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0. por André Gravatá 1. _______________________________ 2. uma das reações mais comuns diante do desconhecido. 3. entrada de ar nos pulmões e de entusiasmo nas ideias. 4. vai além dos limites. 5. ato de quem não se cansa de buscar o novo. 6. trabalhar junto. 7. alcateia, bando, cardume, multidão. 8. conversação com trocas. 9. impulso gerado por colisão, efeito de determinada ação. 10. liberdade. 11._______________________________ “E quando o vento folheava silenciosamente tais páginas, levando as cores e as figuras, pelas colunas do seu texto escorria um frêmito, soltando do meio das letras cotovias e andorinhas. Assim revoavam, dissipando- se, página após página, suas cores”, diz o personagem principal do livro sanatório, escrito pelo polonês bruno schulz, ao falar do livro depositado sobre a escrivaninha do seu pai, obra que tanto o encantava. Quero que a cada página deste livro, leitor, cotovias pulem no seu rosto. O que falta nos jornais e nas revistas, esperamos exercitar neste livro: uma interação mais profunda, lúdica, dialógica. Não é possível explicar um tema como arte participativa, a não ser que ele seja experimentado minimamente; por isso, este trabalho pede para ser transgredido. 10 6 9 8 7 5 4 3 2 1 11

arte

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arte participativa

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0. por André Gravatá1. _______________________________2. uma das reações mais comuns diante do desconhecido.3. entrada de ar nos pulmões e de entusiasmo nas ideias.4. vai além dos limites.5. ato de quem não se cansa de buscar o novo.6. trabalhar junto.7. alcateia, bando, cardume, multidão. 8. conversação com trocas.9. impulso gerado por colisão, efeito de determinada ação.10. liberdade.11._______________________________

“E quando o vento folheava silenciosamente tais páginas, levando as cores e as figuras, pelas colunas do seu texto escorria um frêmito, soltando do meio das letras cotovias e andorinhas. Assim revoavam, dissipando-se, página após página, suas cores”, diz o personagem principal do livro sanatório, escrito pelo polonês bruno schulz, ao falar do livro depositado sobre a escrivaninha do seu pai, obra que tanto o encantava. Quero que a cada página deste livro, leitor, cotovias pulem no seu rosto. O que falta nos jornais e nas revistas, esperamos exercitar neste livro: uma interação mais profunda, lúdica, dialógica. Não é possível explicar um tema como arte participativa, a não ser que ele seja experimentado minimamente; por isso, este trabalho pede para ser transgredido.

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PARTICIPE

PARTICIPEARTE EM PROCESSO

André Ricardo Dantas dos Santos Gravatá

Pontifícia Universidade Católica PUC-SPTrabalho de Conclusão do Curso de Comunicação

Social com Habilitação em Jornalismo2011

EXPEDIENTE

André Gravatá autor do livro

Elidia Novaes revisora

Marcos Cripa professor-orientador

Valdir Mengardo professor-orientador

Nina Meirelles diagramadora

Foto da capa reprodução de estampa de Monica NadorA todos que me ajudaram a transformar

uma ideia em livro – e a vida em arte: obriga-

do, mãe e pai; obrigado, Cripa, Valdir, Rejane

e PUC; obrigado, Shakespeare, Cage e Huxley;

obrigado, Elidia, Nina e Luis; e obrigado ao sol,

pois sem luz não teria como escrever nada.Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons.Você tem a liberdade de compartilhar (copiar, distribuir e transmitir)a obra. [A única condição é que você deve creditar a obra.]

“Eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho

a certeza de que pode conduzir ao melhor que há

em nós, para que não nos desperdicemos na vida”

Valter Hugo Mãe, escritor português

“Você só transforma a sociedade quando

transforma valores culturais”

Mauro Pinto de Castro, professor de geografia do Jardim Miriam

suMáRIo

INTroDução-DEsVIo sobre as cotovias que logo pularão......................

ATo I Arte participativa e história ................................

ATo II Arte participativa e contemporaneidade .............

ATo III Arte participativa e educação .............................

ATo IV Arte participativa e transformação social.............

ATo V Nunca haverá uma obra-prima wiki? ..................

BIBlIogrAfIA ..................................................

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INTRodução-dEsVIo

sobRE As CoToVIAs quE loGo PulARão

A ideia para este livro surgiu de uma palestra à qual

não compareci ao vivo, só virtualmente. Até o final do ano

passado, não entendia nada sobre arte participativa, muito

menos os impactos que esse tipo de manifestação estava cau-

sando mundo afora. Em frente à tela do computador, conheci

o assunto por alguns vídeos de uma palestra de Claire Bishop

– historiadora de arte e crítica, professora do Centro de Gra-

duação Cuny, em Nova York, e professora visitante do Royal

College of Art, em Londres.

Os artistas que desenvolvem trabalhos participativos cos-

tumam ter em mente a criação de obras que só evoluem a

partir de contribuições coletivas, do engajamento do público

na produção do trabalho. Desde o final do século 18, artistas

14 15

formaram grupos que lamentavam o distanciamento entre

arte e público. A partir da segunda metade do último século,

devido a invenções como a internet e fenômenos como a

globalização, a “co-laboratividade” na arte se delineou com

mais intensidade.

Quando me decidi pelo tema, convicto de que iria pesqui-

sar a arte participativa a partir de exemplos da prática, con-

sultei diversas pessoas – desde artistas como Mônica Nador,

Graziela Kunsch, Rejane Cantoni e Jorge Menna Barreto, até

teóricos como Agnaldo Farias e Nelson Brissac Peixoto. Algu-

mas conversas foram curtas, outras longas, algumas duram

até hoje – e espero que continuem por muito tempo. E este

trabalho surgiu após inúmeros cafés nos lugares mais varia-

dos, da periferia ao centro, da universidade ao museu.

‘QUEM PENSA MAiS PROFUNDAMENTE SABE QUE ESTá SEM-

PRE ERRADO, NãO iMPORTA COMO PROCEDA E JULGUE’?1

Mais do que uma introdução, este começo é o iní-

cio de um desvio. Na sua tese de doutorado2, a artista

Rebeca Lenize Stumm cita uma frase do filósofo francês Giles

Deleuze que desmancha a ilusão em relação a aberturas. Ali,

Deleuze aborda um pensamento do filósofo alemão Friedrich

Nietzsche: “nunca é no início (...) que alguma coisa pode re-

velar sua essência, mas, o que era desde o início, ela só pode

1 NiETZSCHE, 2008, p.271

2 STUMM, 2011, p. XXX.

revelá-lo num desvio de sua evolução”. Este livro pretende

ser um desvio desde o começo.

Não é possível explicar um tema como arte participativa,

a não ser que ele seja experimentado minimamente; por isso,

este trabalho pede para ser transgredido. “E quando o vento

folheava silenciosamente tais páginas, levando as cores e as

figuras, pelas colunas do seu texto escorria um frêmito, sol-

tando do meio das letras cotovias e andorinhas. Assim revo-

avam, dissipando-se, página após página, suas cores”, diz o

personagem principal do livro Sanatório, escrito pelo polonês

Bruno Schulz, ao falar do livro depositado sobre a escrivani-

nha do seu pai, obra que tanto o encantava. Quero que a

cada página deste livro, leitor, cotovias pulem no seu rosto. O

que falta nos jornais e nas revistas, esperamos exercitar neste

livro: uma interação mais profunda, lúdica, dialógica.

Em sua tese de doutorado, Ricardo Basbaum cita o pin-

tor alemão Philipp Otto Runge3, o qual afirma que a relação

do ser humano com o seu meio já é participativa por exce-

lência. “Do mesmo modo que os filósofos concluíram que se

imagina tudo a partir de si mesmo, também vemos ou deve-

mos ver em cada flor o espírito que o homem ali colocou, e

é assim que a paisagem irá se desenvolver, como se todas as

flores e animais estivessem apenas presentes pela metade,

a menos que o homem faça a sua parte. Assim, o homem

força seus sentimentos e sensações de encontro aos objetos

a sua volta e, através disso, tudo adquire sentido e uma lin-

guagem”, relata o pintor.

3 referência Basbawn

16

Quando discuto a participação na arte, falo não só do

que Otto Runge disse, mas principalmente de um passo mais

além: de um tipo de arte que instiga a percepção do indiví-

duo como sujeito no mundo.

COMO UM LiVRO DE ARTE

PARTiCiPATiVA NãO DEVERiA SER?

Um casal pede divórcio. Tanto o marido quanto a esposa

querem a guarda do filho. A família do esposo pressiona a

mãe: se você ficar com o menino, fecharemos a conta com

dinheiro acumulado para o futuro dele. A mãe vai parar no

fundo do poço – e abandona a custódia do bebê. “Ela é

uma boa mãe?”, pergunta o escritor norte-americano David

Foster Wallace, num dos seus contos. A resposta fica a cargo

do leitor.

Quando o leitor tenta formular uma resposta a uma per-

gunta assim, ele está participando mais ativamente da cons-

trução do significado da história. Foi isso que Foster Wallace

quis propor: quebrar a “quarta parede textual”4 e indagar di-

retamente ao leitor, anulando o véu de isolamento em torno

do escritor.

A arte participativa vai ao encontro das pretensões de

Wallace. Ela se desenvolve em processos abertos, que às

4 David Foster Wallace fala da “quarta parede textual” com referência ao concei-to de “quarta parede” do poeta e diretor de teatro alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Para Brecht, existia no teatro convencional uma parede entre o ator e a plateia, que deveria ser quebrada por meio da aproximação entre ambos.

COMO UM LiVRO DE

ARTE PARTiCiPATiVA DEVERiA SER?NãO

18 19

vezes até ofuscam a fronteira entre artista e público. No li-

mite, a arte participativa quebra todas as paredes entre os

envolvidos no trabalho artístico. Todos viram artistas.

COMO SERiA UMA TROCA BASEADA NA LiBERDADE? 5

Quando Pablo Neruda escreveu O Livro das Perguntas,

em 1974, criou mais do que uma obra com interrogações.

A cada página, o leitor é estimulado a participar do livro não

apenas como aquele que extrai significados a partir do que

está escrito, mas também como co-autor das mini-narrativas

sugeridas com os questionamentos.

Nesse livro, as perguntas são feitas e os leitores respon-

dem ou não, à vontade. O importante é que a obra chama o

leitor a partir da interrogação. “Qual é o pássaro amarelo que

enche o ninho de limões?”, pergunta Neruda. Levando isso

em conta, mais do que respostas, um livro sobre arte partici-

pativa talvez devesse formular perguntas para que os leitores

transponham os limites das reflexões propostas.

Espalhar perguntas pelo texto foi uma maneira que en-

contrei para instigá-lo a participar de um diálogo que trans-

borda do papel – no mínimo, haverá mais questionamentos

ao término da leitura. Aliás, muitas das perguntas encontra-

das não terão resposta. Algumas discordarão do que foi dito.

Outras apenas suscitarão novos caminhos para discussão.

5 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, 2009, p. 38.

Mais do que transmissão de informações, há um jogo entre

leitor e texto.

OS LiVROS TêM SOM?

O músico John Cage não fazia perguntas em suas com-

posições – em compensação, sempre provocava questiona-

mentos. O que Walter Benjamin disse em relação ao com-

positor alemão Hanns Eisler também vale para Cage: ambos

almejavam a “eliminação da oposição entre intérprete e ou-

vinte”. Em 1952, Cage lançou a música 4’33’’. Silenciosa.

Eram 4 minutos e 33 segundos de puro silêncio – sempre

interrompidos, é claro, pelo som das tossidas, espirros e mo-

vimentos do público.

A música se divide em três atos, iniciados e finalizados

em silêncio. Ao ser apresentada em grandes teatros, a com-

posição 4’33’’ provocava uma diluição entre palco e plateia,

afinal, até o barulho das pessoas nas cadeiras se tornava parte

da composição – de certa forma, o público se tornava com-

positor sem nem perceber. Como não quero escrever um livro

com páginas em branco, farei o contrário de Cage e, em vez

do silêncio que convida à participação, convidarei o público a

participar desta obra por meio do “som e fúria” gerados na

profusão de palavras. Em homenagem a Cage, o livro será

dividido em atos, numa composição caoticamente planeja-

20

da. A cada parte, perguntas intercalarão parágrafos e grupos

de parágrafos, às vezes servindo como subtítulos, às vezes

apenas como intervenções literárias. Convido o leitor a tentar

respondê-las, seja anotando reflexões no livro, seja ponderan-

do respostas em silêncio, seja levando os questionamentos a

uma conversa entre amigos – ou inimigos, quem sabe?

A ARTE SERVE PARA QUê?

“Na arte participativa, busca-se a coautoria dos atos”,

disse Bishop na palestra realizada durante a 29ª Bienal

de Arte de São Paulo, em 2010. Ao convidar o público para

o processo de construção de uma obra, o autor amplia

o diálogo com o mundo. Ao mesmo tempo, o mundo amplia

o diálogo com a arte e despontam não apenas novas obras,

mas também novas mentalidades.

Essa foi a busca de Graziela Kunsch, artista que desen-

volve o Projeto Mutirão – no qual engendra diálogos com

públicos diversos, facilitados pela exibição excertos de víde-

os gravados por ela –, projeto que logo será analisado mais

detidamente. Ela se perguntava como o mundo da arte

poderia “conversar e contribuir com outros mundos”.

Na sua dissertação de mestrado, ela até cita uma frase do

crítico Simon Sheikh que justifica a procura por uma arte mais

plural: “a arte importa, certamente, mas não é o suficiente”.

como seria uma troca baseada na liberdade?

[frase retirada do Cader-

no com fichas de artistas

da 29ª Bienal de São

Paulo, 2009, p. 38.]

22

Nos próximos atos, a maioria das questões citadas aqui

voltarão a ser discutidas com mais profundidade. A introdu-

ção-desvio importa, certamente, mas não é o suficiente.

O QUE é A LEiTURA, SENãO UM DiáLOGO SiLENCiOSO?6

6 BRiSTOL, 2008.

a arte serve para quê?

24 25

ATo I

ARTE PARTICIPATIVA E hIsTóRIA

os pés de Raimundo estão cheios de terra. Os cabe-

los de Raimundo fedem. O frio de Raimundo é amenizado

com trapos e um saco preto amarrado nas costas. O caderno

de Raimundo é feito de folhas de sulfite. Folhas sujas. Rai-

mundo mora numa área nobre de Pinheiros, em São Paulo.

Raimundo mora na Av. Pedroso de Morais, mais especifica-

mente num canteiro dessa área nobre. Raimundo, Raimun-

do, Raimundo.

Raimundo Raimundo Raimundo.

Raimundo.

Raimundo.

Raimundo Raimundo. A situação de Raimundo é tão pre-

cária que é preciso repetir seu nome até que não o esqueça-

26

mos. “Repetir repetir, até ficar diferente”, como fala Manoel

de Barros. A arte é o alimento de Raimundo, que passa todo

o tempo escrevendo textos numa letra difícil de entender.

Ele assina suas criações com o pseudônimo “O Condiciona-

do”. Considera que “tudo é ilusão, tudo isto aqui é falso”

e chama o mundo de Casa Suína.

QUEM é ARTiSTA é ARTiSTA PORQUE

SE CONSiDERA ARTiSTA OU PORQUE OUTRO

ALGUéM O CONSiDERA ARTiSTA OU OS DOiS?

