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U ARTE 4 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 4 a 10 de agosto de 2008 substantivo feminino LUIZ SUGIMOTO [email protected] m breve artigo de Heloísa Buarque de Hollanda, pedindo atenção para a produção de artistas brasileiras que mantêm um diálogo com a crítica cultural feminista, convenceu a historiadora Luana Saturnino Tvardovskas a elegê-las como tema da pesquisa de mestrado intitulada “Figurações feministas na arte contemporânea”. “Já tinha estudado as artistas visuais na graduação e, ao fazer um levantamento mais apurado, percebi em muitas delas este diálogo, que se dá principalmente através do corpo e da sexualidade”, diz a autora, que acaba de apresentar seu trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. As eleitas por Luana Saturnino são a carioca Márcia X., artista performática que recorreu ao lúdico e ao infantil para uma crítica feminista irreverente; a mineira Rosângela Rennó, reconhecida nacional e internacionalmente por suas “refotografias” de fotografias abandonadas; e a fotógrafa londrinense Fernanda Magalhães que, como tal, promove uma discussão sobre o corpo da mulher gorda. “Mesmo que essas artistas não se considerem feministas, percebo que o feminismo deixou reflexões que transbordam em sua arte”. São mensagens difíceis de captar, segundo a autora, que procurou relacionar as performances e o impacto das imagens com as trajetórias e declarações das próprias artistas, e também com as críticas sobre suas obras. “É minha percepção que aponta as referências que podem ser lidas como feministas. Mas, sem os olhos informados, eu poderia ler qualquer coisa. Quando uma mulher lida com a experiência do corpo e a sexualidade, traz toda uma crítica cultural, nunca é qualquer coisa”. A professora Luzia Margareth Rago, que orientou a dissertação de mestrado, observa que existem poucos estudos sobre a presença das mulheres artistas no Brasil. “O trabalho de Luana é inovador por que não se limita a mostrar mulheres com sua produção competente, fazendo um recorte sobre aquelas que, através da arte, visam uma crítica cultural feminista. O trabalho se situa numa posição feminista, mas não do feminismo institucionalizado tão voltado a atingir os homens”. Márcia Pinheiro de Oliveira, a Márcia X., expoente da arte contemporânea no país, faleceu de câncer em 2005, aos 45 anos. Luana Saturnino conta que a pri- meira exposição da artista, realizada jun- tamente com Aimberê César em 1988, não tinha qualquer obra exposta. “Durante o vernissage, os dois artistas fotografa- ram os próprios convidados e foi com aquelas imagens que montaram a expo- sição, ironicamente chamada de ‘Ícones do Gênero Humano’”. Entretanto, segundo a autora da pes- quisa, seria o uso de brinquedos infantis e de objetos eróticos e religiosos que mar- caria as performances e instalações de Már- cia X. “Ao mesmo tempo em que brinca- va com o gênero, ela abordava a sexuali- dade de forma agressiva. Na série ‘Fábri- ca Fallus’, a artista produziu uma quan- tidade exaustiva de falos de sexshop or- nados com pompons, medalhinhas e ou- tros adereços populares. Minha leitura é de uma crítica à banalização do desejo na atualidade”. Em “Lovely Babies”, Márcia X., de- pois de performance insinuante com um bonequinho dentro da calcinha, soltava outros bonecos que engatinhavam pelo chão, até que um montava sobre o outro, com o movimento mecânico simulando uma relação sexual. Outra performance que derivou da anterior é “Os Kaminhas Sutrinhas”, que traz bonecos unidos por fios e acionados por um pedal pelo pró- Rosângla Rennó é a artista que per- maneceu mais incógnita diante das aná- lises de Luana