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17 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS ARTEMISA ODILA CANDÉ MONTEIRO GUINÉ-BISSAU: DA LUTA ARMADA À CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL - CONEXÕES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E DIVERSIDADE ÉTNICA (1959-1994) Salvador 2013

Artemisa Odila - Guiné-Bissau - Da Luta Armada à Construção Nacional - Conexões Entre o Discurso de Unidade Nacional e Diversidade Étnica (1959-1994)

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Guiné-Bissau - Da Luta Armada à Construção Nacional - Conexões Entre o Discurso de Unidade Nacional e Diversidade Étnica (1959-1994)

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    ARTEMISA ODILA CAND MONTEIRO

    GUIN-BISSAU: DA LUTA ARMADA CONSTRUO DO ESTADO NACIONAL -

    CONEXES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E

    DIVERSIDADE TNICA (1959-1994)

    Salvador

    2013

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    ARTEMISA ODILA CAND MONTEIRO

    GUIN-BISSAU: DA LUTA ARMADA CONSTRUO DO ESTADO NACIONAL -

    CONEXES ENTRE O DISCURSO DE UNIDADE NACIONAL E

    DIVERSIDADE TNICA (1959-1994)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias

    Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial

    para a obteno do ttulo de Doutora em Cincias Sociais.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Victria Espieira

    Salvador

    2013

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    Cand Monteiro, Artemisa Odila

    C216 Guin-Bissau: da luta armada construo do estado nacional: conexes

    entre o discurso de unidade nacional e diversidade tnica (1959-1994) /

    Artemisa Odila Cand Monteiro. Salvador, 2013. 318f.: il.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria Victria Espieira

    Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2013.

    1. Guin-Bissau - Independncia. 2. Identidade nacional. 3. Pluralismo cultural. 4. Colonialismo. 5. Cabo-Verde - Independncia. I. Espieira, Maria Victria.

    II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    III. Ttulo.

    CDD 966.5703

    _____________________________________________________________________________

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    AGRADECIMENTOS

    J no me lembro quantas vezes fui interpelada em Bissau pelo meus familiares e

    amigos, que me perguntavam o que tanto estudava e que estudo era esse que nunca mais

    terminava? Meus colegas todos j estudaram, se formaram e casaram, e, eu ainda estudando

    no Brasil. Diziam-me que eu no tinha marido nem filhos. Perguntavam quando que iria me

    casar e ter filhos? Para que tanto estudo? Mulher que estuda demais assusta homem!,

    diziam.

    No adiantava explicar que eu estava cursando doutorado, j que muitos dos meus

    colegas que retornaram ao pas eram denominados de doutores. Para que adiantava os meus

    anos de demora de estudo? Entendo que eu no teria como convencer muitos nesse debate.

    Ento, s me restava acreditar que eu estava no caminho certo, e que eu era uma das

    pessoas privilegiadas no universo feminino na Guin-Bissau, por ter conseguido seguir e

    cumprir as etapas acadmicas e chegar ao nvel do doutorado, num pas em que a educao

    superior ainda constitui o privilgio de poucos, e nesse universo de privilgios, as mulheres

    ainda constituem a minoria.

    Por isso, ser doutora significa mais que uma vitria para mim, uma conspirao

    POSITIVA dos deuses, e ainda mais, ser a primeira doutora da famlia pra mim uma honra

    que compartilho com uma das mulheres mais sbias de Bolama, nha Senab.

    Apesar dessa mulher no ter sido alfabetizada e no ter passado pela escola oficial,

    apostou, quando no nos prprios filhos, nos sobrinhos de criao e at nos netos e netas.

    Aproveito para agradecer nha Senab pela perseverana e sabedoria na minha socializao

    primria e na conduo da minha educao, me ensinando os mais caros valores sociais e

    culturais de uma sociedade onde o sucesso passa prioritariamente pela educao escolar.

    Registro aqui os meus mais sinceros agradecimentos essa mulher guerreira, que nos

    momentos mais difceis soube, com amor, carinho, compreenso, ser a referncia da famlia e

    reerguer todos com muita determinao.

    Assim comeo agradecendo aos meus comuns: minha tia Ftima Cand e meu tio

    Bubacar Cand, que tm sido como pais para mim, que mesmo distantes com toda a

    dificuldade do pas, acompanharam o meu percurso acadmico no Brasil, incentivando e

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    auxiliando dentro das suas possibilidades. Por falar em famlia, devo adiantar de logo os

    agradecimentos tia Rita Monteiro Vieira, tia Tchumtcha (que subitamente nos deixou no

    decorrer desse trabalho), a tio Carlos Bamba,a meus irmos, Mauro Monteiro, Baciro Bald,

    Nordine Monteiro, Samory Monteiro, s minhas manas Fanta, Odete, Zita, Nequinha Vieira,

    que a todo momento me incentivaram para que eu chegasse a este fim.

    Devo gratido tambm minha tia Odete Semedo, que desde os momentos iniciais

    da construo desse trabalho esteve presente e me incentivou, quando no contribuiu

    diretamente para que este sonho se concretizasse.

    Aos meus primos e primas, Gorky de Medina, Anglo Adelino dos Reis I, Idrissa,

    Aminata, Djenab, Demba Bald, Tnia, Mazarine e Harrison Cand Lopes; Alfa Cand,

    Wiliam Mendes, Solange e Juscelino Vieira, Cintya Semedo e Isis Semedo, os meus sinceros

    agradecimentos pelo apoio e amizade.

    Agradeo ainda Me Lcia (Mameto Kamuricy) e ao Terreiro So Jorge Filho da

    Gmeia, a quem devo muito pelo acolhimento e estadia em Salvador, pela amizade de

    sempre, carinho e cuidado. Dona Gildete Santana, Antonio das Neves e Raimundo Neves

    (Kasutemy), que subitamente nos deixaram e no presenciaram o final desse trabalho apesar

    de ausncia fsica sei que vocs esto presentes, sou grata por tudo o que fizeram por mim!

    Por falar em amigos de sempre, no deixaria de agradecer ao Arnaldo Sucuma,

    Domingos Semedo, Jaime Sodr, Carla Georgia,Cadidjat Cand(tia Guerra), Claudia Santos,

    Fernando Pedro, Juliana Bruno, Las Santos, Adinelson Filho, Jusciele Oliveira, Iara

    Nascimento, Edmundo Jnior, Adriana Cerqueira, Dona Lourdes, Juvenal Carvalho, Fabio

    Baqueiro, Dionaldo Almeida, Miguel de Barros, Djimmy Fonseca,Suazilene Fernandes,

    Ricardo Ossag, Csar Ferrage, Tony Ferrage, Fumy Ferrage, Ramalho Namaba, Ordela

    Carvalho,Olvio Albino, Carolina Zulmira, Ivaldira Biagu, Tcherno Ndjai, Detoubab Ndiaye,

    Vagner Bijag, Patricia Gomes,Orlando Santos, Simo Jaime, Inussa Gomes, Tamine Lima,

    Adulai Bald, Goia Biagu,Umaro Embal, Eduardo Mendes, Corca Djal. Agradeo a todos

    pela f depositada em mim.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal da

    Bahia, ao Professor Clvis Zimmermann, aos funcionrios da secretaria (Dra e Alberto), e

    aos professores Miriam Rabelo, Muniz Ferreira e Carlos Lbano.

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    Estendo esse agradecimento aos meus colegas de turma de doutorado (Rubenilda

    Sodr, Ana Anglica, Nbia Ramos e Antonio Mateus), e aos meus colegas africanos. todos

    que de forma direta ou indireta contriburam para que este trabalho se tornasse realidade, devo

    gratido.

    Agradeo a leitura atenta do professor Claudio Furtado que de forma incansvel,

    cautelosa, compreensvel, disponibilizou-se dos seus inmeros compromissos, e soube dar

    acertos precisos que foram imprescindveis no desenvolvimento deste trabalho. Muito me

    ensinou. Os dividendos so preciosos: amizade, gratido e admirao. Valeu!

    A gratuita disponibilidade e inegvel colaborao do professor Muniz Ferreira, que

    desde a banca de qualificao apontou os caminhos serem explorados e disponibilizou a

    bibliografia que contribuiu para o andamento deste trabalho.Nunca ser suficientemente

    compensado pela minha imensa gratido.

    Ao meu sempre amigo Adinelson Filho, pela leitura e correo desta tese. Mais uma

    vez, valeu amigo!

    minha orientadora, Victria Espieira, pelo carinho, amizade e disponibilidade de

    me orientar, meu muito obrigada!

    Importantssima para este trabalho foi a impagvel contribuio no auxilio pesquisa

    de campo de Tio Issa Bald, Inerida Mendona e Indira Fernandes, que me acolheram em

    Lisboa e tornaram menos difcil o meu caminho. Carlos Lopes, Carlos Cardoso,Tcherno

    Ndjai,Policiano Gomes, Rui Jorge Semedo, Osris Ferreira, e Adex da Silva na viabilizao

    dos materiais de pesquisa. Como no podia esquecer de Midana na Fantchama (secretrio do

    PAIGC), Odete Semedo e Flora Gomes, que prontamente me auxiliaram na organizao das

    entrevistas com os combatentes da liberdade da ptria, em Bissau.

    E com amor Lote, meu esteio, pelo apoio nos momentos cruciais na elaborao

    desta tese e no auxilio da transcrio das entrevistas. Minha eterna gratido!

    Aos Combatentes da Liberdade da Ptria e aos membros do PAIGC, que passo a

    descrever: Carmem Pereira, Francisca Pereira, Sat Camar Pinto, Ana Maria Soares, Jos

    Lopes, Manuel Saturnino Costa, Elise Turpin, Lcio Soares, Augusto Olivaz, Adriano

    Ferreira, Carlos Correia, Teodora Incia Gomes, Manecas dos Santos, que aceitaram partilhar

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    suas memrias de luta, nostalgias, mgoas e frustraes do que no se concretizou. Meu

    obrigado!

    Por fim, registro a minha eterna gratido Capes pela concesso da bolsa, sem a qual

    seria mais difcil prosseguir.

    HOMENAGEM SENAB BALD (DJENAB)

    Um dia voc se foi, deixando para trs um imenso vazio onde antes contvamos com

    uma presena marcante, firme e segura. As saudades ainda so grandes, marcam a falta fsica

    de um sorriso, um afago, uma palavra. Foi, contudo, no meio dessa ausncia que

    compreendemos a dimenso do ser eterno, da poro que fica e que, apesar de invisvel,

    sensvel e vive dentro de ns. Por isso, mesmo que hoje algumas lgrimas se vertam ante a

    falta de seu abrao, essas no sero suficientes para apagar a certeza de estarmos juntos e

    dividir toda a emoo deste momento. Hoje, neste dia to importante, sinto-a presente, dentro

    de mim, feliz por nossa vitria. Sempre vou te amar...

