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595 ARTE E MODA NA FRANÇA DO SÉCULO XVIII: ANÁLISE DO QUADRO SOB O SIGNO DE GERSAINT DE ANTOINE WATTEAU. LAURA FERRAZZA DE LIMA Doutoranda em História – PUCRS [email protected] Resumo Este artigo parte da análise de uma única obra de arte, L’Enseigne de Gersaint (1720) do pintor flamenco radicado em Paris Antoine Watteau. A escolha por uma única imagem não limita a reflexão, ao contrário, é a partir dela que conheceremos as características de seu autor, traçando parte de sua trajetória até o momento de execução da obra. Além disso, veremos como essa tela se relaciona com um tipo de arte do século XVIII que foi chamada de Rococó. Essa “estética rococó”, assim como os interesses temáticos, as aspirações da sociedade na qual a imagem foi produzida estão presentes na obra que dialoga com outras imagens. Existe ainda uma relação entre a pintura rococó e a moda do mesmo período que vemos nas telas de Watteau e nessa inclusive, elas configuram-se num espaço privilegiado para a observação de tal fenômeno. Palavras – chave: História da arte – Rococó – Antoine Watteau A proposta do presente artigo é analisar o quadro L’Enseigne de Gersaint de 1720 (imagem 2) do pintor Antoine Watteau. Essa obra de arte integra o corpo documental que utilizo para a elaboração de minha tese de doutorado em desenvolvimento. O problema de minha pesquisa é a relação entre as imagens da arte e as da moda, produzidas na França oitocentista, pré-Revolução. Um dos movimentos artísticos de maior influência estética nesse contexto foi o Rococó. Dessa maneira, escolhi a obra do artista flamenco radicado em Paris, Antoine Watteau. Considerado um dos mais influentes pintores do século XVIII, seu estilo deixou um legado para as gerações seguintes. O objetivo de minha tese é demonstrar que existiu no século XVIII francês um regime visual partilhado entre a produção artística e as primeiras imagens produzidas para a imprensa ilustrada de moda. Para tanto utilizo um conjunto de imagens produzidas na época, principalmente pinturas e gravuras de moda. A escolha do quadro L’Enseigne de Gersaint deve-se ao fato de ser uma imagem síntese da sociedade francesa do início do século XVIII. O tema da obra é a loja do vendedor de quadros Gersaint, mas os personagens e seus trajes carregam muitos códigos imagéticos que podem ajudar a compreender desde o estilo e as escolhas do artista, até o funcionamento daquela sociedade. A obra em questão é uma das últimas grandes realizações de Watteau. Afinal, ele viveu pouco, de 1684 a 1721, falecendo aos 37 anos de tuberculose. Era natural da cidade de Valenciennes, numa região de Flandres, dominada pelos franceses. Isso pode explicar seu apreço pelos detalhes e pelo estilo de gênero flamengo do século XVII (GOMBRICH, 1999: 454). Inspirou-se na tradição de Rubens e combinou essa influência com a de dois grandes mestres da cor – Ticiano e Veronese (BAZIN, 2010: 190). Era um partidário da cor sob a forma ou desenho.

Arte e ModA nA FrAnçA do século XVIII: AnálIse do quAdro · minha pesquisa é a relação entre as imagens da arte e as da moda, produzidas na França oitocentista, pré-Revolução

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Arte e ModA nA FrAnçA do século XVIII: AnálIse do quAdro sob o sIgno de gersAInt de AntoIne WAtteAu.

Laura Ferrazza de Lima

Doutoranda em História – [email protected]

resumo

Este artigo parte da análise de uma única obra de arte, L’Enseigne de Gersaint (1720) do pintor flamenco radicado em Paris Antoine Watteau. A escolha por uma única imagem não limita a reflexão, ao contrário, é a partir dela que conheceremos as características de seu autor, traçando parte de sua trajetória até o momento de execução da obra. Além disso, veremos como essa tela se relaciona com um tipo de arte do século XVIII que foi chamada de Rococó. Essa “estética rococó”, assim como os interesses temáticos, as aspirações da sociedade na qual a imagem foi produzida estão presentes na obra que dialoga com outras imagens. Existe ainda uma relação entre a pintura rococó e a moda do mesmo período que vemos nas telas de Watteau e nessa inclusive, elas configuram-se num espaço privilegiado para a observação de tal fenômeno.

