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ARTIGAS E JOVELLANOS: A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO
ARTIGUISTA A PARTIR DO DEBATE AGRÁRIO ESPANHOL NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XVIII
PEDRO VICENTE STEFANELLO MEDEIROS
Mestrando em História - UFF
Objetivamos neste artigo discutir o arcabouço intelectual referente à construção
do pensamento de José de Artigas em relação a terra. O que tornou possível Artigas, no
contexto em que estava inserido, desenvolver um pensamento agrário tão singular,
sintetizado no “Reglamento Provisorio de la Provincia Oriental para el fomento de su
campaña y seguridade de sus hacendados” de 1815.
Apreciam-se na historiografia, muitas vezes de forma vaga, que o ideário de
Artigas é tributário do pensamento ilustrado do século XVIII, até mesmo das
“ordenações filipinas”. Todavia, os estudos com maior rigor historiográfico demonstram
que as ideias agrárias de Artigas são oriundas da tradição jurídica espanhola, e de forma
mais direta, das medidas concernentes ao “arreglo de los campos”, um programa das
autoridades reais para organizar e modernizar o panorama rural durante o período do
Reformismo Bourbônico na região platina.
As disposições do “arreglo de los campos”, já foram bastante debatidas pelos
historiadores, no entanto, acreditamos que seja necessário repensar o contexto de análise
aprofundando a discussão acerca do substrato ideológico que alicerçou tais medidas.
Neste sentido, é interessante contemplar a profusão de ideias agrárias no cenário
europeu, e mais especificamente o debate espanhol da segunda metade do século XVIII.
Portanto, utilizaremos para realizar nossa discussão o “Informe de Ley Agraria
de 1794” de Gaspar Melchor Jovellanos, que expressa o conteúdo ideológico das
discussões espanholas, fazendo uma interlocução com o “Reglamento de Tierras de
1815”, que sintetiza a política agrária artiguista.
Um dos principais trabalhos que estudaram as origens da politica agrária de
Artigas foi o livro “Bases Económicas de la Revolución Artiguista” de Barrán e Nahum
(1964). Os autores fazem uma análise quanto aos antecedentes da revolução, discutindo
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as bases que deram fôlego ao projeto de José Gervásio. No que concerne ao regramento
de terras, os autores desenvolvem uma reflexão sobre “revolução” e “tradição”,
discorrendo pontualmente a respeito da relação entre a política agrária de Artigas e os
antecedentes espanhóis no que se refere ao “arreglo de los campos”:
Cuando Artigas en 1815 dictó su “Reglamento Provisorio de la Provincia
Oriental para el Fomento de su Campaña y Seguridad de sus hacendados”,
hacía unos cuarenta años que las autoridades españolas escribían Memoriales,
proponiendo planes y soluciones para lo que en el habla colonial se llamó “el
arreglo de los campos”(BARRÁN; NAHUM, 1964, p.74,75).
Barrán e Nahum postulam que o plano agrário artiguista tem na tradição
espanhola um forte referencial, no entanto, inova criando um “verdadeiro direito
revolucionário” no que diz respeito à distribuição de terras, o que segundo os autores
qualificaria o sentido mais original do projeto. Contudo, é preciso repensar esse ponto
partindo justamente dos memorialistas espanhóis citados por Barrán e Nahum.
Dentre tais memorialistas, um dos mais discutidos pela historiografia foi Don
Félix de Azara. Militar, engenheiro, geógrafo, naturalista e pensador político, Azara foi
reconhecido em sua época como uma figura exponencial dentre o iluminismo espanhol.
Suas atribuições intelectuais e os exitosos trabalhos que o mesmo tinha desempenhado
na Espanha, fizeram com que Azara fosse nomeado para compor a partida demarcadora
do Tratado de Santo Ildefonso, assinado entre as coroas ibéricas em 1777. Encarregado
de definir as fronteiras relativas ao Paraguai e ao Prata, Félix de Azara embarca para a
América em 1781, ficando no continente americano até 1801.
