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NIETZSCHE: FUNDAMENTOS PARA UMA NOVA JUSTIÇA
Alexandre Antonio Bruno da Silva**
RESUMO
Nietzsche utiliza parte significativa de sua obra na crítica aos diversos ideais
estabelecidos em seu tempo. A avaliação fragmentada, percorrendo cada argumento de
seu pensamento, pode afastar-nos do principal campo de batalha: a crítica genérica feita
à caracterização de qualquer obra humana como universal e perene. A crítica específica
apenas abre espaço à sua metodologia de trabalho. A luta, a criação e o constante
movimento são aspectos indissociáveis do pensamento nietzschiano.
Ao investir na possibilidade de construção de uma cosmologia não
metafísica, mas apoiada em dados científicos, Nietzsche descobre um mundo doente. A
vontade de potência, elemento central de sua teoria, sofre com a intervenção
desagregadora da visão niilista. Visando a reunir forças, o mundo doente precisa de uma
nova meta, representada, no projeto nietzschiano, pelo mito do super-homem.
Nietzsche enfatiza que grande parte dos problemas do mundo reside na
moral prevalecente. O necessário projeto de tresvaloração de todos os valores necessita
que seja concedida grande liberdade aos processos criativos. Nietzsche transporta sua
natureza de filólogo para a Filosofia. O processo de interpretação envolve vontade,
força e poder. Não há significado original para as palavras nem para valores; tudo é
mera interpretação.
Justiça, Direito, Bem, Mal e os demais conceitos são símbolos, máscaras
que escondem arbitrárias interpretações. Acreditar que os conceitos atuais
consubstanciam seu verdadeiro sentido não passa de um grave erro. Não havendo nada
* * Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Computação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Graduado em Computação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Faculdade Christus. Professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Coordenador do Auditor-Fiscal do Trabalho.
absolutamente estático, concede-se merecida importância ao processo e aos seus
protagonistas.
Nietzsche não acredita na existência da Justiça em si. Entretanto, por
acreditar na importância da Justiça, propõe processos dinâmicos para a definição de
valores, definindo processos para identificação do justo.
Palavras-chave: Nietzsche; Justiça; Direito; arte; estética; vontade de potência; eterno
retorno; niilismo; moral; tresvaloração de valores; costumes; história; individualismo;
gênio; super-homem.
ABSTRACT
Nietzsche uses significant part of his work to criticize several ideals
established at his time. The fragmented evaluation, traveling through each argument of
his thought, can stand back from the main battlefield, the said generic criticism of the
characterizing any human work as universal and perennial. The specific criticism is put
aside of his work methodology. The fight, the creation and the constant movement are
inseparable aspects in the Nietzsche’s thought.
When investing on the possibility of a cosmology construction, a non
metaphysical one but leaned in scientific data, Nietzsche discovers a sick world. The
will to power, central element of his theory, suffers with an explosive nihilistic
component. Aiming to gather forces, the sick world needs a new goal, that it is acted in
the author’s project for the superman's myth.
Nietzsche emphasizes that great part of the problems faced by of the world
lives in the morals that still prevails. The necessary project of “tresvaluation” of all
values needs great freedom to be granted for the creative processes. Nietzsche brings his
philologist nature to Philosophy. The interpretation process involves will, power and
force. There is no original meaning, neither for the words nor for values; everything is
the result of mere interpretation.
Justice, Good, Evil and other concepts are symbols, masks that hide these
mere interpretations. Believing that current concepts indeed con-substantiate the real
2
sense is to make an error. If nothing is entirely static, the deserved importance is granted
to the own process and its main characters.
Nietzsche does not believe in the existence of justice itself. However, by
believing in the importance of Justice, proposes dynamic processes for the definition of
values, defining procedures for the identification of the fair.
Keywords: Nietzsche; Justice; Law; art; esthetics; will to power; eternal recurrence;
nihilism; moral; transvaluation of values; customs; history; individualism; genius;
superman.
INTRODUÇÃO
Nietzsche costumeiramente é considerado um filósofo à serviço da critica
por excelência. Entretanto, acreditamos que mais importante do que compreender suas
crítica aos diversos ideais, é perceber e explorar sua crítica genérica à caracterização de
algo como perene. O constante movimento é aspecto indissociável do seu pensamento.