Saturnino, por não se deixar prender pelo eixo central da se- xualidade. “Sua crítica envolve a idéia de identidades fixas e como a fotogra- fia opera na cristalização das identida- des. É uma artista que faz leituras muito afeitas com o feminismo, em- bora nem todas as obras tenham este caráter”. No início da carreira, Rennó recor- reu a álbuns de família para refotografar as fotografias e manipulá-las até reve- lar aspectos que não eram percebidos. Depois, passou a colecionar álbuns de terceiros e viajou o mundo atrás de relíquias em ateliês, museus e presídi- os, acabando por criar o “Arquivo Universal”, um projeto de muitos anos que virou livro contendo uma série de fotografias antigas re-significadas. “Rosângela Rennó leva a imagem além do que os olhos podem ver. Diz que o mundo não precisa de mais fo- tografias e sim de enxergar as que já existem”, afirma a autora, dando o exemplo de “Mulheres iluminadas”, obra na qual a artista aparece com a irmã em uma praia. “Ambas são apa- gadas na contraluz e transformam-se nas mulheres iluminadas sem luz, num efeito que insinua o limite da visibilida- de da mulher”. A obsessão pelo álbum de casamen- to é o tema de “Afinidades eletivas”, em que a artista dispõe fotografias de casais dentro de um frasco com óleo mineral. “O efeito é dos mais interes- santes, pois as imagens vão se mistu- rando e não se sabe mais quem está com quem. A impressão que fica é de que as pessoas se casam apenas para produzir o álbum, ou então de que a experiência do casamento só passa a existir se for fotografada”. Uma série marcante é “Cicatriz”, criada a partir de 1.800 fotografias de presidiários com suas tatuagens, que Rennó resgatou no Museu Penitenciá- rio do Carandiru. “Elas foram tiradas pelo médico psiquiatra José de Morais Mello, provavelmente entre as déca- das de 1910 e 40, com o propósito de controle e vigilância da população carcerária. Ao refotografar as imagens, a artista poetiza sobre a experiência dos corpos enjaulados”. Durante muito tempo, Rennó reco- lheu notícias de jornal sobre outras Rosângelas: a assassina, a prostituta, a deputada, a vítima do Palace 2, a evangélica, a estuprada, a presidiária marcada para morrer, aquela que com- prou um noivo pelo correio. Juntou histórias de 133 Rosângelas e montou uma vídeo-instalação. “Ela executa os papéis e joga com a multiplicidade de personagens, questionando inclusive a idéia do nome próprio”. Os jogos lúdicos prio espectador, quando simulam o ato sexual ao som da trilha da Disneylândia. “Márcia X. oferece uma visão engra- çada de como as coisas da infância e o erotismo se misturam. Podemos assimilá- la como ironia aos ocidentais que têm o sexo como perversão, ao passo que os orientais atribuem a ele a função de gerar a vida; ou ainda como denúncia do nível de erotização da criança – que suporta- mos apenas até certo ponto. Ela emba- ralha os códigos, expondo elementos que não costumamos ver juntos”, observa Luana Saturnino. “Desenhando com terços” é uma performance em que Márcia X., unindo dois rosários, faz desenhos de pênis co- brindo todo o chão da sala. A obra foi censurada pelo Centro Cultural do Ban- co do Brasil (CCBB), no Rio, quando a artista já havia falecido, por pressão da Opus Christi. “Na verdade, a artista cria um clima sagrado e se movimenta de for- ma delicada, sem nunca pisar nos dese- nhos. A imagem remete a um ritual sua- ve, apesar da ironia à oposição ao aborto e a outros questionamentos da Igreja so- bre a sexualidade”. A autora do estudo lembra que Márcia X. aborda outras obsessões femininas, como a culinária e os cuidados do lar, en- voltas em um aspecto de transe ritualístico. Em “Ação de Graças”, a artista está