Nos últimos anos de sua jornada, Don Félix foi incumbido de estabelecer um
projeto de povoamento na fronteira norte da Banda Oriental. O ápice dessa empresa foi
a fundação da Villa de Batoví a partir de 1800, em um dos pontos mais destacados ao
norte da fronteira, localização que hoje faz parte do território do Rio Grande do Sul.
Curiosamente, o “Ayudante Oficial” de Azara nessa campanha foi José Artigas, fato que
justifica uma hipótese da historiografia, a qual concordamos, que Félix Azara teria
exercido vital influência na construção do pensamento agrário artiguista. Entretanto,
entendemos que seja necessário rediscutir essa relação aprofundando a análise do
desenvolvimento intelectual que sustentou ideologicamente projetos como esse
desenvolvido por Azara e Artigas.
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Durante o século XVIII se observou na Europa o desenvolvimento do
pensamento iluminista. Um pensamento que pretendia definir a organização dos homens
no mundo a partir de uma lógica racional, em reação ao pensamento religioso, onde a
vida dos humanos era orientada por uma ótica divina. No caso ibérico, o pensamento
iluminista incidiu fundamentalmente na organização administrativa do aparelho de
estado, a fim de tornar o mesmo mais eficaz. As coroas espanhola e portuguesa se
valeram dessa racionalidade para resolver suas querelas fronteiriças na América. Uma
experiência que reflete a aplicação destes princípios racionais nos assuntos do estado foi
a configuração do Tratado de Madri em 1750:
O principio do Uti Possidetis nas negociações de Madri também representava
uma mudança nas discussões tradicionais entre portugueses e espanhóis. Até
então, os argumentos giravam em torno de diferentes interpretações do
Tratado de Tordesilhas, fundado ainda numa visão escolástica de mundo que
sugeria a autoridade temporal do papa sobre os príncipes. Já o Uti Possidetis
que inspirava o novo tratado era derivado do Direito Natural inglês (MENZ,
2009: p. 40,41).
O princípio de uti possidetis que balizou o Tratado de Madri implicava na
afirmação das fronteiras a partir de um processo de ocupação. Observaram-se câmbios
radicais no pensamento ocidental, que em seu desenvolvimento vinha reorganizando as
formas de vivência humana a partir de um sentido racional, tendo uma larga influência
na lógica da colonização ibérica.
A partir da nova política diplomática era necessário conjuntamente à
demarcação das fronteiras um processo de povoamento. Esse elemento evidencia que a
noção de propriedade ganhava outras fundamentações, implicando diretamente nos
projetos de colonização. Ou seja, partindo de uma perspectiva mais ampla, em uma
dimensão atlântica, reverberava no contexto colonial a profusão de teorias econômicas
na Europa, as quais a questão da terra ocupava um lugar central nas mesas de debate.
No epicentro dessa efervescência intelectual, figuravam obras como “A Riqueza
das Nações” de Adam Smith, enfatizando a ideia da propriedade privada da terra e a
livre iniciativa individual. Nesse contexto, a ênfase no caráter privado das propriedades
agrárias também ganhava amplitude com o desenvolvimento do pensamento fisiocrata.
Economistas como Quesnay e Mirabeau defendiam a inviolabilidade da propriedade
individual ressaltando a primazia da agricultura na base do sistema econômico.
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Segundo Marc Bloch (2001, p.327), foi um fato europeu do século XVIII
diversas tentativas de reforma agrária, rompendo com as antigas servidões coletivas,
sendo na Inglaterra onde se obteve mais sucesso. No entanto, tais intentos se esboçaram
por toda parte, sendo um movimento geral, porque respondia a uma doutrina, às vezes
processada, e às necessidades, mais ou menos claramente sentidas, dos mais poderosos
entre os exploradores, desejosos de adaptar seus métodos a uma técnica e a uma
mentalidade econômica igualmente nova. Conforme o mesmo, a antiga agricultura na
França, por exemplo, fundava-se nos cereais e a ambição da “agricultura nova” era a de
especializar racionalmente os solos; além disso, incrementos a produção de gado,
indispensável ao rendimento do proprietário de terras semeador (BLOCH, 2001, p.344).
