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1 ARTE URBANA ARTE URBANA São Paulo: Região Central (1945-1998) Obras de caráter temporário e permanente Vera Pallamin Apoio: FAPESP 2000

Arte Urbana Livro

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1ARTE URBANA

ARTE URBANA

São Paulo: Região Central (1945-1998)

Obras de caráter temporário e permanente

Vera Pallamin

Apoio: FAPESP

2000

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ARTE URBANA, de Vera M. Pallamin, foiorganizado, originalmente, em texto e CD-ROM.O texto trata da conceituação sobre arte urbana eprocessos de estetização contemporâneos,sintetizando uma reflexão sobre práticas artísticase suas relações com as transformações qualitativasdos espaços públicos. O CD-ROM, que portapropriamente o conteúdo intitulado deste trabalho,foi concebido de modo a propiciar o cruzamentode três eixos: referências urbanas, referênciasartísticas e autores / obras.

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Vera M. Pallamin

É formada pela Faculdade de Arquitetura eUrbanismo da Universidade de São Paulo, ondefez mestrado e doutorado e é docente em regimede dedicação exclusiva. Fez pós-doutorado naUniversity of California, Berkeley (EUA) e naUniversità degli Studi di Firenze (Itália) sobre esfe-ra pública e arte urbana. É coordenadora do Ateliêde Escultura da FAUUSP.

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São Paulo - Região Central (1945-1998) Obras de caráter temporário e permanente

Vera M. Pallamin

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Pallamin, Vera M.Arte Urbana ; São Paulo : Região Central (1945 - 1998):

obras de caráter temporário e permanente / Vera Maria Pallamin- São Paulo, Fapesp, 2000.

1. Paisagem urbana 2. Arte urbana 3. São Paulo (cidade)

CDD 711.4

Primeira edição (esgotada):São Paulo, Annablume Editora, 2000.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ....................................................................09

PRÓLOGO ....................................................................13

INTRODUÇÃO..............................................................15

CAPÍTULO 1 ARTE URBANA / PRÁTICA SOCIAL..........................21

Cultura Urbana ................................................................27Territorialidade e Lugar ....................................................30Espaços públicos e práticas sociais ..................................35Práticas artísticas: poética e memória social ......................46

CAPÍTULO 2PROCESSOS DE ESTETIZAÇÃOCONTEMPORÂNOS..............................................................................59A cultura como empreendimento ......................................64O estético e as práticas culturais........................................73

BIBLIOGRAFIA.............................................................80

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PREFÁCIO

A discussão de arte pública que vocês irãoencontrar não terá como parâmetro a questão política dacidadania. A referência para esse recorte da produçãoartística que neste trabalho será privilegiado está em nívelmais profundo que o simplesmente político: trata-se daformação do social, da contínua constituição de umasociedade específica, ambiente da arte sendo feita e quetambém vem a ser na arte enquanto ela se faz.

O social é visto nesta discussão em suadimensão conflitiva, e nela, por um lado, os setoresdominantes procuram afirmar-se e fazer reconhecer suahegemonia, assim como, por outro, os setores subalternosou excluídos lutam por se fazer ouvir, para que sua atualsituação não se perpetue e para engendrar o social emoutra direção. E, além de setores, grupos, classes sociais,

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indivíduos fazem-se ouvir, constituem, engendram. O social,em qualquer direção, também é fruto de ações e visões deindivíduos.

E a arte pública, a arte que se faz no espaçopúblico, o gesto, a intervenção, o evento, a instalação, oespetáculo, a apresentaçào, a arquitetura - que é, enquantoarte, pública por excelência -, tudo isso exerce sobre o socialpreexistente um impacto, em que talvez a hegemonia sejaconfirmada ou desafiada, mas, mais importante que isso, emque algo do novo desse social passa a ter existência. Pode-se também dizer, portanto, que no impacto é o social queimpacta.

É o que faz da arte pública - cujos prolegômenossão apontados neste livro - um campo que, emboranecessariamente centrado no estético, em muito otranscende, seja por envolver essa dimensão histórico-social,seja por emergir de fenômenos que não podem serabrangidos pela estrita designação da arte, institucionalizadaou não.

Sob uma outra ótica, a arte pública, em seuacontecer, solicita da estética enquanto reflexão a máximacapacidade de compreensão, que a habilite, para além dasusuais distinções entre forma e conteúdo, a discutir a ação,esse oceano de que o trabalho é braço menor.

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Em vista disso, este trabalho da professora VeraPallamin, embora dê conta, no CD-ROM, da produção dearte pública em território paulistano no período maissignificativo de sua história, pauta-se sobretudo peloprocedimento teórico e interpretativo. Trava diálogo com oque se vem produzindo no mundo sobre o assunto, passandopor diversas áreas que tangenciam a arte pública, mas nãoencontrando propriamente entre nós precursosres que játivessem percorrido parte deste seu caminho. Tal é opioneirismo que caracteriza este empreendimento e que é oseu mérito. Reconhece o valor de seus interlocutores -Lefebvre, Blanchot, Sennett, Deutsche, Foucault, Welsch,os principais-, inalcançável em vários aspectos, masapresenta o seu olhar sucinto, diferente, embasado, originale instaurador.

O interesse do trabalho de Vera, que não serestringe ao contexto brasileiro e que aponta paradesdobramentos ainda mais fecundos, ancora-se em seuduplo escopo de estudo / análise / teoria e proposta /visualização prática. E, antes de mais nada, contribuiepistemologicamente com a definição de um novo campode pesquisa.

Temos aqui um exemplo de como floresce essasua notável vivência, que inclui, além do estudo na Faculdade

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de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP) e de muitotrabalho, ser artista, ter passado pelas teorias da percepçãoe da fenomenologia merleau-pontyana, tornando-seespecialista em sua aplicação ao ensino da arte, ter sidoaluna da Universidade da Califórnia, em Berkeley, ter vividoem Florença, e coordenar o Atelier de Escultura da FAU/USP.

Este é um convite à leitura deste texto, que, porsua vez, é um convite à reflexão, à participação na construçãoda cidade em busca de melhores rumos.

JOSÉ TEIXEIRA NETO FFLCH-USP

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PRÓLOGO

Este trabalho refere-se à terceira parte de umapesquisa denominada “Arte urbana: paisagem, percepção eprojeto”, na qual trabalhou-se este tema em relação àscidades de San Francisco (EUA) e Florença (Itália).

Seu conteúdo está organizado em texto e CD-ROM. O texto trata da conceituação sobre arte urbana eprocessos de estetização contemporâneos, sintetizando umareflexão sobre práticas artísticas e suas relações com astransformações qualitativas dos espaços públicos. A arteurbana é enfocada enquanto um modo de construção socialdos espaços públicos, uma via de produção simbólica dacidade, expondo e mediando suas conflitantes relaçõessociais.

Neste texto não se apresenta uma classificaçãogeral de diferentes tipos dessa manifestação artística.

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Interessa-nos delinear um certo campo de abrangência daarte urbana, questões nela envolvidas e advindas de outrasfrentes, sem, contudo, ter a intenção de esgotá-la. Nesteterreno são destacados alguns aspectos de ordem cultural,política, econômica e estética fundamentais à compreensãoda ocorrência destas práticas na cidade.

O CD-ROM, que porta propriamente oconteúdo intitulado deste trabalho, foi organizado de modoa propiciar o cruzamento de três eixos referenciais:

1) Referências urbanas

2) Referências artísticas - sendo ambas caracterizadas pordécadas, a partir dos anos 1950, e estruturadas de modoque possam pontuar-se mutuamente.

3) Autores / Obras - as obras foram especificadas comotemporárias e permanentes. Embora privilegiadas quanto àregião central de São Paulo e com data da inserção /implantação após 1945, no caso das obras permanentesforam também incluídas as esculturas do Parque Ibirapuera,da Cidade Universitária e da Fundação Armando ÁlvaresPenteado (FAAP), de modo a reunir os conjuntos maissignificativos da cidade.

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INTRODUÇÃO

As situações urbanas, tomadas enquantocampos de significação, são qualificadas por um conjuntode relações históricas, políticas, econômicas, culturais,sociais e estéticas, cujos sentidos perpassam suamaterialidade e os processos nos quais se constituem,concomitantemente. Por um lado, são essencialmentediacríticas, caracterizando-se pelas diferenças contextuaisque estabelecem entre si no decorrer do tempo. Por outro,mostram-se a partir de seus perfis, o que nos impede deousar estabelecer-lhes um sentido último e definitivo. Esteestá sempre sendo feito, em movimento de maturaçãoconstante.

Nesta feitura material e simbólica de que secaracteriza o urbano, a dimensão artística participa comoconstituinte, havendo entre ambas uma sintonia processual.

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Compartilham de uma “fomatividade” cujos procedimentose resultados vão sendo definidos em percurso (1). Suaabordagem parte do modo do seu fazer / construir, modoeste não definido plena e previamente como sendoantecedente à obra, mas engendrado durante a sua produção,entendendo-se por arte a resultante desta construçãoinventiva.

Esta pertinência de procedimentos operativosaliada à mútua influência entre a arte e o urbano, deve rebater-se, segundo Argan, nas investigações de cunho estético:

. . . todas as pesquisas visivas deveriamorganizar-se como pesquisa urbanística. Fazurbanística o escultor, faz urbanística o pintor,faz urbanística até mesmo aquele que compõeuma página tipográfica, faz urbanísticaqualquer um que realize algo que, colocando-se como valor, mesmo nas escalasdimensionais mínimas, entre no sistema devalores.. . [existentes no urbano] (Argan,1984:233).

(1) Luigi Pareyson, em Os problemas da estética, definiu ‘formatividade’como sendo “um fazer que seja ao mesmo tempo, unvenção do modo defazer”, ou seja, “um fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo defazer”(p.36 e 32, respectivamente).