deita- da em posição ginecológica, com galinhas mortas cobertas de pérolas atadas aos seus pés. “Se é o frango depenado que faz par- te do cotidiano da mulher tradicional na cozinha, a artista transforma aquela ima- gem. Ela disse que se inspirou no hábito de se calçar pantufas de coelhinho, que achava muito estranho”. Márcia X. conseguiu um efeito mar- cante em “Pancake”, ao despejar latões de leite condensado sobre si, deformando a própria imagem, para em seguida co- brir-se de confeitos coloridos. “Para o público, é uma imagem ao mesmo tempo fascinante e asquerosa – do doce que to- dos disputam na festa infantil e do exces- so de melado que repugna. ‘Pancake’ re- mete à maquiagem feminina, feita para embelezar, mas que quando passa do li- mite, deforma”. Fernanda Magalhães é professora de fotografia na Uni- versidade Estadual de Londrina (UEL) e está terminando o doutorado no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Desde 1993, vem pensando a sua própria experiência como um corpo de mulher gorda. “Em seus primeiros trabalhos, a artista se mostra sozinha no apartamento e o tom é de sofrimento e solidão, da difícil relação com o corpo, da rejeição a si mes- ma”, diz Luana Saturnino. De fato, acrescenta a historiadora, Fernanda Magalhães recebeu em casa uma formação artística e muniu-se de uma subjetividade na qual se apega e com a qual constrói um mundo e uma vida estilizada. “Ela diz que o redondo é a forma perfeita, com lindas curvas. Virou do avesso a situa- ção da pessoa obesa deprimida, abandonada e mal-amada. Tem o dom de conectar o trabalho artístico com a própria vivência, manipulando fotografias e colando nelas recortes de jornais e receitas culinárias”. Foi a partir da experiência pessoal que Fernanda idealizou um projeto para investigar como é a representação da mulher gorda nua na fotografia. “Ela quis saber quais são as referên- cias: se o corpo gordo é investido de desejo ou se justifica toda esta rejeição. Com seu projeto, ganhou uma bolsa da Funarte e envolveu-se fortemente com a questão da obesida- de, denunciando também a ditadura da beleza”. Em “Gorda 09”, Fernanda Magalhães cola na fotografia do próprio corpo a cabeça da Vênus de Willendorf, estatueta que representaria a deusa ancestral da fertilidade. Cola tam- bém um escrito: “Lista de pedidos aos aliados não-gordos. O primeiro: ser vista como um ser humano sexual”. “A artista denuncia que perdemos a percepção da obesa como pessoa erotizada”. Luana Saturnino observa que a sociedade contemporânea fez do ódio à gordura uma obsessão. “Como diz Denise Sant’Anna, os gordos são engordurados, lentos, não passam na roleta, não cabem no espaço. Ao que Fernanda acrescenta: queremos desengordurar o mundo”. A instalação ‘Classificações Científicas da Obesidade’, na opinião da autora, é uma crítica ácida ao poder médico e ao cálculo do índice de massa corpórea (IMC). Fernanda Maga- lhães recortou o interior de fotografias de obesos em tama- nho natural – e também de alguns corpos magros –, deixando apenas os contornos. “As peças que denotam pessoas enor- mes, suspensas por fios transparentes, rodam sinuosas como num baile, re-significando esses corpos”. O corpo gordo A historiadora Luana Saturnino Tvardovskas: corpo e sexualidade em discussão Obra da série Cicatriz (1966-2003), de Rosângela Rennó: imagens resgatadas no Museu Penitenciário do Carandiru Identidades cristalizadas Classificações Científicas da Obesidade, exposição de Fernanda Magalhães realizada em 2000: crítica ao poder médico e ao IMC Ação de Graças, performance/instalação de Márcia X., em 2002: cotidiano da mulher e pantufas de coelhinho como inspiração Fotos: Antoninho Perri/Divulgação