Podemos entender a “agricultura nova”, que cita Bloch, como um processo de
racionalização das técnicas e métodos agrários. Constituiu esse processo uma série de
estudos agronômicos que propunham novas formas de cultivo e novos procedimentos na
organização da dinâmica rural. Entre os nomes mais difundidos podemos citar dois:
Duhamel de Monceau com seu “Traité de la culture de terres” de 1750 e Abbé François
Rozier que desenvolveu o “Cours complet d’agriculture” publicado em dez volumes
entre 1781 e 1800. Rozier construiu uma enciclopédia de ciências agrícolas que
compreendia conceitos botânicos, médicos, veterinários e de história natural, não
figurando somente no campo técnico e científico, tratando também de problemas
filosóficos e sociais da economia rural. Sua obra foi um dos principais difusores das
ideias da “agricultura nova” naquele contexto:
Rozier, miembro, entre otras diversas instituciones de su tiempo, de la
prestigiosa Academia de Ciencias de París, ponía sus ideas agronómicas al
servicio de una sociedad rural armónica y, en este sentido, su obra ha sido
apreciada como una precursora de autores como Fourier. En cualquier caso,
en cuanto obra enciclopédica cumbre de la agricultura nueva, su Cours fue
una poderosa vía para la difusión internacional de los principios de esta
característica corriente agronómica de la Ilustración anglo-francesa durante
los años de tránsitode los siglos XVIII al XIX (ASTIGARRAGA; UZOS,
2007, p. 431).
Um dos lugares onde os escritos de Rozier tiveram bastante respaldo foi na
Espanha, sendo traduzidos por Juan Alvaréz Guerra entre 1797 e 1803. Já conhecido
por alguns intelectuais espanhóis, mesmo do original em francês, o “Cours” de Rozier
ganhou maior abrangência em um cenário que presenciava intensos debates agrários e
econômicos desde a metade do século XVIII.
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Este panorama foi possível em função do programa político implementado pelo
monarca Carlos III, em um processo conhecido como “Reformismo Bourbônico”.
Observaram-se um conjunto de transformações agrícolas que buscaram o
desenvolvimento econômico mediante o crescimento da produção. Essa perspectiva
adotada pelo governo espanhol acompanhou uma tendência comum a diversas
economias europeias daquele período:
(…)la política de comercio y aprovisionamento de granos constituyó un
elemento central de los debates que acompañaron el tránsito de las economías
europeas desde el Antiguo Régimen al sistema liberal y que esos debates
encerraron una diversidad de factores de enorme trascendencia de cara a la
interpretación de aquellos elementos que favorecieron ese tránsito, toda vez
que en ellos se hallaban implicadas cuestiones no sólo económicas, como la
garantía de la subsistencia de la población o el crecimiento del Estado, sino
también otras de índole política o, sencillamente, de estricto orden y control
sociales (ASTIGARRAGA; UZOS, 2007, p. 428).
Neste sentido, o contexto propiciado pelas políticas reformistas de Carlos III
proporcionou aos ilustrados espanhóis certa pluralidade interna e uma dinâmica
intelectual bastante singular. Neste momento, a preocupação com o desenvolvimento
agrícola teve um papel central na pauta de discussões da ilustração espanhola:
En la España peninsular, hacia la década de 1760 comenzaron a dares una
serie de câmbios políticos y jurídicos que también tendieron a revisar los
critérios de la explotación de esos recursos naturales. La perspectiva de los
“ilustrados”, como Gaspar Melchor de Jovellanos, se oriento entonces hacia
“princípios individualistas”, los que irian acompanhando los câmbios
socioeconómicos que se estaban produciendo. Era el tempo de Campomanes
y las leyes liberales sobre la circulación de granos (FREGA, 2011, p. 33).