Além disso, por sua natureza de filólogo, o eterno ruminar, característico na
interpretação das palavras, é ampliado para todo o seu pensamento. Como bem ressalta
Foucault, deixa-se implícito que nada há sob a condição do absolutamente primário a
interpretar, pois tudo é interpretação. Processo que funciona antes como relação de
violência do que como elucidação. Atividade que não aclara uma matéria que, com o
fim de ser interpretada, ofereceu-se passivamente. O processo de interpretar envolve,
simultaneamente, vontade, poder e força.1
Preconceito dos eruditos. - É um juízo correto, por parte dos
eruditos, que em todos os tempos os homens acreditaram saber
o que é bom e mau, louvável e censurável. Mas é um
preconceito dos eruditos achar que agora sabemos mais do que
em qualquer tempo.2
1 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio Editora, 1997.
3
Bem, Mal, Justiça e até mesmo, o Direito são símbolos, máscaras que
escondem meras interpretações. Ao afirmar, em Além do Bem e do Mal, § 108, que não
existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos,
Nietzsche, ao mesmo tempo, concorrentemente, põe em cheque os valores de seu tempo
e concede inteira liberdade à criação de novos. 3
No mundo nietzschiano, mundo do eterno movimento, o segredo de ser
perene, não está em ser um símbolo. O segredo da imortalidade reside no movimento.
Toda ação perpetrada pelo homem gera outras ações, decisões e pensamentos; tudo o
que ocorre, liga-se, indissoluvelmente, ao que vai ocorrer.
Aberta a trilha para essa hermenêutica, chega-se às seguintes questões: qual
deveria ser, segundo Nietzsche, o contínuo processo capaz de definir, a cada tempo, a
cada lugar, o que viria a ser Justiça? Quais elementos poderiam legitimar a criação do
Direito?
Temos a necessária consciência que o conceito, ou melhor, o processo
representativo da Justiça, como tantos outros, permanece obscuro na obra do autor.
Sabemos que sua forma de escrever, relutando em ser um autor sistemático, concede um
largo espaço a inúmeras interpretações divergentes de seu pensamento. Entretanto, sob a
névoa, acreditamos ser possível encontrar e estabelecer, em linhas gerais, o pensamento
de Nietzsche relativo ao tema. Para isso, é mister dar alguns passos que não podem ser
alijados, sob pena de não se guardar fidelidade ao seu pensamento.
1. COSMOLOGIA NIETZSCHIANA
A certo ponto de sua obra, Nietzsche investe na possibilidade da construção
de uma cosmologia, não metafísica, apoiada em dados científicos. O conhecimento
2 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, Livro primeiro, § 2, p. 11.3 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 108, p. 73.
4
dessa cosmologia mostra-se essencial para o entendimento da filosofia política de
Nietzsche.
Nietzsche utiliza a expressão Wille zur Macht, geralmente traduzida pelas
expressões “vontade de potência” ou “vontade de poder”. Ao se utilizar o termo
“potência”, é possível que alguns leitores mostrem-se confusos, pois o termo foi
utilizado por Aristóteles com significação bastante distinta. Scarlett Marton ressalta que
a tradução da expressão alemã para “vontade de poder” pode ser algo bem mais
arriscado.4 O termo “poder” possui forte e arraigada carga política, o que poderia
restringir a expressão nietzschiana, o que efetivamente não é desejado. Sem que haja
fixação a uma ou a outra, busca-se enfatizar a liberdade de interpretação e a
possibilidade da assimilação do significado da expressão em toda a sua amplitude.
Vontade de poder não é um caso especial do querer. Uma
vontade "em si" ou "como tal" é pura abstração: ela não existe
factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche, querer-algo.
Esse algo-posto, essencial em todo querer é: poder.5
Uma característica da vontade de poder é procurar dominar e expandir,
incessantemente, seu âmbito de poder. O alargamento de poder é concretizado através
de um processo de dominação. Por isso, querer-poder não é apenas desejar, aspirar ou
exigir; a ele pertence a idéia de ação e reação. Assim, um quantum de poder é designado
por meio do efeito que ele desencadeia ou a que ele resiste.
Por toda parte, Nietzsche identifica a vontade de poder. Mais
inequivocamente ainda, ela se deixa mostrar em todo ser vivente, que tudo faz, não para
se conservar, mas para se tornar mais. No âmbito inorgânico, a vontade de poder é o
unicamente atuante. Com isso, Nietzsche se afasta da "vontade de vida", de
Schopenhauer, como forma fundamental da vontade. Para Nietzsche, a vida é um mero
4 MARTON, Scarlett. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUÍ, 2000, p. 172. 5 MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1994, p.54.