A arte é a válvula de escape de Raimundo. Ele é um

artista? De que adiantaria o chamarmos assim? Ele ficaria

com menos fome ou frio? Não.

Cito o exemplo de Raimundo para sinalizar os caminhos

principais a serem trilhados por este livro:

.1 abordagem das intersecções entre arte e produção

coletiva, na quais a reinvenção da linguagem está impreg-

nada da ressignificação dos papéis sociais e pré-figurações

de sociedades com menos pobreza, menos Raimundos,

menos condicionados e menos Casas Suínas;

..2 não definição estrita do objeto de estudo, pois a arte

participativa pode ter tantas leituras quanto olhares existi-

rem – assim como o Raimundo pode ser visto como poeta,

mendigo, louco, gênio etc., etc., etc. Mais do que trabalhar

as minúcias do conceito, serão analisadas algumas perspec-

27

O a

rtis

ta é

art

ista

por

que

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onsi

dera

art

ista

ou

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utro

alg

uém

o c

onsi

dera

art

ista

ou o

s do

is?

28

tivas do fenômeno, representadas nos próximos capítulos

pelos trabalhos das artistas Graziela Kunsch e Monica Nador.

QUANTO TEMPO DURA A COMPAiXãO?

QUANTO TEMPO DURA UMA OBRA-PRiMA?

“Da adversidade, vivemos”, escreveu o artista brasilei-

ro Hélio Oiticica num de seus Parangolés, as famosas capas

coloridas que ganhavam vida quando o público as vestia e

dançava. Nelas, a participação se dava num nível corporal

e visual. “Na participação ativa pela visualidade, o espaço é

bidimensional, tudo ocorre na superfície, sem ilusões, sem

remeter a um outro que não esteja presente materialmente

diante do participante: a tinta e a tela não são meios para

representar uma outra realidade, mas constroem uma reali-

dade em si mesma, questionando seus próprios meios e pro-

cedimentos. Assim, o participante, consciente disso e possibi-

litado pela própria ordem conscientizadora da obra, se coloca

diante da tela como portador dos mesmos conhecimentos do

artista”, explica a pesquisadora Cinara de Andrade Silva na

sua dissertação de mestrado.

Com suas ideias de participação corporal e visual, Oiti-

cica começou a desbravar um caminho que é levado a ex-

tremos em obras nas quais a “co-laboração” do público é

condição para que a obra comece a se delinear. A palavra

“participativo” foi vista pela primeira vez em 1881 (a expres-

Quanto tempo dura a compaixão?

Quanto tempo dura uma obra-prima?

30 31

Nessa altura, pode surgir a pergunta: se toda arte depen-

de da participação do olhar de um espectador para ser inter-

pretada, toda arte não é participativa? De certa forma, sim.

Como explica o filósofo Jacques Rancière, “toda posição de

espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que

desvia o sentido do espetáculo”9. O espectador também par-

ticipa da obra ao construir um significado para o que vê, claro.

No entanto, o foco deste trabalho está em práticas ar-

tísticas nas quais o público não só participa da construção

dos significados, mas também dos objetos (ou processos) que

depois ganham sentido. Como explica Neal Benezra10, diretor

do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), a

arte participativa cria situações “que envolvem membros do

público como participantes ou até parceiros no processo de

produção do trabalho artístico”, com “espírito de abertura e

engajamento ativo”, por meio de um “convite aberto” para

um trabalho “em processo”.

A PARTiCiPAçãO ANULA A ALiENAçãO?

Há também diferenças entre participação e interação.

“Todas as obras que se propõem como interativas, de certa

maneira definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra

9 Em entrevista para a revista CULT, http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/, acessada em julho de 2011.

10 Prefácio do catálogo da exposição (“A arte participativa: de 1950 até ago-ra”), ocorrida em 2009.

são “democracia participativa” só surge em 19687). O termo

vem do latim participare (participar), derivado de pars (parte)

e capere (pegar).

TODAS AS OBRAS DE ARTE SãO PRODUZiDAS

POR EXTRAVAGâNCiA OU NUM SURTO DE RAiVA?8

A arte participativa antecipou muitas estratégias colabo-

rativas que só viriam à tona com as tecnologias da Web 2.0.

“Termos como colaboração e coletivo não são encontrados

nos anos 60. Naquela época, a arte participativa estava mais

relacionada ao envolvimento político e à luta pela democra-

cia”, comentou Bishop na palestra citada na introdução-des-

vio. Segundo a crítica norte-americana, a arte participativa

não tem mais um inimigo artístico tão definido nos dias de

hoje. Mas há uma preocupação com os problemas sociais

que é o fio condutor de muitos trabalhos participativos nos

últimos anos.

O QUE SE PASSA NA CABEçA DO PúBLiCO QUE

é CONViDADO A PARTiCiPAR DA CONSTRUçãO

DE UMA OBRA DE ARTE?

7 Segundo o site http://www.etymonline.com, consultado em julho de 2011.

8 Pergunta contida numa das anotações do diário da artista plástica Louise Bourgeois (1911-2010).

32

pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está

diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem

entender”, explica Rancière. Na interatividade, as ações do

espectador influenciam o trabalho, embora de maneira breve

e, na maioria das vezes, repetitiva e reversível, sem uma mu-

dança fundamental ou estrutural na obra. Mas isso também

é questionável.

A artista e professora da PUC-SP Rejane Cantoni, por

exemplo, que desenvolve trabalhos interativos – como um

cubo de espelhos no qual o público entra e visualiza uma

imagem múltipla, com repetições infinitas – discorda da visão

do filósofo francês. Segundo ela, os trabalhos interativos tra-

vam um diálogo com o público que muitas vezes aponta o

alargamento da obra. “O público não se comporta sempre da

maneira que o artista imaginou”, comenta. Uma das obras

de Rejane se chama Solo: é um piso que se move de acordo

com o movimento na sua superfície. Cantoni imaginou que

o público apenas caminharia sobre a obra, então se surpre-

endeu quando viu crianças pulando em cima do trabalho,

quebrando as regras previstas e ressignificando a ideia inicial.

Mas há quem trace uma diferenciação precisa entre arte

participativa e interativa. “Por interatividade, entendo que

sejam obras que requerem uma ação do espectador para que

aconteçam: desde apertar um botão até fornecer informa-

ções pessoais, por exemplo. De certa forma, entendo que

este tipo de relação opera num campo de problemas e num

certo comportamento do público que já foi previsto pelo

autor. Considero a ideia de participação mais complexa”, co-

a pa

rtici

paçã

o

anul

a

a al

iena

ção?

34 35

menta Jorge Menna Barreto, artista e pesquisador, mestre em

poéticas visuais pela USP. Entre seus trabalhos há o Projeto

Matéria, realizado em 2004 no Centro Cultural São Paulo.

Era uma oficina que fazia as vezes de intervenção artística:

quinze alunos foram selecionados para participar das aulas

com professores diversos. O foco era uma reflexão acerca de

assuntos como o papel do artista e principalmente questões

relacionadas àrecepção da arte. Neste projeto, o mote era a

aula-diálogo – a participação do público ressignificava a obra

à medida em que ela acontecia.

Na visão de Barreto, qualquer trabalho artístico é poten-

cialmente participativo. “Um texto crítico sobre uma obra,

por exemplo, pode ser uma forma de participação. Enten-

do que participação seja essa relação de continuidade que o

público pode ter com a obra, emancipando-se da proposta

do artista e percorrendo novos caminhos, deslocando o seu

sentido, e até mesmo o subvertendo. é nesse momento em

que o público se torna co-autor, no momento que faz uma

apropriação do conceito e um desvio, uma leitura crítica e

contundente que opera nas brechas do que foi dito e propos-

to, e não se contenta com o que está dado, ou com a simples

captura de conteúdo depositado na obra pelo autor”, com-

pleta o artista.

O QUE é A DEMOCRACiA PARTiCiPATiVA NA iDEiA?

E NA PRáTiCA?

Como todas as palavras, o termo “participação” tem di-

versas acepções. Pode ser interpretado da seguinte forma: “é

inicialmente baseada em uma diferenciação entre os produ-

tores e os beneficiários – os primeiros estão interessados na

participação desses últimos, e entregam uma porção subs-

tancial de trabalho a eles, quer no momento da concepção

ou no novo ciclo do trabalho”, como diz Christian Kravagna,

historiador de arte e professor da Academia de Belas Artes

de Viena11. Por isso, é preciso deixar claro que “as fronteiras

são permeáveis e categorizações rígidas têm pouco efeito.”

Em vários momentos do século passado, a arte partici-

pativa aproximou a arte do cotidiano das pessoas. Nesse tipo

de trabalho artístico, a relação entre artista e espectador foge

da relação hierárquica habitual. As origens da participação

na arte remontam ao Dadaísmo, no início do século 20, em

Zurique, na Suíça, onde a criação caótica e acidental de algu-

mas obras começava a embaçar os limites da arte tradicional,

que tanto valorizava a noção de autoria. Também na primeira

metade daquele século, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht

elaborou suas teorias sobre a quebra da quarta parede no

teatro – para Brecht, entre o espectador e o ator havia um

muro que devia ser derrubado. Já no Brasil, por volta de 1960

e 1970, o teatrólogo Augusto Boal desenvolveu o Teatro do

Oprimido, um método teatral que incluía práticas como o

Teatro-Fórum, no qual a plateia era convidada ao palco para

solucionar os dilemas encenados.

11 No texto Working on the Community – Models of Participatory Practice, de 1998, disponível em. http://republicart.net/disc/aap/kravagna01_en.htm, acessado em julho de 2011.

36 37

Outros artistas brasileiros, como Oiticica, Lygia Clark e

Lygia Pape, foram pioneiros na exploração de novas relações

entre a obra de arte e o público. Pape, por exemplo, costu-

mava declarar que um dos seus objetivos era desrespeitar as

estruturas hierárquicas tradicionais. Em 1968, ela criou um de

seus trabalhos mais famosos, intitulado Divisor. A obra con-

sistia num tecido branco de 900m2, cheio de buracos para

que as cabeças do público entrassem. O trabalho só se reali-

zava com o público presente. E as pessoas que participavam

da obra só se movimentavam se existisse uma atuação coleti-

va sincrônica: apenas com a harmonia entre os participantes,

a obra ganhava vitalidade.

Na década de 1950, os happenings (“acontecimentos”)

buscavam a aproximação direta com o público: as pessoas eram

convidadas a participar de ações sem começo nem meio, nem

fim previstos. Nos happenings, ocorriam improvisações com

elementos que não tinham necessariamente conexão entre si,

ressignificados na ação única que não poderia ser reproduzida

depois. O comportamento do público variava do entusiasmo à

indiferença. Como lembra o artista norteamericano Alan Ka-

prow, parte do público preservava uma distância contempla-

tiva: “quando um trabalho é realizado em uma avenida movi-

mentada, transeuntes normalmente vão parar e assistir, assim

como eles podem assistir à demolição de um edifício”.

QUE TiPO DE ESPECTADOR VOCê é?

Quatro rapazes de branco servem café. Sentado, o mú-

sico John Cage lê um texto que relaciona melodias com zen-

-budismo. Às vezes, lê em voz alta. Outras, em silêncio. Bal-

bucia. Na escada, os poetas Charles Olson e Mary Caroline

Richards leem poemas. Enquanto isso, o pianista David Tudor

improvisa uma canção. Merce Cunningham dança. Mais pes-

soas interferem no “evento” de maneira aleatória, em im-

provisos seguidos de improvisos. Essa cena ocorreu em 1953,

no Black Mountain College, na Carolina do Norte, Estados

Unidos, e foi considerada o primeiro happening. Realizada

por Cage, a “Theater Piece # 1” envolvia os participantes em

apelos a todos os sentidos.

Alguns anos depois, em 1957, surgiu o Situacionismo,

movimento que começou com um grupo italiano que se de-

finia como “vanguarda artística e política”. Críticos da socie-

dade de consumo, eles defendiam a ideia de que as pessoas

deviam construir as situações das suas próprias vidas, sem

alienação, na rotina. Ou seja, eles tentavam articular a relação

entre a arte e a vida. “Toda pessoa razoavelmente conscien-

te de nosso tempo já se deu conta do fato óbvio de que a

arte não pode mais ser considerada uma atividade superior,

ou mesmo uma atividade compensatória para a qual alguém

pode honradamente se devotar. A razão para tal deterioração

é, com certeza, a emergência de forças produtivas que neces-

sitam de outras relações de produção e de uma nova prática

de vida. (...) nós acreditamos que todos os meios de expressão

vão convergir num movimento geral de propaganda e preci-

sam englobar todos os aspectos perpetuamente interativos

38 39

da realidade social”, defendem Guy Débord e Gil Wolman,

membros do situacionismo, no Guia Prático para o Desvio12.

Saindo da itália e voltando aos EUA, para Nova York, é

possível encontrar outro grupo do final do século passado

que também apontou para uma maior participação do públi-

co na arte. Criado em 1979, o Group Material transitou por

temas como consumo, alienação, educação e AiDS. Uma das

exposições do grupo, chamada Democracy: Cultural Partici-

pation (“Democracia: Participação Cultural”), de 1988, con-

tou não apenas com uma exposição de objetos – entre eles,

diversos pacotes de salgadinhos, numa diversidade de sabo-

res que sugeriam “identificações étnicas com gostos particu-

lares” –, mas também com “town meetings”13 (fóruns políti-

cos). Num desses encontros, as discussões giraram em torno

das seguintes indagações: Quais são alguns dos aspectos da

atual crise de participação cultural?

Cultura para quem? Quem tem acesso e a quem é nega-

do o acesso às instituições de representação? De que forma

as instituições culturais servem e de que forma elas falham

com suas comunidades e público?

Como o consumismo afeta o nosso poder participativo?

Como mercados e instituições definem comunidades e ditam

a sociabilidade?

Quais são algumas práticas fora do mainstream, alterna-

12 DéBORD , Guy; WOLMAN, Gil. um guia prático para o desvio. 1956.

13 Antes de 1971, os “town meetings” eram encontros organizados por fun-cionários municipais eleitos – como consta na dissertação de Graziela Kunsch. Muitas vezes, tais encontros ocorriam “por insistência dos cidadãos comuns”–, para que fossem discutidas e anunciadas novas políticas.

tivas e/ou de oposição? Quais são os problemas e soluções

apresentadas por essas práticas?

Quais são as nossas opções? Como podemos começar a

construir uma democracia cultural?

As questões apontadas pelo Group Material continuam

atuais e ilustram bem como eles tentavam motivar o engaja-

mento do público ao convidá-lo para uma conversa. “O públi-

co deixa de ser quem apenas está habituado com os códigos

da arte, então ele pode ser formado em qualquer situação,

com quaisquer pessoas”, conta Paulo Myiada, coordenador

do núcleo de Pesquisa e Curadoria do instituto Tomie Ohtake

e assistente curatorial da 29ª Bienal.