Entre as medidas implantadas pelo projeto da coroa foi lançado em 1777 um
édito real, através do conde de Campomanes, fiscal do “Consejo de Castilla”, que
encomendava à “Sociedad Matritense de Amigos” um “Expediente general de Ley
Agraria”. A solicitação de tal documento convocava aos intelectuais espanhóis
proporem e sistematizarem soluções para combater a decadência do mundo rural. Esse
“Expediente” originou o “Informe de Ley Agraria” escrito por Gaspar Jovellanos e
publicado pela “Matritense” entre 1794 e 1795 (LLOMBART, 1995, p.554).
Compreendido em sua complexidade, os escritos de Jovellanos expressam com
profundidade o conteúdo dos debates agrários espanhóis que viemos tratando até o
momento. Por este motivo, acreditamos que o “Informe de Ley Agraria” seja uma fonte
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interessante para realizarmos a interlocução entre a construção do pensamento de
Artigas e o contexto intelectual espanhol da segunda metade do século XVIII.
O “Informe de Ley Agraria” configurou Gaspar Jovellanos como um dos
principais intelectuais da ilustração espanhola. O autor desfrutou de condições
favoráveis para a construção de seus estudos, sendo expressos nos mesmos, a
pluralidade do pensamento agrário espanhol do contexto pautado pelas políticas
reformistas de Carlos III. Entretanto, no momento de finalização e de publicação de sua
obra, Jovellanos enfrentou uma situação um tanto adversa e conturbada. Nesta ocasião,
o trono estava sendo ocupado por Carlos IV, cujo pensamento político destoava bastante
do espirito reformador e ilustrado de Carlos III. Portanto, os projetos agrários não
figuravam mais como prioridade, bem como o ambiente propício aos debates dos
intelectuais estava se fechando:
Enraizado en uno de los proyectos más importantes del reformismo ilustrado
anterior a 1789 y representativo de uno de los logros culminantes del
pensamiento económico de las luces españolas, vino a madurar un poco a
destiempo, acabó por florecer cuando las condiciones propicias para la
aplicación del programa ilustrado actuahzado que proponía el texto se habían
esfumado. En 1795 no existía ya el gobierno ilustrado que sin duda
necesitaba tal programa para remover los estorbos contrarios al crecimiento
económico, no existía tampoco un mínimo clima de tolerancia para la
discusión de los assuntos públicos (el Informe fue inicialmente expedientado
por la Inqmsición en enero de 1796), e incluso las violaciones de aquella
«paz universal» considerada por Jovellanos como requisito para el progreso y
la felicidad humana comenzaban a ser de tal intensidad —en el periodo
abierto de guerras postrevolucionarias— que dejaban escaso margen de
maniobra (LLOMBART,1995, p.555-556).
Conforme Llombart destacou, a última década do século XVIII exerceu uma
influência ambivalente e paradoxal na aparição do texto de Jovellanos, pois ao mesmo
tempo apresentou condições favoráveis para a escrita, mostrou-se desfavorável para a
recepção política da obra. De acordo com a análise feita por Vincent Llombart em seu
artigo “Una nueva mirada al Informe de Ley Agraria de Jovellanos doscientos años
después” (1995), o trabalho de Jovellanos começou a ter grande reconhecimento e gozar
de um ativa vitalidade logo após a sua morte. Em janeiro de 1812, dois meses após o
falecimento do autor, as Cortes de Cádiz o declararam benemérito da pátria e
recomendaram o uso de seu “Informe” pela Comissão de Agricultura, introduzindo,
portanto, a obra de Gaspar Jovellanos na arena política do século XIX na Espanha.
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No artigo citado, Llombart realizou uma breve revisão historiográfica acerca dos
estudos que buscaram entender o pensamento de Jovellanos. Discorre que o trabalho
pioneiro foi de Jesús Prados Arrarte, publicado em 1945 e reeditado em 1967,
assinalando que Jovellanos fora um “postmercantilista” se distanciando do pensamento
fisiocrata e do liberalismo “smithano”. Em 1947 aparece o estudo de José Maria
Naharro, que além de revisar os excessos valorativos de Arrarte, propôs um esquema
metodológico alternativo para interpretar as idéias “jovellanistas”. Ao invés de tentar
inseri-lo em modelos fechados ou esquemas racionais de duvidosa relevância, produzir
uma reflexão mais conectada com o conjunto de sua obra e com o mundo econômico
em que estava inserido.