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Neste contexto, “fazer urbanística” significacontribuir para a transformação qualitativa do urbanoalterando seus objetos, sua capacidade, qualificações, numtrabalho que provoca e, ao mesmo tempo, exige acompreensão de seus códigos e a interpretação de suasmúltiplas significações.

Sob o ponto de vista processual, a relação entrearte pública e espaço urbano não é de justaposição, nem ainserção neste, de “objetos ilustrativos” de valores culturais.Evita-se a noção de acomodação ou “adequação” da arte.Antes, sua inscrição aí se dá no rolar das transformaçõesdo urbano, alterando sua amplitude qualitativamente. Nãose trata, pois, de se concentrar no aspecto “fotogênico” dolugar, mas de buscar uma inovação na sua dimensão artística.Longe de serem maquiagem funcionalista, certas obras ouintervenções artísticas instauradas no urbano recentementesão iniciativas de consequências e efeitos complexos.Algumas se presentificam em concordância com seucontexto, aflorando-lhe novas orientações, caracterizando-o diferencialmente em sua materialização espacial. Há,porém, situações de confronto entre um e outro, ainda quenão permanente, chegando-se a extremos de destruição daprópria obra.

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Embora aparentemente contraditório, hoje tantourbanistas, arquitetos quanto artistas (2) trabalham com muitomenos “certezas” em relação ao urbano do que há duas outrês décadas. Suas afirmações são mais cautelosas e menosgeneralizantes, tanto no plano da construção conceitualquanto físico-espacial. As garantias de espaços “comuns”,tratados como sendo amplamente apreensíveis ecompreensíveis pela maioria da audiência, têm se esvaído.O efêmero, a descontinuidade e a fragmentação têm sidodescongelados no clima contemporâneo, umidecendoterrenos da produção e reprodução material e simbólica.Esta problemática renova, nestes termos, aquela da arte (3).

Interroga-se não mais sobre “a”, mas sobre “as” identidadesque se mostram, que se definem e redefinem no ambienteurbano. Neste movimento, a arte participa desta reflexãosobre o que é, o que deveria ser, o que têm sido essesespaços da urbanidade, eminentemente conflitantes e quetêm se caracterizado, na sua situação mais recente, pelaausência de grandes projetos coletivos. Nestes seus

(2) Considerados aqui como aqueles cujo trabalho envolve a criação de obrasartísticas de caráter público, instaladas em espaços públicos, de carátertemporário ou permanente.

(3) Metodologias atuais na área, de caráter mais aberto, trabalham com decisõespasso a passo em seus processos de desenvolvimento, encaminhando aproximaçõessucessivas das metas desejadas e incorporando o acaso em suas mudanças de trajetória.

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intermeios, a arte urbana pode delegar aspirações difusas,pode provocar questões ou trazê-las à baila, pode abrirjanelas do devir de incertezas fecundas.

Os significados da arte urbana desdobram-senos múltiplos papéis por ela exercidos, cujos valores sãotecidos na sua relação com o público, nos seus modos deapropriação pela coletividade (4). Há uma construçãotemporal de seu sentido, afirmando-se ou infirmando-se.Assim, tais práticas artísticas podem contribuir para acompreensão de alterações que ocorrem no urbano, assimcomo podem também rever seus próprios papéis diante detais transformações: quais espaços e representaçõesmodelam ou ajudam a modelar, quais balizas utilizam emsuas atuações nesse processo de construção social.

Este trabalho não se encaminha para odelineamento de “categorias estéticas”, nem de proposiçõesque visem aplicação eficiente, de caráter normativo, nainterpretação de outras obras. Os esforços são no sentidode refletir sobre a arte urbana atentando-se à sua produçãoe recepção. A intenção não é, por um lado, tratar a atividadeartística como um tipo de atividade especial, singularmentediferente, nem, por outro, desmerecê-la diante dos

(4) “Na condição atual da cultura se permite até mesmo que (...) um objeto possaser contemporaneamente arte e não-arte, a qualificá-lo ou não qualificá-lo comoarte bastando a intencionalidade e a atitude do artista e também do espectador”(Argan, 1984:27).

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atordoantes problemas urbanos. A arte urbana é vista comoum trabalho social, um ramo da produção da cidade,expondo e materializando suas conflitantes relações sociais.

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CAPÍTULO 1

ARTE URBANA / PRÁTICA SOCIAL

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“Conhece-se mal, a bem da verdade, osmecanismos pelos quais uma cultura popular,eventualmente uma contracultra, modifica osobjetos urbanos constituídos ou os modela.Essa reflexão convida simplesmente a pensarque os modos de habitar não são simplesreflexo das desigualdades ou mesmo deconflitos sociais enquanto tal; seria precisoprocurar, através da grelha urbana, asmanifestações de liberdade, as reivindicaçõesde autonomia, a construção do coletivo ou adefesa do privado à margem das hierarquiassociais reconhecidas. Seria preciso criticar denovo a lógica do lugar muito frequentementeadmitida pelos urbanistas e questionar, aocontrário, como os grupos sociais, nos atos epensamentos produzem seu meio.(Roncayolo, 1990:179)

A arte urbana é uma prátuca social. Suas obraspermitem a apreensão de relações e modos diferenciais de

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apropriação do espaço urbano, envolvendo em seuspropósitos estéticos o trato com significados sociais que asrodeiam, seus modos de tematização cultural e política.

Perpassar a topologia simbólica da arte urbanaé adentrar a cidade a partir de planos do imaginário de seushabitantes, incorporando-os, por princípio, à compreensãoda sua materialidade. Deste modo, as referências urbanassão enfatizadas em sua dimensão qualitativa, abrindo-se àambiguidade de seus sentidos.

O relevo dos significados das obras de arteurbana e sua concretização no domínio público dão-se emmeio a espaços permeados de interdições, contradições econflitos. Sua efetivação porta relações de força sendoexercidas entre grupos sociais, entre grupos e espaços, entreinterpretações do cotidiano, da memória e história doslugares urbanos. Potencialmente (sobretudo quanto às obrasde caráter temporário) pode configurar-se em um terrenoprivilegiado para efeitos de choque de sentidos (negação,subversão ou questionamento de valores).

Tematizar a arte urbana é pensar sobre a vidasocial aproximando-se de um certo modo pelo qual aspessoas se produzem e são produzidas no âmbito da ordemsimbólica. É pensar sobre cultura urbana.

Trazendo em suas raízes latinas os sentidos de

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criar, cuidar, cultivar (colere), a noção de cultura refere-seà maneira como nos relacionamos com o outro. É construçãode relações de alteridade, sendo “a maneira pela qual oshumanos se humanizam por meio de práticas que criam aexistência social, econômica, política, religiosa, intelectual,artística” (Chauí, 1995:295). Sua compreensão perpassa uma“espécie de equivalente vivido” que nos pertence enquantosujeitos sociais, cuja extensão caminha rumo a um “universalconstituído por relações de complementaridade”, emreestruturação contínua pelo “advento do sentido” (Merleau-Ponty, 1984:199 - Nota do Trad.). Este universal não serefere a um universal de “sobrevôo” (como purarepresentação), mas sim a um “universal oblíquo”, (5) aoqual temos acesso através de nossas experiências, mas semnunca dominá-lo de ponta a ponta.

Esta criação coletiva de ideias, valores e obrasé diferenciada para formações sociais distintas e nos modoscomo estas se realizam através da linguagem, das relaçõesde trabalho e das suas relações com o tempo. Por um lado,a dimensão da cultura associa-se ao processo dediferenciação de grupos sociais, delineando suas identidades,legitimando-os. Por outro lado, abarca o modo como se

(5) Acepções cunhadas pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty.

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dão as relações entre estes diferentes grupos, as quais,frequentemente, são rugosas, de caráter agonístico.

Esta sua contraface explicita a natureza políticada cultura e do trabalho com cultura. É nos meandros desteterreno que programas e discursos sobre cultura podem sergeradores de práticas de erosão simbólica, de esgarçamentode referências e valores. Quando é canalizado nestes termos,a cultura é tratada como instrumento de discriminação social,sendo utilizada como reforço de processos eonômicos. Estereforço implica sua participação em relações de dominação,através de modos de pensamento, ideias, representações esímbolos. Pela via ideológica fomenta-se a disseminação eo predomínio de um “padrão cultural”, adejetivado comosendo o “melhor” para o social, o “mais avançado”. Talafirmação implica uma estratégia de desqualificação culturaldos demais grupos aí envolvidos, a qual pode efetivar-sepela indiferença, marginalização ou pela sua“mercadificação”. (6)

(6) Como tem ocorrido recentemente, quando o multiculturalismo tem sidoincorporado à rede de consumo como fonte de exotismo.

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CULTURA URBANA

No âmbito da pesquisa de caráter antropológicosobre cultura urbana, o questionamento sobre as relaçõesde dominação, com ênfase nas manifestações das “camadaspopulares”, foi tema recorrente em pesquisas realizadas nosanos 1970. Segundo Montero, tais estudos buscavam“compreender a ‘cultura popular’ como uma espécie decontrapoder gestado no seio dos grupos sociais maisdesfavorecidos”, sendo esta vista como “instrumento deresistência ou de vontade política” (Montero, 1993:170).Tal enfoque inter-relacionava-se diretamente com oschamados “movimentos sociais” em destaque naqueladécada: “No intuito de compreender essa ‘cultura dodominado’ multiplicaram-se, nesse final de década e nadécada seguinte, os estudos sobre a vida (alimentação, lazer,família) e as expressões simbólicas (carnaval, futebol,religiosidade) das camadas populares urbanas”(Montero,1993:170).