5
caso particular da vontade de poder, sendo totalmente arbitrário afirmar que tudo anseia
por passar para essa forma da vontade de poder.6
Não é apenas naquele ou naquilo que domina e que estende seu domínio
que se exterioriza a vontade de poder, mas também no dominado e no submisso. Até
mesmo o relacionamento entre aquele que obedece e aquele que domina é vontade de
potência. Para Nietzsche, o homem é, no fundo, em qualquer modo de relação, vontade
de poder. Todos os nossos impulsos podem ser reduzidos à vontade de poder; a essência
mais interna do ser é vontade de poder. “Nossos impulsos são redutíveis à vontade de
poder. A vontade de poder é o último faktum por detrás do qual podemos chegar”.7
O mundo visto de dentro, o mundo definido e determinado
conforme o seu “caráter inteligível” seria – justamente –
“vontade de poder”, e nada mais. (Além do bem e do mal, § 36).8
Ao definir o mundo como vontade de potência e nada além disso, a filosofia
nietzschiana vincula-se indissoluvelmente a esse mundo e a essa vontade. Entretanto, ao
construir sua cosmologia, Nietzsche descobre um mundo doente; o niilismo
impossibilitava a reunião de forças para a formação de uma vontade de potência
afirmativa, de uma forma de vida ascendente.
2. O MUNDO DOENTE
6 MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 1994, p.54. 7 “Unsere Triebe sind reduzirbar auf den Willen zur Macht. Der Wille zur Macht ist das letzte Factum, zu dem wir hinunterkommen”. (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Historisch-kritische Ausgabe. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1994, KSA 11, 611, outono 1884 – outono 1885 ). 8 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 36, p. 43.
6
O termo niilismo é geralmente utilizado com o intuito polêmico de designar
doutrinas que se recusam a reconhecer realidades ou valores cuja admissão seria
considerada importante.9 Entretanto, na obra de Nietzsche o termo ganha um novo
sentido, sendo utilizado para qualificar sua oposição radical aos valores tradicionais.
Para ele, existe uma forte ligação entre o niilismo e a moral vigente no mundo ocidental.
Niilismo é então o tomar-conhecimento do longo desperdício de
força, o tormento do “em vão”, a insegurança, a falta de ocasião
para se recrear de algum modo, de ainda repousar sobre algo - a
vergonha de si mesmo, como quem se tivesse enganado por
demasiado tempo [...].10
Ao longo do tempo, o homem acabou idealizando, por contra própria, uma
série de sentidos para o mundo. Alvos como o aumento do amor, a harmonia entre os
seres, um estado de felicidade universal ou mesmo o tentar livrar-se de um estado
universal do nada, deram sentido à vida do homem. Nietzsche assevera que há algo
comum a todos esses alvos. Em todos, algo deve, através de um processo, ser
alcançado.
Resultado final: todos os valores com os quais até agora
procuramos tornar o mundo estimável para nós e afinal,
justamente com eles, o desvaloramos, quando eles se
demonstram inaplicáveis – todos esses valores são, do ponto de
vista psicológico, resultados de determinadas perspectivas de
utilidade para manutenção e intensificação de formações
humanas de dominação: e apenas falsamente projetados na
essência das coisas. É sempre ainda a hiperbólica ingenuidade
do homem: colocar a si mesmo como sentido e medida de valor
das coisas11.
9 Cf. ABAGNANNO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Presença, 1993, p. 712.10 NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Nietzsche – vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 430.11 NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Nietzsche – vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 432.
7
Nietzsche aponta a crença nas categorias da razão como as verdadeiras
causas do niilismo. Medimos o valor do mundo por categorias, que se referem a um
mundo puramente fictício. O niilismo pergunta a todo momento: “para quê?” Tal
pergunta é motivada pela crença de que o alvo, “o para quê?”, teria sido posto, dado,
exigido por alguma autoridade sobre-humana. Com a morte de Deus, o homem passa a
não mais acreditar nessa autoridade.
Em seu projeto, acredita ser inevitável a ruptura com a tradição metafísica,
que marca, acentuadamente, todas as manifestações do homem. Não há mais como
acreditar que um além-mundo traga a cura, a redenção para nossos males. O Deus morto
nos deixa um mundo doente. Somos nós os únicos responsáveis pelo nosso destino.