ARTE - unicamp.br · presidiários com suas tatuagens, que Rennó resgatou no Museu Penitenciá-rio do Carandiru. “Elas foram tiradas pelo médico psiquiatra José de Morais

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UARTE

4 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 4 a 10 de agosto de 2008

substantivo femininoLUIZ SUGIMOTO

[email protected]

m breveartigo deHeloísaBuarquedeHollanda,

pedindo atenção para aprodução de artistasbrasileiras que mantêm umdiálogo com a críticacultural feminista,convenceu a historiadoraLuana SaturninoTvardovskas a elegê-lascomo tema da pesquisa demestrado intitulada“Figurações feministas naarte contemporânea”. “Játinha estudado as artistasvisuais na graduação e, aofazer um levantamentomais apurado, percebi emmuitas delas este diálogo,que se dá principalmenteatravés do corpo e dasexualidade”, diz a autora,que acaba de apresentarseu trabalho no Instituto deFilosofia e CiênciasHumanas (IFCH) daUnicamp.

As eleitas por LuanaSaturnino são a cariocaMárcia X., artistaperformática que recorreuao lúdico e ao infantil parauma crítica feministairreverente; a mineiraRosângela Rennó,reconhecida nacional einternacionalmente porsuas “refotografias” defotografias abandonadas; ea fotógrafa londrinenseFernanda Magalhães que,como tal, promove umadiscussão sobre o corpo damulher gorda. “Mesmo queessas artistas não seconsiderem feministas,percebo que o feminismodeixou reflexões quetransbordam em sua arte”.

São mensagens difíceisde captar, segundo aautora, que procurourelacionar as performancese o impacto das imagenscom as trajetórias edeclarações das própriasartistas, e também com ascríticas sobre suas obras.“É minha percepção queaponta as referências quepodem ser lidas comofeministas. Mas, sem osolhos informados, eupoderia ler qualquer coisa.Quando uma mulher lidacom a experiência docorpo e a sexualidade, traztoda uma crítica cultural,nunca é qualquer coisa”.

A professora LuziaMargareth Rago, queorientou a dissertação demestrado, observa queexistem poucos estudossobre a presença dasmulheres artistas no Brasil.“O trabalho de Luana éinovador por que não selimita a mostrar mulherescom sua produçãocompetente, fazendo umrecorte sobre aquelas que,através da arte, visam umacrítica cultural feminista. Otrabalho se situa numaposição feminista, mas nãodo feminismoinstitucionalizado tãovoltado a atingir oshomens”.

Márcia Pinheiro de Oliveira, a MárciaX., expoente da arte contemporânea nopaís, faleceu de câncer em 2005, aos 45anos. Luana Saturnino conta que a pri-meira exposição da artista, realizada jun-tamente com Aimberê César em 1988,não tinha qualquer obra exposta. “Duranteo vernissage, os dois artistas fotografa-ram os próprios convidados e foi comaquelas imagens que montaram a expo-sição, ironicamente chamada de ‘Íconesdo Gênero Humano’”.

Entretanto, segundo a autora da pes-quisa, seria o uso de brinquedos infantis ede objetos eróticos e religiosos que mar-caria as performances e instalações de Már-cia X. “Ao mesmo tempo em que brinca-va com o gênero, ela abordava a sexuali-dade de forma agressiva. Na série ‘Fábri-ca Fallus’, a artista produziu uma quan-tidade exaustiva de falos de sexshop or-nados com pompons, medalhinhas e ou-tros adereços populares. Minha leitura éde uma crítica à banalização do desejona atualidade”.

Em “Lovely Babies”, Márcia X., de-pois de performance insinuante com umbonequinho dentro da calcinha, soltavaoutros bonecos que engatinhavam pelochão, até que um montava sobre o outro,com o movimento mecânico simulandouma relação sexual. Outra performanceque derivou da anterior é “Os KaminhasSutrinhas”, que traz bonecos unidos porfios e acionados por um pedal pelo pró-

Rosângla Rennó é a artista que per-maneceu mais incógnita diante das aná-lises de Luana Saturnino, por não sedeixar prender pelo eixo central da se-xualidade. “Sua crítica envolve a idéiade identidades fixas e como a fotogra-fia opera na cristalização das identida-des. É uma artista que faz leiturasmuito afeitas com o feminismo, em-bora nem todas as obras tenham estecaráter”.