No decorrer dos anos 80, afirma Montero,algumas noções então sendo empregadas naquela diretrizde trabalhos, dentre as quais a de “comunidade”,“espontaneidade” e “resistência” foram sendo apontadas emseus limites, frente às transformações dos grupos e

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movimentos em estudo. Esta crítica direcionava acompreensão das representações culturais segundo visadasmais abrangentes quanto ao seu lugar social e urbano,repensado seus “limites ideológicos”.

As grandes perturbações que o mundo viveu,particularmente na virada desta última década[1970], tornaram cada vez mais visível atrama de relações mundiais que atravessamos sistemas culturais e políticos (. . .) osprocessos mundiais colocam em relaçãoesferas culturais heterogêneas (...) criamcircuitos mundiais de circulação de ideias ede quadros que aproximam lógicasdiferenciadas (Montero, 1993:172).

Estas diferenças são recolocadas em novosníveis, nos quais estão presentes novos vetores sociais deintegração, segregação e exclusão, associados a processosde globalização da economia e da cultura e políticas decomunicação, atualmente elaborados nos países de altodesenvolvimento tecnológico. No entanto, simultaneamentea este processo de mundialização têm ocorrido movimentosde acentuação de especificidades, memórias e históriaslocais.

Estes movimentos, por um lado, são

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homogeneizados, sob a ótica da mercadoria, do consumo esua lógica universalizante; porém, por outro lado, podemtambém ser apreendidos enquanto fonte e paisagem detemporalidades sociais diversas.

Sob este ponto de vista mais específico destaca-se a importância do cotidiano na concretização destamultiplicidade de tempos sociais. É no âmbito da vidacotidiana que redes de lealdade e sociabilidade são tramadase conferidas. É aí que os hábitos são compartilhados e asreciprocidades fazem sentido. Entretanto, é também nestadimensão do gradual e do possível - característica do tempocotidiano - onde despontam os enfrentamentos dasconvenções, os desmembramentos das hierarquias, asnuanças da heterogeneidade social e política.

A noção de cotidiano como que “costura pordentro” as relações entre as ações culturais, as práticassociais e os espaços nos quais ocorrem, situando o tratocom a espacialidade não como um pano de fundo daquelas,mas como uma sua dimensão constituinte. A cultura ésocialmente situada e espacialmente vivida. Suas significaçõessão espacialmente “encarnadas”, sendo o valor cultural dosobjetos e obras não imanentes a estes, mas sim tecido enervurado nas relações sociais que lhes dão sentido.

A intervenção artística no espaço público é como

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uma modulação nesta trama. É caso exemplar a evitar umentendimento objetivista, o qual estaria baseado emdissociações entre obra e espaço, entre espaço e público eentre obra e público. Estes espaços do cotidiano nos quaisocorrem as intervenções artísticas mostram-se plenos dearticulações, segregações e rupturas, cujos significadossolicitam aproximações específicas. São marcados pordescontinuidades que se configuram através de limitessociofísicos, os quais são associados aos modos ecaracterísticas de suas apropriações. A cadência de certaspráticas sociais que neles ocorrem, assim como oagenciamento coletivo de estratégias e de interesses estãoentre os suportes das esferas de territorialidade que nelesse instauram.

TERRITORIALIDADE E LUGAR

A concepção de territorialidade está ligada aordens de subjetivação em relação ao espaço, envolvendocondutas, representações e sentimentos de pertencimentoexpressos individual e coletivamente. Segundo o geógrafoE. Soja, é compreendida como um “fenômeno de

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comportamento associado à organização do espaço emesferas de influências o em territórios claramente delimitados,que apresentam caracteres distintos e podem serconsiderados ao menos parcialmente como exclusivos porseus ocupantes e aqueles que o definem” (Soja apudRoncayolo, 1990:182).

Segundo Roncayolo, a territorialidade éfenômeno cultural e multidimensional, essencialmentecoletivo, incluindo em seus domínios aspectos de ordempsicológica, econômica e geográfica. Refere-se a modos deinscrição em determinados espaços, requalificando-os comoregiões de apropriação. É de natureza social e temporal,não devendo ser dissociada das instituições nas quais estase organiza. Em sua prática, “apropriação, poder erepresentações se combinam” (Roncayolo, 1990:189). Podeconcretizar-se como um apego, de longa duração, a lugaresespecíficos ou como modos de organização social esimbólica que podem ser ressituados por seus agentes aomigrarem para outros espaços.

A territorialidade associa-se à promoção deidentidade. Neste sentido, agencia solidariedades earregimenta interesses, criando campos de ação balizadose, por vezes, inéditos em relação àqueles envolvidos,delineando-lhes um lastro de relações simbólicas que os situa

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social e culturalmente.Controle, defesa, estabelecimento de hierarquias

ou fronteiras (tais como público / privado, pessoal /impessoal, conhecido / desconhecido, confiável /desconfiável, íntimo / social) figuram no elenco das possíveisfunções da territorialidade. Sua conformação, contudo, estáaberta a uma multiplicidade de condições e situações. Se,por um lado, pode ser expressão de “posse”, por outro podesignificar assenhoreamento como “direito de uso”,instaurando novos modos de competência e presença social(Roncayolo, 1990:195). A arte urbana, quando emerge deações matizadas como afirmação de territorialidade, transitadentro deste antagonismo.

A formação da territorialidade em lugaresurbanos liga-se às características qualitativas e diferençasrelacionais destes, em sua abrangência material e imaterial.Isso faz com que seus modos de efetivação - incluindo-senestes seus desdobramentos culturais e artísticos - sejamtranspassados pelas mutações físicas e simbólicas dosespaços onde se concretizam. O entendimento dessasmutações urbanas, em ampla escala, funda-se nacompreensão desses lugares como espaços produtivos,apontando para a mudança de seus papéis eposicionamentos perante os modos como a cidade se

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organiza na produção e reprodução do capital.(7)

Os significados de um lugar se alteram emdecorrência das ações sociais que sobre ele se exercem.Estas ações associam-se às condições de inserção econômicadeste lugar na malha urbana e sua importância estratégicaenquanto alvo (ou não) de investimentos. Assim, suacaracterização pressupõe considerações sobre a produçãodo espaço urbano em dois níveis: por um lado, abrangendo

o estudo das funções urbanas e suaredistribuição, em um dado momento, comoresultado da divisão social do trabalho e dadivisão territorial do trabalho e, [por] outrolado, (...) [o] reconhecimento das condiçõespreexistentes [heranças de situações passadas/ o trabalho acumulado] que incluem o espaçoconstruído (Santos, 1994:125).

As paisagens arquitetônica, social e econômicados lugares e as diferenças entre estes, vinculam-se a estatensão entre a força de consistência e resistência de suas

(7) Conforme afirma Milton Santos (1986:22), “o espaço que ‘para’ o processoprodutivo une os homens é o espaço que, ‘por’ esse mesmo processo produtivo,os separa”.

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heranças e os vetores de transformação produtiva nelasatuantes, cuja origem e potência transcendem os limiteslocais de suas ações.

Deste modo, a caracterização dos atributos deum lugar urbano requer o discernimento sobre as utilizaçõesde seus recursos, de seus detentores e as relações de poderque estes usufruem, atentando-se às contradições produzidasentre possíveis valores de uso destes recursos e suamanipulação enquanto valores de troca.

A cidade constitui, em si mesma, o lugar deum processo de valorização seletiva. Suamaterialidade é formada pela justaposição deáreas diferentemente equipadas, desde asrealizações mais recentes, aptas aos usos maiseficazes de atividades modernas, até o queresta do passado mais remoto, onde seinstalam usos menos rentáveis, portadores detécnicas e de capitais menos exigentes (Santos,1994:129-130).

Neste processo de valorização seletiva doterritório urbano promovido pelo capital, economias decertas parcelas acarretam deseconomias de outras.

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Atividades econômicas são estimuladas de mododiscriminatório em termos sociais, através de procedimentosque promovem privilégios, desigualdades e marginalizações.Neste contexto, a vida urbana - e sobretudo aquelametropolitana - erige-se envolta por conflitos ligados a esta“socialização capitalista”, na qual processa-se a“transferência de recursos da população como um todo paraalgumas pessoas e firmas (Santos, 1994:122). Estacapitalização do território urbano é sinônimo de modos deprivatização excludente no uso de benfeitorias produzidascoletivamente, dentre as quais destacam-se os espaçospúblicos, que, em tese, seriam locais privilegiados naexpressão da cidadania cultural e política.

ESPAÇOS PÚBLICOS E PRÁTICAS SOCIAIS

Michel de Certeau, examinando as práticassociais segundo referências distintas de uma determinaçãoeconômica, aborda os espaços sociais e urbanos comodimensões abertas à reconstrução de seus sentidos.

Em sua acepção, a noção de “prática” não serefere a uma “identificação” de modos de comportamentocom relação a representações ideológicas ou padronizadas.As práticas ligam-se à noção de fazer-inventar, gerando

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procedimentos impensados previamente, usos subvertidos,valores não previstos. “São os inúmeros ‘modos de operar’pelos quais os usuários reapropriam o espaço organizadopor técnicas de produção sociocultural”(Certeau,1984:XIV). As manifestações artísticas que se dão nosespaços públicos são uma via de acesso a esse modo dereapropriação, quer efetivando-se temporária oupermanentemente.

A análise de Certeau considera duas lógicas deação: a tática e a estratégia. O modelo de ação estratégica

postula um “lugar” que pode ser delimitadocomo seu “próprio” e serve como base a partirda qual podem ser gerenciadas relações comuma “exterioridade” composta de alvos eameaças (clientes ou competidores, inimigos,o campo circundando a cidade, objetivos eobjetos de pesquisa, etc) (...) é uma práticapanótica (Certeau, 1984:36).

