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1 DESCORTINAR A FORÇA: A CRIMINALIZAÇÃO DE MOVIMENTOS SOCIAIS NO CONTEXTO DAS DENÚNCIAS DE CORRUPÇÃO NO DISTRITO FEDERAL DESCORTINAR LA FUERZA: LA CRIMINALIZACIÓN DE MOVIMIENTOS SOCIALES EN EL CONTEXTO DE LAS DENUNCIAS DE CORRUPCIÓN EN EL DISTRITO FEDERAL Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília 1 RESUMO: O presente artigo tem por finalidade a análise da criminalização dos movimentos sociais como tentativa de supressão das demandas populares, o cerceamento à participação política democrática e exercício de controle sobre a sociedade civil. O caso concreto explorado na pesquisa diz respeito à mobilização popular ocorrida no Distrito Federal em reação às denúncias de corrupção no governo local deflagradas pela Operação Caixa de Pandora da Polícia Federal. A dura política repressiva instaurada então contra o movimento fere diretamente o direito fundamental à oposição política, à resistência e à participação. Sendo assim, os atos de desobediência civil empreendidos pelos manifestantes foram essenciais para que o poder popular efetivamente cidadão pudesse denunciar a ação antidemocrática da administração do DF. O Direito não pode ficar calado diante desses fatos e deve atuar para que o ambiente público não sofra intervenções autodestrutivas como essas observadas no caso citado. PALAVRAS-CHAVE: CRIMINALIZAÇÃO, VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL, MOVIMENTOS SOCIAIS, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, DESOBEDIÊNCIA CIVIL E “FORA ARRUDA E TODA A MÁFIA”. RESUMEN: El presente artículo tiene por finalidad la analisis de la criminalización de los movimientos sociales como un intento de supresión de las demandas populares, imposibilitación de la participación política democrática y ejercicio de control sobre la sociedad civil. El caso concreto averiguado en la investigación se refiere a la movilización popular ocurrida en el Distrito Federal como una reacción a las denuncias de corrupción en el gobierno local reveladas por la operación “Caja de Pandora” de la Policía Federal brasileña. La dura política represiva establecida en contra el movimiento hiere el derecho fundamental a la oposición política, a la resistencia y a la participación. De esa manera, los actos de desobediencia civil emprendidos por los manifestantes fueran esenciales para que el poder popular, efectivamente ciudadano, pudiera denunciar la acción antidemocrática de la administración del DF. El Derecho no puede callarse ante esos factos y debe actuar para que el ambiente público no sufra intervenciones autodestructivas como esas observadas en el caso citado. 1 Artigo desenvolvido, no âmbito do PET-Direito/UnB, pelos alunos de graduação Gabriela Rondon Rossi Louzada, João Gabriel Pimentel Lopes e Talitha Selvati Nobre Mendonça, sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa (FD-UnB).

Artigo CONPEDI

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DESCORTINAR A FORÇA: A CRIMINALIZAÇÃO DE MOVIMENTOS SOCIAIS

NO CONTEXTO DAS DENÚNCIAS DE CORRUPÇÃO NO DISTRITO FEDERAL

DESCORTINAR LA FUERZA: LA CRIMINALIZACIÓN DE MOVIMI ENTOS

SOCIALES EN EL CONTEXTO DE LAS DENUNCIAS DE CORRUPC IÓN EN EL

DISTRITO FEDERAL

Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília1

RESUMO: O presente artigo tem por finalidade a análise da criminalização dos movimentos sociais como tentativa de supressão das demandas populares, o cerceamento à participação política democrática e exercício de controle sobre a sociedade civil. O caso concreto explorado na pesquisa diz respeito à mobilização popular ocorrida no Distrito Federal em reação às denúncias de corrupção no governo local deflagradas pela Operação Caixa de Pandora da Polícia Federal. A dura política repressiva instaurada então contra o movimento fere diretamente o direito fundamental à oposição política, à resistência e à participação. Sendo assim, os atos de desobediência civil empreendidos pelos manifestantes foram essenciais para que o poder popular efetivamente cidadão pudesse denunciar a ação antidemocrática da administração do DF. O Direito não pode ficar calado diante desses fatos e deve atuar para que o ambiente público não sofra intervenções autodestrutivas como essas observadas no caso citado. PALAVRAS-CHAVE: CRIMINALIZAÇÃO, VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL, MOVIMENTOS SOCIAIS, PARTICIPAÇÃO POLÍTICA, DESOBEDIÊNCIA CIVIL E “FORA ARRUDA E TODA A MÁFIA”. RESUMEN: El presente artículo tiene por finalidad la analisis de la criminalización de los movimientos sociales como un intento de supresión de las demandas populares, imposibilitación de la participación política democrática y ejercicio de control sobre la sociedad civil. El caso concreto averiguado en la investigación se refiere a la movilización popular ocurrida en el Distrito Federal como una reacción a las denuncias de corrupción en el gobierno local reveladas por la operación “Caja de Pandora” de la Policía Federal brasileña. La dura política represiva establecida en contra el movimiento hiere el derecho fundamental a la oposición política, a la resistencia y a la participación. De esa manera, los actos de desobediencia civil emprendidos por los manifestantes fueran esenciales para que el poder popular, efectivamente ciudadano, pudiera denunciar la acción antidemocrática de la administración del DF. El Derecho no puede callarse ante esos factos y debe actuar para que el ambiente público no sufra intervenciones autodestructivas como esas observadas en el caso citado.