‘A EXiSTêNCiA PRECEDE E COMANDA A ESSêNCiA’?14

Cada vez mais a aproximação entre artista e público se

dá por um viés ativista. Na dissertação insurgências Poéticas,

escrita pelo pesquisador André Mesquita sobre arte ativista e

ação coletiva, há uma reflexão sobre as práticas artísticas ati-

vistas entre as décadas de 1990 e 2000. Em muitas delas, são

percebidas propostas colaborativas. A experimentação cons-

tante chama atenção: protestos, performances e instalações

artísticas são apenas algumas das práticas desenvolvidas por

grupos bastante críticos ao status quo. Para Mesquita, tais

projetos “simplesmente desmontam qualquer ideia restrita

14 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

40 41

de que coletivo é apenas um agrupamento formal, uma coa-

lizão temporária ou núcleo de artista”. Em seu entendimento,

“estratégias de participação aumentam a nossa definição de

ações coletivas como função social e meio de comunicação”.

As nossas definições aumentam e, consequentemente,

significações antigas são atualizadas. A arte participativa

nasce de premissas diametralmente opostas à noção de arte

do russo Leon Tolstói, por exemplo. Para o escritor, autor do

livro O que é Arte?, a arte é “a atividade humana que consis-

te em um homem comunicar conscientemente a outros, por

certos sinais exteriores, os sentimentos que vivenciou e os

outros serem contaminados desses sentimentos e também os

experimentarem.” Mas na arte participativa as pessoas expe-

rimentam um sentimento diferente, que é singular e compar-

tilhado ao mesmo tempo, forjado em conjunto.

QUAIS SÃO ALGUNS DOS ASPECTOS DA ATUAL CRISE DE PARTICIPAÇÃO CULTURAL?

[frase retirada de um

dos trabalhos da exposi-

ção Democracy: Cultural

Participation (“Demo-

cracia: Participação Cul-

tural”), de 1988, realiza-

da pelo Group Material]

42 43

ATo II

ARTE PARTICIPATIVA E CoNTEMPoRANEIdAdE

À medida que os anos se passaram, as cifras em

jogo no mercado da arte cresceram exponencialmente – e a

vaidade de muitos artistas também. Mas tanto dentro quan-

to fora do mainstream artístico, continuam surgindo projetos

que convidam o público a assumir outros papéis que não ape-

nas o de observador. A internet potencializou a organização

de grupos, facilitando a criação de projetos que já nascem

com um formato difícil de enquadrar em velhas definições.

O WallPeople, por exemplo, é um projeto colaborativo

com berço digital. Trata-se de uma proposta artística que con-

vida as pessoas a transformarem muros em murais de fotos.

O projeto acontece simultaneamente em diversas cidades

mundo afora, uma vez por ano. “O tema de 2011 foi ‘felici-

44

dade’. Em São Paulo, neste ano, havia muitos fotógrafos na

ação, mas também foram pessoas que não tinham nada a

ver com fotografia e levaram a foto do filho, por exemplo”,

conta Julia Bolliger, que trabalha no portal ideia Fixa, organi-

zador da ação no Brasil. Naquela edição, cerca de 3 mil pesso-

as saíram de casa com suas fotos, rumo a muros espalhados

por 20 cidades do mundo. Mesmo que não seja o tipo de

participação fundamentalmente cocriadora, com pessoas que

transgridam a ideia inicial, ainda assim é um projeto que me-

rece ser citado pela amplitude de mobilização e diálogo com

o público, sinal da potencialidade das ferramentas atuais.

QUANDO O ESPECTADOR SE TORNA UM ACOMODADO?

“A tendência para a prática de colaboração e partici-

pação é, inegavelmente, uma das características principais

da arte contemporânea”, escreveu o filósofo alemão Boris

Groys, no ensaio A genealogia da arte participativa. A ten-

dência mencionada por Groys pode ser percebida em obras

como “Please, love Austria” (“Por favor, ame a áustria”), do

cineasta alemão Christoph Schlingensief, realizada em 2000.

Ele transferiu para uma das praças da cidade um contêiner

que abrigou dez estrangeiros. Todas as ações dos “prisionei-

ros” podiam ser acompanhadas pela internet. Diariamente,

um deles era eliminado por votações online. Os perdedores

eram encaminhados ao departamento de deportação. À luz

4746

do dia, o cineasta passava pelo contêiner e proferia vários

comentários de cunho racista. O projeto suscitou críticas

e motivou a mobilização de muitas pessoas. O que instigou

os ânimos foi o delicado tema em discussão: a xenofobia.

“’Please, love Austria’ mostrou as contradições de uma

sociedade e criou mais debate e agitação que a própria

instituição responsável por questões de imigração. A atuação

de Schlingensief é contraditória e antidemocrática, o que só

explicitou a liberdade do fazer artístico. A ambiguidade está

no âmago da obra”, comentou a crítica Claire Bishop ao ana-

lisar o trabalho. Para ela, tal obra não deve ser criticada por

um aspecto ético superficial. Alguns trabalhos participativos

partem de uma ideia que reafirma problemas da sociedade

atual para colocá-los em discussão.

QUAL O VALOR SOCiAL DA ARTE?

“Você conhece Akira Kurosawa?”; “Você já leu Clarice

Lispector hoje?”; “Está com fome? Então leia O Banquete, de

Platão”; e “Descubra quem você é”: essas foram algumas das

frases que escrevi em post-its, preparando-me para uma inter-

venção urbana cujo planejamento foi realizado a várias mãos.

Um amigo colocava miniaturas dentro de bexigas vazias

e as passava para mim. Além das miniaturas, iam os post-its

dobrados bem miúdos. Enquanto uns enchiam as bexigas,

outros preparavam fantasias com panos estampados e papel.

Qual o valor s o c i a l

da arte?

48 49

Estávamos organizando uma intervenção urbana, coletiva-

mente, entre músicos, publicitários, jornalistas e pesquisado-

res de áreas diversas.

Cada detalhe da ação foi pensado e executado colabora-

tivamente, após a leitura de poemas e músicas que nos ins-

piraram. O encontro foi proposto por amigos que desenvol-

veram a ideia de um laboratório de intervenções na cidade.

Dez pessoas se reuniram com o objetivo de criar uma ação

artística efêmera e impactante. O grupo saiu pelas ruas do

centro de São Paulo cantando e entregando bexigas para as

pessoas com as mensagens citadas. Na maioria das entregas,

conversávamos com as pessoas. Mesmo com algumas tenta-

tivas frustradas, em geral o diálogo se estabelecia.

‘... AQUi AiNDA EXiSTiRiAM SéRiAS DiFiCULDADES A VEN-

CER. MAS ESTAS DiFiCULDADES ESTãO MAiS DENTRO DE

NóS MESMOS DO QUE EM QUALQUER OUTRA PARTE’?15

Essa ação não reflete uma dinâmica participativa do co-

meço ao fim, porque nesse caso há um espectador almejado:

o público da rua. Mas é uma mistura de arte participativa com

arte pública que dilui fronteiras que nem mesmo estavam tão

claras. “Na arte pública, não chamamos o público de público,

nem de espectador, porque ele às vezes nem sabe que está

sendo envolvido na ação”, conta Nelson Brissac Peixoto, filó-

sofo e professor da PUC-SP.

15 GOGH, Vincent Van. Cartas a Théo. Trad. Pierre Ruprecht. Porto Alegre: L&PM, 2001. (p.299)

O que aconteceu na ação descrita há poucos parágra-

fos? Um encontro entre amigos? Uma intervenção urbana?

Uma ação de educação informal? A arte contemporânea li-

quidifica a realidade. E, como Bishop discute, a arte participa-

tiva coloca uma série de binômios pulsantes diante de quem

a analisa, como

. arte/vida. autor/público

. individualidade/coletividade

O artista Thomas Hirschhorn vai ao âmago dessa questão

quando comenta um dos seus trabalhos artísticos, chamado

Foucault Art Project, para o qual ele imaginou um espaço

com 700 a 1000 m2, onde ocorreriam discussões, exposições

de fotos e livros, encontros, entre outras atividades. “Deve-

mos nos libertar de exposições. Odeio e nunca uso o termo

show em inglês; odeio e nunca uso a palavra piece [peça,

pintura]. Nunca uso e o termo instalação. Mas quero fazer

um trabalho, uma obra de arte! Quero me tornar o que sou.

Quero me tornar um artista! Gostaria de me apropriar do

que eu sou. Este é o meu trabalho como artista”, conta Hirs-

chhorn. O artista alemão quer se apropriar de si mesmo – e

considera este o seu trabalho. Seu trabalho é se tornar artis-

ta, numa fusão de vida com arte.

VOCê GOSTARiA DE PARTiCiPAR

DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?“16

16 Título de um dos trabalhos do artista multimídia Ricardo Basbaum.

50 51

Deborah me convidou para opinar sobre algo em sua

casa. imaginei que fosse uma cadeira ou prateleira, porque

sou bom carpinteiro. Também falo de quadros, de Picasso

a Magritte, de Tarsila a Deborah. Uma casa é uma casa. Sei

tudo que uma casa pode ter. Mas ela queria um palpite sobre

uma caixa alienígena. Branca, de um material desconhecido,

com um tubo central (porta rabos talvez, ou lixeira prática).

Deborah disse que a caixa era bio-magnética, ela tinha dese-

jos de abraçá-la”, conta o escritor André Carneiro, em depoi-

mento para o site do projeto Novas Bases para a Personalida-

de (NBP)17, do artista Ricardo Basbaum. Esse projeto consistiu

no seguinte: Basbaum inventou um objeto retangular com

uma espécie de cilindro no meio, que foi entregue a várias

pessoas, convidadas a fazer o que quisessem com ele.

O artista só pedia que elas documentassem as ações,

seja quando pintavam o objeto, quando apresentavam

alguma performance com ele ou quando realizavam algo

que nem o inventor da ideia havia imaginado. Basbaum

também pedia que devolvessem o objeto. A proposta, rea-

lizada desde 1994, intitula-se “Você gostaria de participar

de uma experiência artística?” Se fôssemos dividir a possi-

bilidade de participação em níveis, essa obra estaria entre as

mais participativas – com um porém, claro, afinal, para que

você participe dessa experiência artística, é necessário o con-

vite. inclusive existe uma escala que facilita a distinção das

nuances envolvidas num ato participação. Há um conceito

político que pode ser relacionado com a arte participativa.

17 http://nbp.pro.br

A “escada da participação” sugere um olhar minucioso

para os níveis de apropriação de poderes dos indivíduos

comuns numa sociedade. Na escala dos graus de participação

dos cidadãos desenvolvida pela escritora Sherry R. Arnstein,

cada degrau corresponde a um nível diferente da abertura

dos indivíduos na definição dos rumos de uma sociedade.

A seguir, os oito degraus da escada da participação cidadã:

.8º Controle cidadão

.7º Delegação de poder

.6º Parceria

.5º Pacificação

.4º Consulta

.3º informação

.2º Terapia

.1º Não-participação

Enquanto no primeiro degrau há a não-participação – ou

seja, a apatia diante do aparato político, quando o sujeito é

suscetível a qualquer tipo de manipulação –, no último de-

grau há o controle cidadão – que ocorreria caso questões

mais relevantes para o funcionamento de uma sociedade,

como orçamentos, fossem totalmente decididas a partir de

assembleias populares, por exemplo. O segundo e o terceiro

degraus também estão mais ligados à não-participação: no

nível da “terapia”, os problemas dos cidadãos são ouvidos

pelo governo, mas nada é feito, compromissos não são firma-

dos; no degrau da “informação” há uma maior transparên-

cia do poder público em relação a decisões importantes, mas

nada mais do que isso.

52

Nos outros graus de participação, também há diferentes

tipos de relação: no nível da “parceria”, geralmente surgem

organizações híbridas que dialogam com diferentes atores.

Em “pacificação”, há o uso de estratégias paliativas para a

resolução das situações – neste degrau, as demandas são

atendidas com soluções temporárias.

Pode-se aplicar a “escada de participação” na arte para

analisar os graus de abertura que os artistas dão em relação à

cocriação. Por muito tempo a arte foi “não-participativa”. Em

tempos de Renascimento, período em que a arte estava pau-

tada pela ideia de imitação (mimesis) das formas ideais e clás-

sicas, não se falava em colaboração. Hoje em dia, encontram-

-se trabalhos com as mais variadas características. Muitos, por

exemplo, permitem uma participação semelhante ao quinto

degrau da escada pensada por Arnstein. Na “consulta”, pede-

-se a opinião dos participantes, mas isso não garante que ela

seja levada em conta durante o desenvolvimento do trabalho.

O COLETiVO OU O iNDiViDUAL?

Aaron Klobin é um jovem artista norteamericano que re-

alizou vários trabalhos colaborativos. Em um de seus traba-

lhos, Aaron pediu que as pessoas lhe enviassem desenhos de

ovelhas – em troca, o artista pagava US$0,02 a cada um dos

colaboradores18. Ele consultava o público, mas usava apenas

18 Matéria sobre o trabalho de Aaron Klobin, acessada em agosto de 2011 http://blogs.estadao.com.br/link/tag/johnny-cash/

O COLETIVO OU

O INDIVIDUAL?

54 55

ATo III

ARTE PARTICIPATIVA E EduCAção

“Percebo que antes mesmo de aprender o uso do

imperfeito do subjuntivo, já estão me dizendo que ele não

serve para nada. Primeiro, aprendam. Depois, vocês podem

questionar o uso dele”, explica o professor François Marin,

personagem do filme francês Entre os Muros da Escola. Essa

frase ilustra bem a típica relação entre estudante e professor:

o mestre transmite conhecimentos ao aluno, como se estives-

se sempre um passo à frente.

Constrói-se uma relação problemática, com uma lacu-

na entre as duas inteligências. A relação entre a transmissão

de conhecimentos e o ensino é, para o filósofo francês

Jacques Rancière, o princípio do embrutecimento do aluno.

Para que haja emancipação na sala de aula, uma outra

postura deve ser assumida.

as contribuições que mais o interessavam, sendo que a par-

ticipação popular se resumia à simples remessa de (possíveis)

partes da obra. Na contramão do que acontece com traba-

lhos como os de Klobin, as obras de arte participativa que

convidam o público a se apropriar da ação proposta motivam

o surgimento de comunidades – seja durante a execução da

obra, seja num processo de “expansão” ou transgressão do

discurso inicial, o que pode durar muito tempo. “Comuni-

dade significa que não há um ser singular sem um outro ser

singular”, explica o filósofo francês Jean-Luc Nancy.

Após esses primeiros atos, focalizados em análises de re-

ferências contemporâneas e antigas – conceitos e obras fun-

damentais para uma primeira aproximação do tema – entra-

mos noutro momento. é hora de mergulhar em dois projetos

tão singulares quanto seus participantes.

56 57

QUAL é A DiFERENçA ENTRE OUViR E ESCUTAR?

Rancière se baseia nos argumentos do professor Joseph

Jacotot, um educador do século 19 que defendia a emanci-

pação intelectual das pessoas por meio da ideia da igualdade

das inteligências. Segundo Jacotot, todos têm a mesma ca-

pacidade de aprendizagem. Uma das situações que justifica-

riam essa equidade é o fato de que o ser humano aprende

o idioma nativo sem maiores explicações teóricas. Do gugu-

-dádá até a elaboração de frases mais complexas, dá-se um

processo realizado por tentativa, comparação, erro, acerto...

enfim, de pura experimentação. Se o professor entende que

seu aluno é tão inteligente quanto ele mesmo, a relação

muda totalmente.