Palavras – chave: História da arte – Rococó – Antoine Watteau

A proposta do presente artigo é analisar o quadro L’Enseigne de Gersaint de 1720 (imagem 2) do pintor Antoine Watteau. Essa obra de arte integra o corpo documental que utilizo para a elaboração de minha tese de doutorado em desenvolvimento. O problema de minha pesquisa é a relação entre as imagens da arte e as da moda, produzidas na França oitocentista, pré-Revolução. Um dos movimentos artísticos de maior influência estética nesse contexto foi o Rococó. Dessa maneira, escolhi a obra do artista flamenco radicado em Paris, Antoine Watteau. Considerado um dos mais influentes pintores do século XVIII, seu estilo deixou um legado para as gerações seguintes.

O objetivo de minha tese é demonstrar que existiu no século XVIII francês um regime visual partilhado entre a produção artística e as primeiras imagens produzidas para a imprensa ilustrada de moda. Para tanto utilizo um conjunto de imagens produzidas na época, principalmente pinturas e gravuras de moda. A escolha do quadro L’Enseigne de Gersaint deve-se ao fato de ser uma imagem síntese da sociedade francesa do início do século XVIII. O tema da obra é a loja do vendedor de quadros Gersaint, mas os personagens e seus trajes carregam muitos códigos imagéticos que podem ajudar a compreender desde o estilo e as escolhas do artista, até o funcionamento daquela sociedade.

A obra em questão é uma das últimas grandes realizações de Watteau. Afinal, ele viveu pouco, de 1684 a 1721, falecendo aos 37 anos de tuberculose. Era natural da cidade de Valenciennes, numa região de Flandres, dominada pelos franceses. Isso pode explicar seu apreço pelos detalhes e pelo estilo de gênero flamengo do século XVII (GOMBRICH, 1999: 454). Inspirou-se na tradição de Rubens e combinou essa influência com a de dois grandes mestres da cor – Ticiano e Veronese (BAZIN, 2010: 190). Era um partidário da cor sob a forma ou desenho.

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Watteau iniciou seu trabalho dentro do estilo decorativista do Rococó, em seguida criou suas belas e melancólicas festas galantes e por fim, foi um pintor de cenas de gênero ao estilo de Sob o signo de Gersaint (L’Enseigne de Gersaint). Suas ideias sobre natureza e realidade conservaram até o fim seu aspecto decorativo, que às vezes nos faz duvidar dos temas comuns que são o elemento básico de suas obras (LEVEY, 1998: 57).

A arte de Watteau teria sido responsável por salvar o Rococó das críticas que o consideravam frívolo, amaneirado e sem propósito moral. O ideal decorativo revelava nas pinturas daquele artista um viés sobre a psicologia humana: “É elegante e decorativo sem polir a humanidade até fazê-la desaparecer.” (LEVEY, 1998: 52). O pintor deu a seus contemporâneos cenários nos quais queriam viver e personagens com os quais se identificavam. Isso explica o motivo de seu sucesso na época, que ultrapassou as fronteiras da França espalhando-se por toda Europa. Watteau teve uma dupla importância: criou sem saber o conceito do artista individualista leal a si mesmo e só; além de ter inventado uma nova categoria de pintura, a festa galante, que exigia completa liberdade de tema para o pintor (LEVEY, 1998: 56).

Antoine Watteau entrou para a Academia Real de Artes no ano de 1717, sua tela de apresentação foi O embarque para Citera (imagem 1), ele a iniciou em 1712 levando, portanto, cinco anos para concluí-la (JONES, 1985: 15). A Academia deixou que o próprio pintor escolhe-se o tema da obra (LEVEY, 1998: 55). A tela rompia com todos os cânones acadêmicos tradicionais e o assunto não se encaixava em nenhuma das categorias já existentes. Assim, a Academia obrigou-se a criar para ela uma nova categoria, a da fête galante. Segundo, H. W. Janson, esse termo não se aplica apenas a esse quadro, mas a obra do artista como um todo, “pois nela predominam cenas da vida da sociedade elegante ou com atores de comédia, tendo por fundo parques ou jardins” (1984: 538).