1 Artigo desenvolvido, no âmbito do PET-Direito/UnB, pelos alunos de graduação Gabriela Rondon Rossi Louzada, João Gabriel Pimentel Lopes e Talitha Selvati Nobre Mendonça, sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa (FD-UnB).

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PALABRAS CLAVE: CRIMINALIZACIÓN, VIOLENCIA INSTITUCIONAL, MOVIMIENTOS SOCIALES, PARTICIPACIÓN POLÍTICA, DESOBEDIENCIA CIVIL Y “FORA ARRUDA E TODA A MÁFIA”.

“Pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um de nossos concidadãos continuara suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deram-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se.”

Albert Camus

INTRODUÇÃO

A emergência de denúncias de corrupção no Governo do Distrito Federal ao longo

dos últimos meses fez florescerem no seio da sociedade brasiliense diversos movimentos

voltados à defesa do retorno à institucionalidade nesta unidade da federação, por meio da

recuperação dos princípios que devem reger o Estado Democrático de Direito.

Não restam dúvidas de que a participação política dos cidadãos foi, em grande

medida, fundamental para que fatos tão nefastos e repudiáveis não fossem esquecidos. Dentre

os grupos que se mobilizaram para pedir a destituição e a punição dos agentes públicos

corruptos, destacou-se, em especial, o movimento denominado “Fora Arruda e Toda a Máfia”,

promotor das principais ações que chamaram a atenção de todo o país para a desordem

institucional vivenciada no Distrito Federal.

Brasília retomou seu papel de “locus da organização de um efetivo projeto de poder

popular, paradigmático, capaz de incorporar processos sociais novos desenvolvidos na prática

da cidadania”2, gerando, porém, ao mesmo tempo, uma série de oposições a seu ideal

democrático participativo.

Como reação aos procedimentos adotados pelos manifestantes, implementou-se uma

severa política repressiva contra a mobilização, resultando nas cenas de violência abusiva que

chocaram o país. Tratava-se de uma clara tentativa de criminalização das lutas democráticas

na esfera pública, que revelava, por outro lado, a falência de um modelo de governo e o

2 SOUSA Jr. (2009, p. 24)

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prenúncio de que, concretamente, um movimento social havia iniciado a profunda

transformação de que a política do DF necessita. Nesse contexto, convém recordar a lição de

Arendt:

Se a história ensina alguma coisa sobre as causas da revolução – e ela não ensina muito, mas ensina consideravelmente mais que as teorias das ciências sociais – será que a desintegração dos sistemas políticos precede às revoluções, que o sintoma claro de desintegração é uma progressiva erosão da autoridade governamental, e que esta erosão é causada pela incapacidade do governo em funcionar adequadamente, de onde brotam dúvidas dos cidadãos sobre a sua legitimidade.3

Este artigo propõe, pois, discutir o contexto sociopolítico da criminalização dos

movimentos sociais e a forma como o direito deve atuar para garantir que o ambiente público

não sofra intervenções autodestrutivas como aquelas observadas contra as ações do

movimento “Fora Arruda e Toda a Máfia”, em face dos atos de corrupção no Distrito Federal.

1 BREVE RELATO SOBRE OS ESCÂNDALOS DE CORRUPÇÃO NO DISTRITO

FEDERAL E A MOBILIZAÇÃO SOCIAL EM TORNO DA QUESTÃO

No dia 26 de novembro de 2009, vieram à tona pelos meios de comunicação de todo

o país diversas denúncias decorrentes das investigações da Operação Caixa de Pandora

deflagrada pela Polícia Federal4. O ex-secretário de Relações Institucionais do Distrito

Federal, Durval Barbosa, revelou a montagem de um esquema de receptação ilegal de

recursos para campanha eleitoral de José Roberto Arruda e para o pagamento de propinas a

deputados distritais com a finalidade de coordenar votações consoantes aos interesses do

então governador.

Segundo as denúncias, estavam envolvidos no esquema, além do governador, o vice-

governador – Paulo Octávio –, secretários de governo, deputados distritais, empresários e

magistrados. Todos foram citados nas gravações em áudio e vídeo realizadas por Durval

Barbosa em troca de relaxamento das suas punições.

3 ARENDT (2008, p.64). 4 Sobre o tema, vide, por exemplo, as seguintes notícias: “PF cumpre mandados de busca e apreensão na Câmara Legislativa do DF”, disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL1394475-5601,00-PF+CUMPRE+MANDADOS+DE+BUSCA+E+APREENSAO+NA+CAMARA+LEGISLATIVA+DO+DF.html>; “PF investiga suposto repasse de dinheiro a aliados do governador do DF”, disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL1395056-5601,00-PF+INVESTIGA+SUPOSTO+REPASSE+DE+DINHEIRO+A+ALIADOS+DO+GOVERNADOR+DO+DF.html>.