    Nesses anos todos, sob suas asas

    Eu enriqueci

    E tive a luz da vida

    E os passos pra seguir

    E como o vento, o tempo passa to depressa

    Eu cresci tambm

    Eu no sou mais de vocs, agora a minha vez

    De ser algum

    Vou viajar sem bagagem

    Deixo o amor, mas levo a coragem

    Eu vou seguir, de mos vazias

    No peito trago a lio

    Sei que um dia com meus filhos

    Eu vou abrir meu corao

    E falar dos meus pais

    Quando a noite era um mar de pesadelos

    Vinham me abraar

    E num sorriso aberto,

    Com prazer de amar

    Fui mimado, amado, nunca vi motivos

    Pra me preocupar

    Mas meu dia chegou, eu tenho a chance de tentar

    De ser algum!

    Roupa Nova

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    No fazemos a guerra para conquistar Portugal. Fizemo-la porque somos obrigados a isso para conquistar os nossos direitos humanos, os nossos

    direitos de Nao, de povo africano que quer a sua independncia, isto , a

    libertao total do nosso povo da Guin e de Cabo Verde, a conquista da

    nossa independncia nacional e da nossa soberania.

    Amilcar Cabral (1974, p.61).

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    RESUMO

    Este estudo busca analisar o processo de construo da identidade nacional na Guin-Bissau,

    observando a mediao das diversidades tnicas existentes no pas, tendo como referncia o

    perodo de 1959 a 1994. Constatamos que a construo da nao ou identidade nacional em

    vrios pases africanos, teve seu incio com a ocupao europeia. A resposta dada a essa

    invaso em diversos pases africanos foi o desencadeamento da resistncia cultural e poltica

    contra essa ocupao. No caso particular da Guin dita Portuguesa, a intensa organizao para

    a descolonizao teve seu marco a partir do Massacre de Pindjiguiti, em 1959, que

    impulsionou a via armada contra o regime colonial, tendo como dois grandes protagonistas

    Rafael Barbosa e Amlcar Cabral. O projeto de Cabral para a viabilizao da independncia

    nacional seria a unidade entre as, ento, colnias portuguesas (Guin-Bissau e Cabo Verde), o

    elo principal desta mediao Rafael Barbosa, considerado nesse trabalho como um dos

    protagonistas do itinerrio nacionalista bissau-guineense. Amlcar Cabral defendeu o seu

    projeto de unidade entre Guin-Bissau e Cabo Verde com base na ligao histrica entre os

    povos. Mas, apesar de tais laos histricos, esses dois povos no se reconheciam mutuamente

    como um s povo. A concepo de nao de Cabral tambm postulava a unificao de todas

    as etnias de Guin-Bissau, sem distino cultural, num programa de conscincia nacional para

    a liquidao do colonialismo, criando assim uma contra sociedade em oposio a sociedade

    colonial. Esta seria a concepo dada nao num pas cuja diversidade cultural teria

    identidade unificada sob interesses polticos nacionais. O objetivo desta tese analisar o

    processo de construo da identidade nacional na Guin-Bissau, observando como aparece o

    discurso de Amlcar Cabral de unidade nacional no contexto do discurso da identidade tnica,

    no perodo de luta de libertao nacional. Pudemos verificar que a concepo de nao de

    Amilcar est alicerada na tradio ocidental, entretanto gravitando entre os conceitos de

    unidade e cultura, como alicerces principais da nao concebido como estratgia do

    enfrentamento. Finalmente, faz se um experimento de leitura crtica do projeto de unidade

    Guin-Bissau e Cabo Verde, que tinha pouca viabilidade poltica de se concretizar, e

    constatamos que foram as contradies desenvolvidas durante a luta de libertao nacional no

    tocante unidade binacional que permearam os bastidores da morte de Amilcar Cabral. Ainda

    observamos que tais contradies assombraram sobremaneira o perodo ps-independncia

    que vai culminar com o golpe de Estado de novembro de 1980, que marca a ruptura da

    unidade binacional. Os contornos de abertura poltica multipartidria em 1994 tambm

    mereceram anlise e seu desdobramento desenhou uma nova configurao poltica na nao

    bissau-guineense de Amilcar Cabral, quando as narrativas tnicas ganham nova roupagem

    diante das narrativas dos discursos nacionalistas no cenrio poltico, originando a perda de

    prestgio da referida unidade nacional na poltica contempornea bissau-guineense.

    Palavras-chave: Guin-Bissau. Bissau-guineense. Identidade nacional. Identidade tnica. Luta

    de libertao nacional. Colonialismo. Unidade tnica. Unidade Guin-Bissau/Cabo Verde.

    Independncia.

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    RESUM

    Cette tude vise analyser le processus de construction de l'identit nationale en Guine -

    Bissau, au regard de la diversit ethnique existante dans le pays, et en prenant comme

    rfrence la priode allant de 1959 1994. Nous constatons que la construction de la Nation

    ou de l'identit nationale dans beaucoup de pays africains a commenc avec l'occupation

    europenne. La rponse cette invasion dans plusieurs pays africains a t le dveloppement

    de la rsistance culturelle et politique. Dans le cas particulier de la Guine dite portugaise,

    l'organisation intense pour la dcolonisation a commenc avec le massacre de Pindjiguiti en

    1959, vnement qui a dclench la lutte arme contre la domination coloniale, avec Rafael

    Barbosa et Amilcar Cabral comme deux principaux protagonistes. Le projet de Cabral qui

    tait de conqurir l'indpendance nationale aurait comme condition l'unit entre les deux

    colonies portugaises (Guine-Bissau et Cabo Verde). Le principal lien de cette mdiation est

    Rafael Barbosa, considr dans ce travail comme l'un des protagonistes de la revendication

    nationaliste bissau-guinenne. Amilcar Cabral a dfendu son projet d'unit entre la Guine-

    Bissau et le Cabo Verde sur la base du lien historique entre les peuples. Mais en dpit de ces

    faits historiques, ces deux peuples ne se voyaient pas comme un seul peuple. La conception

    de la Nation chez Cabral avait aussi postul l'unification de tous les groupes ethniques de la

    Guine- Bissau, sans aucune distinction culturelle, dans un programme qui va au del dune prise de conscience nationale et visait la liquidation du colonialisme. Ce qui cre ainsi une

    contre-socit par opposition la socit coloniale. Telle est la signification donne la

    Nation dans un pays dont la diversit culturelle cache une identit unifie sur la base

    dintrts politiques nationaux. L'objectif de cette thse est d'analyser le processus de construction de l'identit nationale en Guine-Bissau, en observant comment le discours

    dAmilcar Cabral de l'unit nationale apparat dans le contexte du discours de l'identit ethnique pendant la lutte de libration nationale. Nous avons vu que la conception de la

    Nation chez Amilcar est base sur la tradition occidentale, mais tourne autour des concepts de

    l'unit et de la culture en tant que fondements essentiels de la nation conue comme une

    stratgie dadaptation. Enfin, nous essayons de faire une lecture critique du projet de l'unit entre la Guine-Bissau et le Cabo Verde qui avait peu de viabilit politique. Nous nous

    sommes rendu compte que ce sont de telles contradictions dveloppes au cours de la lutte de

    libration nationale, en ce qui concerne l'unit binationale, qui imprgnait les coulisses de la

    mort d'Amilcar Cabral. Nous avons galement observ que ces contradictions qui ont

    grandement hant la priode post-indpendance et qui ont dbouch sur le coup d'tat de

    Novembre 1980, marquent la rupture de l'unit binationale. Les contours de l'ouverture

    politique multipartite en 1994 ont aussi mrit un examen et son droulement a dessin une

    nouvelle configuration politique de la Nation bissau-guinenne dAmilcar Cabral, au moment o les rcits ethniques gagnent de nouveaux vtements avec les rcits des discours

    nationalistes dans le paysage politique, entranant la perte de prestige de ladite unit nationale

    dans la politique contemporaine Guine-Bissau.

    Mots-cls: Guine-Bissau, Guine-Bissau, Identit nationale, Identit ethnique, lutte de

    libration nationale, colonialisme, unit ethnique, unit de Guine-Bissau et Cabo Verde,

    Indpendance.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Mapa demonstrativo de pases da UEMOA.......................................... 61

    Figura 2 Mapa ilustrativo da frica antes da diviso da Conferncia de

    Berlim.....................................................................................................93

    Figura 3 Mapa ilustrativo da diviso da frica Conferncia de Berlim (1884-

    1885)...................................................................................................... 96

    Figura 4 Mapa Guin-Bissau - esboo de regies administrativa.........................97

    Figura 5 Mapa da localizao espacial das principais etnias da Guin Bissau.....98

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ANP Assembleia Nacional Popular

    AP Armazns do Povo

    BCGP Boletim Cultural da Guin Portuguesa

    BM Banco Mundial

    BP Bureau Poltico

    CEA Centro de Estudos Africanos

    CC Comit Central

    CCE Conselho dos Comissrios de Estado

    CE Conselho de Estado

    CEI Casa dos Estudantes de Imprio

    CEL Conselho Executivo de Luta

    CIDAC Centro de Informao e Documentao Amilcar Cabral em Lisboa

    CONCP Conferncia das Organizaes Nacionais das Colnias Portuguesas

    CR Conselho da Revoluo

    CSL Conselho Superior de Luta

    CNCV Conselho Nacional de Cabo Verde

    FARP Foras Armadas Revolucionrias do Povo

    FD Frente Democrtica

    FNLA Frente Nacional de Libertao de Angola

    FLGC Frente de Libertao da Guin e Cabo Verde

    FLING Frente de Libertao e Independncia Nacional da Guin

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    FRAIN Frente Revolucionria Africana para a Independncia das Colnias

    Portuguesas

    FLING Frente de Libertao Nacional da Guin

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FRELIMO Frente de Libertao de Moambique

    FUL Frente Unida da Libertao da Guin e Cabo Verde

    GUN Governo de Unidade Nacional

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa

    ISA Instituto Superior de Agronomia

    ISCTE Instituto Superior das Cincias do Trabalho e Emprego

    LIGA Liga Bissau-guineense

    MAC Movimento Anticolonial

    MING Movimento para a Independncia da Guin

    MLG Movimento da Libertao da Guin

    MLGCV Movimento da Libertao da Guin e Cabo Verde

    MLICV Movimento de Libertao das Ilhas de Cabo Verde

    MLSTP Movimento de Libertao So Tom e Prncipe

    MPLA Movimento popular de Libertao de Angola

    MPD Movimento para Democracia

    MR Movimento Reajustador

    MUDE Movimento de Unidade para Democracia

    OUA Organizao Unidade Africana

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PAI Partido Africano para a Independncia

    PAICV Partido Africano para a Independncia de Cabo Verde

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    PAIGC Partido Africano para a Independncia da Guin e Cabo Verde

