropologia em seusapuros com o mtodo, tentar aprender algo com os mais humildesporm mais sutis ofcios, como a cenografia envolvida com a platia, osbastidores e a cena das realizaes artsticas do teatro e do cinema.

    Traduo de Andr Pinto Pacheco

    Nota

    1 Texto com base em trabalho apresentado pelo autor no Congresso Fieldworks:Dialogues between art and anthropology, Tate Modern, Londres, 26-28/09/2003.

    As interpolaes entre colchetes so de responsabilidade do prprio Autor, salvo astradues de ttulos de filme ou livro e as expresses em ingls que seguem a tradu-o de algum termo, em geral neologismo. (N. do T.)

    ABSTRACT: Writing Culture criticism, addressed to ethnographic text, did

    not affect the anthropological method itself, fieldwork as conceived byMalinowski. Furthermore, this criticism helped to spread Malinowskianfieldwork to humanities and arts. Traditional fieldwork, however, does notsuit to the new topics of anthropological inquiry in a more complex, inte-grated and fragmented world produced by globalization. This paper, origi-nally written for a conference, claims the reinvention of the imaginary ofanthropological fieldwork based on its appropriation by theater and filmarts. Grounded in his exchanges with the Venezuelan scenographer FernandoCalzadilla, the author propounds the replacement of distanced and spatially

    limited Malinowskian mise-en-scnefor a multi-sited fieldwork built oncomplicit collaborations.

    KEY WORDS: fieldwork, ethnography, anthropology and theater, criticalreflexivity, multi-sited fieldwork.

    Aprovado em maio de 2004.