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A partir de então, gerou-se uma intensa discussão sobre os fatos revelados, sendo

observadas imediatas reações por parte de movimentos locais5, que culminaram com a

ocupação do Plenário da Câmara Legislativa do DF no dia 02 de dezembro de 20096.

Também começaram a se acumular pedidos de impeachment contra o governador e seu vice,

protocolizados por particulares e entidades da sociedade civil como centrais sindicais,

partidos políticos e a Ordem dos Advogados do Brasil7.

Todos esses fatos levaram a uma grande pressão para que o partido do então

governador, o Democratas (DEM), expulsasse-o dos quadros, impedindo, com isso, uma

candidatura de Arruda no pleito a ser realizado em 2010. Antecipando-se aos fatos, Arruda

pediu sua desfiliação do partido, dizendo-se “desinteressado de qualquer tipo de resultado

eleitoral”8. Continuou, contudo, a exercer o seu mandato, sem que os processos

de impeachment sequer fossem apreciados pela Câmara Legislativa, a despeito de esta ter sido

convocada em regime especial durante o mês de janeiro de 2010 para tratar da questão.

Nesse ínterim, porém, não cessaram as movimentações em prol da moralidade na

Administração Pública no Distrito Federal. Diversos setores, sobretudo aqueles formados por

estudantes da Universidade de Brasília, promoveram ações de repúdio à corrupção. Na maior

delas, realizada em 09 de dezembro de 2009, os manifestantes bloquearam o Eixo

Monumental – via que divide o Plano Piloto ao meio – para chamar a atenção para os

acontecimentos e exigir que as providências cabíveis fossem tomadas o mais rápido possível.

Em uma ação desproporcional, desnecessária e autoritária, a Polícia Militar

repreendeu o movimento com extrema violência, utilizando sua tropa de choque e a cavalaria

contra manifestantes desarmados que carregavam flores em punho9. Tornou-se evidente a

importância da construção de uma luta não somente contra a corrupção, mas também contra a

5 Vide, por exemplo, a matéria “Diretório Central dos Estudantes [da Universidade de Brasília] pede impeachment de Arruda”, disponível em: <http://congressoemfoco.ig.com.br/noticia.asp?cod_publicacao=30843&cod_canal=1> 6 Vide, nesse sentido, a matéria “Estudantes ocupam a Câmara Legislativa do DF”, disponível em <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1169830-7823-ESTUDANTES+OCUPAM+A+CAMARA+LEGISLATIVA+DO+DF,00.html>. 7 Vide notícia sobre o tema em: <http://www.oabdf.org.br/152/15201004.asp?ttCD_CHAVE=97863> 8 Vide matéria “Arruda anuncia desfiliação do DEM e partido deve preservar vice”, de 10 de dezembro de 2009, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u664916.shtml>. 9 Sobre a questão, vide a matéria “Três pessoas foram detidas durante manifestação contra Arruda, diz PM”, de 09 de dezembro de 2009, disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL1409498-5601,00-TRES+PESSOAS+FORAM+DETIDAS+DURANTE+MANIFESTACAO+CONTRA+ARRUDA+DIZ+PM.html>

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continuidade da utilização de meios estatais para suprimir o livre exercício da democracia e

legitimar o “Antidireito”10.

Toda a discussão gerada a partir das ações que se pautaram nesse sentido levou a

alguns sucessos políticos, como uma adesão cada vez maior da sociedade brasiliense ao

movimento e a pressão pela celeridade nos processos judiciais que estavam em curso.

Observou-se, claramente, uma maior preocupação institucional com a manutenção da

moralidade administrativa. Sucederam-se às pressões sociais – e isso não sem sentido, como

procuraremos expor – a prisão e a destituição do governador do Distrito Federal, além da

queda de seu vice.

Não se tratou, pois, de mera “balbúrdia política”, como se tentou por vezes construir

a imagem do coletivo. Sua participação foi fundamental à execução das medidas que visassem

ao retorno à institucionalidade no DF. Mas, tendo em vista as tentativas de desconfiguração

das lutas, deve-se alertar para a gravidade da criminalização das tentativas de tornar efetivos

os direitos políticos de fundamental importância no contexto constitucional.

2 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NA ESFERA PÚBLICA – REFLE XÕES A PARTIR

DO CASO DO DISTRITO FEDERAL

É preciso uma análise do constitucionalismo brasileiro atual para compreender

devidamente a importância que o direito à dissidência, à resistência e à oposição ganhou, no

período pós-regime autoritário, no arcabouço de garantias e direitos fundamentais da

Constituição Federal de 1988.

Após a traumática experiência da ditadura vivida no Brasil nos anos compreendidos

entre 1964 e 1985, tornou-se indispensável reestruturar satisfatoriamente a dinâmica político-

social do país, assim como evitar que um governo intolerante, inescrupuloso e baseado na

força pudesse se repetir. O período constituinte que se seguiu, então, em 1987-1988, buscou

resgatar a articulação entre direitos e liberdades básicos e garantir novos mecanismos de

intervenção e participação, que pudessem conferir à população certa segurança democrática.