    PDA Partido Democrtico de Angola

    PDP Partido Democrtico para o Progresso

    PCD Partido de Convergncia Democrtica

    PIDE/DGS Policia Internacional de Defesa de Estado/Direo Geral de Segurana

    PRD Partido de Renovao e Desenvolvimento

    PRS Partido de Renovao Social

    PUSD Partido Unido Social Democrata

    SOCOMI Sociedade Comercial Mista

    UA Unio Africana

    UDEMU Unio Democrtica das Mulheres

    UNITA Unio Nacional da Independncia Total de Angola

    UNTG Unio Nacional da Independncia da Guin

    UPA Unio dos Povos de Angola

    UPANG Unio Patritica Anticolonialista da Guin-Bissau

    UPG Unio Patritica da Guin

    UPICV Unio do povo das Ilhas de Cabo Verde

    UNGP Guin Unio dos Naturais da Guin Portuguesa

    UPLG Unio da Populao Libertada da Guin

    RDAG Reunio Democrtica Africana da Guin

    RDN Rdio Difuso Nacional

    RENAMO Resistncia Nacional de Moambique

    RGB/MB Resistncia da Guin-Bissau/Movimento Ba-fat

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    SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................................. 16

    1 CAPTULO I O PROCESSO FUNDANTE DO ESTADO NAO:.......................

    NACIONALISMO COMO INSTRUMENTO DE LIBERTAO

    28

    1.1 BREVE HISTRICO SOBRE O PROCESSO DE CONSTRUO DA NAO........... 28

    1.2 A GNESE DO NACIONALISMO AFRICANO.............................................................. 38

    1.3 UNIDADE AFRICANA COMO FATOR DE LIBERTAO.......................................... 45

    1.4 A IMPORTNCIA DOS PARTIDOS POLTICOS NA CONSTRUO DO ESTADO

    NAO EM FRICA.........................................................................................................

    58

    2 CAPTULO II - DA GUIN PORTUGUESA GUIN-BISSAU: DA CHEGADA.

    DOS PORTUGUESES COSTA AFRICANA AOS PROCESSOS DE

    RESISTNCIAS ANTICOLONIAIS..............................................................................

    75

    2.1 O CONTEXTO DA CHEGADA DOS PORTUGUESES NA COSTA OCIDENTAL

    AFRICANA E A CONJUNTURA DA ESCRAVIDO ATLNTICA.............................

    75

    2.2 A COLONIZAO DA GUIN COMO DESDOBRAMENTO DA FORMAO DO

    IMPRIO PORTUGUS....................................................................................................

    90

    2.3 IDENTIDADES E RESISTNCIAS ESCRAVIDO NA GUIN: A LUTA PELA

    SOBERANIA NACIONAL.................................................................................................

    100

    2.4 A CRIAO DOS PRIMEIROS PARTIDOS POLTICOS E MOVIMENTOS

    CONTESTATRIOS..........................................................................................................

    113

    3 CAPTULO III -AMLCAR CABRAL E O CONTEXTO DO PS-GUERRA: OS

    ACONTECIMENTOS QUE IMPULSIONARAM A VIA ARMADA NA GUIN-

    BISSAU...............................................................................................................................

    123

  • 17

    3.1 O RESSURGIMENTO DE AMILCAR CABRAL NA GUIN-BISSAU NO

    CONTEXTO DO MASSACRE DE PINDJIGUITI............................................................

    136

    3.2 UMA LUTA, DOIS PASES: A CRIAO DE UMA NICA FRENTE PARA

    LIBERTAO DA GUIN-BISSAU E CABO VERDE E A INSERO DOS

    CAMPONESES NAS FILEIRAS DE LUTA.....................................................................

    148

    4 CAPTULO IV - A LUTA ARMADA DE LIBERTAO NACIONAL E A

    CONSCINCIA NACIONAL: UMA ANLISE DA CONJUNTURA

    INTERNACIONAL...........................................................................................................

    157

    4.1 A LUTA ARMADA DE LIBERTAO DA GUIN-BISSAU E CABO-VERDE: O

    CONGRESSO DE CASSAC E A CRIAO DO PARTIDO ESTADO........................

    168

    4.2 OS REFLEXOS DA EVOLUO DA LUTA NO CONTEXTO

    INTERNACIONAL..............................................................................................................

    4.3 4.3

    4.3 O ASSASSINATO DE UM LDER AFRICANO E OS DESDOBRAMENTOS

    D DO II CONGRESSO DE BO............................................................................................

    4.4 AS MULHERES NO CENRIO DA LUTA DE LIBERTAO NACIONAL.........

    5 CAPTULO V - A GUIN-BISSAU NO CONTEXTO DAS INDEPENDNCIAS

    AFRICANAS E O NASCIMENTO DE UM ESTADO AFRICANO: LIMITES E

    POSSIBILIDADES............................................................................................................

    5.1 NACIONALISMO BISSAU-GUINEENSE E CONEXES COM A CULTURA:

    UNIDADE TNICA E UNIDADE GUIN-BISSAU/CABOVERDE............................

    5.2 O MOVIMENTO REAJUSTADOR 14 DE NOVEMBRO E A RUPTURA DO

    LEGADO DE AMLCAR CABRAL..................................................................................

    5.3 A ABERTURA MULTIPARTIDRIA DE 1993 E A EMERGNCIA DA

    POLTICA TNICA NO ESTADO BISSAU-GUINEENSE.............................................

    180

    190

    201

    208

    208

    225

    242

    6 CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................252

    REFERNCIAS............................................................................................................260

    ANEXOS........................................................................................................................270

    2

    7

    1

  • 17

    ANEXO I Os simbolos da nao bissau-guineense

    ANEXO II Mapa da Repblica de Guin-Bissau e alguns dados relevantes do pas

    ANEXO III Informaes sobre o processo de Luta de Libertao Nacional

    ANEXO IV Perodo de transio de governo portugus para governo do PAIGC

    ANEXO V Correspondncia entre Nino Vieira e Aristides Pereira sobre o Movimento Reajustador 14 de Novembro

    ANEXO VI Quadro Analtico de Guin-Bissau 1886 a 2012

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    INTRODUO

    Este trabalho, intitulado Guin-Bissau: da luta armada construo do Estado

    Nacional: conexes entre o discurso de unidade nacional e da diversidade tnica, tem

    como proposta analisar a construo do Estado Nacional na Guin-Bissau durante o contexto

    de luta de libertao nacional de 1959 a 1994, visando refletir sobre as narrativas a respeito da

    identidade nacional em articulao com os conceitos de cultura, unidade nacional e

    diversidade tnica, alegorias referenciais no discurso fundacional do lder revolucionrio

    Amlcar Cabral1.

    Este estudo se inscreve numa tradio de abordagem terica que procura

    compreender as matrizes discursivas da identidade nacional, que vo desde 1959 - massacre

    de Pindjiguiti - at 1994 - perodo do chamado pluralismo poltico na Guin-Bissau. A baliza

    cronolgica de 1959 a 1994 justifica-se por ser o ano de 1959 um marco nos movimentos de

    reivindicaes que visavam luta pela independncia, tendo como base o massacre de

    Pindjiguiti que impulsionou novos contornos nos movimentos nacionalistas bissau-guineense,

    forjando uma Frente nica de Libertao com o intuito de unir dois pases para uma luta de

    libertao nacional, representado atravs do Partido Africano da Independncia da Guin-

    Bissau e Cabo Verde (PAIGC) com carter binacional.

    O ano de 1959 marca ainda o ressurgimento2 de Amlcar Cabral na vida poltica da

    Guin-Bissau, o que mais tarde lhe conferiu o cargo de representante poltico dos interesses

    dos filhos da Guin-Bissau e de Cabo Verde com vistas descolonizao. Por sua vez, o

    ano de 1994 se constitui num marco com o trmino do regime do partido nico,

    caracterizando o novo perodo no Estado bissau-guineense, inclusive no mbito das mudanas

    discursivas no tocante as novas alegorias fundantes do Estado nacional bissau-guineense. Ou

    seja, o ano marco do renascimento da nao bissau-guineense, com adeso democracia

    1Um dos fundadores de PAIGC (Partido Africano da Independncia da Guin- Bissau e Cabo Verde) e lder de

    luta de libertao nacional, Cabral nasceu na Guin-Bissau-Bissau na cidade de Bafat a 12 de Setembro de

    1924. Muda-se para Cabo Verde com seus pais em 1936, onde fez seus estudos secundrios. Em 1945, Amlcar

    Cabral obtm a bolsa de estudo e comea seus estudos universitrios em Lisboa. Em 1952 formou-se no Instituto

    Superior de Economia da Universidade Tcnica de Lisboa e, como agrnomo, trabalhou em Portugal, Guin-

    Bissau e na Angola, onde, em 1953, procedeu ao primeiro recenseamento agrcola do pas. Morreu a 20 de

    Janeiro de 1973, assassinado na Guin-Bissau Conakry (LOPES, 1998). 2 oportuno esclarecer que em 1952 Amlcar Cabral nomeado pela administrao colonial portuguesa como

    engenheiro agrnomo na Granja de Pessub na Guin. E no ano seguinte em 1953 realiza o primeiro

    recenseamento agrcola da Guin-Bissau. Na tentativa de criao de uma Associao Desportiva de recreao

    com cunho nacionalista em Bissau, Cabral obrigado a abandonar o pas em 1954 e regressa aps o massacre de

    Pindjiguiti em 1959.

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    liberal, revestida de novos discursos que se direcionam para uma poltica tnica no Estado

    bissau-guineense.

    Igualmente, 1994 o ano marcado pela reviso constitucional que levou ao que ficou

    conhecido como a queda do artigo 4 da Constituio da Repblica que preconizava o PAIGC

    como partido nico e legtimo dirigente e representante poltico da sociedade bissau-

    guineense3. Este artigo da Constituio atribuiu ao PAIGC o poder absoluto e legtimo desde

    a independncia em 1973 at 1993, completando 20 anos de exerccio do poder.

    Priorizei, para anlise nesta pesquisa, os grandes eventos desencadeados durante o

    processo colonial na Guin-Bissau, desde os primrdios da colonizao e o perodo da

    independncia, que compreende a I Repblica (Proclamao de Independncia, 1973) que se

    estende at a abertura poltica partidria de 1994, considerada nesta pesquisa como o

    nascimento do novo Estado bissau-guineense.

    Justifica-se esta escolha pelo fato de que o territrio conhecido hoje como Guin-

    Bissau provm de fortes vnculos histricos e culturais entre os povos da Guin, da regio de

    Cassamance, no Senegal, e da Gmbia atual, conhecido como Senegmbia naquele perodo, e

    que veio a se desintegrar, devido presso externa de potncias coloniais europeias (LOPES,

    2012). Portanto, os primeiros ideais da nao na Guin-Bissau no fugiram regra da unidade

    histrica e cultural entre povos, baseada em um vnculo de pertencimento nacional dos povos.

