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    Os Combates da Memria:

    escravido e liberdade nos

    arquivos orais de descendentesde escravos brasi leiros

    Hebe Maria Mattos*

    Adair Gonalves Barbosa nasceu em 1912. Diz-se bisneto de escravos "porparte de pai e por parte de me". Seus avs no foram escravos, pois - segundo ele -"dessa poca pr c parece que j o sistema de vida era otro pro filho dos

    escravos...". Segundo seu depoimento, colhido e publicado por Agostinho DellaVechia, nasceu em Canguu, Rio Grande do Sul, "na casa do seu pai e da sua me",no terreno que "era da sua av". Tinham criao e culturas. Seu pai "pagou" paraque ele aprendesse a ler e escrever em casa. A professora particular foi uma "prima",chamada "Tia Elo". Saiu do stio dos pais aos 25 anos. Trabalhou por toda a vidacomo operrio dos Frigorficos Anglo. Em 1990, casado e aposentado, vivia em SaintHilaire, periferia de Pelotas, em uma pequena casa de sua propriedade.

    Ezequiel Inacio tinha 72 anos poca da entrevista concedida Ana MariaRios, em 1995. Nasceu na Fazenda Sossego, em Paraba do Sul, estado do Rio deJaneiro, onde - segundo seu depoimento - foi escravo o seu av, "por parte de pai",chamado Telemos Inacio (que falava uma lngua estranha sempre que no queria

    ser entendido). Tambm seu pai - "j nascido livre", teria morado na Fazenda doSossego, antes e depois do fim do cativeiro. Sua av paterna chamava-se "GlacinaTelemos Inacio". Ezequiel foi lavrador em Paraba do Sul por toda sua vida. Um deseus irmos, com 90 anos poca da entrevista, vivia como operrio aposentado daLight, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Segundo ainda o depoimento, SeuEzequiel mantinha contato tambm com os netos e bisnetos do primeiro casamento

    *Professora do Departamento de Histria da UFF.

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    do seu pai, realizado ainda no tempo do cativeiro, moradores na cidade do Rio deJaneiro.

    Jos Veloso Sobrinho nasceu em 1916 na cidade do Cunha - SP. Diz-se netode av escrava com av portugus, por parte de me e de pai. Segundo seudepoimento, sua av paterna era africana do Congo. Seu pai, filho de uma cativabrasileira com um jornalista portugus de nome Veloso, no teria chegado a serescravo, "tinha papel". Seu pai foi tropeiro e depois lavrador em terras prprias.Cresceu "tocando lavoura" com seus 10 irmos nas terras do seu pai. Tem o primeirograu completo. poca da entrevista concedida ao projeto Memria da escravidoem famlias negras de So Paulo(1988), ainda tocava lavoura com os filhos e eradono de uma pastelaria na cidade. Quatro dos seus 12 filhos cursaram faculdade eos outros terminaram pelo menos o primeiro grau.

    Paulo Vicente Machado nasceu em 1910, filho caula de Vicente Machado, ex-cativo na "Fazenda da Presa", em Alegre, no Esprito Santo. Cresceu "tocandolavoura" com seus pais e seus irmos, em regime de parceria, na mesma fazenda emque seu pai havia sido escravo. Sua me no chegou a ser cativa, pois - segundo seu

    depoimento a Robson Martins- nascera "de ventre livre". Seu pai se tornou,posteriormente, pequeno proprietrio de um stio de caf em Vala de Souza, tambmno Esprito Santo. Aps seu casamento com a filha de um sitiante vizinho, PauloVicente Machado se tornou operrio na Estrada de Ferro Leopoldina. Comooperrio da Leopoldina morou em vrias cidades de Minas Gerais, at - japosentado - fixar-se em So Gonalo , no Rio de Janeiro, onde vivia poca daentrevista.

    Estes so pequenos resumos dos depoimentos de quatro homens que se identificam comonegros e descendentes de escravos, que viveram (pelo menos) a infncia tocando lavoura com afamlia em antigas reas escravistas do centro-sul do Brasil. Seus depoimentos rememoram com

    nitidez pai e me, av e av, bem como traam com facilidade suas genealogias at o cativeiro.Tomados em conjunto, produzem determinadas representaes comuns sobre escravido e liberdade,histria e memria, que assumem estar referidas trajetria e tradio familiar.

    Estes mesmos depoimentos so, entretanto, fruto de experincias de pesquisa bastantediferenciadas em objetivos, embasamento terico e metodologia.

    Dois deles (Paulo Vicente e Izaquiel Incio) so resumos de entrevistas depositadas no acervo"Memria do Cativeiro" do Laboratrio de Histria Oral e Iconografia do Departamento de Histria daUniversidade Federal Fluminense (doravante LABHOI-UFF). Este acervo se constituiu propondo-se areceber e arquivar de forma apropriada entrevistas produzidas em projetos de Histria Oral comindivduos portadores de uma memria familiar da escravido. Para tanto, o LABHOI ofereceu apoiotcnico e orientao metodolgica aos pesquisadores, de forma a garantir condies para oarquivamento e socializao do material produzido.