“O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre

não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa

e recontar tudo o que descobriu no caminho, enquanto o mes-

tre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende

alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas

não aprende o conhecimento do mestre”, conta Rancière no

livro O Mestre ignorante. Ao discursar numa escola de artes,

Rancière comparou as ideias de Jacotot ao comportamento

do espectador de teatro. Ele lembra que muitos dramaturgos

pressionam o espectador a sair da sua atitude passiva. Assim,

reflete Rancière: “este é o primeiro ponto que os reformado-

res do teatro compartilham com os pedagogos do embruteci-

mento: a idéia da lacuna entre duas posições. Mesmo quando

QUAL É

OUVIR EESCUTAR?

A DIFERENÇAENTRE

58 59

o dramaturgo ou o ator não sabe o que quer que o espectador

faça, pelo menos ele sabe que o espectador tem que fazer

alguma coisa: trocar a passividade pela atividade”.

As oposições olhar/saber, olhar/agir, aparência/realidade

e atividade/passividade são, para Rancière, alegorias da desi-

gualdade. Na maioria das vezes, elas são ressaltadas com a

intenção de ser abolidas. Mas “é exatamente o esforço para

suprimir a distância que constitui a própria distância”. Em

vez do reconhecimento das semelhanças entre artista e es-

pectador, cava-se ainda mais fundo o abismo entre ambos.

“De fato, eles [dramaturgo e ator] estão mais que cautelosos

hoje em dia quanto a usar o palco como meio de ensino. Eles

apenas querem proporcionar um estado de atenção ou uma

força de sentimento ou ação. Mas ainda supõem que aquilo

que vai ser sentido ou entendido será o que eles colocaram

no próprio roteiro ou performance. Eles pressupõem a igual-

dade – ou seja, a homogeneidade – entre causa e efeito.

Como sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigual-

dade. Ela se baseia no pressuposto de que há um conheci-

mento adequado e uma prática adequada no que diz respei-

to à ‘distância’ e às formas de suprimi-la”, continua Rancière.

Nas palavras do autor, para suprimir a distância entre

professor e aluno, “Jacotot colocou o livro como o algo que

fica no meio. O livro é a coisa material, exterior tanto ao mes-

tre quanto ao aluno, através do qual é possível verificar o que

o aluno viu, o que ele disse a respeito, o que ele pensa sobre

o que disse.”

A artista Kunsch também quer suprimir a distância entre

ela e seu público. Para isso, não usa um livro, mas sim excer-

tos de filmes.

O QUE EMBRUTECE O POVO: A FALTA DE iNSTRUçãO OU A

CRENçA NA iNFERiORiDADE DA SUA iNTELiGêNCiA?

“Escutar é algo que vai mais além da possibilidade audi-

tiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, signifi-

ca possibilidade permanente por parte do sujeito que escuta

para abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferen-

ças do outro”, diz Paulo Freire no livro Pedagogia da Autono-

mia. Logo no começo da conversa com Kunsch, ela leu este

trecho de Freire. Ouvir o outro é essencial para a artista.

Os diálogos que ela propõe dependem da atenção do pú-

blico. E o diálogo anula o comportamento bancário, tão criti-

cado por Freire – a pedagogia bancária consiste em depositar

conhecimento sem nenhuma perspectiva crítica nem convite

ao aluno para que ele recrie o que está sendo dito. Sendo

ávida leitora de Paulo Freire, a artista também cuida para que

seu espectador não seja apenas um receptor de informações.

O espectador da arte participativa ajuda a construir a

obra – e tem até o aval para ressignificá-la. Por exemplo, caso

você queira, pode sair reproduzindo o Projeto Mutirão, obra

inicialmente elaborada por Kunsch. Dentro da ideia do proje-

to está a possibilidade da apropriação da obra pelo especta-

dor – e da diluição da autoria, claro.

61

O que embrutece o povo:

a falta de instrução ou a crença

na inferioridade da sua inteligência?

‘A LiBERDADE POLíTiCA NãO PODE SE RESUMiR

NO DiREiTO DE EXERCER A PRóPRiA VONTADE.

ELA RESiDE iGUALMENTE NO DiREiTO DE DOMiNAR

O PROCESSO DE FORMAçãO DESSA VONTADE’. 19

A GENTE DOMiNOU/DOMiNA ESTE PROCESSO?

Uma das características essenciais da obra participativa é

que ela está “em processo”. Ela é um fluxo de água que, a

princípio, corre num chão cavado pelo artista. Depois da ideia

inicial, o artista chama mais gente para que o chão seja ca-

vado em grupo. E cada um faz isso à sua maneira. Assim, ou

.1 o artista continua cavando o chão junto com outras

pessoas que aceitam se dedicar ao desenvolvimento do tra-

balho tanto quanto o propositor ou

..2 o artista vai embora e deixa o fluxo de água correr

pelos caminhos traçados pelo público que, a esta altura já não

é mais espectador, mas sujeito da obra.

“Espectar” é o ato de olhar, assistir, apreciar. Vem do

latim specto, de observar atentamente, contemplar. A par-

tir do momento que a obra começa a ser construída pelo

espectador, ele também se torna artista. Quando deixa de

“espectar”, também deixa de ser espectador. “Arte expandi-

da” foi uma expressão usada nas décadas de 60 e 70 para ca-

racterizar o tipo de arte que estava sendo influenciada pelas

performances e happenings, entre outras práticas artísticas.

19 MATTELART, Armand. História das Teorias da Comunicação. São Paulo: Edi-ções Loyola, 2003.

62 63

A arte participativa alarga o papel do público ao ponto

do nome espectador não mais servir para nomeá-lo.

‘ESTE é TEMPO DE PARTiDOS,

é TEMPO DE HOMENS PARTiDOS’20?

O Projeto Mutirão consiste em diálogos promovidos por

Graziela Kunsch, nos quais são exibidos trechos de vídeos

sobre movimentos sociais e suas lutas, gravados pela artista

ou por colaboradores. Os excertos são mais do que um pre-

texto para os encontros. Eles funcionam como uma espécie de

liga das conversas, motivação para novas reflexões – e para a

participação. Kunsch comenta, na sua dissertação: “acho que

Nicolau Bruno [pesquisador da ECA-USP – Escola de Comuni-

cação e Artes da Universidade de São Paulo] não precisava ter

medo da dispersão ‘pós-moderna’ que o uso do excerto ou

fragmento (excerto, no vocabulário de Graziela Kunsch) pode

sugerir. A forma (seria inapropriada a palavra?) é pensada,

articulada, mas não a partir de abstrações, nem articulações

de abstrações, mas se constrói no acompanhamento de lutas

políticas em andamento, de ações movidas pela necessidade

e pela utopia (não é a utopia absolutamente necessária e

a satisfação de algumas necessidades, utópica?) A recusa

em fechar a forma, o voltar-se constantemente para ela,

questioná-la, incorporar a discussão, a apresentação, a crítica,

o comentário alheio, tudo isso”.

20 ANDRADE, 2001, p. 38.

VOCêS ACHAM QUE A EDUCAçãO DEVE

SER UMA FERRAMENTA PARA iMPULSiONAR

O CRESCiMENTO ECONôMiCO DO PAíS

OU SEU PAPEL PRiMORDiAL é OUTRO?21

A biblioteca de Kunsch contém referências fundamentais

para que as pessoas entendam seus trabalhos e saibam de

onde ela parte para atuar como artista. Com a intenção de

deixar claras as suas motivações, em muitas mostras e apre-

sentações ela leva pelo menos um recorte temático de livros,

para compartilhar com o público algumas das referências em

jogo. “Tento criar estratégias para as pessoas usarem esses

livros nos espaços expositivos, como grupos de estudos”,

conta. Na 29ª Bienal de Arte de São Paulo, por exemplo,

havia quase 300 livros da sua coleção particular. Desde que

abriu sua casa como uma “residência pública”, em 2001,

sua biblioteca é compartilhada. “A biblioteca era o primeiro

cômodo da casa e sempre tinha muita gente passando por

lá. As pessoas podiam entrar para estudar e levar livros em-

prestados. Até pessoas que eu não conhecia podiam agendar

visitas para estudar na biblioteca – no entanto, isso aconte-

cia menos, a maioria dos que usavam a biblioteca eram os

que frequentavam as exposições e eventos que ocorriam na

casa”, relembra Kunsch.

Ela estudou num colégio tradicional, mas desde jovem

buscava apresentar trabalhos em forma de teatro ou vídeo.

21 Pergunta contida na matéria “Exercício de Dialética”, publicada na revista Trip de setembro de 2011.

64 65

“Gostava de trabalhar em grupo e acabava levando todo

mundo comigo. Tinha gente que nunca teria interesse em

fazer teatro, mas daí topava fazer uma peça. A gente trans-

formava um trabalho sobre efeito estufa em teatro. Alguns

professores se tornaram aliados e passamos a montar peças

para apresentar para outras turmas”, diz Kunsch numa en-

trevista contida nos anexos do livro insurgências Poéticas, do

pesquisador André Mesquita.

Nos tempos de criança, a jovem Graziela Kunsch ainda

não pensava em trabalhar com arte. Foi atleta da seleção

brasileira de nado sincronizado, pentacampeã brasileira por

equipes e campeã sul-americana. Mas abandonou o esporte

para estudar teatro. Antes de terminar o ensino médio, foi

convidada para trabalhar em uma escola de artes cênicas para

crianças e adolescentes, com alunos de até 15 anos. “Acabei

passando dez anos na escola. As minhas peças com os alunos

sempre eram criações coletivas e aproximavam várias lingua-

gens. incluía vídeos nos trabalhos. As artes plásticas estavam

sempre presentes. Os cenários geralmente eram conceituais,

muito bem pensados. Tenho muita saudade daquela época.

Sei que as peças de teatro tocavam muito as pessoas, acho

que mais do que meus trabalhos atuais”, conta ela.

AS PESSOAS SE EMOCiONAM COM O QUê?

Nas peças de teatro com os alunos, já estava presente

uma abordagem social e política. Até as crianças tinham in-

teresse em lidar com esses temas. A peça Se você sonha com

nuvens, por exemplo, inspirada em contos zen budistas e

hindus, foi uma das quais Kunsch mais gostou. “Lembro dos

pais me procurarem, e a agradecerem: ‘nunca imaginei que

meu filho pudesse me dizer essas coisas’”, diz. As peças eram

assinadas pelo coletivo de alunos, como, por exemplo, “cria-

ção coletiva à luz de Manoel de Barros” e “criação coletiva

com a Clarice Lispector”.

Kunsch queria estudar cinema na USP e artes plásticas

na Faap (Fundação Armando álvares Penteado). Pensava em

cursar uma faculdade durante o dia e outra à noite. “Para o

cinema e para o teatro que eu queria fazer, precisava estudar

artes plásticas”, fala a jovem artista, hoje com 32 anos. Ela

não entrou na USP, mas passou na Faap em primeiro lugar,

com direito a bolsa no primeiro ano. “Comecei a cursar cine-

ma como ouvinte. Na realidade, cursei não só como ouvinte,

pois os professores de aulas práticas acolhiam todos os alu-

nos”, lembra. A turma da Faap era muito criativa e radical; a

partir desse grupo surgiram vários projetos artísticos coletivos.

Ela resolveu estudar na USP como ouvinte, onde teve

aulas com professores como Arlindo Machado, que falava

bastante sobre as origens da linguagem cinematográfica, e

Ricardo Calil, mais focado em cinema brasileiro. As aulas a

influenciaram bastante, tanto quanto as experiências com os

amigos da Faap. “O fato de eu ter estudado arte é muito de-

66 67

As pessoas se emocionam com o quê?

terminante no cinema que faço hoje – e foi crucial na minha

forma de repensar o teatro. De certa maneira, abandonei o

teatro, mas também não abandonei. O trabalho se radicali-

zou, deixou de ser espetáculo para virar outra coisa. Uma das

definições para ‘participação’ é justamente o não-espetácu-

lo. Quem é contra o espetáculo, é a favor da participação das

pessoas”, explica.

VOCê é CONTRA O ESPETáCULO?

Desde o grupo de teatro, Graziela lidava diretamente

com questões políticas e ativistas. “Me formei num grupo

que não era exatamente engajado, mas era bastante político,

com um trabalho bem crítico. No teatro, existe muito forte a

ideia do trabalho coletivo, acho que funciona melhor do que

em qualquer outra área”, reflete a artista.

Durante o curso de artes plásticas, ela formou, com alguns

amigos, o Núcleo Performático Subterrânea. Esse coletivo rea-

lizava várias ações pela cidade, sem planejamento nem regis-

tros. As performances rompiam os limites entre a atuação e a

não-atuação, cada um se expressava de uma maneira diferen-

te, reagindo a algumas situações do cotidiano. Como eram as

ações? “Nunca descrevo, era um trabalho bem radical, quan-

do a gente coloca em palavras a experiência é empobrecida”,

responde ela. O grupo costumava dizer que todo mundo nasce

subterrânea, mas poucas pessoas percebem isso.

69

é POSSíVEL DETERMiNAR A DURAçãO

DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?

Enquanto estudante, a faculdade era a cidade de Kuns-

ch, o universo da artista. E ela estava na Faap na época em

que começou a instalação de catracas. Tentou resistir a isso,

com um movimento anti-catracas, mas no fim, as demandas

não foram atendidas. Ela também participou de outras mo-

bilizações na faculdade, como do grupo MTAW (Movimento

Terrorista Andy Warhol), que deixou colorido um dos corre-

dores cinzas da escola. O engajamento em ações assim ren-

deu inúmeras tentativas de repreensão por parte dos direto-

res da faculdade à estudante. Mas sempre teve sorte e nada

de grave resultou das conversas. Por um lado, ela era uma

aluna rebelde. Por outro, ganhou dois prêmios – e bolsas –

nas competições de arte anuais da Faap. Como representan-

te da universidade, também ganhou um prêmio em Berlim.

A artista e os amigos não apenas fizeram manifestações e

intervenções urbanas. Eles lidavam com múltiplas linguagens.

Então, lançaram uma revista chamada Urbânia, fanzine que

nasceu com 300 exemplares com o objetivo de divulgar suas

“ações subterrâneas”. O poema a seguir, de Fernando Pessoa,

publicado sem créditos na contracapa dos números 1 e 2 da

revista, resume o impulso que gerou a revista: “Mesmo que

os nossos versos nunca sejam impressos, / Eles lá terão a sua

beleza, se forem belos. / Mas eles não podem ser belos e ficar

por imprimir, / Porque as raízes podem estar debaixo da terra /

Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. / Tem que ser

assim por força. Nada o pode impedir”. E a revista ironizava

os próprios integrantes do grupo. “A notícia mais alarmante é

que não há indícios de que Graziela Kunsch seja uma pessoa

real ou uma única pessoa, mas heterônimos de si mesma”,

constava numa página solta encartada na publicação. Houve

um intervalo de sete anos entre as edições número dois e três

da Urbânia. Várias edições número 3 foram esboçadas e, na

Urbânia 4, sobre projetos de cidades, a revista assumiu uma

lógica mais colaborativa e migrou para a internet.

A EXPERiêNCiA DO ESPECTADOR PODE

SER TRANSFORMADA NUMA OBRA DE ARTE?