    Nesse ensejo, constri-se uma identidade unida pelos laos histricos, impulsionando

    a criao do partido Estado conduzido pelo PAIGC (Partido Africano para Independncia de

    Guin-Bissau e Cabo Verde) sob a liderana de Amlcar Cabral.

    Diante do objetivo da pesquisa, que analisar o processo de construo da identidade

    nacional na Guin-Bissau, observando os registros de discursos de Amlcar Cabral de unidade

    nacional no contexto da construo da nao, iremos considerar as configuraes tnicas

    dessa nao e suas diferenas culturais.

    Neste processo, interessa-me tambm, enquanto objeto de pesquisa, entender como

    se concebeu inicialmente o sentido da nao na gnese do Estado colonial. E como os bissau-

    guineenses transitam e se percebem como pertencentes a duas identidades, nacional e tnica,4

    e qual a relevncia destas identidades no cotidiano do pas.

    3 Disponvel na Primeira Constituio da Repblica de Guin-Bissau-Bissau de 1974.

    4 Importante ressaltar que, entre os bissau-guineenses, existem duas formas de identificao social, uma que se

    refere identidade coletiva (nacional) e outra representao especifica, isto , aquela que remete o individuo

    sua tradio cultural, neste caso a origem tnica de cada sujeito. Mas h que se levar em conta uma terceira via

    de afirmao identitria no que se refere aos assimilados, isto , os cristons de praa que tambm so resultantes

    de cruzamento de origens tnicas diversas mas que no contexto urbano se identificam como crioulos, e usufruem

    da dimenso tnica como estratgia para a sua manuteno no poder poltico.

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    Interessa ainda compreender como o discurso de unidade nacional proposto por

    Amlcar Cabral, validado num determinado contexto histrico de luta de libertao, ganhou,

    no cenrio bissau-guineense, uma destacada importncia na autoafirmao de guinendade.5

    Diante dessa perspectiva, constru algumas questes que visam mapear a gnese do

    Estado nacional bissau-guineense e seu colapso na contemporaneidade, analisando a

    fragilidade do discurso fundacional da nao bissau-guineense, observado principalmente no

    campo poltico. A fim de alcanar esse objetivo, estruturei este estudo em torno das seguintes

    questes:

    1) Quais os mecanismos discursivos utilizados para unificar a diversidade tnica em meio

    aos interesses da poltica nacional? Ainda perduram as narrativas discursivas do

    Estado nacional usadas por Cabral para unificar as diversidades contra a colonizao

    portuguesa entre as lideranas polticas bissau-guineenses na contemporaneidade?

    2) Em que medida os signos identitrios e tnicos, na contemporaneidade na Guin-

    Bissau, so relevantes e se afirmam em detrimento dos signos que professam

    elementos nacionais, tais como: unidade nacional e unidade entre Guin-Bissau e

    Cabo Verde?

    3) Qual a intensidade da questo tnica no iderio de unidade nacional e como a ela se

    recorre no campo poltico e social do pas?

    Em resposta a estas questes, analisamos que a construo do Estado nacional

    bissau-guineense se deu no bojo de uma emergncia nacional de luta contra a ocupao

    europeia, e como a articulao do discurso nacionalista de Amlcar Cabral serviu de modelo

    para a unificao das identidades em meio s diferenas tnico-culturais.

    A noo de nacionalismo bissau-guineense est intrinsecamente ligada noo de

    identidades tnicas neste trabalho. O discurso fundacional da nao bissau-guineense de

    Amlcar Cabral justaps as duas formas de pertencimento em meio aos smbolos

    decodificadores da nao bissau-guineense. Realmente, no s como um dado emprico, a

    etnicidade um elemento sancionador para adeso ao discurso de Cabral, como tambm ele

    mediador das relaes sociais bissau-guineenses.

    5 Incorporo o uso dessa expresso, nesta pesquisa, para designar as diversas formas de ser bissau-guineense em

    meio s diversidades tnicas existentes no pas.

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    Diante do exposto, a nossa hiptese aponta para uma nova configurao sociocultural

    na Guin-Bissau, isto , de que a identidade tnica ganhou um contorno expressivo na

    afirmao e na autoafirmao da pertena em meio identidade nacional.

    Esse fato tornou-se evidente a partir da abertura poltica no pas em 1994, no tocante

    s manifestaes de interesses partidrios e que prevalece at a atualidade. Desta forma,

    apresenta-se tambm uma mudana nos propsitos iniciais da unidade nacional concebida por

    Amlcar Cabral, na medida em que as questes tnicas ganham peso no delineamento das

    relaes sociais e polticas num pas em que a unidade nacional, historicamente, teve um

    significado simblico e expressivo no processo que conduziu independncia nacional.

    Esta pesquisa foi impulsionada pelo interesse em analisar as mediaes identitrias

    na Guin-Bissau, resultantes de um nacionalismo com acentuado carter cultural, tendo como

    um dos protagonistas Amlcar Cabral. A proposta de pesquisar a construo da identidade

    nacional na Guin-Bissau e seus reflexos na contemporaneidade faz parte de um sonho

    almejado para melhor compreender as especificidades do projeto de Cabral em termos de

    unidade tnica e seu desdobramento.

    Cabral nasceu em Bafat, ento Guin Portuguesa, em 24 de setembro de 1924. Filho

    de emigrantes caboverdianos, viveu na Guin-Bissau at aos oito anos de idade com os pais.

    Deixou Bissau em 1936 e foi para Cabo Verde com seus pais; passou a viver na Ilha de So

    Vicente, onde completou seus estudos primrios e secundrios. O ano de 1945 marca o inicio

    da sua carreira poltica na Casa de Estudantes de Imprio (CEI), sob forte influncia das

    teorias marxista e pan-africanista. Essa experincia poltica foi adquirida na CEI quando era

    estudante no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa.

    A discriminao racial com que eram interpelados por serem considerados

    assimilados os faz serem vistos como portugueses de segunda classe, obrigando-lhes a criar

    um mecanismo de defesa atravs do sentimento nacionalista, pautado na reconverso

    identitria, tendo como influncia a corrente ideolgica pan-africanista, que reivindicava a

    frica para os africanos. Essa articulao poltica contou com a influncia dos pan-

    africanistas William Du Bois e Marcus Garvey, que lutavam para a reintegrao maior dos

    africanos fora do continente.6

    6 O pan-africanismo uma ideologia poltica criada fora do continente africano pelos grandes pensadores da

    dispora, dentre os quais William Du Bois, Marcus Garvey, Aim Csaire, Frantz Fanon, e predicava que a

    dispora e a frica tinham um destino comum, que a emancipao dos afroamericanos, que no podia ser

    desvinculada da emancipao dos povos do continente ancestral, e vice-versa (MOORE, 2008, p.34).

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    Estes grupos de estudantes africanos em Lisboa, que mais tarde seriam denominados

    de Gerao Cabral, desempenharam o papel imprescindvel na formatao do nacionalismo

    africano fora do continente e que, mais tarde, seriam referncias estratgicas no desenrolar

    dos movimentos de reivindicaes nas colnias africanas ainda sob o domnio colonial.

    nesta senda que se insere Amlcar Cabral como lder dos movimentos nacionalistas

    dos pases africanos sob a dominao portuguesa. Cabral foi portavoz dos anseios no apenas

    dos povos da Guin-Bissau e Cabo Verde como tambm da frica de um modo geral. Nos

    fruns de debates, preconizava a libertao dos africanos contra a subjugao colonial em prol

    da independncia nacional.

    Nesta pesquisa no pretendo realizar um estudo biogrfico de Amlcar Cabral, por se

    tratar de uma temtica exaustiva no mbito da literatura bissau-guineense. Outrossim, no

    minha inteno me debruar sobre a dinmica da luta em Cabo Verde.

    No entanto, ao analisar a questo da construo do Estado nacional na Guin-Bissau,

    engendrada atravs da luta de libertao nacional, inevitvel trazer para o centro deste

    debate alguns excertos sobre os nacionalistas caboverdianos e os bastidores que nortearam o

    projeto comum de libertao nacional destes dois pases.

    Desta forma, usei os testemunhos de Lus Cabral (1984), Aristides Pereira (2003) e

    por fim o trabalho de Jos Vicente Lopes (1996), sobre os bastidores da independncia que

    compem parte de uma reflexo dos caboverdianos sobre o processo de luta de libertao na

    Guin-Bissau.

    Neste mbito, busco centrar a minha preocupao na anlise das ideias de Cabral ao

    nvel de construo do Estado nacional, entrelaando-as com as questes culturais, da unidade

    nacional e unidade entre Guin-Bissau e Cabo Verde, tendo como leitmotiv a libertao

    nacional nos dois pases.

    O desenvolvimento desta tese est centrado em duas perspectivas, que se entrelaam

    e se completam: a sociopoltica e a histrica. A primeira delas identifica a formao das

    correntes nacionalistas no mbito da luta de libertao em frica, particularmente na Guin-

    Bissau, o pensamento de Amlcar Cabral e de outros nacionalistas africanos na concepo da

    nao como comunidade de destino, e tambm como estratgia do enfrentamento. O papel

    dos partidos polticos na formao poltica dos Estados nao e o arranjo do projeto de

    unidade africana completam a abordagem dessa perspectiva.

    Atrelada primeira, a segunda perspectiva busca a compreenso da estrutura

    organizativa do sistema colonial, baseada em formas de trabalho forado, na subjugao de

    povos e suas culturas e em estratgias de monetarizao da economia africana. Sob essa

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    perspectiva, tracei as balizas para analisar, atravs da ordem cronolgica, desde a chegada dos

    europeus na costa africana e posteriormente na Guin-Bissau, as resistncias ocupao

    colonial, as relaes de submisso e dominao estabelecidas pela sociedade colonial e o

    desdobramento da formao do imprio portugus que impulsionou a criao dos movimentos

    urbanos de descolonizao.

    Recorri aos perodos anteriores (a exemplo de ano de 1445) a fim de melhor

    compreender como se deu em frica a primeira concretizao da implementao do

    entreposto comercial em Arguim (a sul do Cabo Branco), e as demais feitorias que permitiram

    a legalizao de trocas comerciais com o interior do continente africano, o que mais tarde

    expandiu o comrcio transatlntico de escravos.

    Ademais, o ano de 1945 tambm mereceu destaque por ser decisivo na formatao

    dos movimentos de autodeterminao e na concesso das independncias africanas. Foi o

    contexto aps a Segunda Guerra Mundial que deu alento aos pases que estavam sob o

    domnio colonial, legitimando as suas lutas pela independncia com vistas construo dos

    Estados nao.

    A dcada de 1950 marca o epicentro de reafricanizao dos espritos, ou seja, do

    renascimento dos novos africanos que sentiram a necessidade de se libertar da alienao

    colonial, isto , da assimilao imposta pelo ensino colonial, centrada na manifestao da

    conscincia nacionalista.