A cidadania participativa, que havia sido então esvaziada de sentido e se tornado

pouco atuante, de baixa eficácia nas instâncias oficiais de deliberação, tinha de ser resgatada.

Foi possível perceber que era imprescindível reorganizar as forças sociais para que se abrisse

10 Para Roberto Lyra Filho, o Estado vale-se, muitas vezes, da lei para tornar o “Direito propriamente dito, reto e correto, [uma] negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido” LYRA FILHO (2006, p. 8)

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efetivamente o espaço público democrático à interferência popular. Como advoga José

Geraldo de Sousa Junior em seu texto Ser constituinte11, uma esfera pública revitalizada

precisava ser capaz de englobar o maior número e uma maior diversidade de atores sociais,

aspectos relevantes ao interesse público e espaços de participação. Não se podia abrir mão

disso, pois:

A participação não é somente um instrumento para solucionar problemas. É, sobretudo, uma necessidade fundamental do ser humano, como a comida, o sono e a saúde. [...] A participação é inerente à natureza social do homem. [...] O futuro ideal do homem só se dará numa sociedade participativa12.

O proceso de abertura democrática, com garantias à participação popular no processo

de tomada de decisões, foi consagrado pela promulgação da “Constituição Cidadã”. Em seu

primeiro artigo está estabelecido que “a República Federativa do Brasil constitui-se em

Estado Democrático de Direito e tem como um dos fundamentos a Cidadania”13. No

parágrafo único desse mesmo artigo, enfatiza-se que “Todo poder emana do povo, que o

exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição”14. Enquanto

princípio constitucional, a intervenção popular abarca, como fica implícito nesses dispositivos

da Carta Magna, o direito de participação política, de opinar sobre prioridades na

administração da coisa pública, de fiscalizar a aplicação de recursos públicos, de sugerir

novas formas de atuação do Estado e de denunciar eventuais falhas de gestão.

O sistema democrático assim instaurado deve estar ciente de sua eterna

dinamicidade, pois pressupõe a necessidade de se adaptar constantemente às novas maneiras

de atuação no espaço deliberativo e também a novas configurações da opinião pública. Disso

resulta que a democracia é, em si, uma incessante luta por promessas não-cumpridas – e “não-

cumpríveis”, em sua totalidade – que compreende o encontro contínuo com obstáculos não-

previstos, pautas novas e agentes com opiniões divergentes.

Por esse motivo, não é possível dar uma previsão segura do funcionamento “ideal”

da democracia, pois ao fazê-lo estaríamos correndo o risco de transformá-la em seu oposto: o

despotismo, que é o regime, por excelência, estático e sempre igual a si mesmo. Deve-se fugir

à tentação de moldar a democracia em termos mais “perfeitos”, uma vez que para ser

plenamente democrática, aberta e plural, ela é necessariamente frágil, incompleta e

11 SOUSA Jr. (1987, pp. 11-17) 12 BORDENAVE (1985, pp.16-17) 13 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º, caput. Promulgada em 05 out. 1988. 14 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º, §1º. Promulgada em 05 out. 1988.

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corruptível. Uma sociedade devidamente democrática deve, portanto, temer uma eventual

solução definitiva de conflitos15.

Sendo assim, não é possível compreender qualquer embate social contra o poder

instituído como uma atitude ilegítima. A discussão sobre a criminalização dos movimentos

sociais traz, em seu cerne, o debate sobre o papel do cidadão e da sociedade civil frente à

conformação estatal dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito. Tal debate

ganhou especial notoriedade nas últimas décadas em virtude da emergência de novas lutas

pela garantia de direitos e liberdades públicas, entre eles o direito à opinião diversa e à

resistência.

Como tais, esses direitos somente podem ser efetivados legitimamente se discutidos

de forma ampla nos espaços de deliberação coletiva16. Por certo, o movimento “Fora Arruda e

Toda a Máfia”, como foi denominado um dos coletivos formados para fazer frente aos

governantes corruptos no Distrito Federal, foi o principal responsável por cumprir esse papel

e efetivar a autonomia pública17 no âmbito local.