Nas “táticas” não há relação de exterioridadequanto aos locais de ocorrência, antes são intrínsecas a estes.Operam por ações isoladas, tirando partido deoportunidades. O espaço da tática é o espaço da alteridade,implica em mobilidade conforme as condições do momento

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e atenção a particulares injunções.Nesta abordagem de Certeau, a análise

foucaultiana sobre a “microfísica do poder” é uma inspiraçãofundamental (marcadas, porém, as diferenças). ParaFoucault, poder é “relação de forças”, isto é, um feixe abertode relação de forças, cujo caráter não é essencialmenterepressivo. Nas suas palavras, “o que faz com que o poderse mantenha e seja aceito é simplesmente que ele não pesasó como a força que diz não, mas que de fato ele permeia,produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”(Foucault, 1979:8). É uma resultante (não fixa) , implicandoem enfrentamento constante, motivo pelo qual em todarelação de poder há a possibilidade de resistência: “Jamaissomos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificarsua dominação em condições determinadas e segundo umaestratégia precisa” (Foucault, 1979:241). Esta possibilidadede resistência não se apresenta de maneira “única”, como a“grande recusa”, mas como uma multiplicidade depossibilidades engendradas nos antagonismos sociais, nasrelações de obediência e dominação.

Segundo Certeau, a análise de Foucault leva aum novo conjunto de problemas a serem considerados. Sea grelha disciplinar é ubíqua e cada vez mais extensa, seria,

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então, premente compreender quais procedimentos(cotidianos), quais “modos de operar” formam acontrapartida desses “processos mudos que organizam oestabelecimento da ordem econômica”(Certeau, 1984:XIV).

De modo análogo à abordagem foucaultiana,Certeau ressalta a percepção e análise de táticas a atuareminternamente nas estruturas tecnocráticas, provocando umamiríade de pequenos desvios em seu funcionamento. Porém,diferentemente de Foucault (que incide sobre os espaçosde repressão organizada), seu objetivo

não é de tornar mais claro como a violênciada ordem é transmitida na tecnologiadisciplinar, mas, antes, trazer à luz formasclandestinas tomadas por dispersas, táticas eviradas da criatividade dos grupos ouidivíduos já pegos nas redes da “disciplina”.Levados aos seus limites ideais, essesprocedimentos, estratagemas de consumidorescompõem a rede de uma antidiscilina, a qualliga-se a certos efeitos libertadores dasmalhas de controle social (Certeau, 1984:XV).

Ao refletir sobre as práticas cotidianas - em

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meio às quais se ambientam práticas artísticas - além daocorrência foucaultiana sobre o poder, Certeau emprega umaanalogia com formações limguísticas, com o uso dalinguagem na construção de significações. Ao tratar daspráticas espaciais afirma: “O ato de andar é para o sistemaurbano o que o ato da fala é para a linguagem” (1984:97).O pedestre, ao caminhar, atualiza algumas das possibilidadesdeterminadas pela ordem construída. Porém, através do usoparticularizado que promove, ele também amplia aspossibilidades e proibições envolvidas nesta ordem (atravésde desvios que ele mesmo cria ou adota). O caminhar dopedestre define um “espaço de enunciação”. Certeau defineo espaço como um “lugar praticado”(8), sendo talespacialidade de ordem distinta daquela do espaçocartesiano, panótico, funcionalista. Refere-se a umaespacialidade temporizada, antropológica, histórica,corporal: “Praticar um espaço (...) é, num lugar, ‘ser outro’e ‘passar ao outro’” (Certeau, 1984:110). É movimento emdireção à diferenciação.

A ênfase de Certeau nas operações “desviantes” que compõem as práticas assenta-se em não admitir que asociedade seja reduzida a um padrão dominante de

(8) Nessas práticas, Certeau também inclui os discursos relacionados a estes espa-ços (dentre os quais as “histórias espaciais”, isto é, narrativas dos usuários envol-vendo tais espaços).

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procedimentos. As práticas menores, desdenhadas pelaanálise racionalista, perfazem como que uma reserva demodos, infinitesimais, que são ativos em provocar fendasnas redes de dispositivos de controle estabelecidos. Nesta“provocação”, essas práticas diminutas não se concentramnum “lugar próprio”; antes, espalham-se indeterminada eanonimamente. Sua importância reside em seu uso autônomode construções simbólicas, por serem modos de operar nãodomesticados.

Do ponto de vista das táticas, o conceitounificado de cidade, ligado a uma lógica urbanísticas, decaiem favor da noção de práticas urbanas. Estas práticasconcretizam-se via trajetórias, itinerários, narrativas diárias.“em grego, narração é chamada diegesis: esta estabeleceum itinerário (ela ‘guia’) e passa através de (transgride)”.Este espaço estaria mais próximo de um espaço de carátertopológico que tópico (Certeau, 1985:129). Nesta linha, a“narrativa” na qual se apoia Certeau não é encarada sob ojugo objetivista, como sinônimo de expressão ignara.Inversamente, é modo de acesso a legitimações de usosespaciais (9).

(9) Esta prática desviante em relação ao uso dos espaços urbanos apontada porCerteau tem certa relação com aquela da “deriva” proclamada pelos situacionistas,nos anos 1950 e 60, ligados a Guy Debord. O “derivar” traria em seu bojo umaatitude crítica em relação à homogeneização dos conflitos que

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Esta atenção aos recursos discretos econtraditórios às práticas diminutas, implica em umareconsideração do usuário, de modo a não reduzi-lo àqueleque simplesmente digere simulacros impostos. Certeau rejeitaesta vulgarização da imagem do “público”, constante naprodução da mídia. O consumidor aí é tido como passivo,um receptáculo, sem papel histórico. Sua contraposiçãoassenta-se no reconsiderar a noção de recepção (que estariapresente na própria ação do uso). Toma por base a recepçãoestética de um texto, na qual este se altera pela ação doleitor, abrindo-se a uma pluralidade de significados. A idéiade um sentido único do texto, o mito da interpretação literal,é um dispositivo de dominação: “o sentido literal é índice eresultante de um poder social, de uma elite, uma lei quelegitima como “literal” a interpretação dada por profissionais‘socialmente’ autorizados e intelectuais” (Certeau,1984:171). Este falseamento do sentido literal seria, emoutros termos, a manifestação de um “discurso competente”,instituído, o “discurso do especialista”, proferido de um pontodeterminado na hierarquia organizacional (Chauí, 1982:11).

produzem o espaço capitalista, promovendo novos modos de pedestres “negociarem”os espaços cotidianos. Segundo McDonough (1994:75): “A ‘deriva’ como um atode fala do pedestre é uma reafirmação do ‘valor de uso do espaço’ numa sociedadeque privilegia o ‘valor de troca do espaço’, isto é, sua existência como propriedade(...), a deriva é um uso político do espaço, construindo novas relações sociais”.

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A contrapartida deste seriam os “incompetentes sociais”,pretensamente desautorizados ao trabalho do saber. Nestestermos, revendo as noções de público e uso, é a própriadimensão da cultura urbana que passa a seguir outra rota,incorporando a “história que começa ao nível do chão”(Certeau, 1984:97).

Esta abordagem sobre a valorização de práticascotidianas é fundamental para a arte urbana, uma vez queaquelas podem se mostrar através desta, modificando osespaços públicos com apropriações inusitadas e, com isto,alterando sua carga simbólica. Esta diretriz possui pontosde contato com o trabalho de Henri Lefebvre, sobretudo noque se refere à noção de um valor de uso que não se desfazinteiramente, que não desaparece por completo frente aovalor de troca: “qualquer que seja a predominância do valorde troca e sua importância no modo de produção, ele nãochega a fazer desaparecer o uso e o valor de uso, mesmoque se aproxime da abstração pura e do puro signo”(Lefebvre, 1981:17, Tomo III).

Para Lefebvre - que elaborou uma sociologiada vida cotidiana - há uma dimensão qualitativa a serrespeitada em sua potência e consequências, uma forçahistórica do viver não aniquilada, um viver não destituído desua vitalidade.

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O viver e o vivido individuais se reafirmam contra

as pressões políticas, contra o produtivismo e o

econômico. Quando não confronta uma política

com outra, o protesto encontra apoio na poesia,

na música, no teatro, e também na espera e na

esperança do extraordinário, do surreal, do

sobrenatural, do sobre-humano (Lefebvre apud

Martins, 1996:44, n.41).

O tempo social - feito de coexistência derelações sociais com temporalidades diversas - , além desuas relações com o passado e o presente, é tambémconstituído, segundo Lefebvre, de possibilidades. A realidadeestá carregada do possível e nela não estamos diante deblocos de tempo justapostos. O real tem sentido junto como que pode ser. Sua reflexão valoriza a noção de residual,isto é, do que não foi apanhado pelo poder. Nos resíduosestariam “as necessidades insuportáveis que agem em favordas transformações sociais, que anunciam as possibilidadescontidas nas utopias, no tempo que ainda não é, mas podeser” (Martins, 1996a:23).

A vida cotidiana, sendo plena de prescriçõesno tempo e no espaço, é carregada de uma sujeição dos

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usos (10). Com isso, perde-se a ação envolta no usoenquanto relação prática com o outro, limitando asapropriações. A possibilidade de “insurreição do uso”(Seabra in Martins, 1996a:71-86) refere-se ao resíduosendo capaz de romper esta lógica do cotidiano. Implica,entre outros aspectos, o emprego do tempo e espaço paratecer novas territorialidades. Associando-se à noção deapropriação, a noção de uso aí inclui também os planos doafetivo, do inírico e do artístico. É ainda sinônimo de desfrutee fruição. Neste sentido, enquanto à ideia do chamado“usuário” associa-se o comportamento normalizado pelosmodos de consumo (como “consumidor”), para o “usador”[usager] estão as relações de qualidade que implicam fluxosde sentidos ligados à realização de energias vitais” (Seabrain Martins, 1996a:78, nota 5)(11). Os embates daapropriação estariam presentes na passagem do “usuário” /consumidor (ao qual estaria associada a noção de “produto”)para o “usador” (que estaria mais próximo da noção de“obra”, de realização). É importante frisar que esta

(10) “A vida cotidiana começa a nascer quando as ações e relações sociais já não serelacionam com a necessidade e a possibilidade de compreendê-las e explicá-las,ainda que por meios místicos ou religiosos; quando o resultado do que se faz não énecessariamente produto do que se quer ou do que se pensa ter feito”. O trabalhoalienado, segundo Marx, é ato fundante da vida cotidiana. (Martins, 1996:35).