O niilismo atacou o homem moderno em várias frentes. A criatividade, as
forças pulsionais foram desvalorizadas com a crescente valorização do homem racional
domesticado. Além disso, o cristianismo, que criou um alento para esse mundo, com o
tempo terminou por desvalorizá-lo. O pior não tardaria a acontecer: a falta de fé em um
poder divino leva do homem as últimas esperanças. O mundo doente, caminhava para
seu ocaso.
Heidegger, em busca da essência do niilismo, utiliza-se de uma frase de
Nietzsche.12 Pela boca de um louco, Nietzsche afirma, em sua Gaia Ciência, que “Deus
está morto!”.13 É com esta sentença que Nietzsche nos fornece, ao que parece, uma
fórmula negativa para aquilo que ele entende como niilismo. Ao dizer que “Deus está
morto”, afirma que o mundo supra-sensível desmoronou, perdendo sua essência
imperativo-cunhadora. O niilismo, para Nietzsche, é obra humana; quem matou Deus
fomos nós, “nós o matamos!”.
O homem louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que
em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e
pôs-se a gritar incessantemente: "Procuro Deus! Procuro
Deus!"? - E como lá se encontrassem muitos daqueles que não
criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada.
12 HEIDEGGER, Martin. Nietzsche: metafísica e niilismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 192.13 NIETZSCHE, Friedrich Whilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, § 125, p. 148.
8
[...] "Para onde foi Deus?”; gritou ele,"já lhes direi! Nós o
matamos - vocês e eu. Somos todos seus assassinos!” 14
O louco, ao gritar ao povo que Deus estava morto, sabia haver se
antecipado. Tal acontecimento ainda transitava; não havia ainda chegado ao ouvido dos
homens a verdade. Além de desconhecer seu ato, o homem ocidental não parecia
preparado para a amplitude de suas conseqüências.15 Até então, nunca existira ato mais
grandioso, mais significativo.
A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não
deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos
parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior - e quem vier
depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história
mais elevada que toda a história até então!16
Para Heidegger, essa é a representação legítima do niilismo positivo de
Nietzsche.17 Após a morte de Deus, quem quer que nasça, passará a fazer parte, mercê
desse ato, de uma história superior a toda a história até hoje. A grandeza deste ato
consiste justamente no fato de ser ele o começo de uma história mais elevada.
3. A CURA PELA ILUSÃO
14 NIETZSCHE, Friedrich Whilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, § 125, p. 140.15 “’Eu venho cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram!’.” (NIETZSCHE, Friedrich Whilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, § 125, p. 148).16 NIETZSCHE, Friedrich Whilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, § 125, p. 140.17 Conforme Heidegger, “O que soa com a constatação de um fim designa, sempre pensando a partir do pensamento da metafísica nietzschiana, o começo de uma história mais elevada. A fórmula pensa o niilismo positivamente.” (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche: metafísica e niilismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 95).
9
O mito criado por Nietzsche, o super-homem, surge como um processo.
Nietzsche elimina a representação finalista do processo e afirma, a despeito disso, o pro-
cesso. Esse seria o caso se, no interior desse processo, em cada momento dele, algo
fosse alcançado. A idéia de finalidade é abandonada pela idéia de intencionalidade, no
eterno retorno. Troca-se o fim por um novo processo, sem fim, recursivo.
Para Nietzsche, todo grande crescimento traz consigo, também, um
descomunal perecimento. O sofrer, os sintomas do declínio, fazem parte dos tempos de
descomunal avanço. Cada fecundo e potente movimento da humanidade criou, ao
mesmo tempo, um movimento niilista.
O niilismo é, em certas circunstâncias, o sinal de um incisivo e
essencialíssimo crescimento. Por vezes, foi e é necessário que, para a passagem a novas
condições de existência, a mais extrema forma do pessimismo, o niilismo propriamente
dito, viesse, retornasse ao mundo.18
Se não existe nenhum objetivo em toda a história dos destinos
humanos, é preciso colocar-lhe um: temos que admitir, na
verdade, que um objetivo nos seja necessário e que, por outro
lado, a ilusão de um fim imanente tenha se tornado transparente
para nós. Ora, precisamos de um objetivo porque precisamos de
uma vontade - nossa espinha dorsal. Vontade como
compensação da crença, da representação de uma vontade divina
que se propõe a fazer alguma coisa por nós [...].19 (KSA, 12,
236, verão 1886-primavera 1887)
Para agregar novamente suas forças, o mundo doente precisa de uma nova
meta. Nietzsche a projeta no mito do super-homem, um mito diferente da tradição, que
tal como ressalta Henri Lefebvre, dissocia-se da idéia de ilusão e passado, aderindo a
idéia de criação e futuro.