    Este acervo se constitui atualmente da reproduo das fitas de dois projetos de pesquisa: otrabalho de Robson Lus Machado Martins, desenvolvido em uma comunidade rural do Estado doEsprito Santo (municpio de Alegre), formada por descendentes de antigos escravos da regio, e deAna Maria Lugo Rios (University of Minnesota - PHd), sobre a histria da experincia familiar dosdescendentes de libertos nas antigas reas cafeeiras do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, aps a

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    abolio. Ana trabalhou com um roteiro basicamente genealgico e Robson com uma entrevista livre,de tipo biogrfico, com nfase na infncia e na convivncia com pais e avs.

    Este acervo conta com cerca de 60 horas de gravao em 29 depoimentos. Entrevistados epesquisadores autorizaram o arquivamento do material no Laboratrio, bem como sua abertura aopblico em geral aps a concluso de suas respectivas teses. Ezequiel Incio e Paulo Vicente estoentre eles.

    Esta no uma experincia pioneira. Maria de Lourdes Janoti e Sueli Robles R. de Queirozcoordenaram projeto semelhante em So Paulo, em 1988, intitulado Memria da Escravido emfamlias negras de So Paulo. Transcries das entrevistas realizadas, analisadas em mais de umadissertao de mestrado, encontram-se arquivadas no Centro de Apoio Pesquisa em HistriaSrgio Buarque de Holanda (FFLCH-USP) , caixas 1 a 16. So ao todo 44 famlias entrevistadas.As entrevistas, via de regra, foram feitas com trs pessoas de diferentes geraes de cada uma dasfamlias. Retomando o acervo oral assim formado para com ele trabalhar, li e fichei as transcries dasentrevistas relativas primeira gerao das famlias entrevistadas, quando residentes poca dainfncia nas reas rurais do Estado de So Paulo, num total de 32 entrevistas. Entre elas, a entrevistade Jos Veloso Sobrinho, resumida acima.

    Tambm no Rio Grande do Sul, Agostinho Mario Dalla Vecchia produziu uma tese e doisvolumes de transcries de 32 depoimentos com descendentes de ex-escravos. Adair Gonalves

    Barbosa est entre eles.A partir de iniciativas como estas, talvez tardiamente constituem-se, no Brasil, acervospotencialmente capazes de basear uma abordagem histrica da insero social do liberto aps aabolio da escravido. Foi com este objetivo mais genrico que me propus a retomar e trabalhar os 93depoimentos de filhos de camponeses negros nascidos no Brasil nas primeiras dcadas deste sculo,que a releitura destes quatro acervos de entrevistas me permitiram reunir. A primeira questo queemergiu ao abord-los em conjunto forou-me, entretanto, a enveredar por outro tipo de investigao.Por que este tipo de trabalho s comeou a ser desenvolvido nos ltimos vinte anos? Como foi possvelque perdssemos a oportunidade de registrar para a posteridade a fala e a memria de milhares de ex-escravos brasileiros ainda vivos e lcidos durante toda a primeira metade deste sculo? No foi porfalta de historiadores, antroplogos ou folcloristas interessados no tema. Muito se produziu nestescampos sobre o negro no Brasil, especialmente desde a dcada de 30, mas pouco sobre os ltimos

    escravos e a experincia da escravido e da libertao. As mais expressivas publicaes deentrevistas com ex-escravos brasileiros se fizeram na dcada de 80, prximo de se completar umsculo da abolio da escravido.

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    Deste modo, a primeira questo que a leitura da transcrio daquelas entrevistas efetivamenteformulava relacionava-se s formas como, no Brasil, a histria da escravido e da abolio foramapropriadas como objetos de memria. De fato, desde a primeira leitura daqueles 93 depoimentostornou-se-me evidente que eles permitiam uma rara abordagem sobre a historicidade das disputassimblicas em torno das designaes raciais no Brasil e de suas relaes com os processos dedefinio de identidades sociais e com a memria do cativeiro. Assim se configurou a questo centralque buscarei desenvolver neste artigo.

    Na verdade, apesar de uma anteriormente propalada falta de fontes, sabemos hoje que soinmeras e ainda insuficientemente exploradas as fontes relativas escravido no Brasil, tendo em

    vista que o estatuto jurdico especfico que recaa sobre o escravos os transformava numa categoriaclassificatria necessria em quase quaisquer tipos de fontes primrias do perodo. Quando se trata doperodo ps-emancipao, entretanto, tem-se apenas (e mesmo assim precariamente) as designaesraciais como via de acesso aos ex-escravos, reforando a associao mais geral entre negritude eescravido. Ou seja, parte-se do princpio de que, como a imigrao africana para o Brasil se alicerou

    1Cf., especialmente, Mrio Jos Maestri Filho,Depoimentos de escravos brasileiros, So Paulo, cone, 1988.

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    basicamente na continuidade do trfico negreiro, o reconhecimento de uma identidade negra deveriaestar baseado em algum tipo de lao genealgico com a frica e/ou com a experincia da escravido.Pelo menos, foi tendo em vista esta premissa que os pesquisadores aqui considerados foram buscar,num campesinato negro nascido nas primeiras dcadas deste sculo, uma memria familiar daexperincia da escravido e da abolio. Ou seja, o fato da famlia identificar-se como negra deveriaimplicar tambm uma memria familiar da escravido.

