123
7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 1/123 arthur machen  A NOVELA DO SELO NEGRO 

Arthur Machen [=] A novela do selo negro

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Fragmento de "Os três impostores"

Citation preview

Page 1: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 1/123

arthur machen

 A NOVELA DO

SELO NEGRO 

Page 2: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 2/123

 

[1]

“Tudo lhe deve ter parecido fantasio- 

so e visionário, como um sonho ma- 

tinal após um despertar.”

RELATADA POR UMA SENHORA EMLEICESTER SQUARE

Prólogo

—Vejo que é um racionalista inveterado —disse a senhora. — Não me ouviu dizer quetive experiências ainda mais terríveis? Tambémfui cética em outros tempos, mas, após tudo oque conheci, já não poderei pretender estarcheia de dúvidas.

— Minha senhora — retorquiu Phillipps,— ninguém me fará negar a minha fé. Nuncairei acreditar, nem pretenderei acreditar, quedois e dois são cinco, nem hei de, sob quais-

quer pretensões, admitir a existência de um

Page 3: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 3/123

 

[2]

triângulo com dois lados.— Está sendo um pouco apressado — ob-

servou a senhora. — Mas será que lhe possoperguntar se já alguma vez ouviu falar no pro-fessor Gregg, essa autoridade no campo da et-nologia e assuntos afins?

— Muito mais do que meramente ouvi fa-lar do professor Gregg… — disse Phillipps. —Sempre acreditei que ele era um dos nossospesquisadores mais inteligentes e esclarecidos, e

a sua publicação mais recente, Manual de Etno- logia , pareceu-me em tudo admirável no seugênero. De fato, o livro mal tinha chegado àsminhas mãos quando fui informado acerca do

acidente que acabou por lhe abreviar a carreira.Ele tinha, creio eu, alugado uma casa de cam-po, durante o verão, no Oeste de Inglaterra, edizem que caiu em um rio. Mas, tanto quanto

pude apurar, o seu corpo nunca foi encontrado.

Page 4: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 4/123

 

[3]

— Caro senhor, conto sem dúvida com asua discrição. O seu modo de falar leva-me a

confiar em si, e o título desse trabalho, queacabou de mencionar, assegura-me que não éapenas um colecionador de banalidades vazias.Numa palavra, creio que posso contar consigo.

 Acredito que deverá estar pensando que o pro-fessor Gregg morreu. Não tenho razões, contu-do, para pensar que seja esse o caso.

— O quê? — vociferou Phillipps, atônito e

perturbado. — Acha então que não houvequalquer tragédia? Mal posso acreditar… Greggera um homem de caráter impoluto, a sua vidaprivada apenas indicava uma aberta benevolên-

cia e, embora eu próprio não seja dado a ilu-sões, acredito que ele foi um cristão devoto esincero. Decerto, não irá querer insinuar quealgum acontecimento menos honesto o forçou

a abandonar o país?

Page 5: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 5/123

 

[4]

— Uma vez mais, está sendo um poucoapressado — observou a senhora. — Não foi

nada disso que eu disse. Porém, para resumir,devo dizer-lhe que o professor Gregg saiu nu-ma manhã de casa, em plena saúde física emental. Nunca mais voltou, mas o relógio dele

e a corrente, uma bolsa em que tinha algunssoberanos de ouro e outras moedas, assim co-mo um anel que ele usava sempre, foram en-contrados três dias mais tarde na encosta agres-

te e remota de uma colina, a muitas milhas dorio. Esses artigos foram descobertos junto a umrochedo calcário de aspecto fantástico. Tinhamsido embrulhados numa espécie de pergaminho

e atados com um fio de tripa seca. Abriram es-se embrulho, e no lado de dentro desse perga-minho havia uma inscrição feita com umasubstância vermelha. Esses caracteres eram in-

decifráveis, mas assemelhavam-se a uma cor-

Page 6: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 6/123

 

[5]

ruptela da escrita cuneiforme.— Acredite que acho tudo isso imensa-

mente interessante — disse Phillipps. — Nãose importa de prosseguir? A circunstância queacabou de mencionar parece-me bastante inex-plicável e estou ansioso para que me possa elu-

cidar. A jovem senhora pareceu meditar por mo-

mentos, e então começou a contar a…

Novela do Selo Negro— Terei agora de lhe fornecer alguns por-

menores acerca da minha história. Sou filha deum engenheiro civil chamado Steven Lally, que

teve a infelicidade de morrer no início da suacarreira, antes de ter assegurado os meios desubsistência para a mulher e para os seus doisfilhos. A minha mãe conseguia gerir a nossa

pequena casa com um pecúlio que deve ter sido

Page 7: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 7/123

 

[6]

incrivelmente reduzido. Vivíamos numa aldeiaremota, porque a maior parte das coisas de que

necessitávamos eram aí mais baratas do que nacidade, mas, mesmo assim, fomos criados como mais severo dos orçamentos. Meu pai era umhomem inteligente e dado à leitura, deixando-

nos uma pequena mas bem selecionada série delivros, que continha os melhores clássicos gre-gos, latinos e ingleses. Esses livros eram o nos-so único divertimento. O meu irmão, tanto

quanto posso recordar, aprendeu latim lendo asMeditationes   de Descartes, e eu, em vez dospequenos contos que as crianças geralmenteleem, não encontrei nada mais fascinante do

que uma tradução da Gesta   Romanorum . As-sim fomos crescendo, como crianças pacatas eestudiosas e, com o passar dos tempos, o meuirmão conseguiu ganhar a sua vida, tal como

lhe disse. Continuei a viver em casa. A minha

Page 8: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 8/123

 

[7]

pobre mãe era então uma inválida, exigindoquase toda a atenção que eu pudesse dar, e, há

cerca de dois anos faleceu, após meses de umadoença dolorosa. A minha situação não poderiater ficado pior. A velha mobília mal dava parapagar as dívidas, de modo que tive de procurar

um emprego. Os livros enviei-os ao meu irmão,sabendo como ele os iria apreciar. Estava com-pletamente sozinha, consciente do parco orde-nado daquele que era o meu único familiar, e,

embora tivesse vindo até Londres à procura deemprego, pensando que assim poderia remediaras despesas, jurei que o faria apenas por ummês, e que, se durante esse tempo não pudesse

arranjar um emprego, preferiria passar fome doque importuná-lo, pedindo-lhe as poucas librasque ele pusera de parte para dias mais difíceis. Aluguei um modesto quarto num subúrbio dis-

tante, o mais barato que consegui encontrar.

Page 9: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 9/123

 

[8]

 Vivia à base de pão e de chá, e passava o meutempo em vão respondendo a anúncios, e em

idas frustradas até locais onde me pudessemcontratar. Dia após dia, semana após semana,não conseguia arranjar nada, até que por fim oprazo que eu dera a mim mesma começou a se

esgotar, deixando-me condenada à deprimentehipótese de morrer de fome. A minha senhoriaera, de certo modo, uma pessoa bem intencio-nada, estava a par da óbvia escassez dos meus

meios, e estou certa de que nunca me iria pôrna rua. Eu é que deveria ir-me embora, paratentar morrer discretamente. Estávamos entãono inverno, e um nevoeiro espesso e branco

surgia, logo ao princípio da tarde, tornando-semais denso à medida que o dia ia passando.

‘Era um domingo, ainda me lembro, e aspessoas de casa tinham ido à missa. Por volta

das três da tarde saí, e comecei a andar o mais

Page 10: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 10/123

 

[9]

rapidamente que podia, ainda que me sentissefraca por nada ter comido. Essa névoa branca

envolvia todas as ruas num profundo silêncio,uma camada gelada cobria os ramos das árvo-res, e cristais de gelo brilhavam nas cercas demadeira dos jardins e pelo chão, nesse chão

cruel por baixo dos meus passos. Eu continua- va a andar, voltando à esquerda e à direita, semsaber bem o que fazia, sem me importar sequercom o nome das ruas, e, tudo de que me consi-

go lembrar dessa tarde de domingo me pareceagora fragmentos soltos de um pesadelo. Comuma visão confusa, seguia o meu caminho,através de ruas meio citadinas e meio rurais,

com áreas cinzentas que se esbatiam, do meulado, nesse mundo nublado de penumbra; en-quanto, no lado oposto da rua, via vivendasconfortáveis onde se vislumbrava o clarão de

lareiras iluminando as paredes… mas tudo de

Page 11: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 11/123

 

[10]

uma forma irreal… Muros de adobe vermelho e janelas luminosas, vagas árvores e todo esse

espaço que mal podia distinguir, candeeiros agás ante os quais sombras brancas se esbatiam,a perspectiva de linhas de bondes sob as plata-formas de estações um pouco mais acima, o

 verde e o vermelho dos semáforos, tudo issonão passava de imagens momentâneas, ador-mecidas no meu cérebro cansado pela fomeque então sentia. Uma vez por outra, ouvia um

som de passos sobre a via férrea, e havia ho-mens que se cruzavam comigo, bem agasalha-dos, a estugarem o passo para não arrefecereme, sem dúvida, antecipando já os prazeres de

um bom fogão de sala, onde haveria cortinasbem corridas sobre vidraças cobertas de gelo, eboas-vindas por parte dos amigos. Porém, àmedida que a tarde ia escurecendo e a noite se

aproximava, havia cada vez menos pessoas no

Page 12: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 12/123

 

[11]

exterior, e eu passava por rua após rua sem verninguém. Caminhava nesse silêncio branco,

como se percorresse os caminhos de uma cida-de sepultada, e, à medida que ia ficando maisfraca e fatigada, o meu coração enchia-se demedo da morte.

‘De súbito, ao dobrar uma esquina, alguémse aproximou de mim sob a luz de um candeei-ro, e ouvi uma voz a perguntar-me se eu nãome importava de lhe indicar o caminho para a

 Avon Road. Chocada por esse rumor de vozhumana, senti-me desfalecer, como se todas asminhas forças me abandonassem. Caí enroladano passeio a soluçar e a rir num acesso de his-

teria. Saíra preparada para morrer e, depois deatravessar a soleira da casa em que residia, ti-nha abandonado já todas as minhas esperançase recordações. A porta ribombou então por trás

de mim como um trovão, e eu senti que uma

Page 13: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 13/123

 

[12]

cortina de ferro acabara de descer sobre a mi-nha vida e que, daí em diante, teria de continu-

ar a caminhar num mundo de tristeza e desombras. Entrara no palco do primeiro ato damorte. Depois veio a minha errância pela ne-blina, essa brancura que tudo envolvia, as ruas

 vazias, o silêncio abafado, de modo que, quan-do essa voz me falou, era como se eu já tivessemorrido e voltasse à vida. Em breves minutos,consegui dominar os meus sentimentos e, ao

levantar-me, vi que estava diante de um ho-mem de meia-idade, com boa aparência e im-pecavelmente vestido. Este olhou para mimcom um ar de comiseração estampado no rosto,

mas antes que eu lhe pudesse balbuciar a mi-nha completa ignorância acerca dessa zona,pois não fazia a mínima ideia onde me encon-trava, ele falou:

— Minha cara senhora, parece estar muito

Page 14: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 14/123

 

[13]

afligida. Nem imagina como me assustou. Seráque lhe poderei perguntar a causa dos seus

tormentos? Asseguro-lhe que poderá confiarem mim.

— É muito simpático da sua parte — disseeu. — Mas receio que já não haja mais nada a

fazer. Encontro-me num verdadeiro beco semsaída.

— Não diga uma coisa dessas! É aindamuito nova para poder falar assim. Venha, an-

demos mais um pouco, e fale-me das suas difi-culdades. Talvez eu possa ajudá-la.

Havia algo de muito calmo e persuasivonos seus modos e, enquanto íamos andando,

resumi-lhe a minha história e contei-lhe o de-sespero que quase me oprimira até à morte.

— Não foi uma boa ideia ter desistido des-se modo… — observou ele, quando me calei.

— Um mês é um espaço muito curto para nos

Page 15: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 15/123

 

[14]

podermos orientar em Londres. Esta cidade,deixe-me que lhe diga, miss Lally, não é um

espaço aberto e sem defesas, é antes um lugarfortificado, com um fosso e muralhas duplascheias de intrincadas curiosidades. Tal comotem acontecido nas grandes urbes, as condições

de vida tornaram-se extremamente artificiais.Não existe, contudo, nenhuma paliçada quepossa impedir um homem ou uma mulher deconquistar esta cidade, mas linhas cerradas de

uma invenção sutil, minas e buracos que reque-rem uma estranha habilidade para que os pos-samos ultrapassar. A menina, na sua simplici-dade, pensava talvez que lhe bastaria gritar,

para que todas essas muralhas se desfizessemem fumo, mas já vai longe o tempo para tais vitórias. Não perca a coragem, em breve iráaprender os segredos do sucesso.

— Infelizmente, caro senhor — respondi

Page 16: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 16/123

 

[15]

eu, — não duvido que as suas conclusões pos-sam estar corretas, mas, presentemente, creio

estar mesmo a morrer de fome. Falou-me deum segredo… por amor de Deus, diga-o já, se éque sente alguma pena por este meu estado dedesespero.

Ele riu-se, de um modo sincero.— É aí que reside a estranheza de tudo is-

so. Aqueles que conhecem o segredo não pode-riam revelá-lo, mesmo que quisessem. Trata-se,

sem sombra de dúvida, de algo tão inefávelcomo a doutrina central da franco-maçonaria.Mas uma coisa lhe poderei dizer: que a meninapenetrou, pelo menos, a pele mais superficial

desse mistério.E voltou a rir-se.— Por favor. Não brinque comigo — disse

eu. — Que fiz afinal, o que eu sei? Sou de tal

modo ignorante que nem sei sequer de onde

Page 17: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 17/123

 

[16]

irá vir a minha próxima refeição.— Desculpe. Está a perguntar-me o que

fez? Encontrou-me! Vamos, deixemo-nos derodeios. Já vi que é uma autodidata, o que nãoé assim tão terrível, e eu preciso de uma pre-ceptora para os meus dois filhos. Sou viúvo há

alguns anos, chamo-me Gregg. Estou oferecen-do-lhe o emprego que mencionei, e digamosque… um salário de cem libras por ano?