A Arte e Esfera Pública é outros dos projetos de Kunsch,

uma iniciativa que ocorreu em 2008, organizada por ela e

um amigo, também artista, chamado Vitor Cesar. “Apoia-

dos em práticas contextuais (site-specific) e em projetos de

colaboração, objetivamos pensar em como se constitui uma

esfera pública hoje, ou, mais apropriadamente, em como se

constituem e se sobrepõem diferentes esferas públicas, dife-

rentes contextos e diferentes audiências”, resume o folder

da exposição, que esteve espalhada por vários lugares de São

Paulo. Num dos espaços, estava montado mais um dos pro-

jetos que também contam com a participação de Kunsch: a

BASE móvel, uma estrutura que motivava encontros, conver-

70

sas e estudos. A BASE móvel, instalada no Centro Cultural

São Paulo, era formada por cadeiras, móveis e fitas coladas

no piso, que traçavam uma planta no chão para delimitar

a função de cada espaço. Havia um espaço para conversas,

outro com livros das bibliotecas pessoais de Kunsch e de um

amigo dela, chamado Ricardo Rosas – entre outros espaços

para projetos de outros artistas.

Em 2004, realizou uma exposição chamada Um espaço

para a contracultura inglesa no Centro Brasileiro Britânico, a

partir da obra do inglês Stewart Home. Para essa exposição,

ela levou todos os livros que possuía de autoria de Home, entre

outros títulos relacionados. A partir daí, parte da sua biblio-

teca segue em quase todas as exposições. “é uma proposta

educativa. Um convite para falar para as pessoas: ‘olhe, este

trabalho aqui precisa de um pouco mais de tempo da sua

atenção, você pode aprofundar sua visão sobre a exposição’.

Uma biblioteca permite várias camadas de aproximação.Tem

gente que só olha as lombadas, por exemplo. Se as pessoas

percebem algum sentido, nem que seja rápido, já é válido”, diz

Kunsch. Nessa exposição, também houve momentos de partici-

pação mais explícitos. “Foi a primeira vez que organizei conver-

sas dentro do espaço expositivo. A cada sexta-feira, acontecia

um diálogo sobre um tema ligado à contracultura inglesa, de

alguma forma também ligado ao contexto brasileiro”, explica.

QUAL é A FUNçãO DO ARTiSTA?

A experiência do espectador pode ser transformada numa obra de arte?

72 73

Estou bem no momento de questionar o meu próprio

trabalho. Cada diálogo é muito diferente. Alguns são incrí-

veis, funcionam muito bem, outros são desastres e se tor-

nam mais uma apresentação do que uma conversa. Preciso

descobrir um jeito de isso funcionar mais dialogicamente”,

comenta a artista, idealizadora do Projeto Mutirão. Os víde-

os apresentados nos diálogos do projeto são diversos, como

filmagens no MST (Movimento Sem-Terra), entre outras ima-

gens de ocupações e manifestações. No início dos encontros,

Kunsch costuma fazer perguntas para a plateia. E ela geral-

mente customiza as abordagens, porque o trabalho é sempre

apresentado em contextos específicos, nos quais é possível

desenvolver as conversas segundo ideias mais afins a cada

grupo. A intenção da artista é realizar diálogos nos quais a

participação do público aflore – e incentivar a apropriação do

trabalho e sua reinvenção pelas mãos dos participantes.

O QUE é, ENTãO, ESSA ARTE QUE é CONSiDERADA

TãO iMPORTANTE E NECESSáRiA PARA A HUMANiDADE

CUJOS SACRiFíCiOS NãO APENAS

DO TRABALHO E DAS ViDAS HUMANAS,

MAS TAMBéM DA BONDADE, LHE SãO OFERECiDOS?24

Numa conversa com o movimento Passe Livre, em Floria-

nópolis, por exemplo, Kunsch começou perguntando: como

seria o espaço de uma cidade com o transporte gratuito?

24 TOLSTOi, 2002, p. 30.

A artista terminou a faculdade em 2001 e foi morar em

Paris durante sete meses, por meio de um projeto de residên-

cia artística da Faap. Enquanto estava na França, um amigo

a convidou para participar do Festival Mídia Tática Brasil. Ela

disse que não queria fazer um trabalho individual, e propôs

aos Rejeitados – um coletivo de coletivos do qual ela fazia

parte – que também participassem do festival. O evento foi

um marco na história de Kunsch, aproximando ativistas de

artistas. Ou seja: o evento propiciou o contato entre pessoas

com objetivos comuns e práticas diferentes.

No Mídia Tática, ela conheceu iniciativas como o CMi

(Centro de Mídia independente)22, do qual se tornou colabo-

radora ativa, com tamanho envolvimento que, nesse período,

abandonou os projetos de exposição de seus trabalhos artís-

ticos. Era muito comum que alguém de algum movimento

social ligasse para ela de madrugada e saíssem imediatamente

para realizar filmagens. No final de 2004, em 2005 e 2006, es-

teve tão dedicada a esse trabalho que foi aceita no mestrado

em 2005 mas, na prática, manteve o foco exclusivo no CMi.

COMO é POR DENTRO OUTRA PESSOA?

QUEM é QUE O SABERá SONHAR?“23

22 O Centro de Mídia independente é uma rede que surgiu nos EUA em 1999, para agregar as notícias de coberturas jornalísticas sobre os protestos contra um encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle. O CMi se tornou um portal de mídia alternativa gerido por coletivos independentes.

23 Poesia Como é por dentro outra pessoa, de Fernando Pessoa acessada em 27 de agosto de 2011, http://www.revista.agulha.nom.br/fpessoa93.html.

74 75

O QUE VOCê QUiS DiZER QUANDO FALOU QUE

UM POEMA DEVE AGiR COMO UMA MALA VAZiA?25

Toda conversa é uma divisão de responsabilidades. No

diálogo não há apenas emissores e receptores, mas duas ou

mais pessoas interagindo. O tempo todo, há o exercício da

escuta e da fala. E o desafio de Kunsch é promover conversas

espontâneas, nas quais as falas se levantem naturalmente.

E não só ela tem esse desafio, mas também outros artistas

que trabalham com o diálogo. Há, inclusive, uma evolução

nesse meio: os trabalhos artísticos de linha mais educacional

e dialógica já estão sendo reconhecidos pelo sistema insti-

tucionalizado de arte; tanto que há vários críticos e historia-

dores buscando nomear essas práticas. Há quem chame de

“arte baseada em diálogo” ou “estética relacional”. Novos

tempos, novas terminologias. E assim também pensa Kunsch

em relação ao seu trabalho: “não uso a terminologia ‘plano-

-sequência’26 para os vídeos que mostro durante as apresen-

tações. Essa expressão foi proposta pelo André Bazin, quan-

do ele falava do cinema clássico. Para os filmes de hoje que

eu outras pessoas fazem, acho que precisamos de outros

nomes. Por isso, chamo meus vídeos de excertos”.

Nas apresentações, Kunsch tenta mais escutar do que

falar. Ou fazer perguntas e, conforme os conteúdos e ideias

25 Primeira pergunta da entrevista com o poeta Kay Ryan realizada pela revista Paris Review, na edição 187, em 2008.

26 O plano-sequência é um plano longo, sem cortes, que de certa forma subs-titui uma sequência de planos. O plano é a unidade de tempo no cinema, uma cena sem nenhum corte (edição) é um plano.

Como seria o ponto de ônibus? O que mudaria na práti-

ca? Nesse caso, ela tentou incentivar as pessoas a refletirem

sobre a cidade dos sonhos de maneira menos abstrata. “Nor-

malmente, os movimentos sociais têm muita facilidade para

pensar as questões ideologicamente, nos direitos, mas muita

dificuldade de pensar espacialmente”, explica.

A interação depende do perfil do público: há pessoas

que logo começam a falar e trazem ideias. Outros, mais tí-

midos, entram e saem calados. “Mas acho que, no mínimo,

as perguntas que faço instigam o pensamento das pessoas,

elas tentam visualizar alguma coisa. isso é importante, nesse

momento elas já estão participando, elas se percebem, de

certa forma, sujeitas do trabalho. E para mim não basta ser

participante. O público precisa se perceber sujeito de deter-

minado processo”, reflete Kunsch.

A artista não quer que as pessoas apenas participem de

suas proposições, mas também que elas façam novas, num

exercício de cocriação. Num texto sobre trabalhos participati-

vos, o artista e educador norte-americano Ted Purves reflete

sobre a essência de trabalhos construídos em conjunto: “Por

‘cocriação’, eu quero dizer que, apesar de os projetos serem

instigados por um artista ou por um coletivo, todos têm sido

estruturados para permitir seu significado concreto e suas

resoluções possíveis; para serem reformulados por aquelas

pessoas que poderiam ser consideradas, do contrário, apenas

como espectadoras”.

77

o que você

quis dizer quando falou

que

um poema

deve agir

como

uma mala vazia?

[primeira pergunta

da entrevista com o

poeta Kay Ryan re-

alizada pela revista

Paris Review, na edi-

ção 187, em 2008.]

trazidos pelas pessoas, ela tenta mediar e articular o que

surge. “Conforme as pessoas passam a pensar em determi-

nada provocação, posso ser a mediadora que tenta articular

essas falas, nem que seja minimamente. A partir de alguma

coisa que alguém fala, eu digo ‘ah, tenho um excerto aqui

muito legal, relacionado com isso que você falou, aí mostro

o vídeo’. Em algumas apresentações, até falo sobre o conte-

údo dos vídeos, explico algumas das ações. Há quem queira

entender melhor como funciona uma ocupação sem-teto, e

a gente conversa sobre isso. Há outros casos em que não

se fala sobre nenhum vídeo desse jeito, daí a gente discute

outra coisa, como a linguagem do trabalho”, fala Graziela.

Em alguns momentos, as pessoas assumem tanto a dis-

cussão que a artista poderia sair da sala sem ser percebida.

“Claro que nunca sou apenas mais uma participante da con-

versa. Como propus o jogo, vou ter sempre algum olhar por

trás. Mas o melhor momento é a hora na qual sou completa-

mente dispensável nos diálogos”, comenta.

Tais melhores momentos não aconteceram apenas em

apresentações do Projeto Mutirão. Bem antes, quando dava

aulas de teatro, ela adorava deixar os alunos totalmente so-

zinhos dentro da sala, trabalhando sem o inquisidor olhar

adulto, sem palpites alheios. Na primeira metade da aula,

ela tentava ao máximo trazer referências para eles traba-

lharem. Depois do intervalo, o grupo inteiro fazia uma cena

improvisada, na qual lidavam com todas as dificuldades de

um processo coletivo. Kunsch saía da sala, e eles buscavam

caminhos, completamente sós. Depois, ela voltava e via o re-

78 79

sultado. “Costumo dizer que essa foi a minha melhor expe-

riência como professora, justamente quando eu não estava

na sala de aula. Foram os momentos nos quais eu fui uma

melhor professora”, explica a artista.

MAS COMO EXPLiCAR QUE ELE [O HOMEM]

SEJA TãO APAiXONADAMENTE PROPENSO

À DESTRUiçãO E AO CAOS?27

Na 29ª Bienal, Kunsch realizou diálogos com diversos

públicos, desde plateias que começaram com uma pessoa

até públicos compostos por 150 educadores. Dependendo

da situação, a interação se dava de maneira diferente. “Nor-

malmente, quando falo que a apresentação foi um desastre,

é quando ela é mais expositiva, quando falo mais do que

o público. Por outro lado, fiz uma apresentação puramente

expositiva num congresso acadêmico de cinema, em vinte

minutos, que depois rendeu um diálogo com o público que

foi super legal”, comenta. Nesse dia, o foco da discussão foi

a linguagem do trabalho. “Para mim, também é muito legal

quando o trabalho é discutido a partir do ponto de vista do

cinema, quando a ênfase não é só na luta política”, diz.

inclusive as apresentações que não foram muito legais

são vistas como importantes para o trabalho. Recentemente,

ela estava num teatro de arena. Começou a conversa meio

nervosa, porque decidiu fazer uma reflexão sobre o traba-

27 Dostoievski, 1864, via O livro das citações.

lho que até então não tinha feito, tentando buscar um novo

entendimento dos excertos, numa elaboração que ainda era

rasa. Começou a ler o que escreveu e tudo começou bem

mal. Até um momento de virada.

Kunsch grava todas as apresentações e depois retira ex-

certos dessas gravações que também são usados em outras

apresentações. “Num dos excertos dessa conversa no teatro

de arena, apareço numa mesa, com microfone, uma boa ilu-

minação em cima e uma projeção atrás. Parece muito com

um jornal de televisão. Só que ao mesmo tempo assoava o

nariz, muito humana, bem diferente dos âncoras na tevê.

Daí eu falei: ‘ainda tenho uma série de outros excertos para

mostrar para vocês, mas estou muito incomodada com essa

situação armada’, que no fundo foi armada por mim mesma,

e resultou num desastre”, lembra Graziela. Na apresentação

em questão, ela ressaltou para a plateia que seu trabalho se

recusa a fechar uma forma e busca um diálogo mais próximo.

Pediu para aumentar a claridade. O técnico de luz intensifi-

cou a luz na artista. “’Não, não, não em mim, aumente a

luz nas pessoas’, eu disse. Essa cena durou meros segundos,

mas é um dos meus excertos preferidos, desta parte dos víde-

os reflexivos. é um trecho que nasce justamente de um mo-

mento em que tudo estava dando errado”, comenta Kunsch.

Ou seja: o erro e o improviso também entram no trabalho e

reforça a ideia da participação da plateia como essencial e

como caminho para a obra.

80

QUANDO UM DiáLOGO COMEçA?

As conversas de que ela mais gosta são as mais extensas,

que duram horas e horas. Artistas que desenvolvem traba-

lhos participativos pautados pelo diálogo desempenham um

papel que, nas teorias de redes, levam o nome de netweaver,

alcunha dos que facilitam o espaço de diálogo e atuam como

“tecelões” da rede. Os netweavers fomentam a criação de

espaços em que as pessoas se sentem confortáveis para rea-

lizar trocas. “Uma das apresentações mais longas aconteceu

durante uma residência artística que fiz na Holanda. Apre-

sentei o Projeto Mutirão no apartamento da residência ar-

tística em que estava. Fizemos uma sopa coletiva. Como era

uma situação mais informal, a conversa durou cerca de cinco

horas”, comenta Kunsch.

Recentemente, a artista participou de uma exposição cha-

mada Conversas, em Curitiba, no Paraná, na qual uma das

conversas sobre o projeto durou cerca de oito horas. “Batizei

essa oficina com o título de outro trabalho meu, de vídeo: ‘Eu

sou ele, assim como você é ele, e eu sou você e nós somos

todos juntos’. Era para estimular que as pessoas se aproprias-

sem dos projetos. Uma das pessoas que estava registrando

em vídeo as conversas, entendeu bem a proposta. No final

da exposição, ela apresentou o Projeto Mutirão com excertos

filmados por ela mesma”, conta Kunsch. Outra pessoa, que

também estava nessa exposição em Curitiba, mandou para a

artista um livrinho com uma conversa fictícia sobre o Proje- –Quando um diálogo começa?