    Apesar disto, em cerca de 30% dos casos esta memria familiar no existia. Em alguns casosisolados era explicitamente negada pela afirmao de que seus pais ou avs haviam sido senhores deescravos. Mesmo nos depoimentos do Esprito Santo e de alguns dos entrevistados por Ana Rios emcomunidades negras de Minas Gerais, que tm seu mito de origem na abolio da escravido, umamemria especfica da experincia do cativeiro, do ponto de vista da histria familiar nem sempreexistia. Em 34,3% das entrevistas gachas, 35,7% das entrevistas fluminenses/mineiras, 33,3% dasentrevistas do Esprito Santo e 18,7% das entrevistas rurais com a primeira gerao de entrevistadosde So Paulo no h qualquer referncia a uma memria familiar do cativeiro.

    Memria Familiar da Experincia do CativeiroTotal Sim No

    Alegre - E.S. 15 10 05 (33,3%)

    R.G.Sul 32 21 11 (34,3%)Vale do Paraba 14 09 05 (35,7%)

    So Paulo 32 26 06 (18,7%)

    Total 93 66 27 (29,03%)

    Isto no deveria causar surpresa. Pesquisa de Histria Oral desenvolvida em Itapu, na Bahia,j havia revelado este padro de maneira ainda mais incisiva. Em artigo pioneiro, a Prof

    a. Katia

    Mattoso colocou em relevo que as geraes mais velhas dos entrevistados tendiam a negar em seusdepoimentos qualquer ascendncia escrava em suas famlias (por diversas vezes afirmando teremseus antepassados sido senhores de escravos, o que em alguns casos foi empiricamente confirmado),ao mesmo tempo que buscaram, do ponto de vista genrico, uma vinculao com a ascendncia

    indgena, ao se definirem como caboclos. J as novas geraes, quando entrevistadas, freqentementese identificavam como negros e afro-baianos, buscando construir, do ponto de vista genrico, umvnculo de origem na tradio de resistncia e rebeldia escrava de Salvador.

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    J h algum tempo, a antropologia e a histria social tm posto em evidncia o sentido polticode toda noo de pertencimento tnico e de identidade social. Desta perspectiva terica, no sopoucos os trabalhos que tm apontado para a extrema politizao e plasticidade destas fronteiras noque se refere s designaes raciais no Brasil.

    3Para alm disto, uma memria genealgica curta,

    2Este argumento foi desenvolvido no artigo j citado de Katia Mattoso sobre a memria do cativeiro no Brasil. Apesquisa citada resul tou em tese de doutorado de Tania Penido Monteiro, defendida na Universidade deProvence Aix-Marseille I, em maro de 1993, sob a direo de Philippe Joutard (La voix dItapu: images du passet vision du changement. Ethnotextes dun rseau de culture populaire dans lEtat de Bahia, Brsil).3Cf, entre outros, Peter Fry, O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a poltica racial no Brasil. Revista USP,28 (dez-fev 1995/96); Yvonne Maggie. Aqueles a Quem foi Negada a Cor do Dia: As Categorias Cor e Raa naCultura Brasileira. in: Maio/Santos (orgs.). Raa, cincia e sociedade,Rio de Janeiro, Editora FIOCRUZ, 1996;Robin E. Sheriff. Negro um apelido que os brancos deram aos pretos: discursos sobre cor, raa e racismo nummorro carioca, IFCS/UFRJ, 1995 (mimeo); Hebe Maria Mattos de Castro,. Das cores do silncio: significados daliberdade no sudeste escravista. Brasil, sculo XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; Tania PenidoMonteiro, op.cit.

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    estrutura narrativa, estava tambm reconhecendo que, desde a escolha dos depoentes at o roteirodesenvolvido, a unidade dos depoimentos era fruto do projeto de pesquisa que gerou cada acervo a sertrabalhado. Por outro lado, considero que a entrevista, enquanto modelo narrativo, oferece elementospara se ir alm das intenes do pesquisador original e tentar trabalhar as tenses e confrontos queconformaram cada conjunto analisado. Isto no significa crer que as fontes orais, ou as chamadasfontes de memria de uma maneira geral, no possam fornecer importantes insights para a histria

    dos ltimos escravos aps a emancipao, ou mesmo para a experincia dos ltimos escravos antes daabolio. Ainda neste artigo teremos exemplos destes insights, sem falar dos trabalhos resultantes decada um dos projetos tomados separadamente. Significa, simplesmente, que qualquer abordagem daschamadas fontes de memria (entrevistas de histria de vida, autobiografias, etc.) que no leve emconta seu sentido eminentemente poltico (em sentido amplo) estar limitada em maior ou menor grau amodelos datados e parciais de apropriao do passado.

    Esta abordagem implicou determinados desafios metodolgicos e ticos. Como desenvolveruma abordagem estrutural sobre o conjunto das entrevistas sem perder de vista a riqueza desubjetividades que caracteriza os projetos de Histria Oral e, principalmente, as tenses entre osindivduos que a constituram? Como analisar estas tenses e, portanto, os biasde cada projeto, semme apropriar indevidamente do trabalho dos pesquisadores que construram cada um dos acervosanalisados?