    Assim, os cinco captulos da tese foram estruturados de modo a abordar no primeiro

    captulo, O processo fundante do Estado nao e nacionalismo: instrumento de libertao.

    Realizo nessa parte do texto uma breve reflexo acerca das principais contribuies tericas

    sobre a concepo da nao e do processo da identidade nacional, representadas nos

    diferentes contextos sociais.

    Este captulo est divido em quatro itens. O item 1 aborda o processo de construo

    da nao e tem como fio condutor as premissas dos nacionalistas africanos e suas relaes

    com as tradies ocidentais de conceber a nao como comunidade de destino partilhada

    atravs da unidade poltica. No item 2, procurei destacar a origem do nacionalismo africano,

    analisar as primeiras manifestaes de cunho nacionalista dos estudantes africanos em Lisboa,

    dando nfase Casa de Estudantes do Imprio (CEI), na formao das conscincias

    nacionalistas dos jovens estudantes africanos.

    Tambm minha inteno conhecer quais eram as fontes referenciais destes

    estudantes africanos Amlcar Cabral, Mrio de Andrade, Eduardo Mondlane, Marcelino dos

    Santos, Agostinho Neto e quem eram seus interlocutores, qual era o impacto dessas

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    manifestaes estudantis em Portugal e nas disporas africanas. No item 3, sobre a unidade

    africana como fator de libertao, me debrucei acerca da viabilidade da ideia de unidade

    africana no contexto colonial como forma de solidariedade no enfrentamento do sistema

    colonial, tendo como protagonista o gans Kwame Nkrumah, culminando com a criao da

    Organizao da Unidade Africana (OUA) em 1963.

    Por fim, no item 4, abordo a importncia dos partidos polticos na construo do

    Estado nao na frica, procurando analisar o surgimento dos partidos polticos e

    movimentos de libertao nacional e sua importncia na representao de interesses comuns

    na edificao da nao.

    O segundo captulo - Da Guin portuguesa a Guin-Bissau: da chegada dos

    portugueses costa africana aos processos de resistncias anticoloniais - centra-se na

    montagem da administrao colonial, bem como nos vrios processos de resistncias

    desencadeados pelos povos nativos. luz da cronologia histrica, descreve-se a emergncia

    anticolonial mais contempornea, mais precisamente nos meados do sculo XX, focalizando a

    criao do Movimento de Libertao da Guin-Bissau (MLG), liderado por Rafael Barbosa e,

    em 1959, a criao do Partido Africano para a Independncia (PAI), liderado por Amlcar

    Cabral, cuja tese central passava por um projeto de unidade entre a Guin-Bissau e Cabo

    Verde, tendo como pressuposto primordial a unidade intertnica entre os bissau-guineenses.

    Este captulo tambm est dividido em quatro itens que se recortam cronologicamente.

    Por sua vez, o terceiro captulo - intitulado Amlcar Cabral e o contexto do ps-

    guerra: os acontecimentos que impulsionaram a via armada na Guin-Bissau - composto de

    trs itens. Na parte introdutria procuro destacar os principais fruns de debates registrados

    atravs de vozes coletivas que condenaram o sistema colonial na frica. Enfatizo o contexto

    do ps-guerra que legitimou, sobremaneira, os movimentos de autodeterminao dos povos

    africanos. No item 1, analiso a sada de Amlcar Cabral de Lisboa e a sua entrada na vida

    poltica de Guin-Bissau no contexto da sua nomeao pelo servio colonial como o primeiro

    engenheiro agrnomo negro na granja de Pessub.

    nesse mbito que Amlcar Cabral se inseriu como nacionalista com olhar atento s

    estratificaes sociais determinadas pela administrao colonial na Guin-Bissau. Neste item,

    destaque dado para o ressurgimento de Amlcar Cabral no cenrio do massacre de

    Pindjiguiti. No item 2 - que tem o ttulo Uma luta, dois pases: a criao de uma nica frente

    para libertao da Guin-Bissau e Cabo Verde - analiso a constituio de uma frente

    nacionalista para a luta de libertao nacional, tendo como protagonistas dois dos principais

    movimentos de libertao: PAI e MLG.

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    A proposta surge de Amlcar Cabral, que enxergava na unidade entre a Guin-Bissau

    e Cabo Verde a nica via possvel para a liquidao do colonialismo portugus, objetivando a

    independncia. O elo principal desta unidade era Rafael Barbosa, bissau-guineense de etnia

    manjaca, e que serviria de smbolo de mobilizao dos bissau-guineenses para a unidade com

    os caboverdianos. Vale registrar que o contexto do massacre de Pindjiguiti de 1959 trouxe

    uma reviravolta na verdadeira data da fundao do PAI em Bissau. Mais especificamente, o

    contexto do massacre de Pindjiguiti forja a remodelao na estrutura organizativa de

    mobilizao de luta, seguindo assim para a segunda fase mais expansiva, que marca a

    insero dos camponeses no cenrio de luta de libertao nacional.

    Os contornos da concretizao da Frente de Libertao, da criao do partido Estado,

    da viabilizao da luta armada, foram tratados no quarto captulo, intitulado A luta armada

    de libertao nacional e a conscincia nacional: uma anlise da conjuntura internacional.

    Nele procuro destacar os principais desdobramentos que culminaram na via armada para a

    independncia da Guin-Bissau.

    A internacionalizao7 da luta de libertao, as denncias de aes colonialistas

    feitas atravs de Amlcar Cabral, sob o pseudnimo de Abel Djassi, que advoga os interesses

    dos dois pases, e sua atuao nas conferncias internacionais merecem destaque neste

    captulo.

    Sem dvida, a criao da Frente Revolucionria Africana para a Independncia

    Nacional (FRAIN) e da Conferncia das Organizaes Nacionalistas das Colnias

    Portuguesas (CONCP), que objetivavam coordenar as lutas de libertao das colnias, as

    participaes nas conferncias afroasiticas de Belgrado e na Tricontinental de Havana,

    deram Cabral uma dimenso internacional.

    Assim, ganharam destaque neste captulo os contornos do Congresso de Cassac, de

    1964, a Batalha de Como, a diviso territorial do pas em frentes de luta e o processo poltico

    e militar que foi engendrando a conscincia da nao e reformatando a ideia do Estado nos

    limites territoriais da Provncia colonial. Tambm, o reconhecimento em nvel internacional

    da luta do PAIGC foi decisivo para os anos que se seguiram independncia da Guin-

    Bissau. Os bastidores do assassinato de Amlcar Cabral, e o papel das mulheres na luta de

    libertao nacional, fecham a anlise desse captulo.

    7 A partir da Conferncia de Bandung, na sia, em 1955, a luta de libertao na frica em geral passou a ser

    inscrita como luta contra o imperialismo, tendo apoio dos pases asiticos e alguns pases europeus em torno de

    uma solidariedade contra o colonialismo.

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    O quinto e ltimo captulo - intitulado A Guin-Bissau no contexto das

    independncias africanas e o nascimento de um Estado africano: desafios e possibilidades -

    composto de trs itens. Nele me dedico a discorrer sobre a falncia do legado de Cabral na

    poltica contempornea bissau-guineense. Me debrucei sobre os desafios da construo do

    Estado nacional ps-independncia e os dilemas que nortearam o nacionalismo bissau-

    guineense.

    Vale salientar que o projeto de Cabral de unidade resultante de trs eixos: a

    etnicidade como forma de se engendrar a conscincia nacional entre os combatentes da

    liberdade da ptria na Guin-Bissau; a unidade Guin-Bissau e Cabo Verde, inspirada nos

    laos histricos que ligam estes dois pases; e por fim a unidade entre os movimentos pela

    independncia nas colnias portuguesas do Movimento Anticolonialista (MAC), FRAIN e

    CONCP, com vistas concretizao da ideologia nacionalista proposta pela unidade africana.

    Os eixos cultura e unidade articulam-se fortemente com a questo do nacionalismo

    no projeto de Cabral. atravs da cultura que o movimento de libertao vai procurar o seu

    fundamento para a modelao da identidade nacional. Cabral atribuiu uma nova dimenso

    cultura no processo de luta de libertao nacional de modo a revolucionar as relaes sociais

    pautando-se na insubmisso aos preceitos coloniais.

    Merecem destaque neste captulo o perodo ps-independncia, marcado pela

    ausncia de sinais de desenvolvimento e as contradies ideolgicas do PAIGC que

    culminaro com o Movimento Reajustador de 1980, liderado por Joo Bernardo Vieira (Nino)

    e as sucessivas tenses de cunho tnico no interior do PAIGC, seguidas dos tensionamentos

    da primeira abertura multipartidria de 1994, geradora da II Repblica bissau-guineense; o

    referencial da mudana democrtica de 1994 como um marco na (re)construo e afirmao

    da pertena tnica identitria e, provavelmente, no nascimento do novo Estado; a

    reformatao da unidade tnica como o novo iderio da soberania nacional.

    Esta pesquisa foi desenvolvida em duas fases interdependentes. Na primeira fase foi

    realizado um trabalho de pesquisa documental e bibliogrfica em Portugal, com o intuito de

    compreender a gnese do Estado nacional na Guin-Bissau e sua conexo com diversidades

    tnicas, alm de se analisar o discurso cabralista acerca da unidade Guin-Bissau e Cabo

    Verde. A escolha por Portugal como rea de pesquisa resulta fundamentalmente da

    constatao de uma quantidade expressiva de produes sobre o perodo colonial na Guin-

    Bissau, alm de ser, nos ltimos tempos, um espao de vrias publicaes acerca da poltica

    contempornea dos pases africanos de lngua oficial portuguesa (PALOPs).

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    O contato com a Fundao Mrio Soares e o acesso aos arquivos sobre a luta de

    libertao na Guin-Bissau me possibilitaram um leque de conhecimentos sobre as questes

    que nortearam os bastidores do movimento de libertao. Tive acesso s trocas de

    correspondncias entre Amlcar Cabral e seus interlocutores nacionalistas africanos, em

    particular o seu homlogo angolano Mrio Pinto de Andrade, com quem ele dividia aflies e

    as estratgias para a organizao da luta e do combate ao colonialismo, sobretudo na criao

    das frentes unidas de libertao nacional.

    Os materiais sobre o processo de organizao e desenvolvimento da luta de

    libertao, a questo da unidade Guin-Bissau e Cabo Verde, o assassinato de Amlcar

    Cabral, a independncia, assim como a ruptura da unidade binacional, em 1980, com o golpe

    de Estado, denominado Movimento Reajustador de 14 de Novembro, trouxeram

    particularidades a essa pesquisa e deixaram evidentes as possveis dvidas de escassez de

    materiais, que at ento constitua a grande dificuldade para viabilizao desta tese.