Mal lhe pude articular os meus agradeci-

mentos e, ao colocar-me nas mãos um cartãocom o seu endereço e uma cédula, o sr. Greggdespediu-se de mim, pedindo-me para ir visitá-lo dentro de um ou dois dias. Foi assim que

conheci o professor Gregg, e não lhe será difíciladivinhar que a memória dessa tempestade fria,que quase me pusera às portas da morte, fezcom que eu passasse a vê-lo como um segundo

pai. Antes do final dessa semana, eu já tinha

Page 18: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 18/123

 

[17]

iniciado as minhas tarefas. O professor alugarauma velha mansão de tijolos vermelhos, num

subúrbio do Oeste de Londres, e foi aí, rodeadade agradáveis relvados e pomares, por entre ocalmo murmurar de velhos ulmeiros cujos ra-mos se balanceavam sobre o telhado, que se

iniciou um novo capítulo da minha vida. Co-nhecendo, tal como é o caso, a ocupação doprofessor, não irá surpreendê-lo o fato de a ca-sa estar repleta de livros por toda parte, e de

armários cheios de estranhos objetos, hedion-dos até, que ocupavam todos os recantos nasenormes divisões do andar térreo. Gregg eraum homem que apenas se entregava ao conhe-

cimento, e eu, antes que me tivesse apercebido,sentia-me já contagiada pelo seu entusiasmo,ambicionando penetrar no espaço das suasapaixonadas pesquisas. Após alguns meses, era

 já mais sua secretária do que a simples gover-

Page 19: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 19/123

 

[18]

nanta encarregada dos seus dois filhos e, du-rante muitas noites, sentei-me a uma escrivani-

nha, sob o quebra-luz de um candeeiro, en-quanto ele, a andar de um lado para o outro,por entre as sombras diante da lareira, me iaditando as partes mais importantes do seu Ma- 

nual de Etnologia . Contudo, por detrás dessesestudos mais exatos e concretos, sempre detec-tei que algo se escondia, a nostalgia e o desejopor um objeto ao qual ele nunca aludira e, uma

 vez por outra, chegava a interromper o que meestava ditando, para se entregar ao devaneio,fascinado, segundo me parecia, pela distantehipótese de uma aventurosa descoberta.

‘Por fim, completou esse manual e come-çamos a receber provas da tipografia, que meeram confiadas para uma primeira leitura, an-tes de serem submetidas à revisão final do pro-

fessor. Entretanto, o seu cansaço em relação ao

Page 20: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 20/123

 

[19]

assunto em que presentemente estava mergu-lhado ia aumentando, e foi com o entusiasmo

de um aluno num final de semestre que ele umdia me estendeu um exemplar do livro.

— Ora aqui está — disse ele. — Mantive aminha palavra. Prometi escrevê-lo e ei-lo aqui.

 Agora já terei a liberdade de poder viver parame dedicar a coisas mais estranhas. Confesso-lhe, miss Lally, que invejo o renome de Co-lombo, e creia que ainda me há-de ver, pelo

menos assim o espero, no papel de um explo-rador.

— Mas há muito pouca coisa para ser ex-plorada — disse-lhe eu. — Creio que nasceu

alguns séculos tarde demais, para se entregar auma aventura dessas.

— Receio bem que… esteja enganada —respondeu ele, — ainda existem, não tenha a

menor dúvida, pequenas regiões por descobrir,

Page 21: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 21/123

 

[20]

e até continentes de uma inusitada extensão. Ah, miss Lally, acredite no que lhe digo! Vive-

mos no meio de símbolos sagrados e de misté-rios espantosos, e nem sequer temos a noçãodo que poderemos vir a ser. A vida, pode acre-ditar, não é uma coisa simples, não é apenas

uma massa de matéria cinzenta e um amontoa-do de veias e de músculos, que poderão ser ex-postos com o auxílio de um bisturi cirúrgico. Ohomem é o segredo que eu estou em vias de

explorar, e, antes mesmo de poder descobri-lo,terei de atravessar mares verdadeiramente en-capelados, e oceanos e brumas com vários mi-lhares de anos. Você deve conhecer o mito da

perdida Atlântida… E se este for verdade e eutiver sido escolhido para ser o descobridor des-sa terra fantástica?

 Apercebia-me de que uma grande excitação

parecia ferver sob as suas palavras e, no seu

Page 22: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 22/123

 

[21]

rosto, via estampada a ânsia de um caçador. Ante mim estava um homem que acreditava ter

sido chamado para travar combates com o des-conhecido. Uma onda de alegria invadiu-me,quando me dei conta de que estaria, de certomodo, associada a ele nessa aventura, e tam-

bém eu me sentia imensamente entusiasmadacom a perspectiva de tais investigações, nãotendo sequer parado para considerar o fato dedesconhecer totalmente o que iríamos pôr a

descoberto.‘Na manhã seguinte, o professor Gregg le-

 vou-me até a parte mais recôndita do seu escri-tório, onde, alinhada contra a parede, havia

uma série de pequenas gavetas, todas muitobem etiquetadas, que eram o resultado de anosde trabalho, classificado através dessa extensãorelativamente pequena.

— Aqui, está a minha vida — disse ele. —

Page 23: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 23/123

 

[22]

 Aqui, estão todos os fatos que consegui reunirà custa de tantos esforços, e contudo, tudo isto

é coisa nenhuma. Quero dizer, nada que possaser comparado com o que irei tentar alcançar. Veja…

E conduziu-me até uma velha escrivaninha,

uma incrível peça de mobiliário, já um poucogasta, que existia em um canto dessa divisão.Ele girou então a chave na fechadura e abriuuma das gavetas.

— Alguns pedaços de papel — continuouele, apontando para essa mesma gaveta — eum pedaço de pedra preta, rudemente talhadacom umas quantas marcas estranhas e alguns

riscos. É tudo o que esta gaveta contém. Aqui,poderá ver um envelope com um carimbo ver-melho de há já vinte anos, mas eu anotei a lá-pis umas quantas linhas, no espaço reservado

ao remetente, e aqui poderá observar alguns

Page 24: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 24/123

 

[23]

recortes de uns quantos jornais locais poucoconhecidos. Se me perguntar qual o tema desta

coleção, não lhe irá parecer nada de extraordi-nário: uma criada de quinta que desapareceu enunca mais foi vista; uma criança que teria es-corregado junto a umas velhas ruínas, na mon-

tanha; alguns escritos indecifráveis num pedaçode pedra calcária; um homem assassinado como golpe de uma arma desconhecida. É este orasto que terei de investigar. Sim, tal como a

menina disse, poderá haver uma explicação ab-solutamente plausível para tudo isto. A moçapoderia ter fugido para Londres, para Liverpo-ol, ou para Nova Iorque; a criança poderá jazer

no fundo de uma mina abandonada; e as letrasgravadas nessa pedra talvez não sejam mais doque o extravagante passatempo de um vaga-bundo. Sim, sim, admito tudo isso, mas sei que

possuo a verdadeira chave. Veja!

Page 25: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 25/123

 

[24]

E pegou então num papel amarelado. “Ca-racteres inscritos numa pedra calcária, encon-

trada nas Grey Hills”, li eu, e em seguida repa-rei que havia uma palavra que tinha sido apa-gada (talvez o nome de um condado), e umadata de há quinze anos. Por baixo via uma série

de esquisitíssimos caracteres com a forma decunhos e de punhais, tão estranhos e extrava-gantes como os do alfabeto hebraico.

— Agora veja o selo — disse-me o profes-

sor Gregg, passando-me um pedaço de pedranegra, com cerca de cinco centímetros de com-primento que terminava em algo semelhante aum calcador para o tabaco que se põe nos ca-

chimbos, mas bastante maior. Tentei observá-loà luz, e vi, para minha grande surpresa, queesse selo continha os mesmos caracteres que eu já tinha visto no papel.

— Sim — disse o professor, — são iguais,

Page 26: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 26/123

 

[25]

e a inscrição nessa pedra calcária foi feita háquinze anos, com uma substância vermelha.

Ora, os caracteres nesse selo datam, pelo me-nos, de quatro mil anos. Talvez sejam mesmomais antigos…

— Será que tudo isto não passará afinal de

uma brincadeira? — perguntei.— Não, já tinha previsto essa hipótese.

Nunca iria dedicar a minha vida a uma simplesbrincadeira. Tudo foi testado, com suficiente

rigor. Só uma pessoa, para além de mim, temconhecimento da existência desse selo. Alémdisso, existem outras razões que não irei abor-dar de momento.

— Mas que quererá isto dizer? — pergun-tei. — Não estou percebendo a que conclusõestudo isso nos possa levar.

— Minha cara miss Lally, trata-se de uma

questão para a qual não pretendo encontrar

Page 27: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 27/123

 

[26]

resposta tão depressa. Talvez eu nunca consiga vir a dizer que segredos aqui se escondem nem

que solução. Por enquanto, apenas temos umaspistas vagas, um esboço de tragédias de aldeia,algumas marcas feitas com terra avermelhadanuma pedra, e um selo antigo. Uma série de

dados bastante estranhos, meia dúzia de pro- vas, e vinte anos passados, antes mesmo que aspudesse recolher. Quem sabe que miragem outerra incógnita se poderá esconder por detrás

de tudo isto? Estou tentando vislumbrar algopara além das águas profundas, miss Lally, e aterra que para além delas se esconde poderánão passar de meras brumas, apesar de tudo.

Todavia, creio não ser esse o caso, e em algunsmeses poderei provar se estarei ou não na pistacerta.

Deixou-me então… e eu, ao ver-me ali so-

zinha, decidi decifrar o mistério, refletindo so-

Page 28: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 28/123

 

[27]

bre a solução a que todas essas excêntricas pe-ças soltas poderiam conduzir. Eu própria não

sou desprovida de imaginação e tinha razõesmais do que suficientes para respeitar a solidezintelectual do professor; todavia, apenas podia ver, nos conteúdos dessa gaveta, pedaços de

uma fantasia, e em vão tentava conceber queteoria se poderia basear nesses fragmentos queme tinham sido mostrados. De fato, com baseem tudo o que vira e ouvira, poderia tão-só vis-

lumbrar o primeiro capítulo de um raro enre-do. E no entanto, bem no meu íntimo, ardiaem curiosidade e, dia após dia, observava o ros-to do professor Gregg, tentando descobrir al-

gum prenúncio do que iria acontecer. Foi umdia, após o jantar, que ele me comunicou subi-tamente:

— Espero que possa fazer todos os prepa-

rativos necessários, sem grande incômodo. Par-

Page 29: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 29/123

 

[28]

tiremos dentro de uma semana.— Ah sim? — perguntei eu, muito admi-

rada. — E para onde vamos?— Aluguei uma casa na parte Oeste da In-

glaterra, não muito longe de Caermaen, uma vila sossegada, que em outros tempos foi uma

cidade que albergava uma legião romana. É umlugar muito monótono, mas o campo é bastan-te agradável e o ar fresco não falta.

Detectei um certo brilho nos seus olhos, e

adivinhei logo que essa mudança súbita estariarelacionada com a nossa conversa de algunsdias atrás.

— Só irei levar uns quantos livros comigo

— disse o professor Gregg. — É tudo. O restoficará aqui até regressarmos. Tenho umas bre- ves férias — prosseguiu ele, sorrindo paramim, — e não irei lamentar perder algum

tempo de volta das minhas velhas pedras, ossos

Page 30: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 30/123

 

[29]

e fragmentos sem importância. Não sei se sabe— continuou ele, — mas há cerca de trinta

anos que me tenho atido apenas a fatos. Já étempo de me entregar a fantasias.

Os dias passaram depressa e eu podia repa-rar que o professor quase tremia de uma exci-

tação reprimida, mas mal prestei atenção à ân-sia que via nos seus olhos quando deixamospara trás essa velha mansão e iniciamos a nossa viagem. Saímos no começo da tarde e foi só ao

pôr do sol que chegamos a essa pequena vilacampestre. Estava cansada mas sentia um gran-de entusiasmo, e o passeio através desses cami-nhos parecia-me um sonho. Primeiro, reparei

apenas nas ruas sem ninguém do que julgueiser uma aldeia, enquanto o professor Gregg iame falando das legiões de Augusto, de comba-tes, e de toda a tremenda pompa que acompa-

nhava as suas águias. Em seguida, vi um rio

Page 31: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 31/123

 

[30]

largo onde a maré tinha subido, refletindo res-tos de um crepúsculo, ainda a chamejar nas

águas amareladas; os amplos prados; os camposonde o milho já secara; e essa vereda profunda,serpenteando pelas encostas, entre as colinas ea água. Por fim, começamos a subir e eu senti

o ar tornar-se mais rarefeito. Olhei para baixo e vi um nevoeiro cerrado por sobre a linha dorio, como uma mortalha, e toda uma vaga esombria região. Imaginei, encorajada pela mi-

nha fantasia, montes descomunais e bosquessuspensos, e contornos de colinas mais distan-tes. Lá muito ao longe, uma gigantesca forna-lha ardia na montanha, à medida que pilares de

chamas se iam reduzindo a um único pontoincendiado. A nossa carruagem continuava asubir, e só então reparei no hálito fresco e se-creto do grande bosque por cima de nós. Era

como se me sentisse flutuar nas suas mais pro-

Page 32: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 32/123

 

[31]

fundas zonas, com o som da água a correr, oodor das folhas verdes e o respirar dessa noite

de verão. Finalmente, a carruagem parou, e eumal conseguia distinguir os contornos da casa,enquanto esperava junto às colunas do alpen-dre. O resto dessa noite pareceu-me um sonho

repleto de coisas estranhas, rodeadas pelo am-plo silêncio do bosque, do vale e do rio.