18 NIETZSCHE, Friederich Wilhelm. Nietzsche – vida e obra. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 436.19 KLOSSOWSKI, Pierri. Nietzsche e o círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, p. 145; NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Historisch-kritische Ausgabe. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1994, KSA 12, 236, Verão 1886-Primavera 1887.
10
[...] que sabem vocês disso, que podem vocês saber disso, da
astúcia de autoconservação, da racionalidade e superior proteção
que existe em tal engano de si - e da falsidade que ainda me é
necessária para que continue a me permitir o luxo de minha
veracidade? Basta, eu ainda vivo; e a vida não é excogitação da
moral: ela quer ilusão, vive da ilusão [...].20
Em Nietzsche vemos, portanto, atuar uma nova noção positiva do falso, da
ilusão, base da criação artística. Através da arte, o falso terá a possibilidade de atuar
frente a todos os problemas encontrados na existência. A mistificação não é apenas um
modo de agir, mas a própria existência. Desmistificar, até então, pertencia à ação
inconfessável do sábio. A ciência, em nome de um conhecimento independente, busca
afastar a possibilidade de ilusão tão necessária à vida.
Conseqüência: se essa representação nos é hostil, por que
cedemos a ela? Que venham a nós os belos simulacros! Sejamos
os impostores e os embelezadores da humanidade! Na verdade,
isso é que é, propriamente, um filósofo.21
O projeto de tresvaloração nietzschiano pressupõe a crença geral na morte
de Deus, o afastamento integral das esperanças metafísicas. Além disso, fugindo de
todas as ideologias que pregavam uma solução tendo as massas como sujeito, Nietzsche
propõe uma saída pelo sentido inverso. Demonstrando verdadeira aversão às massas,
valoriza o indivíduo livre e autônomo; é ele o caminho para a redenção.
Nietzsche é consciente que conceder total liberdade a um indivíduo, ou
grupo de indivíduos, representa uma série de perigos. É por isso que em seu projeto
enfatiza a necessidade da purificação do homem; somente assim ele seria merecedor de
tal liberdade.
20 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, Prólogo, §1, p. 8.21 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Historisch-kritische Ausgabe. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1994, KSA 11, 699, outono de 1885.
11
Queres te lançar às livres alturas, a tua alma está sequiosa de
estrelas. Mas também os teus maus impulsos têm sede de
liberdade. Sair para a liberdade, querem os teus cães ferozes;
latem de alegria em teu porão, quando o teu espírito visa a abrir
todas as prisões. Ainda és, para mim, um preso imaginando a
liberdade: sagaz torna-se a alma de tais presos, mas também, ai
de nós, velhaca e baixa. Ainda precisa purificar-se o liberto no
espírito. Muita prisão e mofo ainda permanecem nele; cumpre
que límpido se torne seu olhar.22
O mito nietzschiano do super-homem, para nós, representa esse homem
purificado, que, se não existe ou nunca existirá, servirá como a necessária meta para o
futuro.
4. PARA UMA NOVA JUSTIÇA
Em uma nota do ano 1884, tendo por título “Os caminhos da liberdade”,
Nietzsche aponta para uma nova forma de entender a liberdade e a Justiça. A nova
Justiça surge como um modo de pensar tornado fixo a partir de estimações de valor. É
através da Justiça, de um modo de pensar, que são definidos e fixados os valores e as
condições da vontade de poder relativos a um ponto de vista.
Justicia, en cuanto “modo de pensar”, es un re-presentar, es
decir un fijar “a partir de estimaciones de valor”. En este modo
de pensar se fijan los valores, las condiciones de la voluntad de
poder relativas a un punto de vista. […] De acuerdo con su
formulación, la justicia es un pensar a partir de “las”
estimaciones de valor explícitamente llevadas acabo. Es el
22 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, Da árvore no monte, p. 69-70.
12
pensar en el sentido de la voluntad de poder, que es la única que
pone valores. 23
A Justiça é um pensar a partir “das” estimações de valor explicitamente
aplicadas. É o pensar no sentido da vontade de potência, que é a única a pôr valores.
Este modo de pensar não é conseqüência das estimações de valor, é o próprio processo
de exercer a estimação. A concepção do justo abandona as tábuas fixas de valores e
agarra-se ao processo, direcionada por um ponto de vista.