(11) A concepção de “usuário” para Certeau estaria próxima a esta de “usador”supracitada.

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exploração de possibilidades situa-se no campo das práticascriadoras, dentre as quais incluem-se as manifestaçõesartísticas.

Em Lefebvre, a reflexão sobre o domínio doespaço enquanto base do poder social associa-se àquelasobre os lugares de resistência aos podereshomogeneizadores que através deste se impõem.Engendrando a “produção do espaço”, onde as práticas estãoimplicadas nos processos de reprodução e transformaçãodas relações sociais, Lefebvre elabora três distinções: adimensão das “práticas espaciais”, que englobam as práticasde produção e reprodução social, assegurando uma relativacoesão deste; as “representações do espaço”, as quaisreferem-se às significações, códigos, saberes que permitemtratar as práticas espaciais e compreendê-las (são ligadasàs relações de produção e referem-se ao espaço dominanteda sociedade - incluem espaços concebidos porplanejadores, arquitetos, urbanistas); e os “espaços derepresentação”: são ligados ao lado clandestino da vidasocial e também às criações que imaginam novaspossibilidades para as práticas sociais (aí incluem-se osespaços da arte, dos escritores, dos filósofos, da utopia,das sombras e das paisagens labirínticas) (Lefebvre, 1974:42-4,48-9). Estas dimensões são concebidas segundo

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relações dialéticas, o que pressupõe a afecção das dimensõesentre si: “num modelo lefebvriano o significado [urbano] nãosurge de estruturas econômicas objetivas, mas do uso dacidade na vida cotidiana” (Deutsche, 1991:56).

PRÁTICAS ARTÍSTICAS: POÉTICA E MEMÓRIASOCIAL

É neste sentido lefebvriano que a arte urbanafoi definida anteriormente, como prática social relacionadaa modos de apropriação do espaço ubano. Enquanto“espaço de representação”, a obra de arte é também umagente na produção do espaço, adentrando-se nascotradições e conflitos aí presentes. Tomando-se o territóriourbano como campo de processos sociais, a arte urbana,nesses termos, pode alinhar-se com interessesdestacadamente distintos na produção da cidade. Estaabordagem da cidade como forma social ao invés de objetofísico (não como infra-estrutura externa aos “usuários”, masproduzida por eles) encara a arte urbana como um certoempenho na requalificação do seu cotidiano.

Nesta linha, questões artísticas e urbanasdeixam de ser dicotômicas e a presentificação deintervenções artísticas em espaços públicos mostra-se como

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uma dimensão da construção simbólica destes. A feitura daarte pode desestabilizar significados concretizados nestesespaços. O uso propriamente não funcional que a artepromove nos espaços públicos é uma via de reconsideraçãode modos usuais com os quais estes se caracterizam ou sepredefinem.

Conforme aponta R. Deutsche (1996), a artepública, nestes termos, é vista em suas relações com outrasdisciplinas - tais como arquitetura e urbanismo - a ‘serviço”da produção do espaço urbano legitimando, ou não, seusprocessos e usos dominantes. Pode ser parte de umatecnologia disciplinar efetivando-se no espaço urbano demodo a impor certa coerência ou racionalidade ou, em viaoposta, pode desviar a apreensão do espaço público paranovas considerações sociais, novos acessos, desestabilizandosubordinações e marginalizações - aproximando-se, nestesentido, ao “direito à cidade”, na expressão lefebvriana(Deutsche, 1996:29).

A arte urbana não é apreendida, portanto, foradas condições sociomateriais da cidade, mas através destas.Deutsche ressalta que na abordagem da arte pública oproblema não é a desconsideração da cidade, mas sim aperpetuação de noções mitologizadas sobre esta. Quatrotendências são destacadas nos discursos sobre arte / cidade:

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a cidade como conteúdo para a arte; a arte pública “na”cidade; a cidade como obra de arte; o ambiente urbano comoinfluência exercida sobre a experiência dos artistas eexpressa em trabalhos artísticos.

O dogma modernista afirma que a principalcondição ontológica da arte é sua posse deuma essência estética transhistórica. Todas asconexões entre arte e cidade feitas portendências esteticistas na história da arte, são,no fim, articuladas como uma única relação:trabalhos de arte atemporais e a-espaciaistranscendem, no fim, as condições urbanasmesmas que propositadamente os“influenciaram”, ou que são “expressas”.“refletidas”, ou “transparentemente”figuradas neles. Por definição, então, afunção social da arte é permanecer fora dacidade (Deutsche, 1991:46-7),

isto é, isolada dos problemas sociais reais. Substituir, por umlado, o paradigma da autonomia da arte por aquele da“interação” entre arte e cidade mantém a cesura entre ambas.Por outro, determinar que toda origem dos significados estéticose urbanos reside no âmbito econômico é promover umreducionismo em ambos os sentidos, mantendo, ao mesmotempo, arte e cidade como entidades fundamentalmenteseparadas. A superação destas posições dá-se na compreensão

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de que a arte é social em primeira instância e sua significaçãosocial é dada pelo trabalho da obra, entendido como suahistoricidade, sua recepção, seus modos de presença / ausência,visibilidade / invisibilidade em público.

Este trabalho da obra exige a reconsideração danoção de público da arte. Este não existiria como previamentedado, por um grupo presumivelmente coeso, mas seria geradocom e pela obra e diferenciado segundo os mais diversosinteresses. Inclui a possibilidade da falência da obra, diante deuma sua incapacidade em promover seu público. Em outraspalavras, não há garantia de público para a arte urbana. Elapode desabar pela indiferença.

Na abordagem de inspiração lefebvriana, a arteurbana é tratada em sentido contrário à fetichização do espaçourbano, efetivando-se, antes, como uma prática crítica nacidade. Segundo Deutsche (1991:54), esta prática crítica daarte pode efetivar-se através da crítica institucional, da críticada representação e no trato com a “especificidade local” daobra. Faz-se como um modo de intervenção nas relações sociaisque estruturam as organizações espaciais aí envolvidas,retrabalhando-se seus vínculos históricos e ideológicos (12).

(12) A questão da “especificidade” da obra em relação ao seu lugar de ocorrência- seja esta de caráter temporário ou permanente - figurou entre os tópicos deinteresse da arte pública contemporânea, envolvendo diretamente ocompromisso cultural, social e político da obra. Em sua versão funcionalista,

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esta especificidade restringe-se ao ponto de vista físico, sustentando-se numacesura entre a arte e o social. A obra é tratada sob um ponto de vista instrumentalem relação ao espaço urbano, sendo advogada a “preencher” necessidades sociais.É posicionada como se estivesse acima dos conflitos sociais de que a cidade se faz.Uma aura de autonomia envolve seu objeto, pretendendo garantir-lhe umasignificação intrínseca independente das questões geográficas locais outras que nãoaquelas do âmbito de sua inserção física. O espaço de referência da obra é tido comoseu “invólucro”, e o social é um “pano de fundo” ao qual a obra dirige-seindiretamente. Ela é desenraizada neste sentido, dando as costas à história doespaço que a conforma. Nesta visão funcionalista, a arte pública é tratada de modoa “colaborar” na resolução de certos problemas: pode preencher espaços, atrairexpectativas ou agendar usos e usuários. Pode também ser utilizada como amenidadeempregada na valorização de certas áreas de interesse, promovendo sua integraçãofísica. Apresenta-se, aparentemente, como um “bem” para todos.

A transformação mais profunda no percurso da noção de “especificidade”local ocorreu quando da passagem do paradigma formalista para o da historicidade.Abriu-se o caminho para a investigação, na construção da arte pública, da“intersecção entre dois processos materiais: a produção social do local e a produçãosocial da percepção estética” (Deutsche, 1991:54). O sentido de “especificidade”ampliou-se incluindo novos significados políticos e culturais. Mudou-se a ênfase doproduto para seu processo de elaboração. Valorizaram-se as práticas nele envolvidas,promovendo-se uma reapropriação dos meios utilizados como fontestransformadoras significativas em termos estéticos. Esta noção propõe umconfronto direto com a história do lugar da obra e a construção de sua territorialidade.Esta especificidade aponta para a tensão entre os modos de representação docotidiano, dimensões dele reprimidas na perspectiva estética dominante, apontapara a consideração dos espaços públicos a partir dos interesses privados que osocupam, dos movimentos de exclusão social que provocam a imposição de uso dosespaços. Neste sentido, as fissuras sociais do terreno em que ocorre ou se instaladizem-lhe respeito diretamente, afetam sua materialidade, assim como as imposiçõese negociações que delineiam a disponibilidade deste.

Nestes termos, há uma promessa decomprometimento da arte num plano cultural mais amplo.Tal ênfase caminha para um plano de consistência na relaçãoarte / espaços públicos onde aspectos da memória socialassumem importância frontal.

Esta visada dos espaços de ocorrência das

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práticas astísticas inclui uma reconstrução de suas referências- culturais, estéticas, artísticas - objetivando umainterpretação compreensiva de sua paisagem e de sua históriaurbana. Aproxima-se do trato com a memória dos grupossociais e modos de permanência de suas referências, seusregistros, documentação, limites e perdas. Lida com oreconhecimento das representações sociais, seus modos dereprodução ou desmembramento.