‘Na manhã seguinte, quando acordei eolhei através da janela saliente desse enorme e

antiquado quarto, vi sob um céu cinzento umaregião que para mim ainda era um mistério. Olongo e adorável vale, onde o rio serpenteava,lá muito abaixo, atravessado a meio por uma

ponte medieval de arcos empedrados, uma cla-ra presença de terras na lonjura e os bosquesque apenas entrevira em sombras, na noite an-terior, surgiam-me repassados de encantamen-

to; e o movimento calmo do ar, que suspirava

Page 33: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 33/123

 

[32]

 junto à janela entreaberta, era para mim umabrisa desconhecida. Olhei através do vale e para

além deste, colina após colina, como onda apósonda, e aí, uma vaga voluta de fumaça azuladaelevava-se lentamente no ar da manhã, desde achaminé de uma casa cinzenta de quinta. Havia

uma elevação irregular coroada de pinheirosescuros e, na distância, dei-me conta do riscobranco de uma estrada que trepava para depoisdesaparecer numa região inimaginável. Mas o

limite de tudo aquilo era a grande muralha demontanhas, que se elevava a oeste e terminavanuma fortaleza de escarpas e numa grande nu- vem arredondada contra o céu.

‘Reparei no professor Gregg, a andar deum lado para o outro no terraço por baixo das janelas, e era-me por demais evidente que esta- va se deliciando com essa sensação de liberda-

de, e com a ideia de se ter afastado, durante

Page 34: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 34/123

 

[33]

uns tempos, das suas tarefas oficiais. Quandofui ter com ele havia uma exaltação na sua voz,

enquanto apontava para esse pedaço de vale ede rio serpenteante sob essas belas colinas.

— Sim — disse ele, — é uma zona estra-nha e lindíssima, que, pelo menos para mim,

parece estar repleta de mistério. Espero quenão se tenha esquecido da gaveta que lhe mos-trei, miss Lally… Pois… E creio que se aperce-beu logo de que eu não vim para cá apenas

preocupado com as crianças ou desejoso de arfresco…

— Pelo menos, creio ter podido adivinharo que me acabou de dizer — respondi. — Mas

deverá compreender que eu nem sequer conhe-ço a natureza das suas investigações e que arelação entre as mesmas e este lindíssimo vale éalgo que eu não poderia sequer imaginar.

Sorriu então para mim, de um modo estra-

Page 35: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 35/123

 

[34]

nho.— Acha que estou criando um mistério

apenas por amor ao mistério? — perguntou. —Se não lhe contei nada até agora é porque nadatenho para lhe contar, nada de definitivo, querodizer, nada que se possa traduzir num objetivo

preto no branco, tão maçador ou inatacávelcomo qualquer relatório parlamentar. Além domais, tenho um outro motivo: há muitos anos,li um parágrafo num jornal que, por acaso, me

chamou a atenção, e me revelou, num breveinstante, todos os pensamentos dispersos e fan-tasias ainda não de todo formadas, com osquais, através de especulativas horas de ócio,

tinha vindo a conceber toda uma hipótese. Vilogo que me embrenhava por caminhos poucoseguros. A minha teoria era por demais fantás-tica e pouco ortodoxa, e nunca me teria passa-

do pela cabeça escrever o menor resquício da

Page 36: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 36/123

 

[35]

mesma para publicação. Porém, pensei que, nacompanhia de cientistas como eu, homens que

estavam bem familiarizados com o método das verdadeiras descobertas, já fartos de saber que ogás, que hoje em dia ilumina qualquer taberna,fora em tempos apenas uma atrevida hipótese

(digamos que, com homens como esses, talvezpudesse vir a formular o meu sonho. Porexemplo, a Atlântida, a pedra-filosofal ou ou-tros assuntos semelhantes), sem recear expor-

me ao ridículo. Mas logo me dei conta de queestava redondamente enganado. Os meus ami-gos olharam intrigados uns para os outros edepois para mim, e eu pude adivinhar um certo

laivo de comiseração, bem como um insolentedesdém, nos olhares que trocaram. Um deles veio visitar-me no dia seguinte, insinuando queeu deveria estar sofrendo de um esgotamento

cerebral, provocado por um excesso de traba-

Page 37: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 37/123

 

[36]

lho. Para ser mais direto, perguntei-lhe: “Entãoacha que estou enlouquecendo? Acredite que

não é essa a minha opinião” e conduzi-o até aporta, sem lhe insinuar sequer a minha revolta.Desde esse dia, jurei nunca mais revelar o maisínfimo pormenor acerca da natureza da minha

teoria, a quem quer que fosse. Apenas a vocêpude alguma vez mostrar os conteúdos da mi-nha gaveta. Apesar de tudo, posso estar apenasperseguindo um arco-íris e talvez tivesse sido

enganado por toda uma série de coincidências,mas, aqui onde me vê, embrenhado no místicomurmúrio do silêncio, entre bosques e colinasselvagens, estou mais seguro do que nunca de

que existe realmente uma pista concreta. Ve-nha, já é hora de entrarmos em casa.

Para mim, havia em tudo isso qualquer coi-sa fantástica e fascinante. Sabia bem que, como

nos seus escritos acadêmicos, o professor Gregg

Page 38: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 38/123

 

[37]

avançava passo por passo, pondo mesmo emcausa certos momentos do seu raciocínio, e

nunca se aventurando a conclusões que pudes-sem ser facilmente rebatíveis. Não obstante,podia intuir, mais pelo seu olhar do que pelapersistência do seu tom de voz, que ele possuía

 já a hipótese que sempre o motivara. E eu, queapesar da minha imaginação também tinha omeu lado de ceticismo, aguçado pela sugestãode um certo maravilhoso, não podia deixar de

me perguntar se ele se entregara a uma espéciede monomania, abdicando desse modo do mé-todo científico que até então norteara toda asua vida.

‘Contudo, apesar dessa imagem de mistérioque me assombrava os pensamentos, estavacompletamente rendida aos encantos da região.Por cima dessa casa apagada, na vertente da

colina, começava a encosta. Uma longa linha

Page 39: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 39/123

 

[38]

escura, que se poderia observar das colinas ad- jacentes (estendendo-se por muitas milhas, de

norte a sul, e dando lugar a norte a regiõesainda mais inóspitas, a colinas sem cultivo e aabandonadas propriedades privadas), constituíaum território em tudo estranho e inóspito, tão

desconhecido para os ingleses como a Áfricamais profunda. O espaço de alguns campos emsocalcos era a única coisa que separava a casada floresta, e as crianças deliciavam-se quando

me seguiam por carreiros entre arbustos, aolongo de enlaçadas paredes de bétulas claras,até ao cume do bosque, onde poderíamos vis-lumbrar, por um lado e para além do rio, as

 várias elevações de terreno e a muralha monta-nhosa a oeste; e, por outro, a irrompente pro-fusão de miríades de árvores, sobre cumesaplainados, e o mar brilhante e amarelado na

tênue costa muito ao fundo. Eu costumava en-

Page 40: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 40/123

 

[39]

tão sentar-me sobre a relva quente que cobria aestrada romana, enquanto as duas crianças cor-

riam em volta, à procura de bagas que cresciamnas margens do rio. Aí, sob o céu azul e o rolarde nuvens brancas, vindas do mar para as coli-nas, como velhos galeões de velas enfunadas,

escutando os murmúrios do enorme e antigobosque, vivia apenas para me deliciar, e só melembrava de coisas estranhas quando voltáva-mos para casa e encontrávamos o professor

Gregg fechado na pequena divisão que eletransformara em escritório, ou então passeandopelo terraço com o ar entusiasmado e pacientede um pesquisador decidido.

‘Numa manhã, oito ou nove dias depois danossa chegada, olhei pela minha janela e vi to-da a paisagem transformando-se diante dosmeus olhos. As nuvens tinham descido e es-

condiam as montanhas a oeste; um vento sul

Page 41: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 41/123

 

[40]

empurrava a chuva em longas cordas através do vale; e o pequeno riacho, que nascia numa co-

lina abaixo da casa, tinha agora uma torrenteavermelhada, que se apressava na direção dorio. Víamo-nos obrigados a ter de ficar agasa-lhados em casa, e, depois de ter dado as lições

aos meus alunos, sentava-me numa salinha emque os despojos de uma biblioteca ainda ocu-pavam uma velha estante. Inspecionara já essasprateleiras, uma ou duas vezes, mas o conteúdo

das mesmas não me atraíra. Volumes de ser-mões do século XVIII, um velho livro sobre oofício de ferreiro, uma coleção de poemas de“pessoas ilustres”, a Connection   de Prideau, e

um velho volume de Pope eram tudo o que aíse encontrava, e não tinha quaisquer dúvidasde que alguma coisa de mais valor ou de maiorinteresse já fora daí retirada. Então, porém, tal-

 vez movida pelo tédio, comecei a reexaminar

Page 42: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 42/123

 

[41]

essas bolorentas capas de couro e de carneira,encontrando, para minha grande alegria, um

 velho in-quarto, impresso por Stephani, con-tendo os três livros de Pompônio Mela, De Situ

Orbis , e outros de velhos geógrafos. Sabia latimsuficiente para poder perceber as frases mais

comuns, e em breve fiquei entusiasmada poressa mistura de verdade e de fantasia: como aluz que brilhava num pequeno espaço do mun-do e, mais além, seria só neblina e sombras e

formas terríveis. Ao passar os olhos pelas pági-nas claramente impressas, a minha atenção re-caiu no título de um capítulo de Solinus, ondeli as seguintes palavras: MIRA DE INTIMIS

GENTIBUS LIBYÆ, DE LAPIDEHEXECONTALITHO, ou seja, “Maravilhasdas Gentes que Habitam as Partes mais Pro-fundas da Líbia, e Acerca da Chamada Pedra

dos Sessenta.” Esse velho título atraía-me, e eu

Page 43: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 43/123

 

[42]

continuei a ler: Gens ista avia et secreta habitat,

in montibus horrendis, fœda mysteria celebrat.

De hominibus nihil aliud illi præferunt quamfiguram, ab humano ritu prorsus exulant, ode- 

runt deum lucis. Stridunt potius quam loquun- 

tur; vox absona nec sine horrore auditur. Lapi- 

de quodam gloriantur, quem Hexecontalithonvocant; dicunt enim hunc lapidem sexaginta

notas ostendere. Cujus lapidis nomen secretum

ineffabile colunt: quod Ixaxar . “Estas gentes”

traduzi eu, “habitam em lugares secretos e re-motos e celebram revoltantes mistérios em hor-rendos montes. Nada em comum têm com oshomens senão os seus rostos, os costumes da

humanidade são-lhes totalmente desconheci-dos, e odeiam a luz do sol. Ciciam em vez defalarem; as vozes são ásperas e não se podemouvir sem despertar medo. Vangloriam-se de

uma certa pedra, que eles chamam Pedra dos

Page 44: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 44/123

 

[43]

Sessenta, pois dizem que ela exibe sessenta ca-racteres. E essa pedra tem um nome secreto e

inefável, que é Ixaxar.”Ri-me ante a estranha inconsequência de

tudo isso, e achei que talvez essa passagem fi-casse melhor em Simbá o Marujo, ou em outra

das Mil e Uma Noites . Quando vi o professorGregg, durante o dia, contei-lhe o que desco-brira nessa estante e falei-lhe dos perfeitos ab-surdos que tinha estado lendo. Para minha

grande surpresa, ele olhou para mim com umaexpressão de genuíno interesse.

— Isso é mesmo muito curioso — disseele, — nunca achei que valesse a pena pesqui-

sar entre os antigos geógrafos, e creio que perdibastante. Ah, esta é a passagem, não é? Lamen-to muito, mas terei de levar comigo este livroque tanto a estava entretendo.

No dia seguinte, o professor pediu-me que

Page 45: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 45/123

 

[44]

 viesse até ao seu escritório. Vi-o sentado a umamesa, em frente da luz da janela, a escrutinar

muito atentamente um objeto com uma lupa.— Ah, miss Lally — disse ele, — gostaria

de poder contar com o auxílio dos seus olhos.Esta lupa é bastante boa, mas não tanto como a

que deixei em casa. Importa-se de examinaristo e dizer-me quantos caracteres conseguecontar aqui?

Deu-me então o objeto que tinha na mão.

 Vi que se tratava do selo negro que ele memostrara em Londres e senti que o meu cora-ção começava a palpitar só de pensar que iriafinalmente descobrir alguma coisa. Peguei no

selo e, colocando-o sob a luz, examinei um porum esses caracteres grotescos em forma de pu-nhal.

— Conto sessenta e dois — disse-lhe, ao

fim de algum tempo.

Page 46: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 46/123

 

[45]

— Sessenta e dois? Não, é impossível! Ah, já estou vendo o que fez, contou este e mais

este — e apontou para duas marcas que eu jul-gara serem letras como as outras. — Sim, sim— continuou o Professor Gregg, — mas estessão obviamente riscos, sem conexão com o res-

to. Isso foi logo a primeira coisa em que repa-rei… Sim… é mesmo isso… Muito obrigado,miss Lally.

 Já estava indo embora, bastante desaponta-

da por me terem chamado apenas para contaro número de marcas nesse selo negro, quandode súbito me lembrei do que estivera lendonessa manhã.

— Mas professor Gregg — retorqui eu,quase sem fôlego, — o selo, o selo… Trata-seda pedra Hexecontalithos que Solinus mencio-nava, é a pedra a que chamavam Ixaxar!

— Sim — disse ele, — creio que seja

Page 47: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 47/123

 

[46]

mesmo essa pedra, ou então trata-se de umasimples coincidência. Nunca será demais ter-

mos mesmo a certeza quando se trata destascoisas. As coincidências podem dar cabo de umprofessor…

Saí muito intrigada com o que acabara de

ouvir, mais do que nunca frustrada por não terpodido encontrar a verdadeira chave para esselabirinto de estranhos dados. O mau tempodurou mais três dias, mudando de aguaceiros

fortes para um denso nevoeiro que tudo enchiade gotas de umidade. Era como se nos tivessemencerrado no interior de uma nuvem brancaque mantivesse o resto do mundo bem longe

de nós. Entretanto, o professor Gregg continu-ava a desenvolver o seu obscuro trabalho noescritório, sem qualquer vontade, segundo meparecia, de entrar em confidências ou mesmo

de falar, e eu ouvia-o caminhando de um lado

Page 48: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 48/123

 

[47]

para o outro, com passos nervosos, como se jáestivesse cansado de tanta inação. Na quarta

manhã já o tempo mudara, e estávamos senta-dos à mesa onde tomávamos o desjejum quan-do o professor me disse bruscamente:

— Precisamos de mais ajuda nesta casa, de

um rapaz de quinze ou dezesseis anos, não seise me entende... Há muitas pequenas tarefas,que acabam por tomar todo o tempo das cria-das e que um rapaz poderia fazer muito me-

lhor.— Mas creia que as moças ainda não se

queixaram — observei eu. — De fato, a Anneaté mencionou que aqui havia muito menos

trabalho do que em Londres, dado não havertanto pó.