A Justiça surge como um supremo representante da vontade de potência.
Segundo Heidegger, na obra de Nietzsche, podemos considerar vida como outra palavra
para a vontade de potência. A Justiça seria, então, uma representação da vontade de
potência, ou seja, da vida, com a função especial de atribuir valores. A atividade da
vontade de potência é marcada pelo seu modo de atuar, pela constante busca da
conservação e de expansão do poder. É a esta atividade que ela atribui valores.
Justiça como modo de pensar construtivo, eliminador,
aniquilador, a partir das estimações de valor: supremo
representante da vida mesma.24
Três determinações guiam o caminho para a constituição do modo de pensar
a ser utilizado pela nova Justiça. Para Heidegger, as três determinações da Justiça, como
modo de pensar, encontram-se ordenadas pelo seu grau de importância, expressando a
mobilidade interna deste pensar.25
23 HEIDEGGER, Martin. La metafísica de Nietzsche. Disponível em <http://www.nietzscheana.com.ar>. O texto, versão em inglês, pode ser encontrado em HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. David Farrell Krell. San Francisco: Harper San Francisco, 1991, v. III e IV, p. 185-251. 24 “Die Wege der Freiheit. (…) — Versuch, neue Schätzungen Gerechtigkeit als bauende ausscheidende vernichtende Denkweise, aus den Werthschätzungen heraus: höchster Repräsentant des Lebens selber. Weisheit und ihr Verhältniss zur Macht: einstmals wird sie einflußreicher sein — bisher war der Irrthum, die Pöbel-Werthschätzung auch im Weisen noch zu groß!” (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Historisch-kritische Ausgabe. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1994, KSA 11, 140, primavera de 1884).25 “Las tres determinaciones de la esencia de la justicia como modo de pensar no sólo están ordenadas de acuerdo con su rango sino que expresan sobre todo la movilidad interna de este pensar. Construyendo se dirije hacia lo alto, erigiendo así la misma
13
Primeiro, o modo de pensar deve ser “construtivo”, edificando aquilo que
ainda não existe. Em sua construção, dirige-se para o alto, eleva-se sobre si mesma,
diferencia-se do inadequado e afasta-se de suas condições, abre a possibilidade de
conquista das alturas.
É a altura que assegura a clareza das condições sob as quais se encontra a
possibilidade de ordenar. Só a partir dessa clareza, desta altura, pode ordenar-se de
forma que todo obedecer se transfigure em querer. Esta altura possibilita e assinala a
direção para o reto.26 A Justiça, assim considerada, é o devir senhor de si mesmo, a
essência da vontade de poder mesma.
Pero la experiência del poder se produce cuando el poderoso ha
alcancanzado el estado de conciencia de que está por encima de
los demás. Lo cual le permite tener una visión más abarcante y
omnicomprensiva de las cosas, y disfrutar de una perspectiva
amplia que puede dar satisfacción a la pluralidad de las
interpretaciones del mundo.27
O pensar “construtivo” é, ao mesmo tempo, “eliminador”. Dessa maneira,
fixa e mantém firme o que pode sustentar a construção, rejeitando o que a põe em
perigo. É assim que assegura o fundamento da construção e seleciona os materiais para
a mesma. O pensar construtivo-eliminador é, ainda, “aniquilador”. Destrói aquilo que,
altura, de ese modo se eleva sobre si mismo, se diferencia respecto de lo inadecuado y erradica sus condiciones. La justicia, en cuanto tal pensar, es el devenir señor de sí mismo desde el escalar que a la vez erige la altura suprema. Ésta es la esencia de la voluntad de poder misma”. (HEIDEGGER, Martin. La metafísica de Nietzsche. Disponível em <http://www.nietzscheana.com.ar>. O texto, versão em inglês, pode ser encontrado em HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. David Farrell Krell. San Francisco: Harper San Francisco, 1991, vol. III e IV, p. 185-251).26Importante ressaltar que, nesse momento da criação, o homem deve ater-se ao mundo. ”We no longer need these calumnies (metaphysical): it is a sing that one has turned out well when, like Goethe, one clings with ever-greater pleasure and warmth to the ‘things of this world’: - for in this way he holds firmly to the great conception of man, that man becomes the transfigurer of existence when he learns to transfigure himself”. (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. The will to power. New York: Vintage Books, 1968, § 820, p. 434).27 GUERVÓS, Luis Enrique de Santiago. Arte y poder: aproximación a la estética de Nietzsche. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 615.