82 83

A CRiAçãO (MAS SERá PRECiSO REPETiR OUTRA VEZ,

DROGA?) é AVENTURA, é DESCOBRiMENTO. O CRiADOR

é AQUELE QUE SE ADiANTA. COMO PODERiA ENRiQUECER

O MUNDO SE SUA OBRA FOSSE CONDiCiONADA PELA NE-

CESSiDADE DE SER iMEDiATAMENTE ENTENDiDA, ASSiMiLA-

DA, APROVEiTADA?28

A artista convida o público não só a participar da cons-

trução da obra, mas a continuá-la: “Você que viu uma con-

versa do Projeto Mutirão pode assumir o trabalho e continuá-

-lo. Essas pessoas costumam me pedir pelo menos um DVD

com excertos para que façam apresentações nas cidades

delas. Sempre dou muita ênfase: esse arquivo pode crescer,

ou então pode ser um arquivo completamente diferente do

meu”, conta.

A única regra que ela pede: que cada vídeo seja um plano

único. “isso tem um sentido: são pecinhas que estão soltas,

lutas que muitas vezes estão isoladas, e o que a gente faz

nessas conversas é articular essas coisas num projeto coletivo.

Hoje em dia ainda não temos um projeto coletivo; só agora

estamos voltando a pensar nisso, num projeto de cidade, por

exemplo. E é claro que, quando acontecer uma apropriação

de fato, o projeto nem se chame mais Projeto Mutirão, talvez

nem precise mais desse histórico. Não terei como controlar,

nem saber como as pessoas se apropriarão disso”.

28 CORTáZAR, Julio. Papéis inesperados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

to Mutirão, na qual há trechos de entrevistas, fragmentos da

conversa que Kunsch realizou no Paraná, entre outras cita-

ções. Com feedbacks assim, o trabalho começa a transbordar

das mãos da artista.

O QUE FAZ COM QUE ALGUNS TRABALHOS

GANHEM ViDA PRóPRiA (E CONTiNUAçãO)

E OUTROS NãO?

Uma educadora da Bienal contou para Kunsch que alguns

professores se engajaram nas lutas no Movimento Passe Livre

contra o aumento da tarifa de ônibus. Eles não só começaram

a participar das manifestações, mas também a alertar passa-

geiros dentro dos ônibus sobre as causas que estavam sendo

defendidas. “isso tudo é extensão dessas conversas. Não dá

para determinar de fato a duração delas”, relata a artista.

Quando fala de apropriação do seu trabalho, ela deseja

que as pessoas façam mais do que apenas colaborar no envio

de vídeos para as apresentações (o que já acontece). A ideia é

que qualquer pessoa pegue um arquivo de excertos, tanto da

artista quanto outros quaisquer, e fomente novos diálogos.

“O objetivo é que cada vez mais existam outros personagens

pelo trabalho. Vários pontos formando uma rede, dando

força para que essa rede não seja só uma massa, mas que

também tenha um corpo”, diz.

84 85

O site do projeto entrou no ar no ano passado29, mas

online. há apenas a estrutura da página, sem nenhum vídeo.

Em breve, Kunsch quer transformá-lo num grande arquivo,

para disponibilizar os excertos acumulados até hoje e mo-

tivar a criação de mais um espaço de discussões, inclusive

com a possibilidade de que os usuários enviem outros vídeos

para arquivo. Nos últimos anos, Kunsch se aproximou dos

movimentos em prol de melhorias na habitação e transporte.

Então, muitos dos seus vídeos abordam essa temática. Com o

site, ela quer aumentar a diversidade das abordagens.

“Queria que o arquivo contivesse registros de todas as

lutas por mudanças progressistas”, comenta a artista. Essas

lutas, como reflete em sua dissertação, promovem as cha-

madas “políticas pré-figurativas” por meio de manifesta-

ções, ocupações e protestos. Tais pré-figurações “não apenas

anunciam como a sociedade poderia ser, como já constroem

uma outra sociedade”.

Aliás, também os diálogos de Kunsch abrem ca-

minho para uma nova maneira de organização cole-

tiva. O trabalho ainda não foi apropriado por tantas

pessoas, mas só o fato de existir essa possibilidade já si-

naliza uma mudança de perspectiva para o público.

E ela acredita que “os registros em vídeo dessas formas de

organização e situações [ocupações, debates públicos, mu-

tirões, etc.] podem contribuir visualmente com a instituição

de um imaginário; com a criação de uma outra sociedade”.

Para reforçar isso, ela se apóia nas ideias do filósofo grego

29 www.projetomutirao.org.

O que faz com que alguns trabalhos

ganhem v i d a p r ó p r i a

(e continuação) e outros não?

86 87

da luz do sol, dos reflexos no prédio e da movimentação ur-

bana. Como comenta ismail Xavier, citado por Kunsch na sua

dissertação, em Empire o artista estabelece “um continuum

entre o mundo da tela e o mundo cotidiano e procurando

dissolver as fronteiras entre objeto e obra de arte”30.

VOCê GOSTARiA DE PARTiCiPAR

DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?31

Durante a Ocupação Chiquinha Gonzaga, no Rio de Ja-

neiro, Kunsch propôs aos moradores uma dinâmica diferen-

te: “vamos criar um documentário sobre a ocupação, sem

diretores, colaborativamente?” A proposta se desenrolou,

rendeu boas imagens, mas acabou parada por circunstân-

cias diversas, como a falta de verba para bancar o básico das

filmagens, de fitas e câmeras. Mais recentemente, há cerca

de dois anos, ela está desenvolvendo um projeto na Comuna

Urbana Dom Hélder Câmara, em Jandira, SP, o primeiro as-

sentamento urbano do MST (Movimento dos Trabalhadores

Sem Terra), no qual cinema e coletividade também são as

palavras-chave.

No assentamento, haverá 128 casas, uma escola para

crianças, uma creche e uma padaria, além de outras atividades

coletivas e de geração de renda, como um projeto audiovi-

sual. “Todo esse assentamento urbano está sendo construído

30 XAViER, ismail. . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

31 Título de um dos trabalhos artísticos do artista multimídia Ricardo Basbaum.

Cornelius Castoriadis, que considera a sociedade como algo

que existe por meio de “instituições imaginárias”.

E SE ViVêSSEMOS NUMA CULTURA DA PARTiCiPAçãO?

- Bora, pode entrar, pode entrar!

- Entra! Entra! Entra!

- Ninguém vai pagar essa porra! Entra aê!

- R$2,30 não dá!

- Ninguém vai pagar, mano!

- Vamo aê, entra!

Essas falas foram ouvidas no Terminal Parque Dom Pedro,

em São Paulo, no ano de 2006, durante uma manifestação

contra o aumento da tarifa do transporte público. A cena,

registrada por Graziela Kunsch, se transformou num excerto

intitulado Abertura de Portas, com 38 segundos. A ideia do

uso de trechos de gravações sem cortes, intitulados “excer-

tos”, é uma tentativa de dizer que “se trata de momentos,

de peças de um processo maior”.

Antes de Kunsch, diversos artistas, como o cineasta ira-

niano Abbas Kiarostami e o artista múltiplo Andy Warhol, ex-

ploraram a prática das gravações sem cortes. Um dos traba-

lhos de Warhol, chamado Empire, nasceu da seguinte ideia:

o artista posicionou uma câmera, por oito horas, de frente

para um edifício em Nova York, o Empire State Building. Oito

horas de gravação depois, estava registrado todo o percurso

88 89

com assessoria da USiNA, um coletivo de arquitetura do qual

faço parte. Todos os projetos do coletivo são desenvolvidos

com as famílias. Há discussões com os arquitetos sobre como

eles imaginam os espaços. Durante a semana, as construtoras

trabalham nas obras, mas nos fins de semana acontecem os

mutirões, com a participação de todos. Me chamaram para

fazer um documentário sobre o assentamento, que também

deveria ser gravado por mutirão, um documentário autogeri-

do”, comenta Kunsch.

‘E O PROBLEMA COM ESTEREóTiPOS NãO é QUE ELES SEJAM

MENTiRA, MAS QUE ELES SEJAM iNCOMPLETOS.’32 QUAL é O

ESTEREóTiPO QUE CONSTRUíMOS PARA A ARTE?

Em Jandira, o processo não pôde ser realizado tal como

idealizado pela USiNA e por Kunsch, mas persistindo na idéia

de um “documentário autogerido”, a artista vem perguntan-

do aos moradores que cenas precisam existir no documen-

tário sobre a história da Comuna e propondo atividades de

realização dessas cenas.

Tanto no Projeto Mutirão quanto no documentário da Co-

muna, Kunsch ainda assume o papel da mediadora, que arti-

cula as propostas e ideias que surgem. “Acho essa mediação

32 Frase proferida pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, numa pa-lestra que foi registrada em vídeo e está disponível na internet, no endereço: http://www.ted.com/talks/lang/eng/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

importante. é uma postura de indivíduo diferente: que está

‘em relação’, que co-labora nesse processo coletivo”, explica.

Trata-se de práticas que apontam uma nova noção de

autoria. Ainda que a ideia inicial seja de uma só pessoa, o de-

senrolar dessa proposta se pauta num processo que diminui a

possibilidade do seu fim ser atribuído a um só. Um processo

coletivo depende da destruição do púlpito do autor-individual,

do autor-excludente. A própria noção de autor é relativamen-

te recente. “O autor é uma personagem moderna, produzi-

da sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao

sair da idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo

francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio

do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da ‘pessoa

humana’”, conta Roland Barthes no texto A morte do Autor.

COMO NOSSOS GESTOS REVELAM

QUEM SOMOS E O QUE ViVEMOS?33

A noção de autoria está ligada à tentativa de aproximar

“pessoa” e “obra”. Barthes discute exatamente a ideia de

autoria na literatura, numa reflexão que pode facilmente ser

transposta para qualquer outro ramo da arte. No limite, o

sociólogo francês fala de como o ser humano se expressa:

“o escritor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais

original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em

33 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 24.

90 91

fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo a nunca se

apoiar em apenas uma delas”. O escritor jamais é original,

sempre remete a um gesto anterior.

“Quisera ele exprimir-se; pelo menos deveria saber que a

‘coisa’ interior que tem a pretensão de traduzir não é senão

um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem

explicar através de outras palavras”, completa Barthes. Qual-

quer texto – e obra de arte – transborda um sentido único,

vai além do que o autor pensou; afinal, a própria criação se

dá em dimensões múltiplas. As abordagens possíveis diante

de qualquer trabalho artístico são diversas – e não intrínsecas

à obra. O indivíduo é o responsável por escolher a forma de

aproximação. No caso da literatura, o leitor. No caso da obra

de arte, o espectador. O espectador é o ponto de convergên-

cia da obra. Como diz Barthes, “o nascimento do leitor deve

pagar-se com a morte do Autor”. é no leitor/espectador que

a multiplicidade se reúne. Motivar o espectador a se perceber

como sujeito da obra é uma ação típica da arte participativa.

Numa análise mais minuciosa, a arte participativa está ape-

nas dando consciência ao espectador do que ele já é.

O QUE UMA OBRA DE ARTE Já MOTiVOU VOCê A FAZER?

(O QUE ESTE LiVRO MOTiVA VOCê A FAZER?)

Nos grandes teatros, por exemplo, o papel do especta-

dor não fugia muito do métier previsto pelo autor: chorar, rir

etc., etc. “Tudo o que o povo exige da tragédia é ficar bem

comovido, para poder derramar boas lágrimas; já o artista,

ao ver uma nova tragédia, tem prazer nas invenções técnicas

e artifícios engenhosos, no manejo e distribuição da maté-

ria, no novo emprego de velhos motivos, velhas ideias. Sua

atitude é a atitude estética frente à obra de arte, a daquele

que cria; a primeira descrita, que considera apenas o con-

teúdo, é a do povo”, lembra Nietzsche, no livro Humano,

Demasiado Humano. Ele fala de um público que vê a obra

com certo distanciamento.

é como se até o século 20, o espectador fosse um “es-

pírito cativo” – usando um termo do filósofo alemão. Para

ele, os espíritos cativos são aquelas pessoas com uma “es-

treiteza de opiniões transformada em instinto pelo hábito”.

Elas agem sempre pelos mesmos motivos. O filósofo não fala

da possível postura desses espíritos cativos diante da arte,

mas é fácil prever. Seja no século 19 ou no 21, um espíri-

to cativo – uma pessoa com estreiteza de opiniões – pro-

vavelmente vai rir durante uma comédia, provavelmente vai

chorar diante de uma tragédia, provavelmente vai estranhar

uma escultura deformada. Claro que pode haver variações,

mas o que está em discussão vai além disso: há pessoas que

condicionaram seus pensamentos a ponto de anularem o

que elas não querem ver, de ignorarem as possibilidades que

elas não conhecem. isso é fato, inclusive tema de pesquisas

recentes. Na psicologia e na ciência cognitiva, os pesquisado-

res dão o nome de “esquemas” para as estruturas mentais

que usamos para representar os aspectos do mundo à nossa

volta. Os esquemas não só organizam nosso conhecimento,

93

O que

uma obra de arte já motivou

você a fazer?

(O que este livro motiva você a fazer?)

mas também formam uma espécie de arquivo que é con-

sultado constantemente, para que lidemos mais rápido com

as informações à nossa volta. “’Esquemas’ podem realmen-

te entrar no caminho da nossa capacidade de observar dire-

tamente o que está acontecendo”, explica Eli Pariser34. No

ano de 1981, a pesquisadora Cláudia Cohen mostrou para

um grupo de indivíduos o vídeo de uma mulher comemoran-

do seu aniversário. Alguns disseram que a moça era garçone-

te, outros que ela era bibliotecária. As pessoas que disseram

que ela era garçonete se lembraram da mulher com um copo

de cerveja. Os outros, que atribuíram à jovem a profissão de

bibliotecária, recordaram que a moça usava óculos e ouvia

música clássica. No vídeo, as três informações estavam à

mostra. Mas os pesquisados acabaram se esquecendo da in-

formação diferente daquela que eles intuíram.

Ou seja, nossa mente edita o mundo. Certos ambientes

geralmente impõem regras – certos museus, por exemplo,

colocam até fitas no chão para que não nos aproximemos

das obras. isso castra as possibilidades presentes. Assim, as

pessoas se tornam os espíritos cativos. Criam esquemas rígi-

dos em suas mentes. Trabalhos que convidam o espectador a

participar da sua construção apenas mostram outras possibi-

lidades que na maioria das vezes estão presentes; escondidas

às vezes, mas presentes.

Quando um espectador constrói a obra junto com o ar-

tista, há uma imersão do público no trabalho. isso dá uma

nova visão de mundo. Graziela Kunsch, artista do Projeto

34 PARiSER, Eli. . New York: Penguin Press, 2011.

94 95

Mutirão, sabe disso muito bem. Ela geralmente participa dos

processos que documenta.

‘PARA CANTAR é PRECiSO PERDER

O iNTERESSE DE iNFORMAR’35?

Kunsch já teve problemas em se assumir como artista,

mas não tem mais. Todos os papeis que desempenha, seja

como jornalista, curadora ou professora, são formas da sua

prática artística. “Não importa muito como chamamos essas

linhas de atuação, nem tudo precisa do estatuto da arte, im-

porta é que esses trabalhos aconteçam. Mas gosto de pensar

no que faço como arte, porque gosto de estudar a arte e

entender como a nossa sensibilidade muda com o passar dos

tempos”, comenta.

UM DiA OS PROBLEMAS ACABAM?

Av. Roberto Marinho, 18 de outubro de 2004.