— Ah, sim, são garotas muito dedicadas.Mas acho que poderemos usar a ajuda de um

rapaz. De fato, é precisamente isso que me tem

Page 49: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 49/123

 

[48]

estado preocupando nestes últimos dois dias.— Preocupando-o? — disse eu, muito ad-

mirada, pois o professor nunca se interessarapelos assuntos domésticos.

— Sim — disse ele, — o tempo, não sei seestá vendo. Eu nunca poderia ter saído por esse

nevoeiro escocês. Não conheço muito bem aregião e perder-me-ia com toda a facilidade.Mas esta manhã vou ver se consigo arranjarum rapaz.

— E como sabe se esse rapaz existe nestasimediações?

— Sobre isso não tenho quaisquer dúvidas.Terei apenas de andar dois ou três quilômetros,

mas tenho a certeza de que irei encontrar omoço de que preciso.

Pensei que o professor estivesse brincando,mas, embora o seu tom fosse bastante casual,

havia algo de sombrio e vincado nas suas fei-

Page 50: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 50/123

 

[49]

ções que me intrigou. Vi-o pegar na bengala eficar de pé, junto à porta, meditabundo. Quan-

do voltei a passar pelo corredor, ele chamou-me.

— A propósito, miss Lally, há uma coisaque lhe queria dizer. Já deve ter ouvido falar,

creio eu, do fato de estes rapazes do campo nãoserem lá muito brilhantes. “Pacóvios” seria umtermo demasiado agreste, e acabam por serchamados de “ingênuos”, ou algo desse gênero.

Espero que não se importe se o moço que euarranjar não for dos mais inteligentes. Trata-sede um rapaz perfeitamente inofensivo, é claro,e, para engraxar botas, não lhe será necessário

qualquer esforço mental.E, ao dizer isso, desapareceu, pondo-se a

caminhar pela estrada que conduzia ao bosque,enquanto eu ainda continuava embasbacada.

Foi então que, pela primeira vez, ao meu es-

Page 51: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 51/123

 

[50]

panto se juntou uma súbita impressão de ter-ror, vinda nem sei bem de onde, e totalmente

inexplicável, mesmo para mim, apesar de tersentido por momentos, no meu coração, algosemelhante ao frio da morte, assim como asensação de um medo ainda indefinível do des-

conhecido, bem pior do que a própria morte.Tentei ganhar coragem, respirando a brisa fres-ca que soprava do mar, e na luz do sol que sesucede à chuva; não obstante, esses bosques

místicos pareciam encher-se de penumbras àminha volta, e a visão do rio, serpenteando en-tre os caniços, e o cinzento-prata da velha pon-te, desenhavam-me na mente símbolos de uma

 vaga e horrível premonição, tal como a mentede uma criança imagina coisas tenebrosas nosobjetos mais inócuos e familiares.

‘Duas horas mais tarde, o professor Gregg

 voltou. Encontrei-o quando ainda vinha des-

Page 52: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 52/123

 

[51]

cendo a estrada e perguntei-lhe, com uma vozcalma, se ele tinha conseguido encontrar o tal

rapaz.— Com certeza — respondeu-me. — Pude

encontrar um sem qualquer dificuldade. Cha-ma-se Jervase Cradock, e espero que nos venha

a ser muito útil. O pai dele já morreu há váriosanos e a mãe, com quem tive oportunidade defalar, pareceu-me ter ficado muito contente,dada a hipótese de poder receber alguns xelins

a mais, todos os sábados à noite. Tal como euprevira, não é lá muito esperto e, por vezes,segundo o que a mãe dele me disse, tem ata-ques, mas também não lhe iremos confiar a

louça, de modo que não terá importância, nãoacha? E também não é nada daquilo a que po-deríamos chamar um sujeito perigoso, não seise está vendo, apenas um pouco débil…

— E quando ele chega?

Page 53: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 53/123

 

[52]

— Amanhã de manhã, às oito. A Anne vaiinformá-lo acerca das suas tarefas e do modo

como as desempenhar. A princípio regressará àcasa no fim do dia, mas talvez venha a se tor-nar mais conveniente para ele dormir aqui, eapenas voltar para casa aos domingos.

Não havia nada que eu pudesse dizer acer-ca desse assunto. O professor Gregg falava comum calmo tom de certeza, como conviria a umasituação semelhante. Contudo, eu não conse-

guia dominar a minha sensação de espanto pe-rante tudo aquilo. Sabia que, na realidade, nãoseria necessária mais ajuda no que dizia respei-to aos cuidados da casa, e o fato de o professor

me ter dito que o rapaz que ele iria contratarera um pouco “simples”, seguido por essamesma confirmação, pareceu-me extremamentebizarro. Na manhã seguinte, a criada veio di-

zer-me que o rapaz chegara às oito, e que ela

Page 54: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 54/123

 

[53]

ainda estava tentando arranjar qualquer coisaque ele pudesse fazer.

— Não me parece que seja lá muito certoda cabeça, menina, — comentou ela.

Mais tarde, nesse mesmo dia, vi-o ajudandoo velho que trabalhava no jardim. Era um jo-

 vem com cerca de catorze anos, de olhos e ca-belos negros, com uma tez morena, e vi logo,pela expressão vazia nos seus olhos, que eleteria uma certa deficiência mental. Quando

passei por ele, tocou na testa de um modo cu-rioso, e ouvi-o responder ao jardineiro comuma voz estranha e áspera, que me chamou aatenção. Essa voz quase me pareceu a de al-

guém que estivesse falando desde as profunde-zas da terra, e tinha algo de sibilino, como ochiado de um fonógrafo, à medida que a agu-lha vai percorrendo o cilindro. Pareceu-me es-

tar ansioso por poder fazer o que lhe fosse pos-

Page 55: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 55/123

 

[54]

sível, e era dócil e obediente. Morgan, o jardi-neiro, que conhecia muito bem a mãe dele, as-

segurou-me que esse rapaz nunca fizera mal aninguém.

— Ele é um bocado esquisito — disse-me,— mas também não admira, se pensarmos em

tudo por que a mãe passou antes de ele nascer.Não cheguei a conhecer o pai muito bem, umtal Thomas Cradock, mas sei que era, sem dú- vida, um excelente trabalhador. Apanhou uma

doença nos pulmões, por ter de trabalhar naumidade dos bosques. Nunca se restabeleceu, eacabou por morrer num abrir e fechar de olhos.E dizem que a sra. Cradock quase enlouqueceu.

De qualquer modo, o sr. Hillyer, de Ty Coch,encontrou-a toda enrolada nas Grey Hills, gri-tando e chorando como uma alma penada. E o Jervase nasceu oito meses depois e, tal como

lhe estava dizendo, foi sempre um bocado es-

Page 56: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 56/123

 

[55]

quisito. Até há quem diga que, quando ele malsabia andar, assustava as outras crianças com os

ataques e com os seus guinchos roucos.Uma palavra, nessa história, despertara-me

uma recordação e, com um ar de vaga curiosi-dade, perguntei ao velho onde eram as Grey

Hills.— Lá para cima — disse ele, com o mesmo

gesto que usara antes. — Terá de passar pelataberna Fox & Hounds, e através da floresta e

das antigas ruínas. Fica bem a dez quilômetrosdaqui e é um lugar muito estranho. Segundodizem, é a terra mais árida entre Monmouth eeste ponto, embora tenha boas pastagens para

os carneiros. Sim, foi uma coisa muito tristepara essa pobre sra. Cradock…

O velho voltou ao seu trabalho e eu pus-me a andar pelo caminho, entre um renque de

árvores nodosas e retorcidas pela idade, pen-

Page 57: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 57/123

 

[56]

sando na história que acabara de ouvir e ten-tando encontrar nela o pormenor, ou a chave,

que despertara qualquer coisa na minha memó-ria. De súbito, tudo se tornou claro. Tinha vis-to uma referência às “Grey Hills” no papelamarelado que o professor Gregg retirara da

gaveta da escrivaninha. Uma vez mais, fui do-minada por sentimentos de medo e curiosida-de. Lembrei-me dos estranhos caracteres, copi-ados da pedra calcária e, de novo, das seme-

lhanças destes com a inscrição nesse antiquís-simo selo, bem como das fábulas fantásticas dogeógrafo romano. Vi então que, para além dequaisquer dúvidas, se a coincidência não tivesse

construído todo esse cenário e não tivesse ar-ranjado todos esses bizarros acontecimentoscom uma certa arte, eu ainda iria me tornarnuma espectadora de coisas totalmente fora do

 vulgar e das experiências mais rotineiras da vi-

Page 58: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 58/123

 

[57]

da. O professor Gregg, segundo me dava contacom o passar dos dias, estava entusiasmada-

mente seguindo uma pista e emagrecendo deansiedade.

‘Ao entardecer, quando o sol flutuava notopo da montanha, era vê-lo passeando pelo

pátio, para cá e para lá, com os olhos postos nochão, enquanto a bruma ia alastrando pelo vale, a quietude da noite nos tornava próximascertas vozes distantes, e a fumaça azul volutea-

 va sobre as chaminés facetadas da casa da velhaquinta, tal como a tinha visto, na primeira ma-nhã em que aqui chegara. Já lhe confessei queeu era uma pessoa cética e, embora pouco ou

nada compreendesse, comecei a encher-me dereceio, recitando para mim mesma os repetidosdogmas da ciência, segundo os quais toda a vida é apenas material, e que, no sistema das

coisas, já não existe nada como uma terra ainda

Page 59: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 59/123

 

[58]

por descobrir, mesmo para além das mais re-motas estrelas, onde o sobrenatural ainda pode-

ria encontrar uma certa razão de ser. Todavia,também começava a me intrigar com o fato damatéria poder ser, na realidade, tão misteriosae desconhecida como o espírito, e da ciência

apenas ter aflorado a sua verdadeira natureza,tendo obtido unicamente um vislumbre dassuas mais internas maravilhas.

‘Um dia, porém, destaca-se entre os outros,

como um sombrio farol avermelhado, anunci-ando uma maldade vindoura. Estava sentadanum banco do jardim, vendo o jovem Cradocklimpando os canteiros, quando fui subitamente

surpreendida por um ruído áspero e cavo, se-melhante ao uivo desesperado de um animalselvagem, e fiquei chocada e quase sem falaquando vi o infeliz rapaz, de pé, diante de

mim, com o corpo todo tremendo e convulso,

Page 60: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 60/123

 

[59]

em espasmos intervalados, como se uma cor-rente elétrica lhe estivesse percorrendo o corpo,

fazendo-o ranger os dentes e deitar espuma pe-la boca, enquanto no rosto se lhe desenhavauma horrível máscara de humanidade. Dei umgrito de terror, o professor Gregg veio logo

correndo e, assim que consegui apontar para orapaz, vi que este acabara de cair para a frentee estava agora estendido na terra úmida, ondu-lando como um verme cego, com uma série de

ruídos, cicios e sons incompreensíveis a saírem-lhe dos lábios. Era como se ele vomitasse umalinguagem infame, com palavras, ou com o queme pareceu serem palavras, que poderiam ter

pertencido a uma língua há muito morta e pro-fundamente enterrada nas lamas do Nilo ounos recessos mais escondidos de uma florestamexicana. Por momentos, aflorou-me um pen-

samento, ao sentir os meus ouvidos ainda re-

Page 61: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 61/123

 

[60]

 voltados por esse clamor infernal. — Decerto,trata-se da própria linguagem do Inferno… —

e depois voltei a gritar, repetidamente, enquan-to corria gelada de pavor. Tinha visto o rostodo professor Gregg, quando este se inclinousobre o infeliz rapaz para levantá-lo, e ficara

estupefata ante o brilho de exultação que pare-cia emanar de cada um dos seus traços. Quan-do me sentei no meu quarto, com as portasfechadas e ambas as mãos sobre os olhos, ouvi

passos pesados no andar de baixo, e depois in-formaram-me de que o professor tinha levadoCradock para o seu escritório e fechado a portaà chave. Ouvi vozes como indistintos murmú-

rios, e tremia só de pensar no que poderia estaracontecendo a poucos metros do local onde mesentara. Estava ansiosa por poder fugir para osbosques e para a luz do sol, e contudo, temia

confrontar-me com alguma visão terrível. Por

Page 62: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 62/123

 

[61]

fim, quando já girava nervosamente a maçanetada porta, ouvi a voz do professor Gregg que me

chamava com um tom de animada disposição.— Já está tudo resolvido, miss Lally. O po-

bre rapaz já se restabeleceu, e já fui tratar dascoisas para que ele possa dormir aqui a partir

de amanhã. Talvez eu possa ajudá-lo… — Sim— disse ele mais tarde, — foi uma coisa horrí- vel de se ver, e não me admiro nada que se ti- vesse assustado. Esperemos que uma boa ali-

mentação lhe possa dar mais forças, mas receioque nunca se possa curar completamente…

E adquiria essa triste expressão convencio-nal de desapontamento, que geralmente se as-

sume sempre que se fala de uma doença incu-rável. No entanto, bem por baixo de tudo isso,podia aperceber-me de uma alegria interior quenão ousava encontrar um modo de se exprimir.