14
por solidificar e atirar para abaixo, impede o construtivo de se elevar. O aniquilar luta
contra todas as condições de declínio.
O construir requer o eliminar, pois em todo construir, enquanto criar, já está
incluído o destruir. Ele surge na formulação nietzschiana como o modo supremo de
expansão. A eliminação é o que a distingue e preserva. Com isso torna-se o modo
supremo de conservação. Por fim, a aniquilação representa o modo supremo da contra-
essência da conservação e da expansão.
Voluntad de poder es representación que pone valores. Pero el
construir es el modo supremo de acrecentamiento. La
eliminación que distingue y preserva es el modo supremo de
conservación. La aniquilación es el modo supremo de la
contraesencia de la conservación y el acrecentamiento.28
A unidade essencial dos três modos de atuar da vontade de potência é a
Justiça. O poder supremo da vontade de potência, enquanto Justiça, reside no fato de
que ela própria tem a faculdade de estabelecer condições para si. É ela quem possui as
condições para a delimitação de seus “pontos de vista”.
A Justiça, por ser o modo supremo da vontade de potência, torna-se
autêntico fundamento determinante da essência da verdade. Entretanto, não podemos
esquecer que para se pensar na Justiça, em moldes nietzschianos, é necessário que se
ponha de lado boa parte das representações de Justiça provenientes da moral cristã,
humanista, iluminista burguesa e socialista. O justo continuará sendo, certamente, o que
se ajusta àquilo que é “reto”. Porém, o reto, o que indica a direção certa e dá a medida
do que é justo, não tem existência em si.
Para Heidegger, é difícil não perceber a consonância das duas
determinações essenciais da Justiça em Nietzsche. Na primeira, a Justiça é o “supremo
representante da vida mesma”. Na segunda, a “função de um poder que olha longe em
torno de si”.
28 HEIDEGGER, Martin. La metafísica de Nietzsche. Disponível em <http://www.nietzscheana.com.ar>. O texto, versão em inglês, pode ser encontrado em HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. David Farrell Krell. San Francisco: Harper San Francisco, 1991, vol. III e IV, p. 185-251.
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Justiça como função de um poder que mira longe em torno de si,
que vê além das pequenas perspectivas do bem e do mal, que
tem, portanto, um horizonte de visão mais amplo; a intenção de
conservar algo mais que esta ou aquela pessoa.29
É afastando o olhar em torno de si, buscando-se horizontes mais longínquos,
que as perspectivas devem ser escolhidas. É preciso guardar uma certa distância de nós
mesmos e de nossas aspirações. Nietzsche acredita ser necessário fugir da já cansada e
limitada perspectiva do “bem“ e do “mal”. É preciso definir novos “pontos de vista” que
superem os existentes até o momento. A influência de um provável mundo supra-
sensível também deve ser afastada.
Nietzsche afirma que a visão até agora existente sobre os valores é limitada.
Como saída, ele aponta a necessidade de uma tresvaloração de todos os valores, defende
a grandeza do “grande estilo”.30 É o poder que olha longe, em torno de si, enquanto
poder perspectivo, superando todas as perspectivas tidas até o momento em sua
definição de valores.
Nietzsche tem em mente a Justiça como vontade de poder,31 que vá além das
perspectivas tidas até o momento, que possua um horizonte mais amplo. Propõe uma
Justiça que não tenha como ponto de referência algo além das vantagens materiais
imediatas. Sustenta a necessidade de uma Justiça que fuja dos engodos proporcionados
pelo domínio da utilidade, do aproveitamento e do cálculo.
29 “Gerechtigkeit, als Funktion einer weit umherschauenden Macht, welche über die kleinen Perspektiven von gut und böse hinaus sieht, also einen weiteren Horizont des Vortheils hat — die Absicht, etwas zu erhalten, was mehr ist als diese und jene Person”. (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Historisch-kritische Ausgabe. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1994, KSA 11, 188, verão-outono de 1884).30 “Grande” (gro) no uso lingüístico de Nietzsche é outra de suas preferências junto ao prefixo “Além” (über): “grande saúde”, “grande meio-dia”, “grande política”, “grande arte”. Com esse adjetivo, Nietzsche expressa um excesso, uma unidade representante. A grande-saúde, por exemplo, é uma saúde potencializada no sentido de que chegou-se a ele através da enfermidade, que foi superada.; o grande meio-dia representa a síntese de todos os caminhos. (GUERVÓS, Luis Enrique de Santiago. Arte y poder: aproximación a la estética de Nietzsche. Madrid: Editorial Trotta, 2004, p. 634, nota 141).31 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. The will to power. New York: Vintage Books, 1968, § 59, p.40.