15 Sobre o tema, ver Przeworski: “La democratización es un proceso de someter todos los intereses a la competencia, a una incertidumbre institucionalizada. Por tanto, esta misma transmisión del poder por encima de los resultados es la que contituye el paso decisivo hacia la democracia. Hay un momento antes del cual el aparato de poder autoritário controla los resultados y después del cual nadie lo hace. El poder es devuelto de um grupo de personas a un conjunto de reglas” (PRZEWORSKI, 1999, p. 92) – A democratização é um processo de submissão de todos os interesses à competição, a uma incerteza institucionalizada. Portanto, essa mudança do controle sobre os resultados é o que constitui o passo decisivo rumo à democracia. Há um momento antes do qual o aparato do poder autoritário controla os resultados e depois do qual ninguém o faz. O poder é devolvido, de um grupo de pessoas, a um conjunto de regras (tradução livre). E ainda: “En un sistema autoritario es casi seguro que los resultados políticos no incluirán los que sean adversos a los intereses del aparato del poder, mientras que en un sistema democrático no hay un grupo cuyos intereses alguren los resultados políticos con casi plena certidumbre” (PRZEWORSKI, 1999, p. 92) – Em um sistema autoritário, é quase certo que os resultados políticos não incluirão os que sejam contrários aos interesses do aparato do poder, enquanto que em um sistema democrático não há um grupo cujos interesses conquistam os resultados políticos com quase plena certeza (tradução livre). 16 Para a realização desse fim, é indispensável que sejam plenamente realizados os princípios abalizadores do constitucionalismo moderno: igualdade e liberdade. “Aí”, expressa Habermas, “estão pressupostos os conceitos do direito subjetivo e da pessoa do direito como indivíduo portador de direitos” (HABERMAS, 2007, p. 237). 17 Por essa categoria, entende-se a autocompreensão dos sujeitos como legisladores de si mesmos enquanto comunidade política. Nas palavras de Habermas, “a ideia de autonomia jurídica dos cidadãos exige [...] que os destinatários do direito possam ao mesmo tempo ver-se como seus autores”. (HABERMAS, 2007, p. 301). O autor expõe também a motivação para isso. Caso os direitos (mesmo aqueles que venham a favorecer grupos não reconhecidos) fossem gerados pela simples vontade dos governantes, ter-se-ia, tão-somente, um paternalismo político expressado pela positivação de preceitos morais. A autonomia pública é a possibilidade de autocompreensão dos sujeitos como agentes públicos de transformação e, por conseguinte, significará a responsabilização pública dos cidadãos perante as regras que eles mesmos editam. “Os direitos humanos poderiam até mesmo ser bem fundamentados de um ponto de vista moral; não pode ocorrer, no entanto, que um soberano seja investido deles de forma paternalista. [...] E se o legislador constitucional democrático simplesmente encontrasse os direitos humanos como fatos morais previamente dados, para então positivá-los e nada mais, isso estaria em contradição com essa ideia” (HABERMAS, 2007, p. 301).

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Isso surge como contraponto à busca pela satisfação individual de interesses que

pode ser localizada nos atos de corrupção das autoridades distritais. No Estado Democrático

de Direito, é a participação efetiva dos cidadãos, como indivíduos e como grupos, que deve

prevalecer. Somente assim se possibilita que os direitos sejam válidos e eficazes no espaço

público – as questões que tomam para si o viés de normatividade devem, necessariamente,

passar pelo crivo da coletividade e, portanto, tal normatividade somente pode resultar de

movimentações de caráter intersubjetivo18.

Essas movimentações fazem com que o Estado passe a ter certas obrigações em

relação aos cidadãos, além de limites ao seu poder. Transfere-se, dessa maneira, o eixo das

liberdades do Estado de Direito das chamadas liberdades negativas – garantidoras de uma

esfera protetiva de direitos subjetivos – para as liberdades positivas, de caráter amplo, público

e politicamente ativo.

Conforme é facilmente constatável, tais obrigações surgem, muitas vezes, da

movimentação política de grupos oprimidos e marginalizados, que lutam continuamente pelo

“reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja

em meio à comunidade dos povos”19. É justamente essa movimentação que traz para a

discussão pública os problemas que atingem importantes parcelas da população.

3 O DIREITO À RESISTÊNCIA E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL N O ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO NA ANÁLISE DO MOVIMENTO CONT RA A

CORRUPÇÃO DO DISTRITO FEDERAL

Para balizar o amplo campo conceitual do que se considera democrático, pode-se

lançar uma definição mínima de democracia “segundo a qual por regime democrático

entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de

decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos

interessados”20.

18 Sobre a questão, vide Habermas: “uma teoria dos direitos entendida de maneira correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a integridade do indivíduo, até nos contextos vitais que conformam sua identidade. Para isso não é preciso um modelo oposto que corrija o viés individualista do sistema de direitos sob outros pontos de vista normativos; é preciso apenas que ocorra a realização coerente desse viés. E sem os movimentos sociais e sem lutas políticas, vale dizer, tal realização teria poucas chances de acontecer” (HABERMAS, 2007, p. 243). 19 HABERMAS (2007, p. 246) 20 BOBBIO (2000, p. 22)

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O intuito dessa conceituação não é distanciar completamente a esfera material da

formal, pois esses critérios da democracia como método, por mais que respeitem e

possibilitem as mais diversas movimentações no seio das disputas sociais e lingüísticas sobre

o que é democrático, estabelecem como princípios inafastáveis o respeito às instituições e o

compromisso com a manutenção do livre debate para a formação de maiorias21.

O bom funcionamento dos esquemas procedimentais acima relacionados depende do

respeito a direitos civis e políticos – garantidos no Brasil pela Constituição Federal de 1988 –

uma vez que são “[...] regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo”22.

Fica claro, assim, que essas “regras preliminares do jogo” existem para garantir a

constante reconstrução do projeto democrático. A estruturação institucional que nos envolve,

bem como os procedimentos formais de tomada de decisões não constituem o fim da

democracia, mas apenas o meio pelo qual ela se desenvolve. O procedimentalismo não tem

um valor em si, mas deve ser posto em prática para garantir a constante abertura do espaço

público à participação, de maneira isonômica23.