Era como se olhássemos para a superfície

Page 63: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 63/123

 

[62]

transparente e plana do mar e víssemos, nassuas profundidades revoltas, uma tempestade

de vagas procelosas. Para mim, tornava-se umproblema premente e angustiante, que essehomem, que me tinha tão bondosamente sal- vado dos rigores da morte e se mostrava em

todos os aspectos da vida tão cheio de piedade,benevolência e premeditada brandura, estivesse,pela primeira vez, tão obviamente do lado dosdemônios, a ponto de obter um prazer mórbido

com as aflições de uma pobre criatura. Paraalém disso, debatia-me com uma dificuldadeespinhosa, tentando encontrar uma solução;mas, sem que pudesse seguir qualquer pista,

sentia-me rodeada pelo mistério e pela contra-dição. Não descobria nada que me pudesseajudar, e comecei a pensar se, afinal, eu nãoiria pagar bem caro o fato de ter escapado do

nevoeiro dos subúrbios. Dei a entender ao pro-

Page 64: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 64/123

 

[63]

fessor alguns destes meus pensamentos, ou pe-lo menos não lhe ocultei o meu estado de

completa perplexidade. Porém, no momentoseguinte, lamentei logo essa minha atitude, ao ver o seu rosto contorcer-se com um espasmode dor.

— Minha cara miss Lally — disse ele, —de certo não estará planejando deixar-nos. Não,não, nunca poderia fazer uma coisa dessas.Desconhece até que ponto eu conto consigo,

como continuo a prosseguir as minhas investi-gações com toda a confiança, sabendo que seencontra aqui, para tomar conta dos meus fi-lhos. Acredite, miss Lally, que você é a minha

guarda-costas, pois deixe-me que lhe diga queos assuntos nos quais me encontro envolvidonão são de todo desprovidos de perigo. Creioque ainda não se esqueceu do que eu lhe disse,

na primeira manhã em que aqui chegamos: que

Page 65: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 65/123

 

[64]

os meus lábios permanecem fechados por umaantiga e firme resolução, até poderem se abrir,

não para pronunciarem uma engenhosa hipóte-se ou uma vaga conjectura, mas fatos irrefragá- veis, tais como os que se demonstram atravésda matemática. Pense melhor, miss Lally, pois

nem por sombras me passa pela cabeça mantê-la aqui contra as suas próprias impressões maispessoais. Contudo, permita-me dizer-lhe queestou persuadido de que é aqui, entre estes

bosques, que residem os seus deveres mais im-portantes.

Fiquei comovida com a eloquência das suaspalavras, e ao lembrar-me de que esse homem,

apesar de tudo, tinha sido a minha salvação,apertei na minha a sua mão, prometendo servi-lo de uma forma leal e sem mais hesitações. Alguns dias depois, o prior da nossa igreja

(uma pequena construção cinzenta, severa mas

Page 66: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 66/123

 

[65]

acolhedora, situada na margem do rio, diantedo movimento das marés) veio visitar-nos, e o

professor Gregg não teve dificuldade em persu-adi-lo a que ficasse mais tempo e jantasse co-nosco. O sr. Meyrick pertencia a uma antigafamília de proprietários rurais, cuja mansão se

situava entre as colinas, a cerca de treze quilô-metros de distância. Há muito enraizado nessaregião, o prior era uma testemunha viva doscostumes desusados e das antigas tradições des-

se local. Os seus modos simpáticos, com umacerta estranheza contida, em breve conquista-ram o professor Gregg e, pela altura em que osqueijos foram servidos, quando um raro vinho

da Borgonha já começava a exercer a sua ma-gia, os dois homens entusiasmaram-se, talvezdevido a essa bebida, e começaram a falar defilologia com o interesse que um burguês poria

na obtenção de um título nobiliário. O prior

Page 67: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 67/123

 

[66]

começara a dissertar acerca da pronúncia dasconsoantes duplas galesas, e a produzir sons

semelhantes ao gorgolejar dos seus ribeiros,quando o professor Gregg o interrompeu:

— A propósito — disse ele, — no outrodia deparei-me com uma palavra muito estra-

nha. Conhece o meu ajudante, o pobre JervaseCradock? Ele tem o mau hábito de falar altoconsigo mesmo e, anteontem, estava eu passe-ando pelo jardim, quando o ouvi. É claro que

ele nem sequer se apercebeu da minha presen-ça. Não consegui decifrar muitas das coisas queele disse. Os sons eram tão estranhos… meiosibilantes, meio guturais, e tão curiosos, com

esses ll duplos de que me tem estado falando.Não sei se poderei dar-lhe uma ideia dessesom, “Ishakshar” é talvez a forma mais apro-ximada que conseguirei pronunciar. Mas esse k

deveria ser um chi grego ou semelhante ao j

Page 68: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 68/123

 

[67]

espanhol. Que quererá isso dizer em galês?— Em galês? — perguntou o prior. —

Não existe tal palavra em galês, nem outra pa-lavra que remotamente se lhe assemelhe. Estoufamiliarizado com o galês literário, como ge-ralmente é designado e, tal como outras pesso-

as, com os dialetos mais coloquiais, mas essapalavra não existe, pelo menos de Anglesea aUsk. Além do mais, nenhum dos Cradock co-nhece uma única palavra de galês, a língua en-

contra-se praticamente morta nesta região.— Acha que sim? Tudo o que diz me inte-

ressa bastante, sr. Meyrick. Confesso que a pa-lavra também não me pareceu galesa, mas pen-

sei tratar-se talvez de uma corruptela local.— Não, de fato nunca ouvi essa palavra

nem nenhuma outra semelhante — acrescen-tou ele, sorrindo enigmaticamente. — Se per-

tence a alguma língua, só se for à das fadas, o

Page 69: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 69/123

 

[68]

Tylwydd Têg, como geralmente é designada. A conversa prosseguiu em torno da desco-

berta de uma villa   romana nas imediações.Mais tarde, abandonei a sala e sentei-me sozi-nha para meditar melhor sobre essas estranhaspistas. Quando o professor mencionara essa

palavra curiosa, reparei como os seus olhos bri-lhavam na minha direção e, embora a pronún-cia que ele sugerira me parecesse por demaisgrotesca, reconheci a palavra que denominava a

pedra com sessenta caracteres, mencionada porSolinius, o selo negro, fechada em alguma ga- veta secreta do seu escritório, para sempre poruma raça extinta com traços que nenhum ser

humano conseguia ler, traços que poderiam,tanto quanto eu podia perceber, constituir o véu de horríveis feitos praticados num tempoimemorial, e esquecido desde a altura em que

as colinas tinham começado a tomar forma.

Page 70: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 70/123

 

[69]

‘Quando desci, na manhã seguinte, encon-trei o professor Gregg no pátio, numa das suas

exaltadas deambulações.— Repare na ponte — disse ele, logo que

me viu, — repare na beleza do seu desenhogótico, nos ângulos entre os arcos, e no tom

prateado das suas pedras cinzentas sob a luz damanhã. Confesso-lhe que me parece quasesimbólica, que deveria ilustrar a alegoria místi-ca da passagem de um mundo para outro.

— Professor Gregg — disse eu, cheia decalma, — já é tempo que eu saiba alguma coisaacerca daquilo que está se passando, ou do queainda poderá acontecer.

Durante alguns momentos, ele tentou ig-norar essa minha observação, mas tornei a fa-zer-lhe a mesma pergunta no fim da tarde, ereparei que o professor exultava de entusiasmo.

— Então ainda não percebeu? — pergun-

Page 71: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 71/123

 

[70]

tou ele, quase gritando. — Mas já a informeide muitas coisas. Sim, e também já lhe mostrei

muitas outras. Creio que terá ouvido quase tu-do o que sei, e que viu o que eu vi, ou, pelomenos… — e o seu tom de voz tornou-se desúbito mais sério — o suficiente, para que tudo

se torne claro como água. As criadas disseram-lhe, não duvido, que esse infeliz rapaz teve ou-tro ataque, anteontem à noite. Acordou-me aosgritos, com essa voz que você ouviu no jardim.

Eu fui vê-lo e, graças a Deus, ainda bem que você nunca chegou a ver o que eu vi, nessamesma noite. Mas creio que estou perdendo omeu tempo. Já não tenho muito mais que fazer

aqui, e creio que deverei regressar à cidade den-tro de três semanas, pois tenho uma série delições a preparar e preciso ter acesso a todos osmeus livros. Alguns dias mais, e tudo terá ter-

minado. Então já não terei de recorrer a insi-

Page 72: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 72/123

 

[71]

nuações, ou ser ridicularizado como um loucoou um charlatão. Não, poderei falar abertamen-

te, e hei de ser ouvido com a emoção que talveznenhum outro homem tenha conseguido cap-tar, dada a estupidez dos seus colegas.

Fez uma pausa, e parecia estar cada vez

mais radiante perante a alegria de uma grandee admirável descoberta.

— Mas tudo isso será ainda num futuro,num futuro próximo, bem sei, mas num futuro

— continuou ele. — Há ainda algumas coisasa fazer. Lembra-se de eu lhe ter dito que as mi-nhas pesquisas não eram totalmente isentas deperigo? Sim, terei ainda de enfrentar algo peri-

goso, que nem sequer imaginava, ao falar ante-riormente sobre o assunto e que, até certo pon-to, ainda ignoro. Mas tratar-se-á de uma estra-nha aventura, da derradeira, do último elo de-

monstrativo de uma cadeia.

Page 73: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 73/123

 

[72]

Percorria a sala, de um lado para o outro, àmedida que ia falando, e eu podia ouvir, na sua

 voz, inflexões conflituosas de exaltação e desâ-nimo, ou talvez devesse dizer de espanto, doespanto e do respeito de um homem que seaventurasse por águas desconhecidas. Pensei

então na sua alusão a Colombo, no dia em queele colocara o livro diante de mim.

‘O fim de tarde foi um pouco frio, e ti-nham acendido grossos troncos numa lareira,

no escritório em que nos encontrávamos. Aschamas remitentes, e o seu reflexo pelas pare-des, recordavam-me os velhos tempos. Estavasentada em silêncio, num cadeirão junto ao

fogo, meditando sobre tudo o que acabara deouvir, ainda especulando em vão sobre as fon-tes secretas que me tinham sido ocultadas sobtoda a fantasmagoria que testemunhara, quan-

do, repentinamente, me dei conta da sensação

Page 74: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 74/123

 

[73]

de que uma certa mudança se operava já nessasala, pois havia algo de pouco familiar no seu

aspecto. Durante alguns momentos olhei em volta, tentando, sem grande sucesso, identificara alteração que sabia ter ocorrido, mas a mesa junto à janela, as cadeiras, o canapé desbotado

permaneciam tal como eu sempre os conhece-ra. Então, tal como um esforço de memória nosirrompe de súbito no cérebro, dei-me conta doque mudara. Encontrava-me em frente da es-

crivaninha do professor, que estava do outrolado da lareira, e, por cima da mesma, via umsombrio busto de Pitt1, em que nunca antesreparara. Só então me recordei da posição ini-

cial dessa obra de arte. No canto mais afastado, junto à porta, havia um armário saliente e, notopo do mesmo, a quatro metros e meio dochão, estava o busto, e aí sem dúvida permane-

 1 William Pitt (1759-1806), ex-primeiro-ministro da Grã-Bretanha.

Page 75: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 75/123

 

[74]

cera, acumulando pó desde o início do século.Estava completamente surpresa, e permaneci

em silêncio, numa confusão de pensamentos.Não existia, tanto quanto me apercebera, ne-nhuma escada de mão nessa casa, pois eu pedi-ra uma para fazer umas quantas alterações nas

cortinas do meu quarto, e, de qualquer modo,um homem alto, em cima de uma cadeira,nunca teria conseguido retirar esse busto dolugar em que se encontrava. Este fora colocado,

não à beira do topo do armário, mas bastantemais recuado, junto à parede. Além do mais, oprofessor Gregg não era de modo algum umhomem alto.

— Mas como é que o senhor conseguiumudar o busto de Pitt? — perguntei-lhe, porfim.

O professor encarou-me de um modo curi-

oso, parecendo hesitar um pouco.

Page 76: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 76/123

 

[75]

— Será que lhe arranjaram uma escada?Talvez o jardineiro lhe tivesse trazido uma do

 jardim…— Não, nunca tive qualquer tipo de esca-

da. Bem, miss Lally… — continuou ele, pre-tendendo desajeitadamente fazer um certo hu-

mor, — eis algo que talvez a possa intrigar, umproblema à maneira do inimitável Holmes. Osfatos existem, claros e revelados. Veja se conse-gue descobrir a solução desse enigma… Pelo

amor de Deus — disse então, com uma vozinsegura, — não me diga mais nada acerca des-se assunto! Posso jurar-lhe que nunca lhe to-quei.

E saiu da sala, com uma expressão de hor-ror bem visível no rosto e, com as mãos ainda atremerem, fechou a porta atrás de si. Olhei em volta da sala, com um vago sentimento de sur-

presa, sem sequer me dar conta do que aconte-

Page 77: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 77/123

 

[76]

cera, aventando toda a espécie de conjecturasque me pudessem dar uma resposta, e pensan-

do no pélago de escuras águas que pudesse es-tar relacionado com a trivial mudança desseornamento. “Trata-se de um assunto sem im-portância em que me pus a pensar”, refleti,

“talvez o professor tenha escrúpulos ou sejasupersticioso em relação a certas banalidades, equem sabe se a minha pergunta lhe teria des-pertado receios que ele não se dignasse admitir,

como se tivéssemos esmagado uma aranha ouentornado sal diante de uma mulher escocesa.”

‘Estava já imersa nesses pensamentos, co-meçando a elogiar a minha imunidade a tais

receios, quando a verdade se abateu pesadacomo chumbo sobre o meu coração e eu reco-nheci, não sem um temor que me causou arre-pios, que alguma terrível influência exercera o

seu poder. O busto era simplesmente inacessí-

Page 78: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 78/123

 

[77]

 vel. Sem um escadote, ninguém poderia tê-lopegado. Fui até à cozinha, e falei o mais baixo

que pude com a criada.— Quem mexeu no busto que estava em

cima do armário, Anne? — perguntei-lhe. —O professor Gregg disse-me que não lhe tocou.

Será que encontraram alguma velha escada emalguma das arrumações?

 A garota olhou para mim, sem qualquerexpressão no rosto.