    Ainda em Lisboa tive contatos com o Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da

    Empresa (ISCTE), onde encontrei uma enorme biblioteca de estudos africanos, e o apoio

    Adex da Silva que ajudou sobremaneira no prosseguimento dessa pesquisa. No Centro de

    Estudos Sociais (CES) em Coimbra, encontrei colegas que facilitaram o meu acesso

    biblioteca central, aos quais expresso o meu reconhecimento.

    As atividades de pesquisa na primeira fase permitiram catalogar as fontes

    bibliogrficas acerca do tema, bem como avaliar como o projeto de unidade tnica defendida

    e propostada por Cabral foi consolidado num determinado contexto histrico e os motivos que

    esto atrs do atual colapso do Estado nacional na contemporaneidade na Guin-Bissau.

    Uma vez que so escassas as fontes histricas e memorialistas referentes ao perodo

    colonial, escritas pelos intervenientes no processo, grande parte do trabalho para a

    compreenso deste passado passa pelas entrevistas. Entretanto, as entrevistas no so neutras,

    e natural que a histria se transforme no domnio de recriao e de manipulao. A memria

    torna-se, deste modo, um instrumento para se reivindicar a participao no movimento de

    independncia e, assim, apelar ao reconhecimento pblico e a todas as regalias que da

    possam advir (TOMS, 2010).

    Desta forma, a segunda parte da pesquisa foi desenvolvida em Bissau, como centro

    de referncia da temtica, e no s como espao ideal para interlocuo com os protagonistas

    da luta de libertao nacional, a fim de partilhar as suas memrias sobre os tempos da guerra

    colonial e da construo do Estado nacional. Concretamente, centrei as minhas entrevistas nos

    membros do PAIGC, partido que liderou a luta pela independncia e que, na poca, se

  • 26

    encontrava no exerccio do poder no pas. Tambm coletei algumas informaes no Jornal N

    Pintcha8, de 1980, sobretudo no que refere ruptura entre Guin-Bissau e Cabo Verde.

    importante ressaltar que desenvolver a pesquisa sobre Guin-Bissau em todos os

    seus aspectos constitui uma dificuldade para qualquer pesquisador(a), visto que na Guin-

    Bissau existe uma nica instituio que gerencia arquivos e mesmo assim em condies

    limitadas. Quando se trata do perodo da luta de libertao nacional, e anos posteriores a esse

    perodo, fica evidente a ausncia de catalogao dos arquivos. As referncias existentes

    acerca da questo podem ser encontradas de forma dispersa e isolada, na sua maioria nas

    minibibliotecas e arquivos pessoais dos militantes do PAIGC e dos ex-combatentes da

    liberdade da ptria.

    Outro aspecto que merece ser destacado nesse cenrio tenebroso da vida do(a)

    pesquisador(a) bissau-guineense diz respeito ao clima de medo em testemunhar sobre o

    processo que engendrou a nao forjada na luta, como tambm os bastidores que permearam o

    golpe de Estado de 1980 e a abertura poltica de 1994. Essa obstruo dos fatos histricos em

    parte se deve s incontveis instabilidades polticas geradas por golpes de Estado que

    assombram o pas. O silncio constitui um dos grandes empecilhos na compreenso dos fatos

    histricos e de algumas transformaes polticas e sociais na contemporaneidade. Devido a

    estes fatores, optei pela no identificao de alguns entrevistados no tocante abordagem de

    assuntos mais delicados, visto que a situao poltica do pas ainda continua imprpria.

    Para realizao das entrevistas tive que contar com uma articulao imprescindvel

    que estabelecia pontes com os meus entrevistados, o que foi indispensvel para o andamento

    das pesquisas. Nesse momento, no posso esquecer de registrar a grande contribuio de

    Odete Semedo, participante ativa do PAIGC, ex-Ministra da Educao e atual Reitora da

    Universidade Amlcar Cabral que, em alguns momentos, me acompanhou para o encontro

    com os entrevistados, tornando a minha caminhada menos difcil.

    Por se tratar de uma histria oral e tendo em conta os sujeitos que priorizei como

    referncias na pesquisa, os antigos combatentes da liberdade da ptria, na maioria analfabetos,

    no pude seguir o roteiro da entrevista como esperado. Desta forma, os depoimentos eram

    inicialmente histrias de vida destes sujeitos vinculados luta de libertao nacional, j que a

    maioria passou sua juventude na luta.

    8 Chamado No Pintcha, em portugus Avante, era um chamada para a guerra, para a marcha, para a comida,

    talvez, at, para o amor. Mais tarde foi atribudo como nome de um importante jornal criado pelo PAIGC para

    publicar os assuntos relacionados com o partido e o pas (CABRAL, 1984).

  • 27

    A dinmica do campo me obrigou a alterar algumas prioridades no tocante aos

    sujeitos primrios e secundrios. Alguns entrevistados que eram considerados inicialmente

    como sujeitos primrios passaram a ser considerados secundrios pelos contedos dos seus

    depoimentos que, por alguma razo, obstruam informaes principais e no colaboravam

    com a pesquisa. Contudo, os depoimentos no mudaram a minha hiptese inicial sobre a

    configurao tnica no Estado bissau-guineense delineado no campo poltico, como fator

    preponderante.

    oportuno frisar que abordar esta temtica extremamente difcil, visto que existem

    poucas obras acadmicas que referenciam os fatos polticos de forma objetiva, citando fatos

    acontecidos. Este dficit de informaes acadmicas referentes s questes polticas se deve

    onda de intimidao e tortura que acontece no pas, protagonizada pelos polticos, com o

    apoio dos militares e polcias.

    Por fim, ressalto que esta pesquisa pode contribuir para a compreenso poltica da

    frica contempornea e para debates que assumem um lugar relevante nas Cincias Sociais

    na atualidade, que o papel das identidades tnicas e das soberanias nacionais na

    conformao da democracia.

  • 28

    Captulo I - O processo fundante do Estado nao: nacionalismo como

    instrumento de libertao

    A luta da libertao , sobretudo tanto uma luta

    para a conservao e a sobrevivncia dos

    valores dos povos como para a harmonizao

    e o desenvolvimento destes valores

    no contexto nacional.

    (CABRAL, 1974, p. 61).

    1.1 Breve histrico sobre o processo de construo da nao

    Este captulo objetiva realizar uma breve anlise acerca das principais contribuies

    tericas sobre a concepo da nao e do processo da identidade nacional representados nos

    diferentes contextos sociais. Ao longo do texto, procurarei expor algumas premissas que

    possibilitam pensar o processo fundante da nao como comunidade de destino, tendo como

    referncia os movimentos de libertao em diversos pases africanos, que engendraram a

    construo de Estados nao.

    O pensamento de Amlcar Cabral e de outros nacionalistas africanos, inspirados nas

    reflexes das tradies ocidentais que concebem a nao como comunidade de destino

    partilhada atravs da unidade poltica, ser o fio condutor da anlise neste captulo.

    Nas ltimas dcadas, a anlise de nao enquanto construo terica vem ganhando

    uma maior visibilidade no campo das Cincias Sociais. As principais razes que contriburam

    para esse desenvolvimento so tanto de ordem poltica, quanto scio-histrica. Entretanto, a

    sua concepo difere nas vrias correntes de pensamentos defendidas por seus estudiosos.

    Do ponto de vista poltico, destacam-se as mudanas ocorridas na Europa dita

    Iluminista nos finais do sculo XVIII e durante o sculo XIX, que conduziram formao

    de Estados nacionais. O conceito de nao - expressando um cenrio em que certo sentido de

    comunidade (de lngua e cultura, por exemplo) identificvel que contribuiu para a formao

    de identidade nacional - se alastrou rapidamente entre os quatros cantos do mundo, gravitando

    em torno de uma verdade atemporal e inquestionada, analisada em contextos diferentes

    (RENAN, 1997). no sculo XVIII que nao foi conferida, respectivamente, uma

  • 29

    dimenso de homogeneidade histrica e cultural herdada (concentrada na ideia alem de

    Volksgeist) e uma dimenso de lao poltico livremente consentido (expressa pelo termo

    francs volont gnrale) (FIGUEIREDO, 2012, p. 39).

    Importante salientar que, no que tange ao conceito de nao, suas formas de

    construo so sui generis, dependendo da insero social e cultural dos indivduos numa

    determinada realidade culturalmente construda. Por outro lado, o ponto de vista poltico

    desse perodo do sculo XVIII apresenta um liame com as transformaes ocorridas no

    cenrio social e poltico mundial pautado numa condio de vida na qual a nao era tida

    como algo necessrio para potencializar a soberania.

    Esse perodo do sculo XVIII nos traz desafios para a compreenso do que veio a ser

    nao na contemporaneidade, no tocante s novas reflexes sobre o papel do Estado

    redesenhado no processo de colonizao e produzidas no perodo ps-independncia em

    vrios pases africanos, que reconfiguraram a concepo da nao, propondo novos ditames

    na sua configurao.

    A partir do sculo XIX, vai surgir uma reformulao conceitual centrada na

    compreenso do nacionalismo e das pretenses nacionalistas. O nacionalismo que emergiu no

    sculo XIX na Europa estava descrito em quatro eixos chave: povo-estado-nao-governo.

    Estes eixos eram claramente moldados pelos fins polticos. Segundo Hobsbawm (2002 p.

    113),

    Os movimentos nacionalistas neste perodo tornaram-se movimentos de

    massa (). Entretanto, como j vimos, uma grande parte do povo comum, como os camponeses, ainda no havia sido atingida pelo nacionalismo,

    mesmo em pases onde sua participao em poltica era levada a srio,

    enquanto outras, principalmente as novas classes trabalhadoras, eram

    praticamente requisitadas para seguir movimentos que, pelo menos em

    teoria, punha um interesse de classe internacional acima de filiaes

    nacionais.

    Do ponto de vista scio-histrico, concretamente na primeira metade do sculo XX,

    a abordagem do nacionalismo estava atrelada a uma comunho de destino, a um territrio e

    cultura comum, a uma unidade com forte nfase nos conceitos de liberdade, integridade,

    cidadania. tambm nesse perodo que vrios pases africanos se organizaram para a

    emancipao poltica.

    a partir deste perodo que o conceito do nacionalismo foi associado noo da

    cultura, estabelecendo laos entre aqueles considerados como tendo, em comum, uma

  • 30

    etnicidade, uma linguagem, uma cultura e passado histrico (Hobsbawm, 1990, p. 204),

    constituindo assim o fator principal para engendrar a nao em alguns pases africanos.

    Como indaga Ernest Renan (1990): mas o que uma nao?. Para introduzir tal

    discusso, os autores que fundamentam esse trabalho traam uma reflexo a partir de

    perspectivas diversas, estabelecendo assim os mecanismos que desenham antigas e novas

    configuraes do que conhecemos como nao.