    O primeiro passo metodolgico foi tentar definir em termos mais gerais as principaiscaractersticas - em termos de contedo analtico e padro narrativo - que informavam cada um dosconjuntos analisados. Eticamente, busquei no somente ler e citar o conjunto de trabalhos acadmicosj resultantes da anlise daqueles acervos, como explicitar o mais possvel o papel autoral que sereconhece aos pesquisadores em cada um dos projetos. Os familiarizados com as discussesespecficas Histria Oral sabem das muitas polmicas que circundam a questo dos direitos autorais.De qualquer modo, apesar da prtica comum de cesso de direitos, a autoria nestes projetos reconhecida aos entrevistados. Mesmo sendo assim do ponto de vista legal, considero que, do ponto devista real, apenas a autoria conjunta d conta do entendimento do documento produzido por este tipo detrabalho.

    Neste sentido, trabalhei com quatro modelos de entrevistas que determinaram fortemente ostipo de informao e de narrativa deles resultantes.

    As entrevistas de Ana Maria Rios com camponeses negros de antigas reas cafeeiras do Riode Janeiro e de Minas Gerais seguem, j o disse, um roteiro basicamente genealgico. Deste modo, amemria do cativeiro s aparece nestes depoimentos quando referida diretamente histria familiar. Aestrutura da narrativa descontnua, entrecortada por intervenes da entrevistadora (sempre nosentido de precisar as relaes de parentesco e as relaes de trabalho de cada um dos membros dafamlia) e tem nas relaes de parentesco seu fio condutor. As intervenes da entrevistadora porvezes interrompem determinados fluxos narrativos, mas muito raramente sugerem, induzem ouinfluenciam diretamente os entrevistados.

    Dez mulheres e quatro homens foram entrevistados e tiveram seus depoimentos transcritos edepositados no LABHOI-UFF. Trata-se, portanto, de um acervo onde predomina a presena feminina.As mulheres, segundo a pesquisadora, eram quase sempre as portadoras da memria genealgica dafamlia. Mulheres ou homens, cada um dos entrevistados, devido ao tipo de roteiro adotado, fornecia

    informaes sobre dezenas de outros familiares, ascendentes, colaterais e descendentes. O contatocom eles derivou de serem identificados pela pesquisadora como camponeses negros nas antigas reascafeeiras do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, onde se concentrava a maioria dos escravos nasdcadas que precederam a abolio definitiva do cativeiro.

    No caso do Esprito Santo, sete mulheres e oito homens tiveram suas entrevistas depositadasno LABHOI. O roteiro desenvolvido por Robson Martins pressupunha uma menor interveno do

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    entrevistador, tematicamente concentrado na memria do cativeiro e na experincia de infncia dosentrevistados nos anos que se seguiram abolio da escravido.

    O projeto paulista, desenvolvido pela Universidade de So Paulo poca do centenrio daabolio da escravido, apresenta um escopo bem mais amplo do que aquele que pode ser alcanadopor pesquisadores individuais. Trabalho de equipe coordenado por Maria de Lourdes Janoti, asentrevistas com as 44 famlias negras contatadas renderam mais de 4000 pginas de transcrio.

    Nas 32 entrevistas selecionadas para esta pesquisa predominam os depoentes do sexomasculino (19). Os roteiros eram bastante abertos. Pedia-se simplesmente ao depoente para narrar suahistria de vida, bem como para reproduzir as narrativas sobre o perodo escravista que porventurativesse ouvido de sua famlia. Alm desta orientao mais geral, o depoente era instado a dar suaopinio sobre as comemoraes dos 100 anos da abolio, bem como a se manifestar em relao questo do preconceito e da discriminao racial. Alguns dos aspectos mais relevantes do ponto devista da possibilidades de anlise destas narrativas para uma histria cultural foram desenvolvidos nostrabalhos acadmicos e publicaes resultantes do projeto.

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    Para trabalhar com as 32 entrevistas de descendente de escravos editadas por Dalla Vechiafoi imperioso ter em mente que as mesmas foram realizadas com o firme propsito de constituir umamemria da violncia do cativeiro no Meridio Gacho. "O que seus pais e avs contavam de comoeram tratados os escravos nos tempos da escravido?": eis a pergunta que resumia o eixo a partir do

    qual se definia a interveno do entrevistador - bastante incisiva em todas as entrevistas publicadas.Tentei uma nova operao do ponto de vista metodolgico sobre estes diferentes conjuntos deentrevistas, reunindo as 66 entrevistas com portadores de uma memria familiar do cativeiro, noconjunto considerado. Isto significa que eu busquei trabalhar apenas com aqueles que se identificavamdiretamente como descendentes de um(a) ex-escravo(a). Parti do princpio de que as semelhanasnarrativas porventura encontradas, em entrevistas produzidas no contexto de projetos de histria oralto diferenciados, assumiriam necessariamente especial relevncia do ponto de vista histrico e social.Ouso explorar aqui, ainda bastante preliminarmente, estas coincidncias narrativas em relao aossignificados atribudos escravido e liberdade nos depoimentos assim reunidos.