— Eu nunca mexi nele — disse ela. — En-contrei esse busto no lugar em que agora está,numa destas manhãs, quando fui limpar o pó. Agora me lembro, foi na quarta-feira, pois re-

cordo-me de que o Cradock tinha se sentidomal durante a noite. O meu quarto é mesmoao lado do dele, não sei se você está perceben-do… — A garota continuou então a falar, de

um modo muito compungido: — Foi uma coi-

Page 79: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 79/123

 

[78]

sa horrível de se ouvir… Como ele gritou e dis-se coisas que eu nem conseguia entender…

Deu-me um medo… E depois veio o patrão eeu ouvi-o falar, levou o Cradock até ao escritó-rio e deu-lhe qualquer coisa…

— Então você encontrou o busto mudado

de lugar na manhã seguinte?— Sim. Havia um cheiro esquisito no es-

critório quando eu desci para abrir as janelas,um cheiro horrível, que até me perguntei o que

poderia ser. Sabe, já faz muito tempo que eufui ao Jardim Zoológico de Londres com o meuprimo Thomas Barker, numa tarde em que es-tava de folga, quando ainda servia na casa da

sra. Prince, em Stanhope Gate, e fomos atéuma casinha envidraçada ver as cobras, e posso jurar-lhe que esse cheiro era o mesmo. Aindame lembro de ter me sentido agoniada, e pedi

logo ao Barker para irmos embora. Foi esse o

Page 80: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 80/123

 

[79]

cheiro que senti no escritório e, como estavalhe dizendo, pus-me logo a pensar de onde po-

deria ter vindo. Eis senão quando dou de caracom o busto, em cima da escrivaninha do pa-trão, e pensei: “Quem teria feito uma coisa des-tas e como é que poderiam tê-lo feito?” e

quando fui limpar o pó, reparei no busto, e vinele uma grande marca, onde a poeira e a su- jeira já tinham desaparecido, pois creio queninguém o tinha limpado durante anos e anos.

E olhe que não eram marcas de dedos, masuma grande mancha, larga e espalhada. Demodo que passei a mão por ela, sem mesmome dar conta do que estava fazendo, e essa

mancha era pegajosa e escorregadia, como se oscaracóis tivessem passado por ela. É tudo muitoestranho, não acha, senhora? E sei lá eu quema fez, ou como isso foi feito…

 A tagarelice bem-intencionada da criada

Page 81: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 81/123

 

[80]

impressionou-me muito. Estendi-me na cama emordi os lábios, para que ninguém me ouvisse

chorar, tal era a viva angústia do meu terror eda minha confusão mental. De fato, estavaquase louca de pânico. Acreditava que, se fosseainda de dia, teria fugido a pé sem que nin-

guém disso se apercebesse, atirando para trásdas costas toda a minha coragem e a minhadívida de gratidão para com o professor Gregg,sem me importar sequer se o meu destino seria

morrer lentamente de inanição, desde que pu-desse escapar dessa teia de medo cego e de pâ-nico que, com o passar dos dias, parecia se es-treitar à minha volta cada vez mais. Se ao me-

nos soubesse, pensei, se soubesse o que deveriarecear… eu poderia me proteger dessa ameaça.Porém, ali, nessa casa solitária, cercada por to-dos os lados por um bosque envelhecido, e por

colinas semelhantes a criptas funerárias, o ter-

Page 82: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 82/123

 

[81]

ror parecia irromper sem tréguas, chegando-medos locais mais insuspeitos, arrepiando-me a

pele, com pressentidas insinuações de coisasterríveis.

‘Foi em vão que tentei convocar todo omeu ceticismo, e que, apaziguada pelo senso

comum, tentei fortificar a minha crença na or-dem natural das coisas, pois o ar que sopravapela janela aberta era um hálito místico e, naescuridão, senti que o silêncio se tornava mais

pesado e doloroso, como uma missa de ré-quiem, onde imaginava imagens com estranhasformas, que se juntavam entre os caniços juntoao murmúrio do rio.

‘Logo pela manhã, quando entrei na salaonde tomávamos o desjejum, senti que esseenredo desconhecido se aproximava de um im-passe. O professor mostrava um rosto fechado

e impassível, como se mal parecesse ouvir as

Page 83: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 83/123

 

[82]

nossas vozes quando falávamos.— Irei sair para uma longa caminhada —

disse ele, logo que acabamos a refeição. — Nãodeverão ficar à minha espera, reparem, ou pen-sar que alguma coisa aconteceu se não me vi-rem na hora de jantar. Tenho me tornado es-

túpido, ultimamente, e creio que uma boa ca-minhada, ainda que não muito longa, só mepoderá fazer bem. Talvez passe mesmo a noiteem qualquer estalagem, caso encontre um local

que me pareça limpo e confortável. Ao ouvir isso, soube logo, baseada no meu

conhecimento acerca dos hábitos do professorGregg, que não o movia o desejo de um mero

passeio recreativo. Não sabia, nem poderia se-quer adivinhar para onde se dirigia, nem tinhaa mais vaga noção acerca do seu objetivo, mastodos os receios da noite anterior me domina-

ram, e, ao vê-lo de pé e a sorrir no pátio, já

Page 84: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 84/123

 

[83]

pronto para a jornada, pedi-lhe encarecidamen-te que ficasse e se esquecesse do continente

desconhecido.— Não, não, miss Lally — retorquiu ele,

ainda a sorrir, — agora já é tarde. Vestigia nul- 

la retrorsum 2 é, como deverá saber, a divisa de

todos os verdadeiros exploradores, embora euespere que, no meu caso, não se venha a trans-formar numa verdade literal. Mas, repare, quenão tem razão para se preocupar tanto. Esta

minha pequena expedição não tem nada deespecial, não mais do que a de um dia excitan-te, na companhia de meus martelos geológicos.Há sempre um risco, é claro, tal como no mais

comum dos passeios. Sou um homem desen- volto e não irei fazer nada tão arriscado como oque fazem os ladrões quando os bancos estãofechados. Bem, então terei de parecer mais en-

 2 Não há caminho de volta.

Page 85: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 85/123

 

[84]

tusiasmado, e até amanhã o mais tardar.”Começou, apertando o passo, a subir a es-

trada, e vi-o abrir a cancela que marcava o iní-cio do bosque. Depois desapareceu, por entre apenumbra das árvores. O dia pareceu-me pesa-do e estranhamente sombrio e, uma vez mais,

me senti aprisionada no meio da antiga flores-ta, fechada numa velha terra de terror e de mis-tério, como se tudo se tivesse passado há jámuito tempo e o mundo exterior nos tivesse

esquecido. Tinha esperanças e receios e, quan-do chegou a hora do jantar, fiquei à espera,ansiando por ouvir no vestíbulo os passos doprofessor, e a sua voz exultando sei lá bem por

qual triunfo… Já desenhara uma expressão norosto para acolhê-lo, mas a escuridão da noite já descera e ele não regressava. De manhã,quando a criada me bateu à porta, chamei-a

para lhe perguntar se o patrão já tinha chega-

Page 86: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 86/123

 

[85]

do, e quando ela me disse que a porta do seuquarto vazio ainda estava aberta, senti o frio

abraço do pesadelo. Todavia, ainda me passavapela cabeça que ele tivesse encontrado boacompanhia e que talvez viesse almoçar, ou,quem sabe, aparecesse à tarde, e levei as crian-

ças para passear pela floresta, tentando rir ebrincar com elas o melhor que podia, evitandodesse modo os meus pensamentos de mistério ede terror velado. Esperei hora após hora, e es-

ses meus pensamentos tornaram-se mais de-primentes. Veio a noite e eu ainda estava à es-pera e, por fim, quando já estava acabando de jantar, ouvi passos lá fora e uma voz masculina.

 A criada entrou na sala e olhou para mim deum modo estranho.

— Por favor, senhora — assim começou,— o sr. Morgan, o jardineiro, quer falar consi-

go. Não irá demorar nada, se não se importa.

Page 87: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 87/123

 

[86]

— Mande-o entrar, por favor — disse eu,quase sustendo a respiração.

O velho entrou devagar na sala, e a criada voltou então a fechar a porta.

— Queira sentar-se, sr. Morgan — disseeu, — então, que pretende dizer-me?

— Bem, moça, o sr. Gregg deu-me umacoisa para a senhora, ontem de manhã, antesde partir, e disse-me para não lhe dar antes dasoito da noite em ponto, caso ele ainda não ti-

 vesse voltado para casa, pois, caso o tivesse fei-to, teria de devolvê-la às suas próprias mãos.De modo que, não sei se está entendendo, co-mo o professor Gregg ainda não voltou, acho

que tenho de lhe dar este envelope pessoalmen-te.

Retirou um embrulho do bolso e passou-oàs minhas mãos, levantando-se ligeiramente.

Recebi-o sem comentários e, reparei que Mor-

Page 88: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 88/123

 

[87]

gan não sabia o que deveria fazer a seguir. Agradeci-lhe e desejei-lhe uma boa noite, antes

dele nos deixar. Fiquei sozinha nessa sala, comessa encomenda nas mãos, impecavelmenteselada e dirigida a mim, tal como Morgan medissera, escrita pela caligrafia solta do professor.

Quebrei-lhe o selo de lacre, com um baque nocoração, e, lá dentro encontrei um outro enve-lope sem fechar, também dirigido a mim, onde,numa carta, ele dizia:

Minha querida miss Lally (assim começa- va). Para citar o velho Manual de Lógica, a lei- 

tura desta nota dever-se-á a um erro que, sem

dúvida, eu cometi. Receio que se trate de um

erro que transforme esta minha nota numa es-  pécie de despedida. Quase poderia jurar que

você, e quem quer que seja, não tornarão a me

ver mais. Já fiz o meu testamento, onde inseri

algumas cláusulas, pensando já nessa eventua- 

Page 89: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 89/123

 

[88]

lidade, e espero que consinta aceitar esta pe- 

quena oferta que lhe dirijo, e os meus mais sin- 

ceros agradecimentos, dado o modo como jun- tou ao meu o seu destino. O que me coube é

desesperado e tremendo, e bem para além dos

sonhos mais remotos da humanidade. Mas tra- 

ta-se de um destino que você terá todo o direitode conhecer, se não se importar. Se olhar para

o interior da gaveta esquerda da minha cômo- 

da, irá encontrar nela a chave do meu escritó- 

rio, devidamente etiquetada. Na gaveta falsa daminha escrivaninha está um grosso envelope

selado, com o seu nome. Recomendo-lhe que o

atire sem hesitação no fogo, pois irá dormir

melhor se assim o fizer. Todavia, deverá tomarconhecimento de tudo o que se passou, de mo- 

do que o escrevi, para que o possa ler.

 A assinatura, mais abaixo, revelava uma ca-

ligrafia segura e, uma vez mais, olhei para a

Page 90: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 90/123

 

[89]

página para ler cada palavra, uma a uma, ater-rada e com os lábios já brancos, com as mãos

geladas e esse sentimento doentio que me pare-cia estrangular. Senti a opressão do silêncioabsoluto desse quarto, tal como a dos escurosbosques e das colinas que me cercavam por

todos os lados. Senti-me sozinha e indefesa,sem saber para onde me voltar. Por fim, resolvique, embora o conhecimento devesse orientartoda a minha vida nos dias vindouros, eu deve-

ria tomar ciência do significado desses indizí- veis medos que há muito me atormentavam,cinzentos, vagamente esboçados na sua maishedionda forma, como as sombras no bosque

ao entardecer. Segui, cuidadosamente, as ins-truções do professor Gregg, e não foi sem umacerta relutância que quebrei o selo desse enve-lope, abrindo assim, diante dos meus olhos, o

seu manuscrito, esse manuscrito que sempre

Page 91: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 91/123

 

[90]

trouxe comigo. E já vejo que não poderei meesquivar ao seu desejo, ainda inconfessado, de

lê-lo. Eis, afinal, o que li naquela noite, sentadaà escrivaninha, sob o quebra-luz do candeeiro.

Então, a jovem senhora, que se chamavamiss Lally, começou a ler.

DECLARAÇÃO DE WILLIAM GREGG,Membro da Real Sociedade, etc.