No início da carreira, Rennó recor-reu a álbuns de família para refotografaras fotografias e manipulá-las até reve-lar aspectos que não eram percebidos.Depois, passou a colecionar álbuns deterceiros e viajou o mundo atrás derelíquias em ateliês, museus e presídi-os, acabando por criar o “ArquivoUniversal”, um projeto de muitos anosque virou livro contendo uma série defotografias antigas re-significadas.

“Rosângela Rennó leva a imagemalém do que os olhos podem ver. Dizque o mundo não precisa de mais fo-tografias e sim de enxergar as que jáexistem”, afirma a autora, dando oexemplo de “Mulheres iluminadas”,obra na qual a artista aparece com airmã em uma praia. “Ambas são apa-gadas na contraluz e transformam-senas mulheres iluminadas sem luz, numefeito que insinua o limite da visibilida-de da mulher”.

A obsessão pelo álbum de casamen-to é o tema de “Afinidades eletivas”,em que a artista dispõe fotografias decasais dentro de um frasco com óleomineral. “O efeito é dos mais interes-santes, pois as imagens vão se mistu-rando e não se sabe mais quem estácom quem. A impressão que fica é deque as pessoas se casam apenas paraproduzir o álbum, ou então de que aexperiência do casamento só passa aexistir se for fotografada”.

Uma série marcante é “Cicatriz”,criada a partir de 1.800 fotografias depresidiários com suas tatuagens, queRennó resgatou no Museu Penitenciá-rio do Carandiru. “Elas foram tiradaspelo médico psiquiatra José de MoraisMello, provavelmente entre as déca-das de 1910 e 40, com o propósito decontrole e vigilância da populaçãocarcerária. Ao refotografar as imagens,a artista poetiza sobre a experiência doscorpos enjaulados”.

Durante muito tempo, Rennó reco-lheu notícias de jornal sobre outrasRosângelas: a assassina, a prostituta,a deputada, a vítima do Palace 2, aevangélica, a estuprada, a presidiáriamarcada para morrer, aquela que com-prou um noivo pelo correio. Juntouhistórias de 133 Rosângelas e montouuma vídeo-instalação. “Ela executa ospapéis e joga com a multiplicidade depersonagens, questionando inclusive aidéia do nome próprio”.

Os jogos lúdicosprio espectador, quando simulam o atosexual ao som da trilha da Disneylândia.

“Márcia X. oferece uma visão engra-çada de como as coisas da infância e oerotismo se misturam. Podemos assimilá-la como ironia aos ocidentais que têm osexo como perversão, ao passo que osorientais atribuem a ele a função de gerara vida; ou ainda como denúncia do nívelde erotização da criança – que suporta-mos apenas até certo ponto. Ela emba-ralha os códigos, expondo elementos quenão costumamos ver juntos”, observaLuana Saturnino.

“Desenhando com terços” é umaperformance em que Márcia X., unindodois rosários, faz desenhos de pênis co-brindo todo o chão da sala. A obra foicensurada pelo Centro Cultural do Ban-co do Brasil (CCBB), no Rio, quando aartista já havia falecido, por pressão daOpus Christi. “Na verdade, a artista criaum clima sagrado e se movimenta de for-ma delicada, sem nunca pisar nos dese-nhos. A imagem remete a um ritual sua-ve, apesar da ironia à oposição ao abortoe a outros questionamentos da Igreja so-bre a sexualidade”.