Matéria em tranformação, a memória social liga-se à possibilidade incessante de ressignificar osacontecimentos provocando-lhes múltiplas decantações desentido. Pode conquistar toda a vida presente, não apenasquanto a certas reabilitações que neste fazem sentido, mastambém no intuito de promover um vinco incisivo sobre assedimentações de seus valores e representações. Sendo ummaterial delicado,

a memória possui também algo de acidental,de circunstancial, ela não é apenas um meiode consagrar a continuidade, a duração ouainda de criar vínculos. As imagens dopassado mantêm-se instáveis e a formaatravés da qual se recria a origem trainecessariamente seus próprios efeitos dedesaparecimento, de evanescência (Jeudy,1990:51).

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Fazer reviver as origens é também uma formade lidar com o risco de seu desaparecimento.

O trabalho com esta memória social liga-se auma reconstituição - que é, ao mesmo tempo, uma certareinvenção - de referências anteriores (acontecimentos,modos de vida), de memórias coletivas. Conforme afirmaHalbwachs (1990:143), toda memória coletiva tem porsuporte um grupo social limitado e “não há memória coletivaque não se desenvolva num quadro espacial”. A força destamemória tem por suporte um conjunto de pessoas, cujasdistintas lembranças tecem-se umas nas outras, ou seja, arememoração do passado de uns apela à lembrança dosoutros: “diríamos voluntariamente que cada memóriaindividual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali euocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relaçõesque tenho com os outros meios” (Halbwachs, 1990:51). Éno escopo desta maleabilidade constante que se situa a citadainvenção da memória, a qual liga-se à indeterminaçãopresente nos relatos e aos objetos e obras aos quais sereferem. (13)

(13) De acordo com Jeudy (1990:60), “o jogo com a memória e com a identidadenão é exterior ao movimento do conhecimento, esta está presente em toda opera-ção de reconstituição”.

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A memória coletiva faz-se daquelas individuais, masdiferencia-se delas. E porque depende do engajamento vivocom seu grupo (remete-se a uma cultura viva), esta memóriaestende-se limitadamente no passado. “Para além desteslimites ela não atinge mais os acontecimentos e as pessoasnuma apreensão direta” (Halbwachs, 1990:109). Não sendouma coleção de lembranças serenas e tranquilas, a memóriasocial reaviva, em suas práticas, aflições, contradições eviolências. Não se refere a uma sociabilidade romantizada.Antes, é um investimento no social dirigido à tomada deciências histórica de suas modalidades, as quais, conformeapontado anteriormente com Foucault, são intrinsecamentetensas. No entanto, quando se torna objeto ideológico deuma “administração cultural”, faz-se serviçal à produção deuma aparência de ordem (Jeudy, 1990:24). Sob a égide daordem, segurança e limpeza pode-se conjugar a cultura àdispersão ou evacuação de grupos sociais ante a ocupaçãode certos espaços.(14)

É neste sentido que Jeudy afirma que

essa união de um ideal securitário e darenovação de uma memória coletiva urbana

(14) O processo de gentrificação urbana entendido como a valorização de certasáreas urbanas com consequente expulsão da população de baixa renda ali habitante,associa-se a este movimento.

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está longe de ocorrer ao acaso: ela faz ecoao projeto de forjar uma nova harmonia dosvínculos sociais. A cultura vem a socorro dapolítica para atenuar o cumprimento de umalógica que poderia parecer autoritária (Jeudy,1990:108).

Esta purificação resultaria numa “antimemória”,em sua espetacularização. Seria a contraposição destaestetização da memória, com a neutralização do passadonela envolvida, que uma prática artística crítica, conformecitada anteriormente, estaria compromissada do ponto devista urbano. Esta prática seria movida por uma poéticavoltada para outro tipo de trabalho com a memória social,assumindo os riscos desta e não com sua representaçãoasséptica.

Tal consideração é sensível, por princípio, àdimensão do imaginário, o qual é tecido em conjunto comas memórias e história dos lugares urbanos, sendo campode sua abertura e, ao mesmo tempo, um ponto de veemênciapara operações artísticas.

A valorizaçào do imaginário na vida social,conforme analiza Baczko, requer o desvio de certa tradiçãointelectual de tendência cienificista e realista, a qual separaria“na trama da história nas ações e comportamentos dos

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agentes sociais, o `verdadeiro` e o `real` do `ilusório` e`quimérico` (Baczko, 1991:12). Esta tendência, colocando-se como que “desmistificadora”, trataria os agentes sociaiscomo que desnudados de múltiplas representações,reduzindo o imaginário a um real deformado, ou reflexo deum real que lhe seria exterior. Seguindo outros rumos -sobretudo a partir da história, antropologia e sociologia maisrecentes - o imaginário social não é visto como ornamentode relações econômicas ou políticas, ou mesmo como“irreal”, mas sim como ocupando um lugar preponderanteentre as representações coletivas (Baczko, 1991:14).

A adjetivação “social” associada à atividadeimaginante, continua Baczko, designa-lhe um escopo aabarcar, por um lado, as representações globais dasociedade (referindo-se às suas instituições, hierarquias,papéis sociais, etc.) e, por outro, a inserção daquelasrepresentações individuais em fenômenos coletivos. Aimaginação social constrói-se sobre as experiências dosagentes sociais, mas também sobre seus desejos, interesses,temores e esperanças: “uma das funções dos imagináriossociais consiste `na organização e no domínio do tempocoletivo sobre o plano smbólico`. Intervêm ativamente namemória coletiva para a qual (...) os acontecimentos contammenos que as representações imaginárias às quais estes

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enquadram o originam” (Baczko, 1991:30). Constituem-seem uma das forças reguladoras da vida coletiva, sendo partede sistemas mais vastos e complexos a abrigarem mitos,ideologias e utopias.

O imaginário social abriga e participa de conflitossociais. Em seu cerne está a questão das representaçõessociais voltadas à legitimaçào do poder, às relações desentido que são associadas àquelas de força. A dominaçãosimbólica, afirma Baczko, faz-se de uma miríade dedispositivos (incluindo-se o controle de meios e instrumentosde apregoação de valores e divulgação de discursos),voltados à conservação de privilégios e ampliação depoderes. Do ponto de vista arquitetônico - urbanístico,

toda cidade é uma projeção dos imagináriossociais sobre o espaço. Sua organizaçãoespacial lhe outorga um lugar privilegiado aopoder, ao explorar a carga simbólica dasformas (o centro oposto à periferia, o “alto”oposto ao “baixo”, etc). Do mesmo modo, aarquitetura traduz eficazmente em sua próprialinguagem o prestígio com que se rodeia opoder, utilizando a escala monumental, osmateriais ‘nobres”, etc. (Baczko, 1991:31).

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Porém, para além dos agenciamentos espaciais,as representações sociais espalham-se a circulam pordiversos outros meios, tais como discursos, comportamentose normas. Segundo Jodelet, associam-se a fenômenoscomplexos e consistem numa forma de saber, num modo deelaboração do real, orientando atitudes, comunicaçõessociais, tendo efeitos em como se concebe a cultura.Caracterizam-se como “uma forma de conhecimentosocialmente elaborada e partilhada, tendo um desígnio práticoe concorrendo para a construção de uma realidade comuma um conjunto social” (Jodelet, 1991:36).

Em meio aos espaços públicos, as práticasartísticas são apresentação e representação dos imagináriossociais. Evocam e produzem memória podendo,potencialmente, ser um caminho contrário ao aniquilamentode referêncas individuais e coletivas, à expropriaçào desentido, à amnésia citadina promovida por um presenteprodutivista. É nestes termos que, influenciando a qualificaçãode espaços públicos, a arte urbana pode ser também umagente de memória política.

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CAPÍTULO II

PROCESSOS DE ESTETIZAÇÃOCONTEMPORÂNEOS

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Uma das afirmações da noção contemporâneade recepção estética consiste na noção de que o significadoda obra é gerado no devir de seu processo de fruição eleitura e não depositado nela de antemão, numa plenatotalidade. Diluem-se, assim, certas fronteiras naconsideração do que seja “obra”, uma vez que suaconcretização estética faz-se de modo aberto àsindeterminações e ambiguidades da realização de seussentidos. Não estando previamente entrincheirados nemsendo expressão de um relativismo irrestrito, seus sentidosperfazem-se numa região intermediária (de limitesimprecisos) de convergência, ou de charneira, entre obra epúblico ou entre obra, públicos e situações urbanas.

Este modo de desdobramento da obra indicasua presença potencial, ou melhor, seu potencial nãoformulado de antemão. Verga o entendimento da recepçãoestética do antigo campo da contemplação do mesmo (o

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que pressupõe um espectador purificado), para retomá-la apartir da dimensão da alteridade.

Desta reversão apreende-se um dos motes danoção de recepção aberta, qual seja, a não identidade dorepetido na distância temporal da repetição. No trabalhoda obra, entendido como suas diferentes “realizações”, aomesmo tempo em que esta sedia condições para amultiplicidade de suas concretizações de sentido, é tambémuma instância de controle de suas distintas interpretações.Disto compreende-se que a obra não se reduz nem “à suarealidade”, nem àquela das aproximações de seus fruidores,construindo-se entre ambas.

Nesta linha cabe notar que a historicidade daobra não se refere a delinear uma sucessão de interpretações,nem à ideia de elencar uma multiplicidade apática dediferenças. Antes, busca compreender como essa“significação / ressignificação em porvir” movimenta toda aobra, toda a sua coerência, resvalando inclusive em seuslimites e nestes, em sua possível falência. Bifurca-se,portanto, em relação a um caráter “ilustrativo” destamultiplicidade, uma vez que é pela recepção que vão setecendo ou desfazendo os modos da obra. Nestes termos,fica evidente sua consideração como um vetor constituintedo real e não como sua representação constituída.