    De forma geral, diferentes significados da escravido aparecem nos depoimentos arrolados,referidos abordagem do entrevistador, histria de vida do entrevistado ou ao contexto especfico decada entrevista. Para responder s perguntas dos entrevistadores, os entrevistados freqentemente

    recorreram a contos populares ou ao que uma vez aprenderam nos livros didticos, na igreja ou nossindicatos, bem como s informaes veiculadas sobre o tema pelo cinema e pela televiso. Nesteprocesso surgem cafezais no Rio Grande do Sul como os da novela da Globo exibida poca dasentrevistas gachas, o seriado americano Razes (Roots) torna-se referncia recorrente das respostasdo informante em uma das entrevistas paulistas, um ativista do movimento negro faz sua genealogiafamiliar remontar frica, mas no escravido. Se as entrevistas de Ana Lugo partem de umroteiro genealgico, tomando as relaes familiares como ponto de partida, as de Dalla Vechia tm nanegao da existncia de relaes familiares entre os escravos um de seus objetivos, o que obviamenteincidiu sobre as representaes referentes a famlia e escravido encontradas em cada um dosconjuntos.

    Alguns padres de referncia escravido so, apesar disto, incrivelmente similares nosdiversos conjuntos de entrevistas analisados. Em todos eles, os entrevistados raramente se utilizam

    espontaneamente da palavra escravo ou escravido, dando preferncia aos termos cativo e

    6Cf, entre outros, Claudia Regina Callari. Identidade e Cultura Popular: histrias de vida de famlias negras,Dissertao de mestrado em Histria, Universidade de So Paulo, 1993; Maria de Lourdes Janotti e Zita de PaulaRosa, Memory of Slavery in Black Families of So Paulo, Brazil, in: Daniel Bertaux e Paul Thompson (orgs.),

    Between generations. Family models, myths, and memories, Oxford University Press, 1993.

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    cativeiro. Em todos os conjuntos tambm, os depoentes utilizam a noo de tempo do cativeirocomo referncia mais geral de periodizao.

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    Mrio Maestri j se referira a esta especificidade ao comentar os depoimentos de ex-escravospor ele publicados em 1988, classificando-a com um vocabulrio arcaico. Segundo Maestri, osdepoimentos sugerem-nos que, se para a historiografia brasileira aboliu-se a escravido, para osescravizados, ao contrrio, gritou-se a libertao dos cativos.

    8Este mesmo vocabulrio reaparece,

    impondo-se aos pesquisadores, nas entrevistas selecionadas em todos os conjuntos pesquisados. Damesma forma, como tambm registrado por Maestri em relao aos depoimentos dos ex-escravosMariano Pereira dos Santos e Maria Chatinha, a abolio aparece nas 66 entrevistas assim recortadascomo um divisor de guas, verdadeiro recurso de periodizao, um marco entre dois tempos: o docativeiro e o da liberdade.

    inescapvel a sensao de que se est diante de um vocabulrio arcaico, no caso dasentrevistas aqui analisadas, ouvido dos pais ou dos avs que haviam sido escravos. No entanto, aspalavras escravo e escravido no eram inexistente ou pouco usadas em finais do sculo passado. Hde se refletir, portanto, sobre a razo desta utilizao preferencial dos termos cativo e cativeiropelos ltimos escravos brasileiros. Juridicamente, cativo e escravo no eram sinnimos, noImprio portugus ou na monarquia brasileira. O cativo era aquele que havia sido capturado e, a partirda, privado de sua liberdade. Apesar do peso do trfico africano na reproduo da escravido no

    Brasil, o termo cativeiro bem mais presente nas fontes brasileiras escritas referentes escravidoindgena, caso em que o apresamento se dava de forma mais prxima. Em qualquer caso, escravo eraaquele que j nascera sob esta condio jurdica. A condio de mercadoria e a submisso a umsenhor, alm da idia de trabalho forado, esto todos mais relacionados definio de escravo do quea de cativo.

    A idia de apresamento e privao de liberdade, coerentemente com estas distines formais, a que se destaca no uso especfico que os depoentes fazem da palavra cativo, freqentementesituada em oposio aos qualificativos ventre livre e brasileiro. Em mais de um depoimento, nosdiversos conjuntos, menciona-se algum ascendente que no havia sido cativo porque j era brasileiroou ventre livre. Esta linguagem ope, portanto, cativeiro e liberdade, qualificando o cativo comoestrangeiro (em alguns casos especificamente como africano) em oposio aos ventre livres (emalguns casos definidos como brasileiros). Pode-se considerar, portanto, a hiptese de que ela se

    tenha construdo historicamente a partir da vivncia escrava do processo de desestruturao dadominao escravista durante a segunda metade do sculo XIX. Especialmente, a partir do impacto deduas medidas legais de profundo alcance na redefinio das relaes cotidianas entre senhores eescravos, e entre os cativos entre si: a extino do trfico africano (1850) e a lei do Ventre Livre(1871).