A autora do estudo lembra que MárciaX. aborda outras obsessões femininas,como a culinária e os cuidados do lar, en-voltas em um aspecto de transe ritualístico.Em “Ação de Graças”, a artista está deita-da em posição ginecológica, com galinhasmortas cobertas de pérolas atadas aos seus

pés. “Se é o frango depenado que faz par-te do cotidiano da mulher tradicional nacozinha, a artista transforma aquela ima-gem. Ela disse que se inspirou no hábitode se calçar pantufas de coelhinho, queachava muito estranho”.

Márcia X. conseguiu um efeito mar-cante em “Pancake”, ao despejar latõesde leite condensado sobre si, deformandoa própria imagem, para em seguida co-brir-se de confeitos coloridos. “Para opúblico, é uma imagem ao mesmo tempofascinante e asquerosa – do doce que to-dos disputam na festa infantil e do exces-so de melado que repugna. ‘Pancake’ re-mete à maquiagem feminina, feita paraembelezar, mas que quando passa do li-mite, deforma”.

Fernanda Magalhães é professora de fotografia na Uni-versidade Estadual de Londrina (UEL) e está terminando odoutorado no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Desde 1993,vem pensando a sua própria experiência como um corpo demulher gorda. “Em seus primeiros trabalhos, a artista semostra sozinha no apartamento e o tom é de sofrimento esolidão, da difícil relação com o corpo, da rejeição a si mes-ma”, diz Luana Saturnino.

De fato, acrescenta a historiadora, Fernanda Magalhãesrecebeu em casa uma formação artística e muniu-se de umasubjetividade na qual se apega e com a qual constrói ummundo e uma vida estilizada. “Ela diz que o redondo é aforma perfeita, com lindas curvas. Virou do avesso a situa-ção da pessoa obesa deprimida, abandonada e mal-amada.Tem o dom de conectar o trabalho artístico com a própriavivência, manipulando fotografias e colando nelas recortesde jornais e receitas culinárias”.

Foi a partir da experiência pessoal que Fernanda idealizouum projeto para investigar como é a representação da mulhergorda nua na fotografia. “Ela quis saber quais são as referên-

cias: se o corpo gordo é investido de desejo ou se justificatoda esta rejeição. Com seu projeto, ganhou uma bolsa daFunarte e envolveu-se fortemente com a questão da obesida-de, denunciando também a ditadura da beleza”.

Em “Gorda 09”, Fernanda Magalhães cola na fotografiado próprio corpo a cabeça da Vênus de Willendorf, estatuetaque representaria a deusa ancestral da fertilidade. Cola tam-bém um escrito: “Lista de pedidos aos aliados não-gordos. Oprimeiro: ser vista como um ser humano sexual”. “A artistadenuncia que perdemos a percepção da obesa como pessoaerotizada”.

Luana Saturnino observa que a sociedade contemporâneafez do ódio à gordura uma obsessão. “Como diz DeniseSant’Anna, os gordos são engordurados, lentos, não passamna roleta, não cabem no espaço. Ao que Fernanda acrescenta:queremos desengordurar o mundo”.

A instalação ‘Classificações Científicas da Obesidade’, naopinião da autora, é uma crítica ácida ao poder médico e aocálculo do índice de massa corpórea (IMC). Fernanda Maga-lhães recortou o interior de fotografias de obesos em tama-nho natural – e também de alguns corpos magros –, deixandoapenas os contornos. “As peças que denotam pessoas enor-mes, suspensas por fios transparentes, rodam sinuosas comonum baile, re-significando esses corpos”.

O corpo gordo

A historiadoraLuanaSaturninoTvardovskas:corpo esexualidadeem discussão

Obra da série Cicatriz (1966-2003), deRosângela Rennó: imagens resgatadas noMuseu Penitenciário do Carandiru

IdentidadescristalizadasClassificações Científicas da

Obesidade, exposição de FernandaMagalhães realizada em 2000:

crítica ao poder médico e ao IMC

Ação de Graças, performance/instalação deMárcia X., em 2002: cotidiano da mulher epantufas de coelhinho como inspiração

Fotos: Antoninho Perri/Divulgação