    Definir precisamente o conceito de nao parece-nos tarefa difcil frente ao

    emaranhado de definies peculiares que povoam a literatura sobre o tema, levando em conta

    as agitaes e inconstncias que as naes vm enfrentando na atualidade, comparadas com

    a fora e a estabilidade dos sentimentos de identidade nacional reivindicados anteriormente

    pelos nacionalistas (HOBSBAWM, 1990, p. 211). Ainda assim, possvel delinear alguns

    aspectos que ajudam a compreender tanto a nao quanto os elementos que a compem na

    contemporaneidade.

    Alguns autores definem a nao com foco no pertencimento, outros enfatizam uma

    relao com a gnese do Estado colonial. Por esta via, a ideia de nao traz no seu bojo, de

    um lado, o carter de um construto baseado no reconhecimento, constitudo pelas narrativas

    de lealdade, e, de outro lado, o aspecto histrico, uma ligao atravs de eventos simbolizados

    na conquista dos ideais comuns, como a independncia no caso das metrpoles.

    Por fim, discute-se como este campo do conhecimento pode ser um instrumento

    valioso para problematizar a complexidade da relao entre Estado e nao, observando a

    questo de que o conceito de nao uma construo especfica e que sua formatao

    depende dos contextos histricos, culturais, sociais e econmicos de cada sociedade,

    impactados diretamente na experincia poltica. Cabe assinalar que em muitas experincias

    histricas deparamo-nos com a existncia do Estado sem nao, ou vice-versa.

    Tal contexto nos impele a questionar, como prope Bauer (2000): ser a conscincia

    de uma insero comum num grupo que compe a nao? A partir desta questo

    descreveremos de uma forma reflexiva as diversas concepes de nao presentes nos

    trabalhos de alguns estudiosos.

    Por outro lado, tambm nos interessa analisar nesse mbito o que viria a ser nao e

    identidade nacional na concepo dos seguintes autores: Otto Bauer (2000), Ernest Renan

    (1997), Homi Bhabha (1998), Benetict Anderson (1989), Partha Catterjee (2000), Stuart Hall

    (2003), Anthony Smith (2000), Katherine Verdey (2000), Eric J. Hobsbawm (1990), Frantz

    Fanon (2005), Amlcar Cabral (1982) e outros nacionalistas africanos.

  • 31

    Dos estudos em questo, depreende-se que a concepo de nao oscila entre duas

    grandes vertentes. A primeira definio fornece uma narrativa da nao como comunidade

    imaginada, defendida por autores como Benedict Anderson (1989), Anthony Shmith (2000),

    Stuart Hall (2005), Katherine Verdey (2000), Max Weber (1999), entre outros. Smith (2000),

    Weber (1999) e Anderson (1989) compartilham da concepo da nao como uma categoria

    imaginada e equiparada ao sentimento nacional, em que a nao a comunidade que tende a

    produzir seu prprio Estado. Para Benedict Anderson, a nacionalidade ou nacionalismo so

    artefatos culturais de um tipo peculiar.

    Portanto, para compreender tal conceito - nao - necessrio observar como se

    tornaram entidades histricas, e de que modo seus significados se alteraram com o decorrer

    do tempo e porque hoje inspiram uma legitimidade emocional to profunda, que tambm ,

    como quer Schwarcz (2008, p. 2), pautada pela ideia de que preciso fazer do novo, antigo,

    bem como encontrar naturalidade num passado que, na maioria das vezes, alm de recente

    no passa de uma seleo com frequncia consciente.

    Para Anderson (1989), a nao uma comunidade poltica imaginada implicitamente

    limitada e soberana. Ela imaginada porque nenhum dos seus membros conhecero a maioria

    dos seus compatriotas, embora esteja viva a imagem de comunho. Apesar das desigualdades

    e explorao, a relao entre as pessoas na nao concebida como um companheirismo

    profundo. Limitada, porque possui fronteiras finitas, ainda que elsticas, e nenhuma nao

    coextensiva com a humanidade.

    Anderson traz uma concepo de nao pautada por uma linha de continuidade

    histrica, mediada entre a lembrana e o esquecimento. Lembrana das contribuies

    histricas, e esquecimento de diferenas identitrias anteriores dos povos em conflito.

    Para este autor, a nao um conceito transitrio em constante transformao, isto ,

    transformao dos interesses ancestrais substitudos pelos interesses comuns da nova nao.

    Mais que inventadas, as naes so imaginadas, no sentido de que fazem sentido para a alma

    e constituem objetos de desejos e projees. (ANDERSON, 1989, p. 20).

    Para Anthony Shmith (2000, p. 199), por exemplo, as naes so criadas na

    imaginao histrica e sociolgica, atravs da identificao com os heris comunitrios, pois

    uma nao seria a mediao entre o passado histrico e um presente ancorado no anseio das

    conquistas de soberania estabelecido pela rede de solidariedade criada pelo sentimento dos

    resultados dos sacrifcios dessa conquista.

    Segundo este autor, a nao tambm um instrumento de legitimao e mobilizao

    atravs do qual os lderes despertam o apoio das massas para a sua luta competitiva pelo

  • 32

    poder. J para Weber (1999), a nao tende a incluir a ideia da origem comum e de uma

    semelhana no modo de ser. Para ele, a nao um sentimento da comunidade tnica

    alimentado por fontes diversas.

    Tanto Smith quanto Anderson propem que a nao um construto da imaginao,

    uma comunidade que se imagina soberana e delimitada. Por outro lado, a nao seria tambm,

    na concepo de Katherine Verdey (2000), uma comunidade simblica poltica e ideolgica,

    circunscrita numa interao social dos seus membros. Entretanto, a nao na concepo da

    autora um construto ideolgico que une seus membros distinguindo-os dos de outras naes,

    pelo sentimento de pertencer mesma histria, ou seja, pela questo de compartilhar os

    mesmos smbolos nacionais.

    Katharine Verdey (2000) ainda assinala que a nao tornou-se um smbolo potente

    de classificao internacional de Estados nacionais. Pois, alm de ser um construto ideolgico

    preponderante para conferir ordens nos espaos geopolticos, a nao uma alegoria que

    traduz a legitimidade a inmeras representaes polticas no campo de contestao de poder.

    Vale ressaltar que a questo simblica de uma nao est intimamente ligada aos

    aspectos de uma herana histrica comum, baseada na luta e conquista de signos que

    expressam o mrito de um Estado soberano e independente. Portanto, estes signos esto

    imbricados na conscincia nacional destes membros da nao, e legitimados como

    identidade social que une os componentes desta nao atravs do pertencimento a uma

    comunidade com sentimento de partilha.

    Esta reflexo nos remete s formulaes de Stuart Hall, que define a nao no

    apenas como uma entidade poltica, mas como algo que produz sentido, isto , um sistema de

    representaes culturais reconhecidas pelos seus membros. Ao fazerem parte deste sistema de

    representao cultural, os membros da nao compartilham, atravs da cultura, uma cultura

    nacional que explica o poder da nao e gera um sentimento de identidade e lealdade

    (HALL, 2005, p. 49).

    Para Hall (2005, p. 50), uma cultura nacional um discurso, ou seja, um modo de

    construir sentidos que influencia e organiza nossas aes e as concepes que temos de ns

    mesmos, para que possamos nos identificar e construir identidades. Ainda sobre os discursos

    fundacionais, Stuart Hall argumenta que muitas naes fornecem narrativas baseadas no mito

    ou estria que localiza a origem da nao, do povo e do carter nacional num passado

    distante, no de tempo real, mas de um tempo mtico (HALL, 2005, p. 55).

    A segunda vertente, defendida por autores como Otto Bauer (2000), Amlcar Cabral

    (1982), Frantz Fanon (2005), Homi Bhabha (1998), Ernest Renan (1997), Eric J. Hobsbawm

  • 33

    (1990), dentre outros, de uma nao concebida como comunidade de destino baseada na

    experincia comum dos seus membros e de uma constante interao mtua, renovada atravs

    dos valores culturais das geraes anteriores.

    Segundo Otto Bauer (2000), a nao seria comunho de destino, que implicaria uma

    experincia comum de mesmo destino em uma interao mtua entre os membros. Para o

    autor, a questo principal que caracteriza a nao como comunidade de destino a herana

    natural, ou seja, a descendncia e a transmisso dos valores culturais atravs da lngua vista

    como um instrumento da comunidade humana. Para este autor:

    O fato de a nao no ser produto de mera semelhana de destino, mas brotar

    da comunho de destino e consistir nela, na constante interao dos que

    partilham esse destino, o que a distingue de todas as outras comunhes de

    carter. Assim a nao pode ser definida como uma comunho de carter que

    brota de uma comunho de destino, e no de uma mera semelhana de

    destino (p. 57-58).

    Nesta mesma linha, Amlcar Cabral chama a ateno para a concepo da nao

    como resultado da reao de um grupo de homens e mulheres face ao meio social e aos

    problemas existentes, e da sua ao conjunta para enfrentar esses problemas, na medida em

    que tenham uma aspirao comum, nesse caso a conquista da independncia e a soberania

    nacional.

    O conceito de nao idealizada por Amlcar Cabral foi determinante na engenharia

    social do povo bissau-guineense, ao pretender uniformizar os interesses tnicos em interesses

    coletivos, gravitando numa nova identidade unificada, que transmite aos sujeitos o significado

    homogneo de representao de seus interesses atravs de discurso de construo da nao.

    Outrossim, a concepo da nao em Amlcar Cabral estava associada questo da

    libertao, do nascimento do homem novo, de uma nova cultura nacional, uma conscincia

    de pertencer a uma comunidade ligada a um territrio, para a sua afirmao na luta de

    libertao. Nesse sentido, afirma Cabral (1974, p. 114) que:

    atravs da luta que estamos forjando a nossa Nao Africana, que como

    sabem no estava bem definida, com todos os problemas de grupos tnicos,

    com todas as divises criadas pelo prprio colonialista, por exemplo,

    indgenas e assimilados, gente dos campos, etc., etc. Estamos forjando a

    nossa Nao Africana que cada dia mais consciente de si mesma.

  • 34

    O que enfatizado na concepo de Amlcar Cabral a nao como herana do

    passado (continuidade histrica), baseada na narrativa de uma forte e unificada identidade

    continental. No obstante, no existe continuidade sem ajustes de valores culturais, de normas

    polticas, etc. Desta forma, toda a continuidade requer um processo de ajustes do novo

    contexto e das novas normas especficas de cada sociedade.

    Em linhas gerais, a nao no seria uma concepo simblica, baseada no discurso

    da fundao eminentemente com retorno ao passado, mas sim de um passado conjugado com

    o presente recheado de diferenas tnico-culturais dos seus membros.