    Trfico e alforria constituam faces de uma mesma moeda que garantia a reproduo dalegitimidade da sociedade escravista no Brasil. A prtica da alforria permitia acomodar a autoridadesenhorial (mesmo quando paga pelo prprio cativo, a alforria era sempre uma prerrogativa senhorial) ea presso poltica possvel da comunidade escrava mais enraizada, reforando, em ltima instncia, alegitimidade da escravido. Esta presso era, entretanto, limitada pelo espetculo pedaggico daconstante entrada de recm-chegados, vendidos como animais, estrangeiros ao mundo escravista, semquaisquer direitos ou prerrogativas. A extino definitiva do trfico atlntico de escravos, tolerado por

    mais quase trinta anos aps a independncia do pas, configurou-se como o principal limite

    7Um primeiro tratamento desta coincidncia narrativa foi realizado por Karina Baptista, bolsista de iniciaocientfica do LABHOI, em sua monografia de bacharelado,O Dilogo dos Tempos: memria, histria e identidadesocial nos depoimentos orais de descendentes de escravos brasileiros, Departamento de Histria, Universidadefederal Fluminense, Niteri, 1996.8Cf. Maestri Filho, Mario Jos, op. cit., p. 25.

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    reproduo social da escravido no Brasil. Em 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, que, alm delibertar de direito as crianas nascidas de ventre escravo, reconheceu aos cativos o direito formaode peclio e compra da liberdade, atacava a outra face daquela moeda, retirando dos senhores aadministrao da esperana da alforria junto a seus cativos.

    extremamente significativo que, nas entrevistas selecionadas, os significados do tempo docativeiro apaream definidos principalmente por seu sentido de reduo de seres humanos condio

    de simples mercadoria por meio da violncia. A condio de semoventes e a associao com a criaode gado so recorrentes nos diversos conjuntos analisados, especialmente nas referncias preferncia pelos negros de canela fina no ato da compra e ao ato de comer na gamela coletiva comoos animais. Os castigos fsicos tambm definem essencialmente este tempo, presente nas diversasnarrativas de requintes de crueldade, muitas vezes associadas a uma memria do feitio,

    9ou seja, a

    uma punio do torturador por meio de poderes mgicos do cativo torturado - a morte dos filhos noscasos das sinhs ciumentas, suicdios, doenas incurveis, perda total da colheita, incndios, etc. -sempre definido como estrangeiro e africano.

    As 66 entrevistas aqui selecionadas produzem em seu conjunto, portanto, uma determinadadefinio do cativeiro, extremamente prxima quela caracterizada por Finley em seu trabalho clssicosobre a escravido antiga:

    10o cativo se define como uma mercadoria e como um estrangeiro. Apesar

    disto, nas narrativas analisadas, os pais ou avs dos narradores nunca compartilham, por razes

    variadas, daquelas condies atribudas de maneira genrica ao tempo do cativeiro. Inseridos nacomunidade escrava mais enraizada, definem-se como excees e, aproximando-se da experincia deliberdade, afirmam-se como pessoas (e, no, como coisas) e como brasileiros (e, no, comoestrangeiros).

    interessante notar que o trabalho duro no aparece como um ponto essencial a definir otempo do cativeiro. Nas maioria das narrativas, o trabalho antes um ponto de continuidade do quede ruptura entre o tempo do cativeiro e o tempo da liberdade.

    Aparecem, a definir o tempo da liberdade, algumas caractersticas informativas, mais do quenarrativas. Na vivncia de criana dos entrevistados, o trabalho familiar e a autoridade paternatomados conjuntamente so talvez a maior regularidade, presente em 86,36% (57 em 66) dos casosconsiderados, configurando uma identidade camponesa na qual a figura paterna emerge comocontroladora econmica e moral do trabalho familiar. Destes, mais da metade (30 em 57) tornaram-se

    proprietrios de terra em algum momento de suas vidas, condio que, via de regra, no transmitiram aseus filhos (apenas cerca de 20 % dos entrevistados se declararam proprietrios de terra em algumponto de suas histrias de vida).

    Tendo em vista a nfase que a historiografia e a literatura antropolgica tem dado ao papel damulher, seja na famlia escrava, seja nas famlias negras das favelas e bairros populares das zonasurbanas do Brasil, de uma maneira geral o papel desta estrutura patriarcal no campesinato negro docentro-sul, quase diretamente formado pelos ltimos cativos libertos pela Lei urea, em 13 de maio de1888, prope elementos para uma reavaliao tanto da literatura sobre famlia e relaes de gneronas comunidades escravas, quanto da experincia das comunidades negras nas cidades do centro-sul,no processo de migrao rural-urbana que caracterizou a histria social da regio durante este sculo.

    11

    9Cf. Robson Martins, Memria do Feitio. Relatrio apresentado ao Centro de Estudos Afro-asiticos, Rio deJaneiro, 1995 (mimeo).10Cf. Moses Finley,Escravido an tiga e ideolog ia moderna, Rio de Janeiro, Graal, 1991.11Ao publicar artigo baseado em uma anlise geral das entrevistas paulistas, Maria de Lourdes Janotti (op. cit.)

    ps em relevo, especialmente, as relaes de gnero. Concentrou-se numa narrativa padro, quase um mito deorigem familiar comum a mais de uma das famlias entrevistadas, que se referia uma jovem escrava que, cobiada

    pelo senhor, o recusava e, como castigo, era obrigada a se casar com um velho africano. Pode-se fazer vriasleituras do significado desta narrativa. O fato de que trabalhos recentes sobre o parentesco escravo estejamapresentando este tipo de arranjo como padro (casamento de africanos mais velhos com jovens crioulas) ,

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    Concluo este artigo tomando o exemplo de duas narrativas, extradas dos dois projetos quemais se distanciavam entre si do ponto de vista terico e metodolgico, o de Ana Rios e o de MrioDalla Vechia, que ilustram exemplarmente os significados de escravido e de liberdade que acabamosde explorar.