Em 1991, Luis Fernandez advertiu em Jovellanos um deslumbramento pelas
teses de Smith previamente a redação do “Informe”. Em estudos publicados entre 1988
e 1994 Manuel Gonzalez e Rafael Anes reiteraram que Jovellanos foi um economista
“smithano” e que aplicou em seus escritos o essencial do núcleo teórico de a “Riquezas
das Nações”. Essas interpretações “smithanas” do “Informe de Ley Agraria” resultaram
em um marco interpretativo acerca de Jovellanos, situando sua obra como uma ruptura
ou descontinuidades com os economistas espanhóis anteriores, como por exemplo,
Olavide e Campomanes. Desta forma, nasceria na Espanha, um novo liberalismo
econômico, que influenciado pelas idéias de Adam Smith, aparecia em contraposição à
tradição ilustrada anterior, mais intervencionista e mercantilista.
Contudo, Llombart discute essa interpretação desconstruindo o automatismo da
contraposição entre as luzes liberais e os preconceitos mercantilistas. Essa matriz
interpretativa leva a um caminho que mais oculta do que revela. Pensar a evolução do
pensamento econômico na Espanha do século XVIII a partir de esquemas pré-
determinados, forçando-se o enquadramento das ideias em ou outro esquema, acaba por
minimizar ou eliminar elementos singulares que compõem o conjunto de cada
pensamento. Concordamos com o autor quando ele atesta que é importante pensar a
construção intelectual do pensador como uma singular composição de procedência
plural (LLOMBART, 1995, p.573).
Portanto, Jovellanos não fora essencialmente um mercantilista, um liberal nem
um fisiocrata, foi um produto peculiar da pluralidade de seu contexto. O “Informe” não
consistiu em uma ruptura ou descontinuidade com os trabalhos de Campomanes e
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Olavide, foi muito mais uma atualização e uma racionalização da tradição intelectual
que vinha sendo desenvolvida.
È partindo deste prisma que queremos estabelecer a relação entre Artigas e
Jovellanos. Compreender a construção do pensamento agrário artiguista inserida no
bojo de um processo iniciado pelo Reformismo Bourbônico e reconfigurado a partir da
situação singular do “Virreynato del Plata”, e não como uma mera gestação das
independências. Um período que comportava, concomitantemente, decisivas rupturas e
inevitáveis continuidades com o Antigo Regime (CHIARAMONTE, 1997).
Não estamos propondo aqui, que o “Informe de Ley Agraria” tenha influenciado
diretamente a elaboração do “reglamiento” de Artigas. Nosso foco de discussão é a
inserção do debate agrário espanhol da segunda metade do século XVIII, o qual a obra
de Jovellanos expressa com complexidade, no desenvolvimento do pensamento de José
Artigas em relação a Terra.
No inicio de nosso texto mostramos a reflexão de Barrán e Nahum, discutindo a
formação da política agrária de Artigas numa dinâmica entre a “tradição” e a
“revolução”. Concordamos com os autores que essa dinâmica faça sentido, todavia,
como já mencionamos, achamos necessário aprofundar a mesma inserindo-a no debate
que viemos realizando ao longo da discussão. Um dos pilares do projeto artiguista foi
tangente à distribuição de terras, como se percebe no primeiro parágrafo do
“Reglamento” extraído do livro de Barrán e Nahum:
“1°. El señor alcalde provincial, además de sus facultades ordinarias, queda
autorizado para distribuir terrenos y velar sobre la tranquilidad del
vecindario, siendo el juez inmediato en todo el orden de la presente
instrucción”(In: BARRÁN; NAHUM, 1964, p.126).