Porém, de que modo reagir quando os próprios procedimentos da democracia estão

“viciados”? E se o Estado, que seguramente não é perfeito, não atua corretamente de modo a

corresponder à expectativa popular de justiça socialmente referendada e, ao invés de abrir o

espaço público, fecha-o? No momento em que o cidadão percebe que as vias instituídas não

são suficientes para o cumprimento de direitos garantidos constitucionalmente, pode – e deve

– cumprir seu papel de fiscalizador democrático. É a partir da compreensão da necessidade de

participação que se desencadeia, em muitos momentos de tensão social, a desobediência civil.

Nas palavras de Hannah Arendt:

A desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.24

21 BOBBIO (2000) 22 BOBBIO (2000, p. 32) 23 Neste aspecto, toma-se por base o paradigma procedimental habermasiano: “Em face da falibilidade fundamental de nosso saber não basta nenhum desses dois elementos, nem forma, nem substância, tomados por si mesmos. [...] Por não haver, em questões práticas, evidências ‘últimas’ nem argumentos ‘acaçapantes’, temos de recorrer a processos argumentativos, como procedimentos, a fim de explicar por que nos atrevemos a assumir e resolver reivindicações de validação ‘que transcendam’, isto é, que apontem para além do respectivo contexto em particular” (HABERMAS, 2007, pp. 342-343). 24 ARENDT (2008, p. 68)

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O direito à resistência, espelhado no ato da contestação civil, é uma manobra

essencialmente política que busca evidenciar uma falha, uma desvirtuação no prosseguimento

das ações estatais. No caso específico das manifestações ocorridas no Distrito Federal – por

ocasião das denúncias referentes à operação Caixa de Pandora –, o movimento estudantil e

sindical, aliado a vários outros atores sociais, considerou que os meios institucionais

nomeados para lidar com o suposto esquema de corrupção seriam ineficazes sem pressão

popular.

Os manifestantes tinham como uma das críticas, com relação à investigação de

irregularidades no governo do DF, a reiterada e empiricamente confirmada seletividade e

pouca transparência da Justiça. Baseados em experiências anteriores, abundantes na história

jurídica brasileira, estavam desacreditados de que o Judiciário agiria com todo rigor em mais

um caso de crime contra a Administração Pública. Para piorar as perspectivas dos cidadãos

brasilienses, ainda havia notícia de que os suspeitos de envolvimento no esquema do

“mensalão do DEM” estavam presentes nos três poderes do Distrito Federal: Executivo,

Legislativo e Judiciário. Não se podia esperar qualquer resultado satisfatório dessa situação de

conflito de interesses, já que os investigados não votariam pela cassação de seus próprios

mandatos.

O primeiro ato do movimento social surgido nesse contexto, como já citado, foi a

ocupação do plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal25. O objetivo primordial do

grupo nesse primeiro momento era exigir o impeachment do governador José Roberto Arruda

e do vice-governador Paulo Octávio e o afastamento do cargo de todos os citados nos

inquéritos da Polícia Federal.

O entendimento dos manifestantes era de que situações de gravidade excepcional

necessitam de especial e urgente atenção. Não era possível permitir que os trabalhos

legislativos da Câmara corressem normalmente frente a tamanho escândalo, pois a

legitimidade de pelo menos um terço dos deputados distritais e da cúpula do Executivo já

estava comprometida, por ocasião das flagrantes cenas e denúncias de corrupção.

25 A ocupação não foi violenta e não pretendia depredar o patrimônio público, embora uma porta de vidro tenha sido eventualmente quebrada no tumulto da entrada da população na CL-DF. Isso ocorreu porque a entrada dos manifestantes foi ilegalmente barrada – haja vista o Regimento Interno da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que determina em seu Artigo 108, § 5º: Ao público será garantido o acesso à galeria do Plenário para assistir às sessões –, o que gerou revolta e a reivindicação justa dos presentes.

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A ação direta, nesse caso, cumpria dois papeis: evidenciava a indignação popular –

como manifesto do povo, para o povo, em forma de ferida aberta na sociedade brasiliense – e

visava a forçar providências imediatas por parte da ordem instituída. Por isso, os ocupantes da

CL-DF retiraram-se para o hall para permitir que ocorresse uma sessão no plenário em que

seria lido um dos pedidos de impeachment contra o governador, por exemplo. Fica

evidenciado, então, que o interesse não era de causar balbúrdia e desordem irrefletida, mas de

pôr em pauta legítima reivindicação política.

Continuar ocupando a Câmara Legislativa do Distrito Federal mesmo após ordem

judicial que determinava a desocupação e, posteriormente, manifestar-se bloqueando o

trânsito das principais vias de Brasília em protesto foram as formas que os manifestantes

encontraram de mostrar participação política e cidadania “no sentido militante de prática

democrática” 26. Seus interesses eram legítimos em face da Constituição e eles enxergavam

essa luta como uma maneira de não deixar o mais bem documentado caso de corrupção da

história do Brasil se perder no esquecimento. A inércia política não era aceitável, pois a

impunidade não seria tolerada mais uma vez.