    "ENTREVISTADOR: Senhor Tibrcio? Eu estaria interessado em escutar se seu pai, suame, sua gente, lhe contou alguma coisa do tempo da escravido? Como que eram tratados osnegros?

    TIBRCIO - Os negros?! (...) Tinha escravatura boa e tinha a ruim! O negro ruim,aqueles que comia carnia, eles botavo a panela no fogo. Dentro de casa: no tempo quependuravo as panelas num gancho, aquela de trs pernas. E botavo um negro pr cuid aquelapanela, faz fogo. Botavo vinho e temperavo. Botavo carne. E deixava o negro. E contavo acarne. O negro ruim, aquela carne, a hora que iam servi, contavo os pedaos. A escravidurasofreu muito, s em v cont. Se no tivesse aqueles pedao de carne, que tivesse tirado tudonuma bitola s - E se no achasse aquela carne, aquela quantia que tinham botado, aqueleescravo no comia. Ele tomava era pau! No comia nada, ele tomava era pau! Bueno, por issoa um verso:

    "Se arretira senhor coletecom ordem do meu porretete arretira senhor caldocom ordem do meu finco! [...]TIBRCIO - E vai, meu pai me dizendo que os escravos, no podiam se mistur os bons

    com os ruim. Que aqueles que eram ruim, no queriam os outros bem! Por que eles comiamporcaria, sujeira, carnia. A pau! E o meu pai no! Era comida."

    O trecho transcrito admite anlises diversas, da construo da narrativa oral (e h de se elogiara transcrio em seu poder de remeter a esta dimenso da oralidade) at as vises de cativeiro e dasrelaes entre os cativos que a narrativa informa. Narrativa que, sem muitas dvidas, deve sercreditada - na origem - ao pai do narrador, que se assumia como ex-escravo.

    Na verdade, toda a riqueza de detalhes dessa narrativa apresenta-se quase impenetrvel a umleitor distante fsica e culturalmente do informante. Aparece, entretanto, de forma bastante clara, oenredo central da histria narrada na transcrio de Dalla Vechia, da qual transcrevemos, acima,apenas alguns trechos. Trata -se de uma verso pessoal de um conto popular.

    12 Um escravo "ruim"

    (quer dizer sujeito a maus tratos e pouca comida) era responsvel por tomar conta da panela de comidae por evitar que qualquer pedao de carne fosse roubado dela, o que sistematicamente no conseguia -sendo por isto sistematicamente surrado. Escondido, descobre finalmente o ladro, um escravo de outrapropriedade. Ao descobrir o responsvel por seus infortnios, este escravo "ruim" no hesita em mataro ladro de carne. Pelo assassinato sumariamente condenado morte pelo senhor e degolado, amando deste, por outros escravos da propriedade.

    Todo o depoimento do qual foi retirado este trecho tem um tom "delirante" que foge ao controledo entrevistador - mais preocupado com informaes objetivas sobre onde os escravos eram surrados,

    que roupas usavam ou o que comiam (informaes que dificilmente estariam disponveis"objetivamente" numa terceira gerao de descendentes de ex-escravos).

    sinalizando para a reproduo de uma hierarquia de idade entre os escravos homens, comum s sociedadesafricanas, pode descortinar novos sentidos para estas narrativas, quase sempre femininas.12Agradeo a Idelette Muzart Fonseca dos Santos (Universit de Paris X, especialista em Literatura Oral no Brasil)a informao de que a narrativa de Tibrcio se constitua numa variante de um conto popular.

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    Neste depoimento, em particular, reiteram-se alguns dos significados mais comumenteassociados ao cativeiro - especialmente a idia de promiscuidade sexual e de aproximao com anoo de "rebanho animal" contida na idia de um escravo "reprodutor", papel que teria sido exercidopelo pai de Seu Tibrcio e por outros "negros de canela fina". Os de "canela grossa" estariamcondenados ao porrete. Em determinado momento, entretanto, o mesmo Tibrcio afirma que sua me"j era brasileira", aparentemente presumindo que o interlocutor entendia que isto determinava alguma

    importante diferena.Alis, as "diferenas" entre escravos "bons" e "ruins", "negras" e "brasileiras", atribudas a umdiscurso de seu pai sobre o cativeiro, e uma certa associao, desta feita dele, Tibrcio, entre o tempodo cativeiro e as tcnicas de "recrutamento" prevalecentes durante as muitas conflagraes armadasentre as oligarquias locais que marcaram, no sul do pas, as dcadas que se seguiram abolio daescravido, parecem-me dar a chave de leitura que empresta significados histricos e sociais ao"delrio" de seu Tibrcio.

    Fundamental, nisto tudo, a percepo de que ele, Tibrcio, era o filho de um escravo "bom"com uma "brasileira". Esta era a base de construo da identidade tnica e social do depoente - que,apesar de reconhecer seu elo genealgico com a escravido e de identific-la pelos seus significadosmais gerais (violncia, promiscuidade, animalizao, coisificao), individualizava sua experinciafamiliar, recusando a vitimizao como solo de construo de sua identidade pessoal.