De certa maneira, a primeira grande obra de Watteau é um quadro histórico, mas moderno. A mitologia presente no embarque para Citera é uma criação do pintor, mas ele a organiza de forma a contar uma história compreensível ao espectador. Para a Academia sua obra é cheia de conteúdo narrativo. Seu tema é mais “natural” que as visões de deuses e deusas ou as cenas da história clássica. Ele não se ocupa do heroísmo, mas sim do amor (LEVEY, 1998: 64). A ilha de Citera havia sido na antiguidade clássica um centro de culto à Afrodite, o que a tornou uma espécie de santuário do amor para a posteridade. A partir dessa ideia, Watteau criou uma imagem onírica de um lugar de peregrinação para casais de amantes que querem viver as alegrias do amor (ELIAS, 2005: 19).

Próximo ao final de sua vida o artista afasta-se um pouco da atmosfera de mitologia encantadora que impera no Embarque para Citera. Dedica-se a representar personagens da comedie française, com uma forte carga de melancólica. Ao analisarem sua obra, a maioria dos autores detecta uma espécie de melancolia implícita, que ajuda a equilibrar a graciosidade de suas festas galantes. Segundo German Bazin: “sua obra está impregnada de profunda melancolia e de uma espécie de sensibilidade angustiada.” (2010: 190).

Os quadros produzidos nesse período revelam até que ponto o pintor havia se afastado do estilo puramente decorativo do Rococó. Não se preocupava mais tanto com as aparências naturais e sim com a natureza humana. Logo compreendeu que ambas podiam andar juntas e as uniu em “um tratamento final, supremo e em grande escala” (LEVEY, 1998: 76), a tela intitulada: Sob o signo de Gersaint de 1720. Ela não se tratava de uma encomenda, mas uma obra que o pintor se propôs a fazer, o que demonstra o grau de liberdade experimentado por aquele artista. Segundo Levey a criação deste quadro é lógica, trata-se do testemunho deixado por Watteau de seu apaixonado apego as coisas visíveis e as pessoas. Ele que a sua própria maneira havia sido um pintor de gênero.

Os criadores do estilo de gênero foram os holandeses no século XVII. Esse tipo de arte caracteriza-se por não tratar de temas grandiosos, e sim do cotidiano (ALPERS, 1999.). O estilo foi apropriado por artistas franceses e ingleses no século XVIII. O que os motivou foi

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por um lado a mudança no gosto da aristocracia, que preferia agora temas mais intimistas e por outro a ampliação do mercado consumidor de arte. Um número maior de pessoas podia comprar quadros para decorar suas residências: obras em estilo de gênero eram procuradas não apenas pela nobreza, mas também por membros da classe mercantil em ascensão (JONES, 1985: 4). No entanto, ao se apropriarem desse estilo tentavam escapar a uma representação do cotidiano que fosse considerada “vulgar”. Portanto, preferiam abordar o cotidiano por meio de uma referência idealizada ao modo de vida da aristocracia.

Considerado por Levey como o mais etéreo dos quadros de Watteau, Sob o signo de Gersaint revela a estrutura dos magníficos desenhos do artista, que testemunham seu vigoroso apego a realidade dos fatos (1998: 76). O homem e seu lugar na vida cotidiana foram temas de interesse para o século XVIII (BAUMER, 1990: 183). Watteau estava pouco disposto a fazer um juízo moral, uma afirmação metafísica com sua obra. Essa é uma atitude típica do Rococó, que pretendia liberar a arte de ser portadora de ideias pré-concebidas. Ela não necessitava mais conter uma mensagem religiosa, moral ou política, libertara-se do jugo do rei e da Igreja. Ao decidir ele mesmo fazer uma obra, sem encomenda, sem temática pré-estabelecida, o artista criou um ponto de vista sobre pessoas em um lugar reconhecível: a loja de quadros de seu amigo Gersaint em Paris. Suas intenções são as mesmas que sempre estiveram em seus quadros; só que desta vez é o amor em uma tenda no lugar de um jardim, e a compra e venda tomam o lugar da música na sociedade (LEVEY, 1998: 77).