 Já se passaram muitos anos desde que o

 vislumbre de uma teoria, que quase se encontraagora definitivamente reduzida aos fatos, ir-rompeu no meu pensamento. Uma série deextensas leituras, diversas e obsoletas, contribu-

iu para delinear o rumo dos acontecimentos.Mais tarde, quando me tornei até certo pontoum especialista, e me dediquei plenamente aosestudos etnológicos, deparava-me, vez por ou-

tra, com fatos que nem sempre se encaixavam

Page 92: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 92/123

 

[91]

com as ortodoxas opiniões científicas ou comdescobertas que me pareciam sugerir algo que

as nossas pesquisas nunca tinham abordado.Mais concretamente, convenci-me de que gran-de parte dos saberes populares deste mundonão passava de um relato exagerado de aconte-

cimentos que, de fato, teriam ocorrido. Assim,interessei-me particularmente pelas histórias defadas, por esse bom povo das raças celtas. Nes-te caso, julguei detectar um certo exagero e

uma certa margem de elaboração estética, nostrajes fantásticos, nesse povo pequeno vestidode verde e dourado, gozando a companhia dasflores, e pensei ter descoberto uma analogia

específica entre o nome dado a essa raça (su-postamente imaginária) e a descrição dos seusmodos e aparência. Tal como os nossos ante-passados tinham chamado a esses seres “fadas”

e “gênios bons”, precisamente por os temerem,

Page 93: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 93/123

 

[92]

também os tinham vestido de um modo encan-tador, ainda que soubessem que a verdade seria

exatamente o contrário. A literatura tambémcomeçara a trabalhar desde muito cedo, e aju-dara bastante, no que se prendia com essatransformação, de modo que os elfos brinca-

lhões de Shakespeare já se encontram bastanteafastados dos verdadeiros originais, e o medoreal encontra-se disfarçado sob a forma de dia-bruras atrevidas. Mas nas histórias mais anti-

gas, nas que faziam com que os homens sebenzessem, quando se sentavam em volta dasfogueiras, temos um cenário inteiramente dife-rente. Dei-me conta de uma natureza em tudo

oposta, em certas histórias de crianças e dehomens e mulheres que desapareciam estra-nhamente da face da terra. Estes eram geral-mente vistos por um aldeão, no meio dos cam-

pos, a caminharem para alguma pequena colina

Page 94: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 94/123

 

[93]

 verde e redonda, para nunca mais serem vistos.E também havia histórias de mães que tinham

deixado os filhos dormindo sossegadamente,com a porta das suas cabanas rudemente tran-cada com um pedaço de madeira, para regres-sarem, sem que pudessem encontrar esse rosa-

do e gordo pequeno saxão, mas uma criaturamagra e mirrada, com uma pele escura e olhosnegros muito brilhantes, ou seja, uma criançade uma outra raça. Mas ainda havia mitos bem

mais terríveis, que falavam de sábios e de bru-xas, da lúgubre maldade do Sabat, e que suge-riam demônios que se misturavam com as fi-lhas do Homem. E, tal como transformamos

esse terrível “povo das fadas” em toda uma sé-rie de benignos e assustadores elfos, esconde-mos também de nós a negra podridão da bruxae dos seus companheiros, sob populares dia-

bruras de velhas, cabos de vassouras, e gatos

Page 95: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 95/123

 

[94]

cômicos de caudas levantadas. Tal como osgregos chamavam as hediondas Fúrias de da-

mas benevolentes, também as nações nórdicasseguiram o seu exemplo. Fui prosseguindo asminhas investigações, tentando roubar horas aoutros trabalhos mais urgentes, até me deparar

com a seguinte questão: e se essas tradiçõesfossem verdadeiras, quem eram afinal essesdemônios que normalmente participavam nes-ses Sabates?... Não será necessário dizer que

não pus de parte o que se poderia designar co-mo a hipótese sobrenatural da Idade Média,chegando à conclusão de que fadas e demôniospertenciam, vistas bem as coisas, à mesma raça,

tendo também a mesma origem. A invenção,sem dúvida resultante da imaginação gótica deantanho, tinha já feito muito no que se relacio-nava com o exagero e com a distorção. Toda-

 via, acreditava firmemente que, sob toda essa

Page 96: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 96/123

 

[95]

série de imagens, existia um escuro eco de ver-dade. Quanto aos alegados especuladores, hesi-

tei um pouco. Se bem que odiasse recorrer aomais pequeno resquício de espiritualismo mo-derno, acreditando que não conteria o maispequeno grão de autenticidade, também não

estava de todo preparado para negar que a car-ne humana pudesse, vez por outra, talvez uma vez em dez milhões de casos, albergar poderesque nos parecessem mágicos, poderes que, lon-

ge de procederem das alturas para conduziremmais retamente a humanidade, eram na verda-de sobrevivências, emanadas das profundezasdo ser. A ameba e o caracol têm poderes que

nós não possuímos, e eu pensei ser possível quea teoria da regressão pudesse explicar muitascoisas que nos pareciam inexplicáveis. Assim sefortificou a minha posição, e eu tinha razões

para acreditar que grande parte da tradição,

Page 97: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 97/123

 

[96]

uma vasta parte das tradições mais remotas eincorruptas acerca das chamadas fadas, tinha

que ver com fatos verdadeiros, e pensei que oelemento puramente sobrenatural nessas tradi-ções se deveria à hipótese de que, se essa raçadesaparecera na grande progressão evolutiva,

poderia muito bem ter retido, como mecanismode sobrevivência, certos poderes que, para nós,seriam totalmente miraculosos. Assim era ateoria que concebera e para a qual, seguindo

essa perspectiva, parecia encontrar confirma-ções vindas de todos os lados, desde os despo- jos de um sarcófago ou de uma elevação tumu-lar, aos jornais locais que mencionavam antigos

encontros nos campos, e também através detodos os tipos de literatura em geral. Entre ou-tros exemplos, lembro-me de me ter surpreen-dido com a expressão “homens de discurso ar-

ticulado”, em Homero, como se este autor sou-

Page 98: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 98/123

 

[97]

besse ou tivesse ouvido falar de homens cujodiscurso era de tal modo rude que não lhe po-

deríamos chamar “articulado” e, dada a minhahipótese de uma raça que tinha ficado definiti- vamente atrás de outras, podia facilmente con-ceber que esse povo falaria uma linguagem não

totalmente distante dos sons inarticulados dosanimais selvagens. Era nesse ponto que me en-contrava, satisfeito com o fato de as minhasconjecturas, apesar de tudo, não se distancia-

rem assim tanto da verdade dos fatos, quando,por um mero acaso, um parágrafo num jornalde província me chamou a atenção. Tratava-sede um curto relato do que, segundo me pare-

ceu, fora uma sórdida tragédia de aldeia: umamoça desaparecera inexplicavelmente e haviatoda a espécie de constantes insinuações relaci-onadas com a sua reputação. Contudo, eu con-

segui ler nas entrelinhas que esse escândalo

Page 99: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 99/123

 

[98]

fora puramente hipotético, e muito provavel-mente inventado para poder justificar o que, de

outro modo, pareceria totalmente inexplicável.Uma fuga para Londres ou Liverpool, ou umcorpo ainda não descoberto, com uma pedra nopescoço, nas profundidades de um lago no

meio de um bosque; ou até mesmo um assassi-nato, tais eram as teorias dos vizinhos da infelizgarota. Mas, à medida que ia lendo com toda acalma esse parágrafo, um pensamento assaltou-

me com a violência de um choque elétrico: e sea obscura e horrível raça das colinas ainda so-brevivesse? Se ainda assombrasse locais ermos ecolinas desabitadas e, vez por outra, repetindo

as horríveis lendas góticas, ainda existisse, co-mo os turanianos da Ásia ou os bascos de Es-panha? Mencionei que esse pensamento mechegara violentamente e, de fato, sustive a res-

piração e agarrei-me aos braços da minha ca-

Page 100: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 100/123

 

[99]

deira de encosto, com uma mistura de senti-mentos confusos e de fascínio. Era como se um

dos meus confrades das ciências físicas, ao pas-sear por um calmo bosque inglês, tivesse sidofortemente surpreendido pela presença viscosae horrível de um ictiossauro, pela figura origi-

nal das histórias dos tremendos vermes mortospor cavaleiros valorosos; ou tivesse visto o sol aser ocultado por um pterodátilo, o dragão dastradições. Não obstante, como um resoluto ex-

plorador do conhecimento, pensar em tal des-coberta inundou-me com uma paixão de ale-gria. Recortei esse pedaço de jornal e coloquei-o numa gaveta da minha velha escrivaninha,

resolvendo que se trataria apenas do primeirotestemunho numa coleção da mais estranhaimportância. Sentei-me durante muito temponessa noite, a sonhar com as conclusões a que

poderia chegar, sem que reflexões mais frias e

Page 101: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 101/123

 

[100]

objetivas tivessem alterado a minha confiança.Contudo, à medida que ia examinando o caso,

pensei estar construindo-o sobre alicerces ins-táveis. Talvez os fatos se tivessem passado deacordo com a opinião local, e comecei a olharpara esse assunto com toda uma série de reser-

 vas. Todavia, decidi manter-me em alerta, deli-ciando-me com a ideia de que apenas eu estavaatento e desperto, enquanto a grande multidãode pensadores e pesquisadores permanecia

alheia e indiferente a tudo isso, não prestandoqualquer atenção aos fatos mais evidentes. Vá-rios anos se passaram, até ter podido juntarmais qualquer coisa aos conteúdos dessa gave-

ta, e a segunda descoberta não foi de fato valio-sa, pois tratava-se de uma mera repetição daprimeira, apenas com a variante de se tratar deuma outra localidade distante. Porém, acreditei

ter ganho qualquer coisa, pois nesse segundo

Page 102: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 102/123

 

[101]

caso, tal como no primeiro, a tragédia ocorreranum campo ermo e afastado, o que parecia jus-

tificar a minha teoria. O terceiro caso, porém,tornou-se para mim mais evidente. Uma vezmais, no meio das colinas mais despovoadas,longe mesmo do tráfego ou de uma estrada

principal, tinham encontrado um homem bru-talmente assassinado, e o instrumento que omatara fora deixado a seu lado. Aqui, de fato,houve rumores e conjecturas, pois a arma mor-

tal era um primitivo machado de pedra, atadocom tiras de tripa seca a um cabo de madeira, oque dera lugar às mais extravagantes e impro- váveis hipóteses. Contudo, ao pensar nisso, não

sem uma certa satisfação, reparei que as conjec-turas mais ousadas se tinham desviado do ca-minho certo, de modo que me dei ao trabalhode estabelecer correspondência com o médico

residente, que fora chamado quando da inves-

Page 103: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 103/123

 

[102]

tigação judicial. Esse médico, que era um ho-mem com uma certa inteligência, ficou sem

palavras. “Não será bom falar dessas coisas emzonas rurais” escreveu-me ele, “mas, de fato,não há dúvida de que nos deparamos com umhorrível mistério. Consegui ficar com o macha-

do de pedra e quis testar a sua eficácia. Numdomingo à tarde, levei-o até ao jardim, atrás daminha casa, quando a minha família e os cria-dos se encontravam fora, e aí, abrigado entre

ramos de álamos, iniciei as minhas experiên-cias. Achei que esse objeto não era nada fácilde manejar. Talvez requeresse um balanço pe-culiar, um ajuste na altura de lançamento, o

que pressupunha uma prática constante. Se umgolpe certeiro apenas pode ser infligido atravésde uma específica distensão de músculos, é algoque não sei, mas poderei jurar-lhe que voltei a

entrar em casa com uma desiludida opinião

Page 104: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 104/123

 

[103]

acerca das minhas capacidades atléticas. Sentia-me como um homem sem experiência tentando

lançar um martelo. A força que exercia pareciafazer com que o meu braço recuasse, e até mesenti empurrado violentamente para trás, en-quanto o machado se limitava a cair inofensi-

 vamente no chão. Numa outra altura, tentei amesma experiência com um exímio lenhadorlocal, mas esse homem, que manejara o ma-chado durante mais de quarenta anos, nada

podia fazer com essa ferramenta de pedra, efalhou claramente em cada um dos seus golpes.Para resumir, se não fosse tão imensamenteabsurdo, poder-lhe-ia dizer que, pelo menos

durante quatro mil anos, ninguém na face daterra poderá ter desfechado um golpe certeirocom esse machado que, sem dúvida, fora usadopara matar esse homem idoso.”

‘Estas, como se poderá imaginar, eram para

Page 105: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 105/123

 

[104]

mim notícias muito importantes. Mais tarde,quando ouvi todos os pormenores dessa histó-

ria, e vim a descobrir que esse malogrado idosotinha falado em coisas que se poderiam ver ànoite, numa certa encosta selvagem de umacolina, insinuando maravilhas desconhecidas, e

que ele fora encontrado já morto há algumtempo junto à colina em questão, fiquei muitoexaltado, pois acreditei que o cerne dos meuspensamentos não era apenas uma mera conjec-

tura. Mas o próximo passo revelou-se ainda demaior importância. Eu possuíra, durante mui-tos anos, um extraordinário selo, feito de umapedra negra e baça, com cerca de cinco centí-

metros desde a parte de cima até a que efetuavaos carimbos, tendo esta uma forma aproxima-damente hexagonal, com cerca de três centíme-tros de diâmetro. No geral, era semelhante a

um calcador de tabaco, de fabrico antiquado.

Page 106: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 106/123

 

[105]

Ele me fora enviado por um agente no Oriente,que me disse que o tinham encontrado perto

do local onde se situara a antiga Babilônia. Masos caracteres gravados nesse selo eram paramim um enigma insolúvel. Até certo pontoaproximavam-se da escrita cuneiforme, mas

havia algumas diferenças, em que reparara logode início, e todas as minhas tentativas para po-der decifrar essa escrita, semelhante a pontas deseta, acabaram por falhar. Um enigma como

esse ofendia o meu orgulho e, de vez em quan-do, retirava esse selo negro da gaveta da minhaescrivaninha, examinando-o tão prolongada edetalhadamente, que já conhecia de cor cada

letra, podendo mesmo transcrever essa inscri-ção, na sua totalidade, sem ter medo de me en-ganar. Imagine-se então, qual não foi a minhasurpresa, quando um dia recebi de um corres-

pondente meu, no Oeste de Inglaterra, uma

Page 107: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 107/123

 

[106]

carta e uma nota anexa que me deixou absolu-tamente varado de espanto. Vi então, cuidado-

samente desenhados sobre uma folha de papel,caracteres em tudo iguais aos do selo negro,sem qualquer tipo de alteração e, por cima des-ses enigmáticos caracteres, o meu amigo escre-

 vera: Inscrição encontrada numa pedra calcárianas Grey Hills, Monmouthshire. Feita com ter- 

ra ou lama vermelha, e bastante recente . Pegueilogo na carta, onde o meu amigo escrevia: “En-

 vio-lhe esta inscrição com todas as minhas re-servas. Um pastor, que passou por essa pedrahá cerca de uma semana, jura que a mesmanão tinha quaisquer marcas nessa altura. Os

caracteres, tanto quanto pude perceber, foramfeitos usando uma espécie de terra avermelhadae têm uma altura de dois centímetros. Paramim, assemelham-se a caracteres cuneiformes,

embora bastante alterados. Porém, esta hipóte-

Page 108: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 108/123

 

[107]

se não faz qualquer espécie de sentido. Talvezse trate de uma brincadeira, ou mais provavel-

mente de uma mensagem deixada pelos ciga-nos, que grassavam por essa região do país.Estes têm, como deverá saber, toda uma sériede hieróglifos, que por vezes usam para comu-

nicarem uns com outros. Visitei há dois dias apedra em questão, devido a um doloroso inci-dente que aqui ocorreu.”