    Num discurso bem mais organizado, Ezequiel Incio, entrevistado por Ana Rios, tambmrecorre a um caso para definir a excepcionalidade de seu av paterno . Segundo seu Ezequiel, seupai lhe contara que ele era um escravo to excepcional e trabalhador que seu senhor apostou comoutro fazendeiro que, sozinho, apanharia mais caf que todos os escravos da outra fazenda. Cada umteria apostado a prpria fazenda neste desafio. O av de seu Ezequiel teria ido sozinho fazendavizinha para o desafio. O pai do depoente, ainda menino, ter-lhe-ia levado o almoo fazenda vizinha,colocando-se como testemunha ocular da histria que contava e da excepcionalidade da situao dopai, reforada at mesmo pela moradia com a famlia em uma casa separada das senzalas coletivas,situao que a moderna historiografia sobre a escravido vem mostrando ter sido comum,especialmente para os escravos casados:

    13

    A meu pai deixou a vasi lha do almoo e voltou para casa, foi embora, mais o meu avno morava na senzala junto com os outros no, meu av tinha uma casinha de sap bem fora

    da fazenda, retirada um pouco, fora da Fazenda. Ele no dormia no (...) no dormia dentroda senzala no (...) numa casa separada.

    Como era de se esperar, ele sozinho apanhou mais caf do que todos os outros. O capataz dofazendeiro rival reconheceu a derrota de seu grupo de escravos e, ato contnuo, teria comeado a baternos mesmos, como castigo por terem feito o senhor perder a fazenda. Apanharam tanto os escravosque o av do depoente tratou de voltar logo para casa, recusando um convite para pernoitar nafazenda, temeroso de ser morto pelos demais, se ali permanecesse, j que era o culpado pelos seusinfortnios. Ao chegar a casa, teria ouvido do senhor, mais rico em uma fazenda graas a seusservios:

    Falou assim, bom agora voc pode ir embora, quatro dias voc no me aparece aqui nafazenda, fica por l junto com sua mulher em casa, junto com suas crianas, pode ficar quieto l, no

    me aparece aqui, quatro dias, pois , amanh eu vou l para mim receber esta fazenda.

    As coincidncias narrativas privilegiadas neste texto nos falam, portanto, de uma definio decativeiro como ausncia absoluta de direitos e de alternativas personalizadas de rompimento com estacondio atravs da aquisio de direitos pessoais ou privilgios. Neste contexto, a libertao significou

    13Cf., entre outros, minha discusso sore este ponto na parte 2 deDas Cores do Si lncio , op. cit.

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    a transformao definitiva daqueles privilgios efetivamente em direitos. Para os homens, sobretudo, odireito de controlar o seu prprio corpo e de comandar o trabalho da famlia.

    Falam-nos tambm do escravo como um estrangeiro e da liberdade como caminho depertencimento comunidade brasileira, mesmo antes da lei da libertao. Falam-nos, portanto, de umcerto significado da cidadania brasileira no Brasil monrquico freqentemente negligenciado pelahistoriografia.

    O que significava, porm, essa cidadania? Quais os significados da liberdade no Brasilmonrquico? Politicamente ela era uma farsa, mesmo para os cidados ativos, que possuam rendapara votar e ser votados, controladas como eram as eleies pelas mesas eleitorais. Em termos civis,garantia as liberdades clssicas (de ir e vir, direito famlia, propriedade, etc.), bem como a liberdadede opinio e a integridade fsica, quando a Constituio proibia a tortura ou o castigo infamante para oscidados brasileiros (leia -se o conjunto dos nascidos livres). Qual, entretanto, o significado real de taisgarantias para os cidados passivos, em face do poder privado dos potentados rurais?

    preciso ter em mente a experincia da escravido para mensurar o significado dos direitoscivis atribudos aos cidado brasileiros no Imprio e a todos os nascidos no Brasil aps a Lei urea.Desde 1850, a legislao imperial tendeu a transformar o costume em lei, tornando antigos privilgiosda comunidade cativa mais enraizada direitos comuns ao conjunto dos escravizados. Foi o EstadoImperial que: assegurou o fim do trfico; reconheceu para os cativos o direito famlia, proibindo

    separar casais e seus filhos; transformou em direito a prtica do peclio e da compra da alforria;proibiu o aoite em 1886. Os significados de cada uma dessas medidas legais para a fora moral dossenhores, para a prpria viabilidade da dominao escravista, eram bem medidos peloscontemporneos, apesar de serem freqentemente negligenciados pelos historiadores. O que esteveem discusso, desde 1850, e se consolidou em 1888 ao abolir-se legalmente a escravido, foi aextenso de direitos civis a todos os brasileiros - com os significados e as limitaes com que eles eramvividos e percebidos na ordem imperial. tambm com este significado, com uma formulao precisade sua abrangncia e de suas limitaes, que o Tempo do Cativeiro e o Tempo da Liberdade aparecemnas falas e na tradio familiar dos descendentes diretos dos ltimos cativos do Continente.