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Neste terreno, porém, a noção de público, sepor um lado amplia aquela de obra, por outro implicaesclarecimentos, exigindo ser caracterizada quanto às suasrelações em análise: quais grupos sociais envolvem quaispráticas culturais, quais atitudes e interesses explicitados emrelação à situação estética em questão. Quando esta situaçãoefetiva-se no espaço público urbano, uma multiplicidade deconvenções, papéis e táticas perfazem seu solo e atmosfera,adentrando os meandros de sua ocorrência. Propósitosestéticos de diferentes círculos e agentes são nervuradosnas contradições aí envolvidas.

Assim, a aproximação aqui intencionada sobrea recepção estética / espaço urbano não seria a de fomentara sensibilização de um olhar tipo “periscópio” a rastrearrequadros bem-feitos, constantes ou passantes nos recantosda cidade. Antes, seria um empreendimento na direção daconstituição do domínio dos objetos estéticos (tomados emlarga abrangência), o que equivale a dizer ir das práticasurbanas aos objetos que estas engendram. E estas práticasseriam questionadas quanto à sua produtividade, ou melhor,sua produção em termos de relações sociais e de poder emque se pautam ou que asseguram, quais descontinuidadesprovocam, impedem ou propiciam no espaço urbano.

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A CULTURA COMO EMPREENDIMENTO

A arquitetura tem grande importância naformulação do debate estético contemporâneo e em seuterreno fez sentido falar-se efetivamente em “pós-moderno”,uma vez que nela houve de fato o que se pode chamar deum esgotamento de premissas e soluções, um exaurimentodo moderno. A revisão deste movimento, iniciando-se nosanos 1960, teve na arquitetura um dos seus centros depolarização. A partir desse período processou-se umamudança paradigmática comum à arquitetura e ao urbanismo,de superação da política da “terra arrasada” nas intervençõesurbanas então ligadas às idéias de “redesenvolvimento”, emdireção àquela da moderação: em vez de, sob a égide deum plano totalizante, “erradicar-se o caminho das mulas”(no dizer do arquiteto Le Corbusier), passaram a servalorizadas as intervenções de pequeno porte, respeito àstradições, costumes e uma arquitetura regionalizada.Promoveu-se uma tentativa de recuperação do comunitário,do tecido cultural e a reabilitação do ponto de vista local,buscando-se priorizar suas referências sumbólicas (Arantes,1995). Passou a fazer sentido falar-se em “reciclagem” desítios em substituição à idéia de “renovação”. Como quesintetizando tais aspectos, a noção de lugar, entendido como

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um espaço identitário e histórico, passou a ser pedra detoque da arquitetura, dignificando-a. Em contrapartida, “não-lugar” foi teorizado, a partir da perspectiva antropológica,como abarcando os espaços do anonimato e da indiferença.Tais valores imiscuiram-se de modo vertical nos modos dequalificação e de recepção estética dos espaços urbanos.

Esta mudança de paradigmas na estruturação econcepção dos espaços urbanos e arquitetônicos, segundoo geógrafo David Harvey, foi concomitante a umareorganização produtiva de ordem mais ampla associada àreconsideração do estado regulador keynesiano. Taistransformações deram-se contemporaneamente. No planoeconômico, tem-se processado, a partir dos anos 1970, umaflexibilizaçào dos modos de acumulação do capital, atingindoos processos e mercados de trabalho (e seus regimes decontratação), produtos e consumo, e esta flexibilização sefaz sentir na dimensão cultural do tecido social.

Neste processo tem sido engendrado um novotipo de ciclo de “compressão tempo-espaço”, o qual seriaresultante da aceleração no passo dos processoseconômicos. Esta aceleração na produção foi alcançada poruma complexa reestruturação organizacional: mudanças deâmbito administrativo, controle informacional einformatizado, técnicas de distribuição mais racionalizadas

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figuram como algumas das estratégias estabelecidas nosentido de obter maiores lucros e rapidez no retorno docapital investido.

Dentre as principais consequências destaaceleração generalizada, destaca-se a “efemeridade demodas, produtos, técnicas de produção, processos detrabalho, ideias e ideologias. A sensação de que ̀ tudo que ésólido desmancha no ar` raramente foi mais pervasiva”(Harvey, 1992:258). Nesta promoção da volatilidade, aprodução da imagem é sobrelevada. Desdobram-se seuspapéis como mercadoria, como recurso na manipulação doconsumo, alastrando-se seus desempenhos, por exemplo,na mediatização da política e na geração de simulacros.

Este fomento da transitoriedade foiacompanhado, neste processo econômico, pela queda debarreiras espaciais, provocada pelo aumento de eficiêncianas movimentações, fluxos e comunicações. Em decorrênciadesta extensão (acentuando o encolhimento das distânciase alteração de escalas) fomentou-se uma política devalorização dos lugares. Houve uma sensibilização do capitalpelas diferenças localizacionais geográficas e sociais, movidapela possibilidade de explorar suas peculiaridades. Com odestaque dado às “cidades mundiais” no sistema financeiroe corporativo - “enquanto centros altamente equipados

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formando núcleos-chave de um sistema urbano global” - adotação estética e infra-estrutural dos lugares passou a terpapel cada vez mais relevante ante a competição entre ascidades (Harvey, 1992:266).

Esta superação de barreiras espaciais tambémocasionou, por outro lado, a multiplicação dos “não-lugares”,espaços que são subsídios a esta aceleração do fluxo. Estesnão-lugares abarcam não só certos tipos de espaços -eminentemente voltados para o translado, a passagem, oconsumo efêmero - como também as relações de uso nelesmantidas: “o espaço do não-lugar não cria identidadesingular nem relação, mas solidão e similitude” (Augé, 1994:95).(15) A esta superabundância espacial da atualidadecorresponde uma superabundância de espaços nãoidentitários, não-históricos, espaços lisos, dadesterritorialização, voltados às urgências do presente.

Neste processo de “estetização dos lugares”,se por um lado a questão da identidade local liga-se àvalorização do efêmero (e na análise de Harvey estavalorização social mimetiza as condições da ordemeconômica dominante), por outro, suscita, segundo ele, uma

(15) Lugares e não-lugares não são excludentes entre si: antes, suas efetivaçõesinterpenetram-se: “O lugar e o não-lugar são polaridades fugidias: o primeiro nuncaé completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente” (Augé, 1994:74).

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uma reação oposta, qual seja, a identificação do lugarenquanto “espaço de individuação”. Neste sentido, refere-se a uma conformação de identidade (individual ou social)como baliza de comportamentos seguros diante de umarealidade sempre em transformação.

O instantâneo e o descartável são enfatizados,assim como o contingente e o fugidio. Se no início domodernismo o trato com o efêmero visava, por meio deste,atingir o eterno, já não há agora esta intenção de heroicizá-lo. A noção de um “presente exasperado” traz agora em seubojo a ruptura de vínculos. Valores hegemônicos sãopulverizados em um individualismo sempre mais competitivo,figurando o narcisismo característico desta fase pós-moderna, que Lipovetsky apontou como sendo a “era dovazio”. Na mercadificação da cultura acentuada nesteprocesso, a alteridade é vista como fonte de vantagens e éapropriada com desfaçatez lucrativa: torna-se tambémmercadoria.

Nesta torrente, a estética é acentuada comoastúcia na obtenção de singularidades, as quais são tratadascomo iscas para o consumo. Promove-se uma estética dofragmentário, calcada na valorização e fomento dasheterogeneidades locais. No âmbito da arquitetura afirma-se ser uma tarefa do desenho a procura de espaços

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personalizados. A estética tem sido uma via privilegiada nesta“produção de distinção”, sendo esta entendida enquantoinvestimento no “capital simbólico” - bens como símbolo dedistinção - na acepção de Bourdieu. No âmbito daarquitetura, um dos atuais exemplos emblemáticos nestesentido tem sido, em nível internacional, a proliferação deprojetos de museus de arte - os chamados “museus devanguarda”- sendo estes também tratados como veículos eformadores de prestígio. Porém, cabe apontar, não são rarosos vínculos desses projetos com processos de gentrificaçãourbana, a citar, dentre estes, o projeto de Richard Meyerem Barcelona e o Moma de San Francisco, de Mario Botta.

Em substituição à antiga visada do tecido urbanosegundo a premissa da “totalidade integrada”, cultiva-seagora a noção de patchwork, de espaços semi-autônomos,autonomia esta que se rebate também em termosmorfológicos. Especificadas em forma de “retalhos” nageografia metropolitana, áreas de interesse aos investimentosdo capital são inscritas de modo insular, favorecendopossíveis conveniências à sua estetização.

Nesta linha, a recepção estética, no âmbitourbano, tem se corporificado em meio à ampla extensão daprivatização econômica, à contratação e desinvestimento

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simbólico dos espaços públicos e, com estes, ao liquefazerde referências mnemônicas dos espaços. A dimensãoestética, em meio a este movimento, tem portado consigo avalorização das noções de fluidez, ao mesmo tempo em quetraz uma face aparentemente mais democrática, guiada porespalhamentos em rede - aos grupos sociais que a estas têmacesso - porta um sentido de continuo desenraizamento, aoqual se ligam práticas sociais e culturais de vínculos rasantes(fluidos), efetivando-se passo a passo com esta desafcçãopor metas coletivas.

Mas, se por um lado, este processo debanalização de referências é engendrado pela lógica decriação e neutralização do novo, integrante da própriareprodução do capital, por outro, liga-se intrinsecamente àdegradação de relações de subordinação do individual aocoletivo, dada pela erosão de ideais políticos mobilizadores.As solidariedades agora são de curto fôlego. E acontrapartida desse desinteresse é um investimento (cadavez mais acentuado) na vida privada. A cultura / cultivo doindivídualismo atinnge o seu ápice.