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Não é possível, entretanto, afastar a idéia de “vantagem” de sua proposta de
tresvaloração de valores. Apenas as perspectivas foram ampliadas. Não é visada a
conservação ou a ampliação de interesses de uma pessoa, de seres humanos
determinados, tampouco da humanidade. A Justiça está vinculada a uma “vantagem” de
ordem superior: é mais abrangente.
La justicia mira más allá, hacia esa humanidad que debe ser
troquelada y seleccionada para formar ese tipo que posea la
propiedad esencial de instaurar el dominio incondicionado sobre
la tierra; pues sólo por intermedio de éste la esencia
incondicionada de la voluntad pura llega a aparecer ante sí, es
decir, llega al poder. La justicia es el adjudicar, en una
construcción previa, las condiciones que aseguran un conservar,
es decir un preservar y un conseguir.32
A Justiça de Nietzsche olha para o além-homem. Visa à “vantagem” para
um novo tipo que deve ser forjado e selecionado. Segundo ele, somente esse novo tipo
possuirá a propriedade essencial de instaurar o domínio incondicionado sobre a Terra.
Nietzsche acredita que somente através desse novo tipo a essência incondicionada da
vontade pura chegará ao poder. É tarefa da Justiça assegurar as condições para o super-
homem. “Imprimir ao devir o caráter do ser, essa é a suprema vontade de poder”.33
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nietzsche enfatiza que grande parte dos problemas do mundo reside na
moral prevalecente e no conceito de Justiça utilizado. Para o seu projeto de
32 HEIDEGGER, Martin. La metafísica de Nietzsche. Disponível em <http://www.nietzscheana.com.ar>. O texto, versão em inglês, pode ser encontrado em HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. David Farrell Krell. San Francisco: Harper San Francisco, 1991, vol. III e IV, p. 185-251. 33 “To impose upon becoming the character of being – that is the supreme will to power”. (NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. The will to power. New York: Vintage Books, 1968, § 617, p.330).
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tresvaloração, necessita que seja concedida ampla liberdade aos processos criativos. A
Justiça, como até hoje é entendida, não se mostra capaz de propiciar tamanha liberdade.
Segundo o próprio Nietzsche, faz-se necessário que a Justiça se afaste das tábuas de
valor até então utilizadas. É preciso que se crie uma nova visão de Justiça.
A Justiça deve largar a sua tábua de valores e lançar-se no jogo do mundo.
Não há como pensarmos em vida ascendente se o conceito de justo encontra-se
ancorado ao que é mais mesquinho na vida. O critério de utilidade não pode nortear algo
com função tão nobre quanto a Justiça; não podemos esperar que clame por Justiça
apenas o impotente, o fraco, aquele que deseja vingança.
Uma vez inserida no mundo, dele extraindo seu significado, a Justiça pode
ter funções mais nobres. A Justiça surge, então, como um modo de pensar tornado fixo
a partir de estimações de valor. É através da Justiça, de um modo de pensar, que são
definidos e fixados os valores e as condições da vontade de poder relativas a um ponto
de vista. Este modo de pensar não é uma conseqüência das estimações de valor, é o
próprio processo de exercer a estimação.
Em sua tarefa, a vontade de potência é marcada pelo seu modo de atuar, pela
constante busca da conservação e de expansão do poder. Nessa atividade de
representação, atribui valores. O poder supremo da vontade de potência, enquanto
Justiça, reside no fato de que ela própria tem a faculdade de estabelecer as condições
para si. É ela quem possui as condições para a delimitação de seus “pontos de vista”. A
Justiça, por ser o modo supremo da vontade de potência, torna-se o autêntico
fundamento determinante da essência da verdade.
Somente afastando o olhar do em volta de nós mesmos, buscando horizontes
mais longínquos, as perspectivas podem ser escolhidas. É preciso guardar uma certa
distância de nós mesmos e de nossas aspirações. Nietzsche acredita ser necessário fugir
da já cansada, limitada perspectiva do “bem“ e do “mal”.
É preciso definir novos “pontos de vista” que superem os existentes até o
momento. A Justiça de Nietzsche olha para o além-homem, visa à vantagem para um
novo tipo, o mito projetado para o futuro, que deve ser forjado e selecionado.
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