Muito cedo, aproximadamente em 1744, esta obra deixou a França para incorporar-se a coleção de Frederico o Grande em Berlin. A tela é considerada um documento chave, além de uma obra-prima (LEVEY, 1998: 77), na qual estariam contidos quase todos os interesses artísticos do século XVIII; exceto a moral. Possui um efeito em trompe-l’ oeil. Foi pensada para a fachada de loja de Gersaint – provavelmente por essa razão composta em duas metades -; não apenas produz a ilusão de dissolver a parede da loja, uma vez que uma pessoa entra na loja diretamente da rua, mas também a ilusão em si é engenhosa: dilata o reduzido espaço da loja localizada na Ponte Notre-Dame, transformando-a num grandioso cômodo, com seu vislumbre de um salão com altos vitrais ao fundo. As paredes são cobertas com quadros que Gersaint quem sabe nunca possuiu. Assim, ainda que seja uma pintura de gênero, é gênero encantado, animado não só pelo engenho, se não por um erotismo onipresente já não transmitido mediante a presença de cupidos como nas clássicas fête champêtre1 pintadas por ele.

Há, sem dúvida, uma atmosfera erótica no Rococó. O erotismo nessa arte se manifestaria de forma epidérmica e espiritual (MIGUET, 1966: 231). Uma das expressões desta característica era a “erotização” da mitologia. Segundo Raquel Pifano: “As cenas mitológicas representadas nas pinturas rococós não são reverência às divindades, e sim reverência ao prazer.” (1995: 401). Era comum a representação de estátuas pagãs nos jardins e bosques das pinturas da época, como no Embarque para Citera. Outra importante vertente dessa arte era a atmosfera de intimidade, que favorecia o próprio erotismo. O gosto da sociedade do século XVIII pelos espaços privados e de convívio íntimo inspiravam tais motivos nas telas.

Voltando nosso olhar para o quadro que retrata a loja de Gersaint, podemos dizer que é a própria pintura que comunica um entusiasmo quase febril, uma vitalidade frenética. A paleta de cores tem grande importância para expressar os sentimentos dos personagens retratados. A sociedade aparece reunida ali em cores outonais: os tons de bronze, amarelo e rosa são ressaltados pelo negro e o cinza prateado. Esses tons sempre foram os preferidos de Watteau, que pintava as cenas ao ar livre com as cores do entardecer e com uma atmosfera de outono (BAZIN, 2010: 190).

As figuras que aparecem na obra vestem trajes elegantes, pintados com uma atitude encantadora. Revelam não apenas as texturas da renda e da seda, mas inclusive o simples linho: como a camisa estilo pierrô do homem que manipula o retrato de Luís XIV. Watteau

1 Gênero de pintura que mostrava cenas da sociedade elegante em parques.

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foi mestre de uma estética, de um tipo de beleza que impregnou não apenas a arte de boa parte do século XVIII francês, mas também o estilo de vestir. As damas em seus quadros aparecem usando a última moda. Segundo o historiador da vestimenta François Boucher, entre os anos de 1705 e 1715, surgiu a moda dos vestidos não rígidos, também chamados de vestidos volantes, “que foram englobados sob a denominação simplista de vestidos de Watteau, sendo que o pintor não interveio em absoluto na sua criação” (2009: 263).

É certo dizer que Watteau não criou tais vestidos como os estilistas de moda contemporâneos. Porém, há um conjunto de desenhos dele conhecidos pelo nome de Figurinos de moda que representam a moda dos vestidos mais rígidos e também dos vestidos volantes, em 1715. O quadro Sob o signo de Gersaint mostra claramente um vestido do segundo tipo, já em 1720, quando essa moda está consolidada. Existe uma grande semelhança entre algumas dessas ilustrações de figurinos e a moça de costas na tela em questão (conforme detalhe na imagem 3).

A associação entre a obra de Watteau e a representação de trajes e da elegância feminina aparece em vários comentários acerca de suas pinturas. Conforme Gombrich, o pintor representava “uma sociedade onde todos se vestem de refulgentes sedas sem apresentarem um ar de chocante ostentação” (1999: 454). As associações entre as obras de Watteau e o traje não param por aí. Sobre o artista, Theóphile Gautier escreveu no século XIX:

Sua obra é uma festa perpétua. São concertos, bailes, conversas galantes, encontros de caça, serenatas, colombinas abanando-se com leques, cavaleiros tributários de belas damas sentadas sobre a relva (...) (2005: 69).

A elegância feminina recebe novamente papel de destaque nos comentários sobre suas obras. Talvez a descrição mais eloquente da graciosidade feminina representada por Watteau, além de sua atenção aos detalhes da vestimenta, seja a dos irmãos Goncourt:

Todas as seduções da mulher em repouso: o langor, a indolência, o abandono, o recostar, o alongar, a displicência, a cadência das poses, o retraimento fugidio dos bustos, o coleio e as ondulações, a flexibilidade do corpo feminino, o jogo dos dedos desfiados no cabo dos leques, a indiscrição dos tornozelos ultrapassando as saias, os felizes caprichos da elegância (...) (2005: 65).