Este processo de psicologização do que seria adimensão impessoal da vida civil traz em seu bojo umadesmotivação social pelos espaços públicos e umadesafecção política. Segundo aponta Sennett, a redução de

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espaços públicos às contingências do translado, domovimento, tem sido uma das consequências perversas daerosão da vida em público. Na prática, muitos destesespaços têm sido, prioritariamente, utilizados como áreasde circulação e de passagem mais do que como lugares depermanência. Esta erosão - entendida como um desinteresseda vida em público e da participação social nesses espaços- está associada a um inflacionamento da ênfase no domínioindividual, pessoal, do “psi”(Sennett, 1977:14).

Este desinvestimento no domínio público implicanuma ordem de esvaziamento da cultura pública, sendoambos relacionados ao que Sennett denomina “ideologia daintimidade”, pela qual “transmutam-se categorias políticasem categorias psicológicas”. Por esta inversão, relaçõessociais são tidas como autênticas na medida em que serepercutem nas psicologias individuais (envolvendo emoçõesprofundas e suas flutuações): “O mito reinante hoje é que osmales da sociedade podem ser entendidos todos como malesde impessoalidadae, alienação e frieza” (Sennett, 1977:259).Nessa mistificação, dada por esta “hemorragia” da dimensãopsicológica, as relações sociais são como que encharcadasde “narcisismo”, de modo que a mobilização por “interesses”comuns é substituída pela busca de uma “identidade” comum.

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Lipovetsky assinala que esta desafecção ésinônimo de um engajamento a vigorar enquanto afirmaçãode personalidade. Em outros termos, significa umaconsciência “narcísica” sobrepondo-se àquela política.Atualmente, afirma, “nenhuma ideologia política é mais capazde inflamar as multidões. A sociedade pós-moderna não temmais (...) projeto histórico mobilizador” (Lipovetsky,1994:16). Ideias modernistas como utopia / planocentralizador / revolução cederam lugar à polêmica sobreas grandes narrativas intencionando abarcar oempreendimento histórico como um todo. A concepção desubordinação ao coletivo foi suplantada pelo ideal derealização pessoal, celebrado na glorificação do consumo enas astúcias da sedução. Promove-se uma deserçãogeneralizada de valores e finalidades sociais, nos quaisincluem-se tradições e sentidos históricos. Como parte dohedonismo aí reinante, ocorre um empalidecimento dasrelações de alteridade, cuja extensão caminha na direçãoda perda de vínculos sólidos com a “coisa pública”.

Esta indiferença, também ligada àdesestabilização de julgamentos, antes de ser sinônimo deestanqueidade ou possibilidade de subversão, mostra-secomo uma condição ideal do capitalismo, o qual “fundadono agenciamento incessante de combinações inéditas (...)

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pode se realizar com um mínimo de resistência: o sistemado ̀ por que não` torna-se a exemplo da indiferença, a partirdaí, sistemático e operacional” (Lipovetsky, 1994, 61-2).Deste modo, este período contemporâneo, partilhando dalógica capitalista de “destruição criativa”, ou de promoçãoda “tradição do novo”, marca sua exponenciação.

O ESTÉTICO E AS PRÁTICAS CULTURAIS

A tendência crescente de valorização do estéticona atualidade tem permeado as mais distintas práticas ecampos de atuação. Num plano superficial, há tempo que aestetização tem se espalhado pelo cotidiano, alastrando-sena cultura da diversão e do entretenimento, nas modas devida curta, tornando-se aí sinônimo de padrões rapidamentedecadentes. Conforme afirma o filósofo W. Welsch, numnível elementar, além de responder a expectativas sensíveis,o amaciamento da realidade aí implicado traz consigo umcerto simbolismo de “progresso” sustentado em um “antigosonho de melhorar a vida e a realidade através da introduçãoda estética” (Welsch, 1997:3).

Nesta estetização de superfície, o hedonismonervura-se como matriz cultural, explicitando-se num desejode divertimento sem maiores consequências. A sedução alia-

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se ao consumo, agenciando a multiplicação das ofertas e apluralidade de combinações. Esta estetização do cotidianoé tramada em termos econômicos, conforme anteriormentemencionado, integrando estratégias de mercado. Se antes oestético era tido como veículo, instrumento, embalagem,agora assume a cena, protagonizando-se como produto.

Um segundo nível de estetização - cujo sentidoaqui refere-se menos à beleza e mais à modelagem evirtualidade - ocorre num plano mais profundo, referindo-se a uma estetização da realidade material e social,condicionada pela tecnologia e meios de comunicação. Doponto de vista tecnológico a realidade tem se tornado cadavez mais manipulável, sendo possível, atualmente, interferir,alterar e modelar, inclusive esteticamente, relações em suasmínimas estruturas. Nestes termos, “os processos estéticosafetam não só a capa, mas também o núcleo”, a base destarealidade. A esta estetização material segue-se umaestetização “imaterial”, fomentada e manipulada em grandepela mídia. A modelagem estética que esta promove impregnao cotidiano: “esta estetização imaterial vai mais fundo queaquela estetização material, literal. Afeta, não somente osconstituintes singulares da realidade, mas a maneira darealidade ser e nossa concepção dela como um todo”(Welsch, 197:4-5).

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Esses processos de estetização possuem diferentessignificados conforme seus diversos campos de atuação: nosespaços urbanos, referem-se à remodelagem cenográfica deáreas, reconfigurando-as em espaços elegantes, bemiluminados e arejados; na propaganda referem-se àdivulgação e consumo de certos estilos de vida e conduta;no âmbito tecnológico, significam a simulação e a produçãodo virtual, associando-se à modelagem de informaçõessobre a realidade por parte da mídia. Esses processos deestetização atingem ainda as questões éticas, adentrando-se à maneira de orientação de atitudes, as quais deixam deser regidas por “padrões obrigatórios”, em favor de projetosque são situacionais e que podem ser transformados. (16)

A mais radical das estetizações, continua o autor,seria aquela por ele denominada “estetizaçãoepistemológica”: enquanto o saber tradicional pautava-sepela ilusão de um objetivismo, delegando a estética arealidades de menor importância, hoje se reconhece oestético como atuante no conhecer e agir em instânciafundamental. Categorias referentes ao sensível, tais comoaparência, mobilidade, oscilação, ambiguidade, passaram a

(16) Esta contrapartida, seriam acompanhados, em seus excessos, de uma chamada“anaestetização”, isto é, um processo de dessensibilização caracterizado pelaindiferença e descaso.

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fazer parte, dentro do próprio campo científico, do saber eda verdade: “Esta estetização epistemológica é o legado damodernidade (...) aqueles discursos que insistem sobre averdade contra a estetização não convencem mais ninguém,porque a verdade mesma se desmascarou como, no fundo,uma categoria estética” (Welsch, 1997:9).

Esta estetização epistemológica seria umresultado da filosofia e ciência modernas. Flutuação,incerteza, instabilidade, aparência, diversidade, categoriastradicionalmente ligadas ao sensível, à aesthesis, passarama ser fundamentais em relação à verdade e à realidade. Issonão seria equivalente, contudo, a cair num “fundamentalismoestético”:

O ponto decisivo aqui não está tanto no fatode que nosso conhecimento inclua partesfundamentaise estéticas. Mas sim que se alteratodo o caráter do conhecimento e darealidade. A referência à realidade e oconhecimento assumem um caráter ficcional,produtivo, poético, em uma camadafundamental (Welsch, 1995:14).

Nas ciências, a presença do estético tem sidoreconhecida em distintos momentos e campos participando

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de premissas, hipóteses e teorias e contribuindo para aderrocada do saber “duro”, que reduz o real ao racional.

Nos últimos duzentos anos, verdade, saber erealidade foram assumindo contornosestéticos, Enquanto antes se acreditava que aestética só teria a ver com realidadessecundárias, ulteriores, hoje nósreconhecemos que o estético já pertence àcamada fundamental do conhecimento e darealidade (Welsch, 1995:16).

A tematização do estético, nestes termos, escapaà esfera estrita da arte, referindo-se a campos como ciência,política e tecnologia. Sua multiplicidade de significados nãoseria possível de redução a apenas um, considerado como“básico”. Restringi-la à arte seria reduzi-la, uma vez que aatual pluralização do estético teria rompido aquelaequivalência. Nestas outras fronteiras da disciplina, os temasda “desrealização” da realidade (entendida como suavirtualização processada pela eletrônica e sua modelagempela mídia, incorporando em sua veiculação a linguagem dojogo e simulação), a reconfiguração da aesthesis (na qualincluem-se a crítica do primado do visual elaborada pela

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filosofia contemporânea e a valorização de experiências nãoeletrônicas) e a reavaliação de formas das experiênciashabituais seriam de destaque em relação à estéticacontemporânea (Welsch, s.d.).

Este amplo processo de estetização dando-seem vários níveis da vida social e material, quando abordadoa partir da ótica de uma racionalidade global, liga-se àocorrência de um esteticismo generalizado que, do pontode vista político, não provoca questionamentos nem rupturas.Pelo contrário, este transbordamento do estético, sendoconcomitante a um crescente desinteresse pelo político, trazem seu bojo os dilemas da dilapidação de ações culturaisconcorrendo para sua “funcionalização”. A cultura, nestestermos, é reduzida às consequências das mudançaseconômicas e a mercadificação de projetos e práticasculturais lhes acarreta uma perda de seu potencial decontribuição para com a tarefa social, na qual a dignidadehumana seria privilegiada na vida do mais amplo coletivo.

É preciso, contudo, não excluir a consideraçãode que as práticas culturais dão-se sob a ação de feixes derelações múltiplas de poder, abrem e estão abertas a váriaspossibilidades de crítica (conforme mencionadoanteriormente). Assim, a complexidade cultural na vida socialtrama-se também na constante negociação de significados

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culturais que podem, em princípio, desregular valores - emplanos diversos - propondo sentidos conflitantes com outros.Cabe não negligenciar tais ações e representações, aindaque se processem em escalas menores. É neste sentido queeste trabalho trata a arte urbana.

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