A desobediência civil, enquanto ato de resistência, é, por definição, um manifesto de

minorias. O grupo de indivíduos que protesta dessa maneira – como o de Brasília – contraria a

ordem majoritariamente constituída, que é de esperar resultados depois de transcorridos todos

os trâmites institucionais. Os manifestantes que optam por esse caminho agem assim não por

serem contra o devido processo legal, muito pelo contrário: almejam exercer pressão para que

a lei seja cumprida, as instituições sejam respeitadas e as investigações sejam levadas a sério.

Nesse sentido, o desobediente civil é por excelência um democrata, não um infrator27.

Nas palavras de Hannah Arendt, “há um abismo de diferença entre um criminoso que

evita os olhos do público e o contestador civil que toma a lei em suas próprias mãos em aberto

desafio”28. O desobediente civil não atua em causa própria, não descumpre a lei para obter

benefícios privados em detrimento da coletividade. Ele não é uma ameaça à ordem social.

Esse militante enfrenta as normas que julga injustas, pois acredita e confia na comunidade de

princípios da qual faz parte e identifica que mudanças têm de ser empreendidas para que

preceitos constitucionais, que estão acima dessas leis ou decisões judiciais ordinárias, sejam

cumpridos.

26 SOUSA Jr. (1987, pp. 11-17). 27 Sobre o tema, vide Arendt (2008). 28 ARENDT (2008, p. 69).

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Ainda assim, há enorme dificuldade no mundo jurídico para determinar o

enquadramento desses conflitos sociais. É evidente que há uma limitação institucional para

lidar com esse tipo de movimento, que busca atuar em ambientes essencialmente não-

institucionais. Por conta disso, a maioria dos juristas mais conservadores não consegue

explicar a compatibilidade da desobediência civil com o esquema legal do país. Segue-se a

isso uma tendência errônea dos governos e da sociedade civil por eles influenciada em tratar

os manifestantes como criminosos comuns.

4 O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO

Evidências sobre a tentativa de localizar o movimento “Fora Arruda e Toda a Máfia”

sob o estigma da criminalidade estiveram presentes em dois momentos principais: no

processo de desocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal – que culminou com a

retirada dos estudantes no dia 08 de dezembro de 2009 – e na reação policial à manifestação

realizada no Eixo Monumental no dia seguinte.

Após negociação realizada no dia 07 de dezembro de 2009 com o deputado Cabo

Patrício (PT), presidente interino da CL-DF, os manifestantes instalados no prédio decidiram

desocupar o plenário. Transferiram-se para a galeria e para um corredor destinado à

circulação do público. Essa decisão foi tomada para garantir a realização das atividades

previstas para o dia, entre elas, a leitura do processo de impeachment protocolado pela OAB-

DF, a eleição do novo corregedor da Casa e uma reunião da Comissão de Constituição e

Justiça (CCJ).

A estratégia política de sair do plenário apenas afirmou a intenção do grupo de prezar

pela manutenção dos trabalhos da Câmara. Ainda assim, a juíza responsável pelo caso enviou

dois oficiais de justiça à CL-DF para que fosse cumprida a ordem de reintegração de posse a

partir de pedido da presidência da Casa. 29 Não se compreendeu a ação dos jovens como uma

luta legítima para assegurar que houvesse o julgamento devido dos processos, mas como mero

descumprimento de decisão judicial, desacato, inobservância da “lei”.

A presença dos manifestantes em áreas internas da Câmara – uma maneira legal de

exercer pressão e a função essencial de fiscalização democrática – restou reduzida à imagem

de rebeldia. Foi dado um ultimato ao grupo, determinando que eles deveriam optar pela saída 29“Nota do movimento ‘Fora Arruda e Toda a Máfia’: Plenário desocupado.” Acesso em: http://foraarrudaetodamafia.wordpress.com/page/7/.

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13

pacífica, caso contrário os policiais da ROTAM estariam autorizados a retirá-los à força. Foi

forjada, dessa forma, uma contrariedade ao sistema jurídico vigente, quando, ironicamente, a

única intenção do manifesto era a recuperação da normatividade desse mesmo sistema.

Aos olhos da grande mídia, era interessante mostrar a ação dos manifestantes como a

mais escandalosa e indisciplinada possível, pois assim o próprio mérito do protesto contra as

denúncias de corrupção poderiam ser eivados de desconfiança. Tratou-se de tentativa de

desqualificar o discurso pela descaracterização do locutor, a partir da etiquetação dos

membros do movimento como desajustados, baderneiros e inconseqüentes. Na tarde do dia

08, enfim, os pacíficos manifestantes foram retirados um a um da CL-DF no colo dos

policiais militares.

No dia seguinte, 9 de dezembro, milhares de brasilienses, dentre eles os estudantes

egressos da Câmara Legislativa, reuniram-se em frente ao Palácio do Buriti, sede do governo

local, para prosseguir nas manifestações e pedir a saída dos governantes corruptos das

instituições públicas do Distrito Federal. Para chamar a atenção de ainda mais pessoas que por

ali transitavam, decidiu-se bloquear uma das pistas do Eixo Monumental, uma das principais

vias de Brasília.