A distribuição de terrenos e era o primeiro passo para fomentar a economia do
estado nascente. Como já foi trabalhado densamente por Barrán e Nahum (1964) e por
Sala de Touron, Rodriguez e De La Torre (1967), um dos componentes dessa medida
tinha por objetivo solucionar um dos maiores problemas do mundo rural colonial, do
qual já haviam se ocupado as políticas do “arreglo de los campos” e não obtendo
sucesso, as terras desocupadas e os proprietários absenteístas. Se recorrermos à
Jovellanos, observaremos como essa questão também era um problema na Espanha
peninsular, e como era um tema central dos debates ilustrados:
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Estas reflexiones bastan para demostrar á Vuestra Alteza la necesidad de
acordar la enajenacion de todos los baldíos del reino. ¿Qué manantial de
riqueza no abrirá esta sola providencia cuando, reducidos á propiedad
particular tan vastos y pingües territorios y ejercitada en ellos la actividad del
interés individual, se pueblen, se cultiven, se llenen de ganados y produzcan
en pasto y labor cuanto pueden producir? (JOVELLANOS, 1820, s/p.).
Jovellanos advoga junto ao Rei a importância de arrendar as terras baldias no
desenvolvimento da economia. Percebe-se neste ponto, o caráter liberal de seu
pensamento, o impulso econômico através do interesse individual, racionalizando-se a
produção reduzida em propriedades particulares. É preciso entender esta lógica inserida
no pensamento de Artigas em meio ao contexto da revolução, um momento de
turbulento, de muita carestia, a política econômica como uma questão de sobrevivência.
Portanto suas medidas traduzem a necessidade de organizar a produção para render o
máximo de frutos possíveis, que neste caso, o principal produto era o gado, sendo
indispensável reduzi-lo e dispensa-lo o máximo de cuidado possível, como se nota neste
parágrafo do regulamento:
“22°Para facilitar el adelantamiento de estos agraciados quedan facultados el
S.or Alc.e Prov.l y los três subtenentes de Provincia, quienes unicamente
podrán dar licencia para que dichos agraciados se reunan y saquen animales
vacunos como caballares de las mismas estancias de europeos ó malos
americanos que hallasen en sus respectivas jurisdicciones. En Manera alguna
se permitira que ellos por si solo lo hagan: sempre se les señalara un Juez
pedáneo ú outro comissionado, para que no se destrozen las haciendas en las
correrias y que las que se tomen se distribuyan com igualdad entre los
concorrentes debiendo igualmente zelar así el Alc.e Prov.l como los demas
subalternos, que d.hos ganados agraciados no sean aplicados a outro uso que
el de amansarlos, caparlos y sujetarlos á rodeo” (In: BARRÁN; NAHUM,
1964, p.129).
Nos parágrafos seguintes, em função da escassez de animais, se proíbe as
matanças desmedidas, enfatizando o cuidado com as fêmeas até que a campanha esteja
reestabelecida. Também foi o proibido o translado de tropas para os domínios
portugueses, pois além de estes últimos serem inimigos de guerra, se intentava frear as
intensas redes de contrabando. Esta prática marcou o desenvolvimento daquela região,
no Rio da Prata colonial, as fronteiras entre Portugal e Espanha produziram uma
sociedade muito singular, na qual a linha da legalidade era bastante tênue.
Artigas também era um contrabandista, portanto é preciso entender o combate ao
contrabando não apenas do ponto de vista jurídico, como também, das condições em
que tais trâmites eram realizados, sem nenhum tipo de cuidado com os animais. No 22°
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parágrafo se percebe a advertência para evitar as correrias a fim de evitar a destruição
das manadas. O parágrafo 25 indica para que se prendam aos malfeitores e desertores,
bem como, para que se desterrem os vagabundos.