    Seguindo a mesma abordagem terica da nao como estratgia do enfrentamento,

    destacamos o nacionalista martiniquense Frantz Fanon, para quem a nao nasce da ao

    organizada do povo, que encarna as aspiraes reais do povo, e essa nao influi

    fundamentalmente na cultura. Ainda para Frantz Fanon (2005, p. 279), a cultura primeira

    expresso de uma nao, de suas preferncias, de seus interditos, de seus modelos. Ele

    adverte:

    A nao no apenas condio da cultura, da sua efervescncia, da sua

    renovao contnua, do seu aprofundamento. Ela tambm uma exigncia.

    primeiro o combate pela existncia nacional que desbloqueia a cultura, abre-

    lhe as portas da criao (FANON, 2005, p. 280).

    A centralizao da concepo da nao pelos nacionalistas africanos atravs da via

    da cultura deve-se ao fato da administrao colonial centrada na poltica de assimilao

    cultural europeia tentar eliminar todas as possibilidades que vislumbre uma demonstrao

    cultural autnoma dos colonizados. A alienao colonial propunha a recusa das tradies

    culturais e das subjetividades identitrias.

    Nesse sentido, a proposta da construo de uma unidade nacional preconizada tanto

    por Cabral quanto por Fanon e outros nacionalistas a de que os africanos teriam que passar

    necessariamente pelo processo de desalienao a que foram submetidos, com vistas

    valorizao cultural, como condio fundamental para a conscincia poltica e reabilitao das

    suas identidades.

    A conscincia nacional constitua - no entendimento de Cabral, de Fanon, bem como

    de outros nacionalistas africanos - fator determinante para a luta de libertao nacional, que

    vai engendrar a construo da nao africana livre de dominao e submisso cultural;

    atravs da cultura que o colonizado conquistar a sua liberdade.

  • 35

    Assim, tanto Cabral quanto Fanon viam na construo da nao o fator

    revolucionrio de mudana cultural, da desalienao dos povos africanos na tomada de

    conscincia, que visava libertao do continente, forjando um sujeito humano novo livre do

    fardo da raa. Pois, para Fanon (2005, p. 283), a libertao nacional que torna a nao

    presente no palco da histria.

    Por sua vez, Homi Bhabha percebe que a nao no mais o signo de modernidade

    sob o qual diferenas culturais so homogeneizadas, pois a nao revela em sua

    representao ambivalente uma etnografia de sua prpria afirmao de ser a norma da

    contemporaneidade social (BHABHA, 1998, p.212). A conjuntura liminar de uma

    modernidade cultural colocou a nao como explicao central para a composio de uma

    srie cultural que se queria mimese da sociedade. (BHABHA, 2005, p. 200). Bhabha ainda

    chama a ateno para o sentido ambguo da nao, por um lado o conforto de se pertencer a

    uma sociedade, os costumes, o gosto, e por outro as injustias ocultas da classe e o senso

    comum da injustia. (p. 52).

    O contexto etnogrfico proposto por Bhabha - no tocante ambiguidade em perceber

    a nao enquanto construto - facilita compreender a configurao das naes africanas, que

    tonifica a unidade sobre as diversidades tnicas num determinado contexto histrico, mantida

    sob o discurso de lealdade e solidariedade, que posteriormente veio a projetar-se na

    exasperao do poder e no depauperamento dos membros fundadores desta narrativa

    discursiva, compartilhada pelos smbolos de conquistas das independncias.

    Nestas condies, o discurso nacional tende a se esgotar mediante as prticas de

    poder que lhe so agregadas prticas estas conflitantes entre si e que disputam a

    apropriao do smbolo da nao, o que torna a nao seno a encruzilhada ou o conjunto

    movedio dos discursos concernentes identidade nacional (MICHEL & DEBRUN, 1990).

    Para Ernest Renan (apud FOREST, 1970), a nao um princpio espiritual, que

    resulta das profundas complicaes da histria, constituda por um legado comum de

    lembranas, da vontade de fazer valer esta lembrana, isto , na vontade de permanecer

    juntos. Portanto, para ele:

    O que distingue as naes no nem raa, nem a lngua. Os homens sentem

    no corao que so um mesmo povo quando tm uma comunho de ideias,

    de interesses, afetos, lembranas e esperanas. Eis do que feita da ptria.

    Eis por que os homens querem caminhar juntos, trabalhar juntos, combater

    juntos, viver e morrer uns para os outros. A ptria o que amamos. (RENAN

    apud FOREST, 1970).

  • 36

    Neste contexto, o sofrimento destacado pelo autor como marca preponderante nas

    recordaes nacionais, pois uma nao o esprito de solidariedade baseado nas lembranas

    do passado sofrido, que estimula o desejo de estar juntos. Assim, para Renan, O sofrimento

    em comum une mais que a alegria, isto , os lutos valem mais do que os triunfos. (p. 40). Ele

    afirma:

    Uma nao uma grande solidariedade, criada pelo sentimento dos

    sacrifcios que foram feitos e daqueles que se est disposto a fazer no futuro.

    Ela pressupe um passado, mas resume-se no presente num fato tangvel, no

    consentimento, no desejo claramente expresso de continuar a viver em

    comum. A existncia de uma nao um plebiscito realizado em cada dia,

    assim como a existncia do individuo uma perpetua afirmao da vida.

    (2000, p. 188).

    Articulando o esforo terico de Anthony Smith (2000) assertiva de Ernest Renan

    (apud SMITH, 2000), possvel verificar um investimento poltico num discurso baseado no

    passado histrico comum que nos remete compreenso da configurao das naes

    modernas. A nao uma grande solidariedade ligada pelos sentimentos de sacrifcios. Isto ,

    pressupe um passado baseado na vontade expressiva de viver em comunidade que promove

    a partilha de signos e de smbolos identitrios que d sentido existncia da nao.

    Por sua vez, Eric J. Hobsbawm (1990, p. 28) define a nao como a comunidade de

    cidados de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo e tendo uma comunho de

    interesses, a coletividade de habitantes de um territrio com tradies, aspiraes e interesses

    comuns subordinados a um poder central que se encarregue de manter a unidade do grupo.

    De modo geral, as concepes de nao residem nas formas como so pensadas ou

    imaginadas, pois muitas naes africanas, por exemplo, foram pensadas de forma diferente de

    algumas naes ocidentais, devido ao contexto histrico em que surgiram.9 Por exemplo, na

    Guin-Bissau, como em outras colnias portuguesas, a nao foi forjada na luta de libertao.

    Neste sentido, o Estado nao na concepo ocidental tem uma funo homogeneizadora e

    unificadora, porm este modelo de Estado ope-se organizao, s normas, s instituies e

    aos valores das sociedades africanas pr-coloniais que so majoritariamente plurinacionais

    (VAN DNEM, 1997, p. 32).

    Deste modo, no continente africano, a concepo baseada numa nao englobando

    vrias comunidades tnicas diferentes, o que deve relativizar a concepo recorrente da nao

    como a comunidade homognea, ou seja, unificada. Em outras palavras, o processo de

    9Faz-se necessrio esclarecer que a emergncia do Estado nao em alguns pases da Europa, como Frana,

    Itlia, Alemanha etc., se d num quadro de multiplicidade tnica, que em alguns casos culminou com a

    integrao na etnia dominante.

  • 37

    formao da identidade nacional em frica caracterizada pela permanncia da etnicidade.

    Como refora Hobsbawm (1990, p. 191),

    [...] enquanto esses movimentos de libertao nacional no terceiro mundo

    foram teoricamente modelados no nacionalismo do ocidente, na prtica, os

    estados que geralmente intentaram construir foram o oposto das entidades

    lingusticas e etnicamente homogneas que vieram a ser encaradas como

    forma padro do estado-nao no ocidente.

    Outro aspecto relevante a ser considerado na anlise da nao e na construo da

    identidade nacional que a percepo simblica na construo da identidade nacional no

    universal; ela muda de acordo com as especificidades de cada sociedade. Assim sendo, ao

    mesmo tempo em que a nao se configura no discurso homogeneizador, tambm

    diferenciador representado atravs de ideologias nacionais. A nao produz e reproduz ideias,

    construtos e lutas polticas.

    Cabe assinalar que a relao entre poder poltico e democracia na Guin-Bissau

    trouxe consigo uma srie de desafios para o Estado nao, no tocante s formas de conciliar

    interesses coletivos (nao) e grupais (partidos polticos), pois os interesses individuais tm

    moldado a configurao da nao bissau-guineense atravs da disputa pelo poder poltico.

    Analisar a dinmica de formao do Estado nao na Guin-Bissau requer a

    compreenso do processo complexo de transformao poltica, social, cultural e econmica

    que impactou durante dcadas o pas, tendo por marco os anos de 1959 a 1994. Entretanto,

    para melhor entender essa complexa trajetria, seria interessante atentar para as caractersticas

    histricas que impulsionaram o processo desta formao. Estas abordagens sero analisadas

    com mais pertinncia nos prximos captulos.

    A centralizao da minha anlise na concepo de nao em frica incidir sobre

    Amlcar Cabral e no em outros nacionalistas africanos deve-se ao fato de se tratar de um

    lder nacionalista bissau-guineense e um dos principais protagonistas na idealizao da nao

    bissau-guineense.

    Um segundo fator a ser considerado a proximidade ideolgica e da organizao

    estrutural do movimento de libertao na Guin-Bissau e das outras organizaes das colnias

    portuguesas. Alm de constiturem uma nica frente para contestar a presena colonial em

    frica, estes nacionalistas comungavam dos mesmos ideais. Assim, Cabral passou a ser uma

    espcie de portavoz e representante principal dos anseios das colnias portuguesas em frica.

    nesse ensejo que se justifica a sua escolha em meio aos tericos das tradies ocidentais.

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    Em linhas gerais, as duas abordagens acerca da concepo de nao - tanto

    comunidade imaginada quanto comunidade de destino - so imprescindveis para a

    compreenso das transformaes as quais as naes vm enfrentando. Todavia para os

    propsitos desta pesquisa a nossa anlise recai sobre a segunda vertente de nao - o da

    comunidade de destino - sendo o conceito que mais se aproxima do discurso dos nacionalistas

    africanos, da nao como construo coletiva de destino, que visa elevao da conscincia

    nacional com fins unidade poltica.

    1.2 A gnese do nacionalismo africano

    A afirmao de Anthony D. Smith de que a base legal do nacionalismo para a sia,

    a frica e Amrica Latina uma autorreproduo do modelo ocidental de nao, adaptado

    pelas elites e, sobretudo, intelectuais destes espaos geopolticos um ponto de partida para

    a anlise de concepo de nao nos pases africanos de lngua oficial portuguesa, que teve

    sua inspirao nesse modelo ocidental, e, contudo, atentou para suas especificidades que

    gravitam entre a concepo de nao e de cultura.

    Por isso Mrio de Andrade (1997, p. 13) confirma essa caracterstica do

    nacionalismo, defendido por Smith, no obstante assinalar a singularidade africana no

    entendimento desta anlise e da particular