Numa manifestação popular, jovens rebatizaram a ave-

nida: de Av. Jornalista Roberto Marinho para Av. Jornalista

Vladimir Herzog. intervenção efêmera na duração, mas signi-

ficativa no ato. Kunsch estava lá, filmou tudo. é mais um dos

excertos que ela usa em suas apresentações. Nos seus traba-

35 BARROS, 2010, p. 458.

lhos gravitam questões semelhantes, ligadas a engajamento

e transformação social.

“Penso que precisamos deixar de pensar o espaço de

exposição como espaço de contemplação e passar a pensá-

-lo como espaço de uso”, fala a artista. A arte participativa

de Kunsch flerta com a educação, mais exatamente com um

processo educativo coletivo e democrático. Desde os diálo-

gos propostos pelo grupo de artistas do Group Material, que

chegava a abordar a educação como tema de seus trabalhos,

surgem cada vez mais trabalhos artísticos ligados a práticas

educativas – e participativas. “A curadoria contemporânea é

marcada por uma volta à educação. Formatos educacionais,

métodos, programas, modelos, prazos, processos e procedi-

mentos tornaram-se difundidos na praxis da curadoria, da

produção de arte contemporânea e em suas estruturas mais

cruciais (...) a curadoria opera cada vez mais como uma prá-

tica educacional expandida”36, é o que dizem Paul O’Neill

e Mick Wilson no livro Curation and the Educational Turn

(Curadoria e a Volta da Educação).

No Brasil, por exemplo, o Educativo da Bienal é um proje-

to que visa reforçar a relação entre o público e a arte. Como

conta Stela Barbieri, artista e curadora do Educativo37, “um

dos nossos maiores desafios é o diálogo. Precisamos atentar

para a questão das várias vozes que nos circundam: a voz do

artista, do curador, da criança, do visitante de procedências

36 Tradução Livre

37 Em entrevista para a pesquisadora Lucia Pasqualucci, divulgada no endereço http://goo.gl/SCFP4.

96 97

transborda para o cotidiano. “Pode-se, assim, sonhar com

uma sociedade dos emancipados, que seria uma sociedade

de artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles

que sabem e aqueles que não sabem, entre os que possuem

e os que não possuem a propriedade da inteligência”, apon-

ta o filósofo Rancière.

VOCê Já PENSOU COMO A SUA PRESENçA

PODE ALTERAR OS ESPAçOS?38

38 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 10.

variadas, do segurança da sala, do educador. Essa dimensão

humana do trabalho precisa ser valorizada”. Para ela, dar es-

paço para que as pessoas se coloquem é essencial “para nos

tirar da arrogância, às vezes extremamente analítica, intelec-

tualizada ou extremamente sensível”.

O Educativo desenvolve projetos com professores, estu-

dantes e indivíduos dos mais diversos públicos, que partici-

pam de atividades pensadas para que o conteúdo da Bienal

seja mais profundamente observado. Em 2010, devido a par-

cerias da Bienal com secretarias de educação, escolas particu-

lares e ONGs, cerca de 35 mil educadores foram capacitados

para trabalhar o tema da Bienal em aula.

O material usado pelo Educativo estimula um olhar parti-

cipativo sobre a arte, uma participação que desponte do pró-

prio espectador. Em vários trechos, os textos indicados pela

Bienal sugerem que as pessoas se apropriem das ideias discu-

tidas e participem da ressignificação dos trabalhos apresen-

tados. Num trecho do caderno com fichas sobre artistas, por

exemplo, o Educativo propõe: “ao longo de uma semana, co-

lete a sucata produzida na sua casa. Faça uma construção com

essas sobras de materiais”. Essa dica figura logo após a descri-

ção de uma obra da artista alemã isa Genzken, que garimpa

mercadorias e artigos diversos para transformá-los em arte.

Tanto no Educativo quanto nos diálogos de Graziela Kuns-

ch, há uma discussão em curso com questões afins, como:

de que modo ressignificamos os processos de aprendizado?

Como motivarmos a inteligência coletiva? Do caldeirão de

referências citadas, começa a surgir um tipo de arte que

98 99

ATo IV

ARTE PARTICIPATIVA

E TRANsfoRMAção soCIAl

– A sociedade de massas é complicada. Despertar al-

guém é um luxo. Sabe de uma coisa que, do alto dos meus

55 anos, eu descobri? O homem é mau, comentou Mônica

Nador, após chupar uma laranja.

A laranja ainda estava verde por fora. A cor laranja que a

laranja não tinha estava nas portas atrás dela. A casa é bas-

tante colorida, com paredes repletas de formas e desenhos.

Ela estava sentada num banquinho, ao lado da cozinha

e do quarto em que dorme: dois cubículos com poucos mó-

veis. Na sua casa, localizada no Jardim Miriam, na periferia de

São Paulo, não há nem sala nem TV. Antes, ela morava nos

Jardins, bairro de classe média alta. Então, optou por uma

mudança radical.

100 101

A casa atual de Mônica Nador é mais do que uma casa. é

também um ateliê. Fora o quarto, cozinha e dois banheiros, há

um enorme salão, no qual cotidianamente ocorrem oficinas

de cinema e de estêncil, além de enérgicas discussões sobre

arte contemporânea e filosofia.

– Você acredita que o homem é mau?, perguntei.

QUAL A POSSiBiLiDADE DE EXiSTiR ARTE

EM UM AMBiENTE iNDiFERENTE?39

– Absoluta certeza. A gente não presta. A gente é isso

aí. Tem muita gente ruim. O homem é ruim. Quando saí da

burguesia e vim morar aqui, tinha certeza que tudo era culpa

da burguesia. Mas não é bem assim...

– é... Mas você não acha que alguns comportamentos só

existem devido a circunstâncias complicadas, que levam as

pessoas a algumas ações mais perversas?

– A gente vê crianças abandonadas na rua e não liga, en-

tende? O ser humano optou por isso. Estamos vivendo isso.

Banalizou-se o mal. Por que a gente aceita isso? Quem não

aceita é louco, como eu. Sair dessa mesmice faz de você um

herói. Acho isso um saco, não faço mais do que a minha

obrigação. Eu, que não faço mais do que minha obrigação,

tenho que dormir com esse barulho ‘ah, como você é boa’,

‘como você é especial’.

39 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 54.

Você acredita que o homem é mau?

102 103

Os panos foram pintados com uma técnica de estêncil

desenvolvida por Nador, mas tudo foi trabalhado a várias

mãos, com autoria compartilhada entre ela e os moradores

do Jardim Miriam. As cores dançavam nos imensos panos

pintados. Cada um dos tecidos se estendia pelo espaço com

seus imponentes seis metros de altura. Pendiam do teto e se

movimentavam como se sentissem a presença das pessoas. E

na exposição não havia apenas panos pintados, mas também

a presença de moradores do Jardim Miriam, do projeto Jardim

Miriam Arte Clube (Jamac), num núcleo de pintura em plena

atividade. Eles passavam várias horas por dia no ibirapuera,

focados nas produções. Em conversa, um deles chegou a co-

mentar: “algumas estampas levam meses de trabalho”.

Tambores e mais tambores verdes faziam uma fila silen-

ciosa, lado a lado, numa das paredes do pavilhão. Eram mais

pinturas, todas com a precisão da paciência. A repetição de

formas dos desenhos quase hipnotizava os espectadores que

observavam o diálogo permanente entre as obras expostas e a

arquitetura do espaço. Roxo, azul, verde, preto, vermelho. As

cores se sobrepunham, emissárias da intensidade de uma arte

feita por uma comunidade de mãos.

HOJE EM DiA Há MAiS ARTiSTAS DE MERCADO OU ARTiSTAS

QUE PROMOVEM TRANSFORMAçõES SOCiAiS? E O QUE iM-

PORTA SE Há MAiS DE UM GRUPO DO QUE DE OUTRO?

– O que fez você ter tão clara essa ideia do mal no ser

humano?

– As pessoas de todas as classes são difíceis... Algumas

vezes, pensam que eu tento me aproveitar delas... Outro dia li

uma crítica do sociólogo Slavoj Zizek, e ele dizia que a gente

devia parar de considerar o corpo ideológico como um desvio

cognitivo da humanidade e encarar os fatos. Entendo o ‘en-

carar os fatos’ como ‘o homem é mau’. Não é que o homem

não entendeu direito o que acontece. O homem entendeu e

fez um opção, optou pelo mundo atual. Agora, a gente tem

que trabalhar dentro dessa realidade. O mundo depende de

você e de mim, depende de todos.

AS PESSOAS ESTãO DiSPOSTAS A PARTiCiPAR

MAiS ATiVAMENTE DA ARTE – E DO MUNDO?

O mundo depende de todos. E a imagem de todos estava

estampada nos cerca de quarenta panos de seis metros que

compunham uma exposição do Pavilhão de Culturas Brasi-

leiras, em São Paulo, no primeiro semestre de 2011. Havia

imagens de pessoas, folhas, cajus, caules, igrejas, violões,

tambores, peões e manchas.

Aliás, havia também quadrados, linhas e estrelas.

E sóis. E círculos. E fitas. inúmeras imagens repetidas. Tais

panos eram uma prova da riqueza da imaginação humana –

e a imaginação flerta com o infinito.

105

Hoje em dia há mais artistas de

mercado ou artistas que promo-

vem transformações sociais?

E o que importa se há mais de

um grupo do que de outro?

Mônica Nador é a idealizadora do Jamac, projeto artís-

tico que se constitui com a soma da inspiração de dezenas

de pessoas. Nador é uma artista que “percebe, talvez como

poucos, que a cultura não é propriedade só de alguns, que a

beleza deve ser apropriada por pessoas em diferentes condi-

ções sociais e carrega consigo, para materializar a proposta,

jovens que se somam na caminhada, filhos da periferia, aglo-

merações urbanas, num país que se urbanizou extremamente

rápido e infelizmente não transportou o legado da cultura

local, ligada à labuta com a terra, para o nicho urbano”, refle-

te Mauro Pinto de Castro, colaborador do Jamac, num texto

que acompanhava a exposição.

O Pavilhão de Culturas Brasileiras não foi o primeiro a

receber a arte de Nador. Em 2009, ela também realizou ex-

posições na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu

da Casa Brasileira (MCB). As oficinas de estêncil do projeto

são apenas parte das atividades – e os panos e paredes pinta-

das representam apenas o fim concreto do trabalho. O mais

importante é o processo. é a transformação das pessoas que

participam dos percursos traçados coletivamente.

A ARTE PARTiCiPATiVA CABE NOS MUSEUS?

“Eu só sei fazer arte, é a minha formação, a minha lin-

guagem, o meu instrumento para chegar nas pessoas. E é isso

que faço, não vou virar burocrata. Nas oficinas de estêncil,

106 107

sempre falo: ‘vou ensinar para vocês uma técnica com a qual

vão poder pintar de panos de prato a paredes de museu’. O

aluno pode até ganhar dinheiro com isso. Não acho que a arte

deva ser distanciada da realidade”, comenta Nador. E os alu-

nos realmente aproveitam a técnica que aprendem, empre-

gando-a nas mais variadas superfícies, de paredes a roupas.

Desde quando nasceu, em Ribeirão Preto, filha de pai

húngaro e mãe de ascendência italiana, ela sempre este-

ve próxima da arte. Seu pai era meio médico, meio artista.

Durante a semana, trabalhava num hospital. Aos sábados e

domingos, transformava-se num pintor de quadros. Mas ela

experimentou outras áreas antes de decidir enveredar pelas

artes. Começou a estudar arquitetura em 1974, na antiga

FAUSJC (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Eumano Fer-

reira Veloso de São José dos Campos), ainda em tempos de

ditadura no Brasil. Em 1976, a faculdade fechou. Um ano

depois, foi estudar história e pedagogia na Unicamp (Univer-

sidade de Campinas).

Continuava insatisfeita, meio desestruturada, só o psica-

nalista a entendia. Depois de muito pensar, foi fazer artes plás-

ticas na Faap (Fundação Armando álvares Penteado). “Com a

arte, você constrói maneiras de se expressar”, diz. Formou-se

em 1983 e dedicou alguns anos à pintura. Já no meio da déca-

da de 90, começou a achar que pararia de fazer arte. “Era uma

vida super difícil, com poucas opções de trabalho interessan-

tes”. Ela não mais se sentia confortável com as dinâmicas do

mercado da arte. Em 1995, entrou na pós-graduação, então

se aproximou da arte como nunca antes. Encontrou referên-

cias novas. Percebeu que poderia fazer um trabalho próprio,

fora do circuito.

Nador tinha tido contato com obras de Florestan Fer-

nandes, Celso Furtado, entre outros, ainda quando estudava

arquitetura. Mas na Faap, esses nomes sumiram das biblio-

grafias recomendadas. Por um bom tempo, ela chegou a

acreditar que não existia alternativa para as questões sociais,

a não ser que ocorresse um movimento de massas. No mes-

trado, desconstruiu essa ideia após entrar em contato com

novas reflexões. Por exemplo, uma das noções que impac-

taram Nador surgiu do texto The end of painting (“O fim da

pintura”), escrito por Douglas Crimp40, no qual o autor dis-

cute a “condição agonizante da pintura”. “A partir de 1996,

depois do enfrentamento das ideias de Crimp, a artista passa

a elaborar um trabalho que deriva da sua pintura inicial reco-

nectando-a à realidade. Deixa de ser artista acrílic on canvas

[que segue técnicas tradicionais] e segue para o espaço peri-

férico, para o encontro com novas áreas nas quais julga mais

necessárias as camadas de tinta”, aponta a pesquisadora Syl-

via Furegatti na sua tese sobre arte e meio urbano, na qual

comenta a trajetória de Nador.

A CONViCçãO DE JEFFERSON DE QUE

A EDUCAçãO é O PROJETO MAiS iMPORTANTE

PARA UMA SOCiEDADE DEMOCRáTiCA AiNDA

é VáLiDA OU FOi CONVERTiDA EM UM MiTO?41

40 CRiMP, Doulgas. . in: On the museum ruins. MiT Press: Cambridge, 1993.

41 Pergunta contida no cartaz-convite de um dos trabalhos do Group Material.

108 109

Durante o mestrado, defendido na ECA (Escola de Co-

municações e Artes da USP), Nador desenvolveu um projeto

chamado Paredes Pinturas, no qual colocou em prática a ideia

de pintar paredes de casas com estêncil. Com esse projeto,

viajou o país, aproximando-se de realidades bastante precá-

rias. Como diz Furegatti, “a preocupação de Mônica, nesse

momento, está em estabelecer uma qualidade para a pintura

que compreenda acesso à obra artística por pessoas e lugares

marginalizados por aquela primeira sociedade que conhecera

nos arredores dos museus e das galerias”.

O que a artista mais queria naquele momento era imer-

são: almejava morar em algum lugar periférico para desen-

volver um trabalho mais profundo. “O circuito não me sa-

tisfez. Dentro dele, fazia apenas intervenções pontuais, não

criava vínculos fortes com os lugares em que eu trabalhava,

era tudo muito rápido”, comenta a artista. Daí, foi trabalhar

na Associação Arte Despertar, no Jardim Miriam. O que deve-

ria durar um ano não passou de seis meses. As formalidades,

entre outros problemas, a incomodavam fortemente. “Falei:

‘quer saber? Vou ser meu próprio patrão! E me virei para vir

morar no Jardim Miriam. Formei uma OSCiP [Organização da

Sociedade Civil de interesse Público] e procurei pessoas que

me ajudassem nessa transição”.