Naquele contexto, onde o limite entre o legal e o ilegal era bastante fluído, estes
agentes do contrabando eram ao mesmo tempo os campesinos que compunham a força
social de Artigas. Neste sentido, pretendia-se organizar aquele panorama rural
assentando a população em pequenas propriedades rurais:
6º) Por ahora el Sor. Alcalde Provincial y demás subalternos se dedicaran a
fomentar con brazos utiles la población de la campaña. Para ello revisará
cada uno en sus respectivas jurisdicciones los terrenos disponibles, y los
sugetos dignos de esta gracia: con prevención que los más infelices serán los
más privilegiados. En consecuencia los negros libres, los zambos de esta
clase, los indios y criollos pobres, todos podrán ser agraciados en suertes de
estancia si con su trabajo y hombría de bien propenden a su felicidad y ala de
la Provincia (In: BARRÁN; NAHUM, 1964, p. 127).
O fato de distribuir sortes de estância para “gaúchos”, índios, negros livres e
mestiços, foi tratado pela historiografia como um dos elementos mais peculiares do
pensamento agrário artiguista. Um dos motivos mais relevantes pode ser em função do
tipo de relação que José Artigas detinha para com o espaço no qual estava inserido, bem
como com aqueles que o habitavam1. Contudo, na presente discussão achamos
interessante focar partindo da ótica do trabalho. Os “agraciados” com os terrenos eram
aqueles campesinos que seguiram Artigas em seu projeto revolucionário e que estavam
dispostos a trabalhar, como se percebe “fomentar com brazos utiles la poblacion de la
campaña”. Logo, legitimariam suas posses na medida em que as ocupassem
produtivamente, nas palavras do “Reglamento” quem com “su trabajo y hombría de
bien propenden a su felicidade y ala de la província.”
Este raciocínio se insere na lógica do pensamento de base liberal defendido por
Gaspar Jovellanos quando ele argumenta que, cada agricultor, reduzido em sua
propriedade, trabalhando e lutando pela sua felicidade, proporcionaria o
desenvolvimento de todo o reino. Isto se vincula com um elemento construído ao longo
do “Informe”, a “propriedade do trabalho”. Começa dizendo que, quando os homens
1 MEDEIROS, P. V. S. A Experiência Pampeana e os saberes científicos: A proposta agrária de Artigas a
partir de sua relação com Félix de Azara. In: Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História
Regional (2013). Passo Fundo: UPF, 2013. v. I. Neste artigo discutimos esta hipótese com mais vagar.
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aprenderam a trabalhar e a multiplicar os frutos da natureza, nasceu uma propriedade
distinta da propriedade da terra, a do trabalho:
La tierra, aunque dotada por el Creador de una fecundidad maravillosa, solo
la concedia á la solicitud del cultivo, y si premiaba con abundantes y
regalados frutos al laborioso cultivador, no daba al descuidado mas que
espinas y abrojos. á mayor trabajo correspondia siempre con mayores
productos; fué, pues, consiguiente proporcionar el trabajo al deseo de las
cosechas; cuando este deseo buscó auxiliares para el trabajo, hubo de
hacerlos participantes del fruto, y desde entonces los productos de la tierra ya
no fueron una propiedad absoluta del dueño, sino partible entre el dueño y
sus colonos(JOVELLANOS, 1820, s/p.).
Para ele, a esfera da propriedade do trabalho se fez mais extensa, menos
dependente e mais variada. Assim, é sustentada a importância do trabalho, que exercido
mediante a racionalização e o livre interesse individual, poderá render incontáveis
frutos. Jovellanos tece esse argumento para reforçar sua proposta junto ao Rei, que é
preciso configurar estabelecimentos rurais individuais arrendando terrenos para homens
industriosos dispostos a trabalhar para o bem próprio, e por consequência, pra o bem de
todos. Isto reflete uma importante faceta do pensamento agrário espanhol da segunda
metade do século XVIII, tendo claras influências liberais.
Portanto constata-se, que ao tentar por em prática seu regulamento de terras,
Artigas expressa e formaliza vários elementos do pensamento ilustrado espanhol em
relação a terra, claro que, guardando suas especificidades, aplicado à realidade do
“espaço pampeano” e ao contexto de guerra pelo qual estava passando.
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