Notam-se algumas dessas características descritas na citação acima nas figuras femininas do quadro Sob o signo de Gersaint. A mulher sentada à direita de frente para o espectador transmite algo dessa postura descrita pelos Goncourt (imagem 4). Assim como a moça que entra na loja de costas para o observador e deixa ver seu tornozelo (imagem 4). A mulher era o personagem central da arte Rococó, por sua ligeireza e graça. Levey afirmou que essa arte transmitia uma atmosfera promiscuamente feminina (1998: 32). O rococó francês foi, em certo sentido, um culto a mulher e ao amor. Sobre o papel feminino na época François Boucher faz o seguinte comentário: “Árbitro do bom gosto e da conversação geniosa, a mulher assume um papel cada vez mais importante na sociedade.” (2009: 262).

Voltemos à descrição do quadro em análise. Nele, não há grupos subsidiários em pequena escala; todas as figuras tem igual importância no ritmo como de dança que ondula dentro e fora por toda a composição, com uma oportuna pausa no centro. O espectador é convidado a introduzir-se no quadro através da moça que da rua entra na loja; seu tornozelo rompe a longa horizontal onde ambas se encontram e sua meia se revela de um surpreendente verde sálvia. Enquanto ela avança, seu companheiro galantemente dá um passo adiante como se

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bailasse um minueto2 (imagem 3). Além da mulher, o amor sensual foi outro dos grandes temas da arte Rococó. Uma das facetas dessa temática era a exaltação da galanteria. A galanteria permeava todas as relações sociais, assim como às artes. Surge um novo ideal amoroso: o amor torna-se devoto do prazer sensível, mas sem cair na libertinagem (PIFANO, 1995: 403).

Assim, Watteau apresenta o último de seus casais. Eles são tocados por um gênio amoroso invisível presente na tenda de Gersaint; que surge de maneira mais evidente em alguns dos quadros que estão nas paredes e de forma bastante clara na grande tela que representa um banho de lago que com tanta atenção examina o homem agachado. No grupo que observa um espelho que é sustentado por uma bela atendente há mais ambiguidade: além do espelho, os homens examinam a ela, e o espelho reflete a imagem da cliente formosamente vestida que fixa o olha nele de maneira um pouco triste – imagem 4 - (LEVEY, 1998: 403).

A cena que se desenvolve no quadro é concreta, nos conta uma história sobre os personagens retratados. Porém, as pessoas - elas mesmas objetos de grande luxo – parecem buscar mais que obras de arte; e o quadro chega a interessar-se pela “loja do coração humano” (LEVEY, 1998: 81). A sedutora sensação de realismo psicológico, quem sabe presente desde a primeira obra de Watteau, se vê aqui em uma escala completamente nova. Já não avançaria mais, porque Watteau morreria no ano seguinte de havê-lo pintado, nos braços de Gersaint (LEVEY, 1998: 82).

A intensidade por trás de Sob o signo de Gersaint procede da vida olhada de uma maneira em que quem sabe só pode olhá-la o artista e o moribundo; e Watteau era ambos. Afinal, sempre teve uma saúde frágil, e nessa época sofria com a tuberculose que iria vitimá-lo. Nessa obra ele rivaliza em escala e execução com o mundo de Rubens, que tanto o havia fascinado, e também lhe rende uma última homenagem no cachorro encolhido que procede da Coroação de Maria de Médicis. No início de sua carreira Watteau encantou-se pelo conjunto de pinturas sobre a vida de Maria de Médicis – feitas por Rubens e expostas no Palácio de Luxemburgo em Paris. Os desenhos e estudos que realizou a partir de suas observações acerca dessas obras tornaram-se parte de sua “enciclopédia visual” (JONES, 1985: 14).

Algumas disputas nos meios acadêmicos franceses caracterizaram a virada do século XVII para o XVIII. Quando Roger de Piles foi eleito presidente da Academia de Paris em 1699, levantou sua voz em favor de um artista novo nos círculos acadêmicos franceses – Rubens - que se tornaria uma grande influência para o Rococó (LEVEY, 1998: 17). A rigidez absurda das regras impostas pela Academia gerou uma reação contrária, seus membros dividiram-se em duas facções rivais, a partir da oposição entre desenho e cor: os conservadores ou “Poussinistas” e os “Rubencistas”.