A artista conhece membros do coletivo Consulta Popu-

lar, que tem ligações com lideranças do Brasil inteiro. Nador

acionou amigos e pediu que indicassem nomes de lideranças

no Jardim Miriam, que poderiam ajudá-la no estabelecimento

do projeto que queria desenvolver. “Quando consultei meus

amigos, eles me falaram para procurar uma pessoa chamada

Agnaldo. Ele foi me encontrar onde eu morava, nos Jardins.

Daí ele me falou que eu deveria conhecer o Mauro Castro.

Começamos a fazer reuniões dominicais, à tarde, na casa do

Mauro. Foi um período longo, mais de um ano”, conta Nador.

Castro é um velho militante do bairro. Foi metalúrgico duran-

te 30 anos, depois conseguiu cursar ciências sociais na PUC-

-SP e hoje é professor de geografia em uma escola pública do

Jardim Miriam.

O QUE A ARTE MUDA NAS PESSOAS?

A dificuldade de Nador em convencer as pessoas quanto

à validade do trabalho que queria colocar em prática resi-

dia no fato de que muitas pessoas já passaram pelo Jardim

Miriam para implantar projetos – e a maioria dessas ações

apenas frustrou os moradores. Na década de 70, por exem-

plo, estudantes da USP iam ao Jardim Miriam discutir política

com as pessoas. Havia também um movimento de saúde,

entre outros. Mas a maioria das pessoas que foram ajudá-

-los havia abandonado os projetos. “Então combinamos: nós

nos envolveríamos no projeto de arte e, em contrapartida,

ela ofereceria para a gente um curso de economia política”,

conta Mauro. Para os moradores do Jardim Miriam, além da

arte, também era importante uma ação de formação educa-

tiva mais concreta. Enfim, em 2004, nasce o projeto.

110

Mauro e outros da região também ajudaram Nador em

atividades que foram além das portas do ateliê no Jardim Mi-

riam, intermediando o contato entre a artista e escolas, por

exemplo. De vez em quando, ela promove ações em colégios,

mas atualmente as atenções estão voltadas para o Jamac.

“Em um projeto como esse não há retornos financeiros. Há

muita dedicação, isso sim. Há muito esforço voltado para um

sonho: tornar a arte acessível, fazer uma arte compartilha-

da”, diz Mauro. Ele comenta que Nador vem fazendo uma

ação inclusiva, com a intenção de democratizar a arte. “Há

muitos jovens aqui do bairro envolvidos com o projeto. A

vinda dela contribuiu para o entendimento de que a cultura é

fundamental para a transformação social. Com o Jamac, sur-

giram novas possibilidades. é um caminho sem volta. Não dá

para mudar a realidade só com asfalto ou postos de saúde.

Você só transforma a sociedade quando transforma os valo-

res culturais”, explica o professor.

O impacto do projeto está aumentando a cada dia. Há

uma satisfação clara nas falas de Nador. “Depois de vir para

cá, a cultura entrou na agenda das pessoas, elas assumiram

que a cultura é um importante instrumento de cidadania

para a criação de redes de sociabilidade”, relata.

A ARTE SE DiSTANCiOU DAS PESSOAS OU AS PESSOAS

SE DiSTANCiARAM DA ARTE OU NENHUM DESSES

DOiS MOViMENTOS OCORREU?

a arte

se distanciou das pessoas

ou

as pessoas

se distanciaram da arte

ou

nenhum desses dois movimentos ocorreu?

112 113

das grandes obras de museus mobiliza bilhões, mas também

o submundo da arte, movido por roubos e vendas não de-

claradas, movimenta cifras estratosféricas: anualmente, há

transações que chegam a US$ 6 bilhões42.

Muitos trabalhos de arte participativa nem envolvem ob-

jetos. Resumem-se a ações, diálogos. Aliás, o mais importante

nesse tipo de arte se dá no contato entre as pessoas. Ainda

que haja algum resultado concreto ao término dos processos,

não é isso o mais importante. O que pulsa na arte participativa

são as relações entre as pessoas e os aprendizados que surgem

na “co-construção”, na experimentação compartilhada.

O QUE O PúBLiCO QUER DO ARTiSTA?

O QUE O ARTiSTA QUER DO PúBLiCO?

Em outro dos cafés filosóficos ocorridos no Jamac, um

morador do Jardim Miriam levantou a seguinte pergunta:

“Quando converso sobre essa tal de arte contemporânea

com meus colegas que dão aulas de educação artística, eles

não sabem o que é, ou não gostam, e não querem nem co-

nhecer. Por que isso acontece?”. Celso Favaretto, professor

da Faculdade de Educação da USP, deu uma resposta impreg-

nada de reflexão histórica. “A arte é algo que sempre fez

parte do dia a dia das pessoas, da vida que elas levam nas

casas, igrejas, associações, escolas, clubes... Acontece que

42 informação da interpol, citada em matéria da edição 464 da revista istoé Dinheiro, de agosto de 2006.

A artista já mora no Jardim Miriam há sete anos. E na

casa dela, que é de certa forma uma casa coletiva, os fins de

semana são animados. Atualmente o Jamac organiza cafés

filosóficos mensais, nos quais professores da USP são convida-

dos para debater temas diversos com os moradores da região.

Ela ri ao lembrar de um dos últimos cafés. Num debate

com um professor de filosofia estética, especialista em Hegel,

um dos moradores do Jardim Miriam perguntou a opinião do

acadêmico sobre a arte dos grafiteiros e dos pixadores. “Nós

começamos uma discussão muito democrática e rica”. O pro-

fessor falou que não daria para chamar certas práticas de

arte. Então ela interveio e disse: “Os teóricos estudam uma

coisa muito diferente daquilo que a gente faz”. O engraçado,

de acordo com ela, foi que ninguém brigou. As discordâncias

foram expostas sem problemas. Como afirma o professor da

PUC-SP, Miguel Chaia, o trabalho de Nador “é uma reação à

arte que quer ser imune à realidade circundante”.

Um diálogo assim, inserido num projeto artístico, aponta

um caminho diametralmente oposto ao da arte baseada no

espetáculo. “O espetáculo é, por definição, imune a ativi-

dade humana, não acessível a qualquer revisão ou correção

projetada. é o contrário do diálogo. (...) é o sol que nunca se

põe no império da passividade moderna”, explica o francês

Guy Débord na obra Sociedade do Espetáculo. Por exemplo,

a caveira cravejada de brilhantes criada pelo britânico Da-

mien Hirst, e vendida por 100 milhões de dólares, é puro

espetáculo. Abundam obras de arte que impedem que o sol

do império da passividade dê adeus. Não só o mercado oficial

114 115

Atualmente, ela tem uma empresa chamada Pare-

des Pinturas, que pinta casas do CDHU (Companhia de

Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de

São Paulo), num trabalho de recuperação urbana. Traba-

lhos artísticos são desenvolvidos nos prédios, sempre com

a participação da comunidade.

A DiSTâNCiA ENTRE A ARTE E A ViDA DAS PESSOAS

PODE SER ANULADA DE QUAiS MANEiRAS?

“Nós colocamos a mão na massa, pintamos as casas das

pessoas, deixamos os espaços lindos, limpamos o que está

sujo... Não quero saber de arte transcendente, quero trans-

cendência na terra”, diz Nador com muito entusiasmo. “A

coisa mais importante que existe é a vida da gente, não é a

arte. Mas sou artista. E o que quer dizer isso? Que tenho al-

guns instrumentos, conhecimentos. Por isso, vou fazer minha

vida por meio da arte, e quero falar isso para mais gente,

dizer que isso é possível, sim, que a arte pode estar bem mais

próxima da vida da gente”, completa.

A modernidade nos legou um trunfo: colocou

a definição de arte na mão dos artistas e interessados.

“A partir do momento que o Duchamp exibe um urinol no

museu, um grande tapete foi puxado: o da visão burguesa

de arte”, diz Nador. Na maior parte do tempo, o trabalho da

artista é legitimado apenas pelas pessoas ao seu redor, pelo

quando chegou o iluminismo, a coisa tomou um rumo muito

particular, cujo acompanhamento a população foi impedida

de fazer”, disse o professor.

Numa outra oportunidade, Favaretto voltou ao Jamac

para falar sobre a relação entre arte e política entre os 1940

e 1970. Com tantas discussões, nascem novas mentalidades.

“Aqui estamos fazendo formação de pessoas”, diz Nador. O

Jamac busca levar a arte novamente para a rotina das pes-

soas. inclusive o projeto virou Ponto de Cultura. Agora é um

espaço apoiado financeira e institucionalmente pelo gover-

no, reconhecido como um lugar que desenvolve ações com

impactos socioculturais relevantes.

Na arte participativa e compartilhada de Mônica, não só o

autor sai do púlpito, mas a arte também. Ela deixa de ser um

artigo especial, para poucos, cujos significados estão guarda-

dos a sete chaves. A arte vai parar na sala, cozinha, banheiro.

QUEM ASSiNA UMA OBRA FEiTA COLETiVAMENTE?

As pessoas que mais se destacam nas oficinas são con-

vidadas para trabalhar com Nador. Há quem more em bair-

ros distantes e ainda assim frequente o Jamac assiduamente.

Odete é uma dessas pessoas. Ela é artista, então também cola-

bora com a Mônica Nador na realização de aulas. “A Odete já

me disse que uma das coisas que mais a marcaram no projeto

foi a convivência com outras classes sociais”, comenta Nador.

116 117

TODOS OS TRABALHOS ARTíSTiCOS TêM

FiM

?

público – e isso significa uma grande quebra de paradigmas. E

mais: ela não é a única artista da história toda. Cada vez mais

frequentadores do Jamac se transformam em artistas, à sua

moda, num movimento de troca e aperfeiçoamento constante.

TODOS OS TRABALHOS ARTíSTiCOS TêM FiM?

O Jamac promove impacto profundo sobre a vida das

pessoas envolvidas. Se para modificar uma realidade é neces-

sário mudar os valores culturais em vigência, Mônica Nador

conseguiu atingir o ponto nevrálgico da situação na qual se

inseriu. Por meio da arte, mira-se a recriação do espaço e das

relações.

A arte de Nador promove conexões entre as pessoas, téc-

nicas e conteúdos. Criam-se novas conexões o tempo todo.

O Jamac conversa com Rancière: “A arte já não quer mais

responder ao excesso de commodities e sinais, mas à falta de

conexões”, comenta o filósofo francês no livro Problems and

Transformations in Critical Art.

NO QUE CONSiSTEM EXATAMENTE ESSAS NOVAS

COLETiViDADES QUE NãO CABEM MAiS NA

DiCOTOMiA NATUREZA E SOCiEDADE?43

43 Pergunta contida em entrevista da revista CULT com o antropólogo Bruno Latour, na edição 132, p. 14.

118 119

Tanto no trabalho de Nador quanto em outras obras de

arte participativa já citadas, a generosidade é uma virtude

presente. Ela diria que não, que ela não está fazendo mais do

que sua obrigação. Mas é inegável seu esforço em prol de um

impacto social. E é uma generosidade diferente, que não vê

no outro um coitado, mas um protagonista, sujeito.

“Artistas interessados em diferentes conceitos e cau-

sas chegaram, simultaneamente, ao desenvolvimento

de práticas ‘generosas’ por uma variedade de razões”,

explica Ted Purves, no livro What we want is free: generosi-

ty and exchange in recent art (“O que queremos é a liber-

dade: generosidade e troca na arte recente”). Tais razões,

segundo Purves, incluem o interesse em promover o aces-

so democrático ao “mundo da arte”, críticas a economia,

valorização de políticas locais entre outras motivações.

O autor fala da generosidade na arte por meio de trabalhos

onde há uma aproximação significativa entre público e artista.

Como num dos trabalhos do artista norte-americano Ben

Kinmont, que ofereceu cafés da manhã na sua casa durante

dois meses para quem quer que aparecesse – e entre os

participantes havia mais estranhos do que amigos. Por meio

de trabalhos baseados em ações generosas e trocas alterna-

tivas se estabelece “um fórum de contestação social e críti-

ca”. E o próprio Jamac é uma espécie de fórum. Um fórum

que caminha lado a lado com a apropriação de linguagens

plásticas e a experimentação artística. E a artista está aberta

à ressignificação contínua do projeto, que assume a multipli-

cidade como identidade.

ATo V

NuNCA hAVERá uMA obRA-PRIMA wIkI44?

“Não acredito que uma grande obra de arte já tenha

sido criada por consenso, muito menos por vários editores.

Nunca haverá uma obra-prima wiki. isso é porque a arte, se

tem algum valor, é o do produto de percepções profundas

e muitas vezes racionalmente incomunicáveis. Quem tentar

explicar ou compartilhar essas percepções em uma obra de

arte coletivamente criada vai deparar com uma negociação e

reedição delas em banalidades”, escreveu o jornalista e críti-

co britânico Jonathan Jones em seu blog no jornal The Guar-

dian45. Jones é categórico, não faz rodeios ao criticar a arte

participativa. Mas seu discurso não abarca a complexidade

44 “Wiki” significa “colaborativo”. Os softwares wiki, por exemplo, permitem a manipulação coletiva.

45 http://www.guardian.co.uk/artanddesign/jonathanjonesblog/2010/mar/02/tunick-gormley-interactive-art (acessado em 2 de novembro de 2011)

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da realidade. No fundo, não sabemos o que será considerado

obra-prima no futuro. Com a internet, entre outras inovações

recentes, novos conceitos vazaram para todos os campos

do conhecimento – como a participação, colaboração e

articulação em rede. Nada disso tinha sido previsto. Hoje em

dia até a pergunta “o que é arte?” tem cada vez mais respos-

tas, numa profusão irredutível de perspectivas.

O jornalista continua sua reflexão. “A arte participativa

é uma negação de talento. é uma complacência em relação

a uma mentira aconchegante de que todos são igualmente

capazes de criar arte que vale a pena. Que chance temos de

nutrir as maravilhas raras em nosso meio, os artistas nasci-

dos, se nós reivindicamos este direito infantil de colocar um

distintivo que diz ‘artista’?”, completa. Se, por um lado, a

arte participativa pode ser observada como negação do ta-

lento individual, ela é, em outro ponto de vista, a afirmação

do valor da atuação coletiva e do comportamento coopera-

tivo. Mais do que o requinte dos gênios, a arte participativa

aponta o potencial dos grupos.

O grande desafio das artistas Mônica Nador e Graziela

Kunsch é motivar a participação do público a ponto de elas

deixarem os projetos e eles continuarem rumo a destinos não

previstos. Mais do que abertos a interpretações, os trabalhos

dessas artistas estão em progresso, clamam por apropriações.

Tais projetos se assemelham a nossa sociedade. As estrutu-

ras do mundo são constituídas de intrincadas tradições, mas,

ainda que rígidas, continuam no gerúndio, em aberto. interfe-

rir nos processos em curso é se assumir cidadão, sujeito, gênio.

(Este capítulo é mais curto, você já deve ter percebido.

Na verdade, é um ato-convite.)

QUE TAL TERMiNAR ESSA REFLEXãO,

NãO Só NO PAPEL,

MAS TAMBéM NA PRáTiCA?

122

TODOS PODEM SER ARTISTAS?

124

bIblIoGRAfIA

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