‘Como se poderá calcular, escrevi imedia-

tamente ao meu amigo, agradecendo-lhe a có-pia dessa inscrição, e sugerindo-lhe, de ummodo desinteressado, que me contasse o inci-dente que mencionara. Para não me alongar

demasiado, tive conhecimento de que uma mu-lher, de apelido Cradock, que perdera o maridono dia anterior, tinha ido comunicar essa infe-liz notícia a uma prima que vivia a cerca de dez

quilômetros, e que seguira por um atalho que

Page 109: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 109/123

 

[108]

passava junto às Grey Hills. A sra. Cradock,que então era ainda jovem, nunca chegou a

casa da sua parenta. Já tarde, nessa mesma noi-te, um camponês, que perdera dois carneirosque se teriam afastado do rebanho, estava pas-sando pelas Grey Hills, com uma lanterna e o

seu cão, quando a sua curiosidade foi desperta-da por um ruído, que ele descreveu como umaforma de lamento muito triste, capaz de rasgaro coração. Guiado por esse som, ele encontrou

essa infeliz sra. Cradock, encolhida e sentadano chão, junto à pedra calcária, balançando ocorpo para lá e para cá, chorando e se lamen-tando de um modo tão aflito, que o camponês,

segundo disse, teve de tapar os ouvidos paranão fugir de imediato. A mulher permitiu quea levassem para casa, e uma vizinha veio ver seela precisava de qualquer coisa. Durante a noi-

te, contudo, ela nunca parou de chorar, mistu-

Page 110: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 110/123

 

[109]

rando palavras numa linguagem ininteligível àssuas lamentações. Quando o médico chegou,

achou que ela tinha enlouquecido. Ela ficou decama durante uma semana e, ora gritava comouma alma penada sem salvação, ora mergulha- va num pesado coma. Todos pensaram que a

dor, ante a perda do marido, lhe alterara o juí-zo, e o médico chegou mesmo a prognosticarque ela não teria muito mais tempo de vida.Não será necessário afirmar que me interessei

imensamente por essa história e que pedi aomeu amigo que me fosse escrevendo, infor-mando-me dos mais mínimos pormenores des-se caso. Vim então a saber que, cerca de seis

semanas depois, a mulher recobrara o uso detodas as suas faculdades e que, alguns mesesmais tarde, dera à luz um filho, de nome Jerva-se, que infelizmente parecia se comportar como

um deficiente mental. Eis os fatos, tal como

Page 111: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 111/123

 

[110]

estes eram conhecidos nessa aldeia, mas, en-quanto eu empalidecia ao pensar nos aconte-

cimentos horríveis que decerto tinham ocorri-do, tudo se transformava para mim numa cer-teza, chegando mesmo, incautamente, a sugeriralgo mais aproximado da verdade a alguns

amigos meus dedicados à ciência. Todavia, as-sim que essas palavras me saíram dos lábios,fiquei logo amargamente arrependido, sobretu-do por ter revelado o grande segredo da minha

 vida. Contudo, foi com um grande alívio mis-turado com uma certa indignação, que me deiconta de que os meus receios não tinham qual-quer fundamento, pois os meus amigos riram-

se na minha cara, como se estivessem peranteum louco, apesar de, com uma ira justificada,me ter sentido tão seguro entre essas cabeçasquadradas, como se tivesse confiado esse meu

segredo às areias do deserto. Mas, conhecendo

Page 112: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 112/123

 

[111]

 já tanta coisa, decidi-me a conhecer tudo, econcentrei os meus esforços na tentativa de de-

cifrar a inscrição do selo negro. Durante mui-tos anos, fizera desse enigma o único objetodos meus momentos de lazer, pois grande partedo meu tempo era dedicada, como seria de se

esperar, a outras tarefas e, só uma vez ou outra,podia dedicar uma semana inteira a essas pes-quisas. Se me atrevesse a contar toda a históriadesta curiosa investigação, o meu depoimento

seria demasiado cansativo, pois consistiria ape-nas num relato das minhas várias e entediantestentativas falhadas. Não obstante, com o meusólido conhecimento de antigos textos, estava

bem equipado para essa minha “caçada”, comosempre intimamente lhe chamara. Correspon-dia-me com quase todos os cientistas da Euro-pa, de fato, até do mundo, e não era capaz de

acreditar que, nesse tempo, quaisquer caracte-

Page 113: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 113/123

 

[112]

res, por mais antigos e intrigantes que fossem,pudessem resistir à luz que, sobre eles, eu faria

incidir. Contudo, eu iria demorar ainda maiscatorze anos antes de obter sucesso. A cada anoque passava, as minhas tarefas aumentavam e omeu tempo livre diminuía. Isto contribuiu bas-

tante para o meu atraso. Porém, quando olhopara trás, para esses anos, surpreendo-me anteos vastos resultados obtidos, no que respeita àminha investigação acerca do selo negro.

Transformei o meu escritório num centro e, detodas as partes do mundo e de todas as épocasreuni transcrições de antigos escritos. Já resol- vera que nada ia ser deixado de lado e que o

menor indício deveria ser sempre bem recebidoe investigado. Quando, apesar de tudo, pistaapós pista dissimulada não me levavam a ne-nhum lado, após todas as minhas tentativas,

comecei, com o passar dos anos, a desesperar e

Page 114: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 114/123

 

[113]

a pensar se esse selo negro não passaria da úni-ca relíquia de alguma raça que há muito desa-

parecera do mundo, sem deixar quaisquer ves-tígios; e que, por fim, tivesse perecido, tal comoa Atlântida, devido a um tremendo cataclismo,e cujos segredos residissem no fundo do oceano

ou enterrados no âmago das colinas. Esse pen-samento esfriou um pouco o meu entusiasmoe, embora nunca tivesse desistido, já não tinhaa mesma fé nem uma igual certeza. O acaso, no

entanto, veio em minha ajuda. Estava de passa-gem por uma bela cidade do Norte da Inglater-ra e tive a oportunidade de visitar o conceitua-do museu que há já algum tempo ali existia. O

curador era um dos meus correspondentes e,enquanto estávamos examinando uma vitrinade amostras minerais, um certo espécime cha-mou-me a atenção. Tratava-se de um pedaço de

pedra preta, com oito centímetros quadrados,

Page 115: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 115/123

 

[114]

cujo aspecto me lembrava vagamente o selonegro. Peguei nele, sem grande cuidado, e esta-

 va a rodá-lo na mão, quando reparei, para mi-nha grande surpresa, que a parte de baixo domesmo continha uma inscrição. Disse, quaseentredentes ao curador, que essa amostra me

interessava e que lhe ficaria imensamente gratose ele me deixasse levá-la para o meu hotel du-rante dois dias. Ele, como seria de se esperar,não me pôs quaisquer objeções, e eu apressei-

me até aos meus aposentos onde me certifiqueide que esse meu primeiro vislumbre não meenganara. Havia nessa pedra duas inscrições:uma em caracteres cuneiformes regulares; outra

contendo os caracteres do selo negro. Dei-meentão conta de que as minhas investigações es-tavam chegando ao fim. Fiz uma cópia exatadas duas inscrições e, uma vez chegado ao meu

escritório em Londres, com o selo diante de

Page 116: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 116/123

 

[115]

mim, poderia finalmente resolver esse grandedilema. A interpretação da inscrição dessa

amostra do museu, embora fosse suficiente-mente curiosa, não se relacionava com o teordas minhas investigações, mas a sua translitera-ção revelou-me o segredo do selo negro. É ób-

 vio que uma certa conjectura teve que entrarnos meus cálculos. Aqui e ali deparava-me comuma certa incerteza em relação a um determi-nado ideograma, e uma marca, que aparecia

repetidamente no selo negro, intrigou-me du-rante as várias noites que se seguiram. Todavia,o segredo revelou-se finalmente diante dosmeus olhos, em linguagem corrente, e pude

então aperceber-me da chave da horríveltransmutação das colinas. Ainda nem sequeracabara de escrever a última palavra quando,com os dedos tremendo, rasguei em pequenos

pedaços essa folha de papel, para os ver arder e

Page 117: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 117/123

 

[116]

tornarem-se negros, na boca da lareira, e mes-mo depois de queimados acabei por reduzi-los

à mais fina cinza. Nunca, desde então, me atre- vi a voltar a escrever essas palavras, pois nuncahei de escrever as frases que nos dizem de quemodo o Homem pode ser reduzido a uma baba

 viscosa e forçado a tomar o aspecto do réptil eda serpente. Só haveria então uma coisa a fazer.Sabia-o, mas desejava ver tudo com os meuspróprios olhos e, após algum tempo, pude alu-

gar uma casa perto das Grey Hills, e não muitolonge da modesta construção onde a sra. Cra-dock e o seu filho Jervase ainda viviam. Nãoserá necessário escrever um relatório completo

e pormenorizado acerca dos eventos que aíocorreram, enquanto escrevo este testemunho.Sabia que iria encontrar em Jervase Cradocktraços de sangue do “Povo Pequeno”, e vim a

saber mais tarde que ele se encontrara, mais do

Page 118: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 118/123

 

[117]

que uma vez, com esses seus parentes, em luga-res isolados dessa terra solitária. Quando um

dia vieram me pedir que fosse até ao jardim e o vi tendo um ataque, falando e ciciando a fan-tasmagórica linguagem do selo negro, receioque o meu entusiasmo se tivesse sobreposto aos

meus sentimentos de compaixão. Ouvi, irrom-pendo da sua boca, os segredos do mundo sub-terrâneo, e essa palavra tenebrosa, “Ishakshar”,cujo significado não me vejo obrigado a revelar.

Não obstante, existe um incidente que não po-derei deixar de assinalar. No vazio perdido danoite, acordei com o som dessas sílabas ciciadasque eu tão bem conhecia e, ao dirigir-me para

o quarto do infeliz rapaz, vi-o em convulsões ea deitar espuma pela boca, debatendo-se nacama, como se ele estivesse tentando se libertardas garras de contorcidos demônios. Levei-o até

ao meu escritório e acendi um candeeiro, en-

Page 119: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 119/123

 

[118]

quanto ele continuava a tremer no chão, pe-dindo ao poder que se apossara do seu corpo

que o abandonasse. Vi então de que modo esseseu corpo começara a inchar e a distender-secomo uma bexiga, enquanto o seu rosto come-çava a escurecer visivelmente. Foi então que,

perante essa crise, fiz o que era necessário, deacordo com as indicações do selo, e ignorandotodos os meus escrúpulos, tornei-me um cien-tista que se limitou a observar o que estava

acontecendo. No entanto, o que vi foi horrível,quase bem para lá da capacidade de qualquerconcepção humana ou da mais tremenda fanta-sia. Algo tentava sair desse corpo estendido que

se agitava pelo chão e, esticando um trêmulo e viscoso tentáculo, através do escritório, essaentidade agarrou no busto que estava em cimado armário e colocou-o sobre a minha escriva-

ninha. Quando tudo terminou, e eu fiquei ali, a

Page 120: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 120/123

 

[119]

andar de um lado para o outro o resto da noite,sobressaltado, pálido e encharcado de suor, ten-

tei em vão pôr ordem nos meus pensamentos:convenci-me, assim, de que não vira nada desobrenatural, e de que um caracol, ao estendere encolher as hastes, seria uma visão, em me-

nor escala, do que de fato eu vira. Mas um pro-fundo terror parecia irromper de todos essesmeus raciocínios e me deixava tremendo echeio de ódio de mim mesmo, sobretudo pela

parte que me coubera nas peripécias dessa noi-te. Não haverá muito mais que eu possa acres-centar. Dirijo-me agora para a prova final epara o derradeiro encontro, pois há muito de-

cidi que não iria simplificar as coisas, e hei-deencontrar-me com esse “Povo Pequeno” cara acara. Terei comigo, como ajuda, o selo negro eo conhecimento dos seus segredos e, se infe-

lizmente não regressar da jornada que me espe-

Page 121: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 121/123

 

[120]

ra, não haverá sequer necessidade de se conce-ber qualquer imagem acerca do horror do meu

destino.Fazendo uma pequena pausa, após o fim

do depoimento do professor Gregg, miss Lallycontinuou a contar a sua narrativa do seguinte

modo: Assim era a história quase incrível que o

professor nos deixara. Quando acabei de lê-la, anoite já ia avançada; porém, no dia seguinte,

levei Morgan comigo e iniciamos a nossa buscapelas Grey Hills, à procura de qualquer rastodesse professor desaparecido. Não irei incomo-dá-lo com a descrição da erma tristeza dessa

zona campestre, uma zona mergulhada na maiscompleta solidão, cheia de verdes colinas deser-tas, manchadas de cinzentos pedregulhos calcá-rios, esculpidos pela erosão do tempo, em for-

mas que fantasticamente se assemelhavam a

Page 122: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 122/123

 

[121]

homens e animais. Finalmente, após muitashoras de aturada busca, encontramos o que já

lhe contei: o relógio de bolso e a corrente, abolsa e o anel, embrulhados num pedaço derude pergaminho. Quando Morgan cortou osfios de tripa seca que atavam esse embrulho e

eu vi os pertences do professor, desatei a cho-rar. Mas, os malditos caracteres do selo negro,escritos nesse pergaminho, gelaram-me de hor-ror, e foi então que percebi, pela primeira vez,

o destino horrível que se abatera sobre o meufalecido empregador.

‘Apenas me resta acrescentar que o advo-gado do professor Gregg reagiu ao meu relato

do que se passara como se fosse uma históriade fadas, recusando-se mesmo a dar uma vistade olhos pelos documentos que eu colocara di-ante dele. Foi esse mesmo advogado o respon-

sável pela informação que mais tarde apareceu

Page 123: Arthur Machen [=] A novela do selo negro

7/17/2019 Arthur Machen [=] A novela do selo negro

http://slidepdf.com/reader/full/arthur-machen-a-novela-do-selo-negro 123/123

 

nos jornais, afirmando que o professor Greggse afogara, e que o seu corpo deveria ter sido

arrastado para o mar.Miss Lally parou então de falar e olhou pa-

ra o sr. Phillipps com uma expressão interroga-tiva. Este, por sua vez, estava muito pensativo,

entregue a um profundo devaneio, e quandolevantou os olhos e reparou na azáfama que,nesse fim de tarde, se espalhava pela praça(homens e mulheres que iriam compartilhar

um próximo jantar, e as multidões que já co-meçavam a encher os teatros de variedades),todo esse ruído da vida real, tudo lhe deve ter