O primeiro grupo defendia o cânone clássico, inspirados pelo pintor francês dos seiscentos Nicolas Poussin. Conforme esse pintor, o desenho se dirigia à inteligência e era superior à cor, que se dirigia aos sentidos. O segundo grupo advogava pela cor em detrimento ao desenho, assim acreditavam ser mais fiéis à Natureza. Segundo Janson:

Sustentavam (os rubencistas) que o desenho, reconhecidamente baseado na razão, só era acessível a raros conhecedores, enquanto a cor falava a toda gente. Este argumento tinha implicações revolucionárias, porque proclamava o leigo como supremo juiz dos valores artísticos e contestava a noção do Renascimento de que a pintura como uma arte liberal, podia ser apreciada apenas por espíritos cultos (1984: 538).

As ideias de liberdade e democracia permearam o século XVIII e como vimos na citação anterior nem a arte fugiu dessa influência. O rubencismo venceu o poussinismo na França. Contudo, a violência com que eram recebidas as opiniões de Roger de Piles abriu caminho

2 Dança em compasso de ¾ de origem francesa.

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para os posteriores ataques a arte decorativa Rococó. Havia na realidade certo receio da liberdade artística proposta pelo movimento.

Ao olhar para uma tela de Watteau sentimos seu espírito antes mesmo de compreendê-la. Isso se deve a atmosfera sutil criada pelo pintor. Assim como os decoradores rococós ele não buscava raízes no passado. Como eles, olhou para um lugar e uma pessoa – a Veneza do século XVI e Rubens. (LEVEY, 1998: 58). A história do triunfo do rubencismo é na realidade desconcertante até a chegada de Watteau. Rubens mostrou a Watteau uma maneira de assimilar a arte do passado, em especial a dos venezianos. Para Levey o verdadeiro triunfo do rubencismo é a tela Sob o signo de Gersaint, que além da homenagear Rubens e de se inspirar nele, estabeleceu uma forma de arte completamente nova.

Enfim, nesse artigo partimos da observação de uma única imagem, uma única obra de arte, para tecer inúmeras relações. A observação dessa obra foi capaz de nos revelar o estilo seguido por seu executor e suas relações com a arte Rococó. Conseguimos refletir a respeito de algumas características gerais desse tipo de arte, como a importância do erotismo e do amor galante. Observando a importância dada a representação das vestimentas nessa imagem estabelecemos as relações que unem Antoine Watteau com as formas vestimentares de seu tempo.

Afinal, como foi possível estabelecer todas essas relações através dessa imagem em especial? Trata-se da obra final do pintor e por isso ela revela sua maturidade artística e de certa forma sintetiza sua trajetória. A tela se relaciona com a produção anterior dele mesmo, mas supera de forma definitiva a influência de Rubens. Nela Watteau desloca seus temas favoritos do campo para a cidade. Essa escolha não é casual, mas retrata uma mudança que realmente ocorreu em sua época.

Além disso, através dessa imagem desvendamos parte dos desejos da sociedade na qual ela foi produzida. Descobrimos o protagonismo feminino que despontou no século XVIII. Por fim, percebemos que existe uma visualidade partilhada entre imagens de arte e da moda, uma vez que o mesmo artista produziu ambas. Faltou ainda relacionar a pintura escolhida com obras que a antecederam e que a sucederam, num deslocamento temporal que é próprio das imagens. Essa proposição ficará em aberto, como tantas outras que possam ter escapado a minha observação.

IMAGEM 1

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Antoine Watteau, O embarque para a ilha de Citera, 1718. Óleo sobre tela, 128 x 193 cm. Palácio de Charlottenburg, Berlin. Extraído do livro ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau a ilha do amor. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 76 p.

IMAGEM 2

Jean Antoine Watteau, L’Enseigne de Gersaint (Sob o signo de Gersaint), 1720. Óleo sobre tela, 166 x 306 cm. Palácio de Charlottemburg, Berlin.

IMAGEM 3

Detalhe da tela Sob o signo de Gersaint.

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IMAGEM 4

Detalhe da tela Sob o signo de Gersaint.

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