Quando já desocupavam a pista, a cavalaria da Polícia Militar entrou em ação,

partindo em direção aos manifestantes, inclusive desferindo-lhes violentas agressões. Ali,

lançou-se mão de bombas de efeito moral, cassetetes e dos próprios cavalos para reprimir a

mobilização. O embate era claramente desigual e covarde – os manifestantes, além de não

possuírem armas ou qualquer outra forma de ameaça aos policiais, sequer tiveram a

oportunidade de defesa.

O argumento utilizado pela Polícia Militar para tamanho descalabro, no entanto,

permanecia sendo a proteção dos direitos individuais dos motoristas que por ali passavam. A

custo de quê?

A forte repressão policial mostrou o tratamento dispensado pelo Estado contra as

legítimas movimentações sociais em prol do restabelecimento do regime de legalidade na

Administração Pública no Distrito Federal. Além de demonstrar publicamente o uso

instrumental da violência para o fim de legitimar um governo corrupto por via da provocação

do esquecimento, isso significou a transformação da conduta dos manifestantes em ilícito

criminal.

Page 14: Artigo CONPEDI

14

Essa tendência de criminalização dos movimentos sociais é um processo complexo,

que envolve o intuito de despolitizar o conflito, de controlar mudanças e manter relações

hegemônicas na prática do poder. Ela pode ser explicada pela composição da análise da

criminologia crítica com aspectos de teorias criminológicas mais liberais, como a estrutural-

funcionalista, de Émile Durkheim30, ou a teoria do labeling approach.

A síntese dessas teorias permite afirmar a existência de um duplo processo de

criminalização, realizado pelas estruturas organizacionais responsáveis pelo controle social,

formal e informal, na sociedade. A partir desse processo, e sempre que submetidos a ele,

surge o “etiquetamento” de indivíduos e grupos.

A primeira etapa - criminalização primária – ocorre no âmbito do legislativo. Nele

acontece a seleção do objeto a ser tutelado pelo Sistema Penal por meio das leis. A segunda

etapa de criminalização corresponde à seleção dos transgressores, sempre pelo perfil social,

ou seja, de acordo com padrões econômicos, raciais, de gênero, entre outros. Dessa maneira,

pressupõe-se a existência de uma “cifra oculta de criminalidade” gerada por esse duplo

processo de criminalização, o que significa que boa parte dos crimes cometidos não são

descobertos pelo simples fato de ocorrer esse direcionamento da criminalização a

determinados indivíduos e grupos.

Assim, a reivindicação por novos direitos, ou para que o Direito seja aplicado, vem

acompanhada de uma interpretação valorativa podendo ser considerada criminosa em

diferentes níveis, a depender do quanto os indivíduos se enquadrarem no “perfil” social de

transgressor, já pré-determinado pela estrutura de controle social.

Ao observar a atuação do movimento “Fora Arruda e Toda a Máfia”, torna-se

evidente esse duplo processo de criminalização. Em nível secundário, pois se está exigindo

uma ação do Sistema Penal em direção a um grupo que, definitivamente, não faz parte do

perfil de criminalizáveis ou transgressores, além do fato de ser um movimento composto por

estudantes, militantes de esquerda, sindicalistas e movimentos sociais, o que por si só

demandaria uma atuação das instâncias de controle social pelo estigma que estes atores 30 A partir da teoria estrutural-funcionalista, elaborou-se uma interpretação mais sociológica dos fenômenos criminológicos, ou seja, compreendeu-se que as causas das infrações a normas sociais e jurídicas não estariam em fatores sociais e bioantropológicos, como havia sugerido Cesare Lombroso. Para a teoria de Durkheim, a transgressão corresponde a um fenômeno que é característico à toda estrutura social, mas que se torna especialmente nocivo quando ultrapassa certos limites, culminando em um estado de desorganização tal que as regras de conduta perderiam seu valor, caso o comportamento indevido não fosse repreendido (BARATTA, 2004).

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carregam, do ponto de vista dos órgãos de controle institucionalizados. O que pode ser

constatado, por exemplo, pela reação da mídia aos primeiros atos do Movimento ou pela

violência com que a polícia reagiu em diversas manifestações.

Note-se que a compreensão dos processos de criminalização não se reduz à aplicação

das duas teorias criminológicas liberais, que ressaltam o caráter materialista do fenômeno de

transgressão31, não alcançando os desdobramentos dos conflitos e a sua importância como

motor de transformação social.

Desse modo, impõe-se destacar o papel da criminologia crítica na busca da

interpretação dos fenômenos não mais sob o pressuposto exclusivo das teorias liberais, mas

sob o enfoque político-econômico dos comportamentos socialmente “negativos”.

Conforme Andrade,

A criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes (a chamada criminalidade de colarinho branco, dos detentores do poder econômico e político, a criminalidade organizada, etc)32.

Portanto, a partir das ações do movimento “Fora Arruda e Toda a Máfia”, podemos

compreender o processo de criminalização pelo controle social estatal e por parte da própria

sociedade, a partir do questionamento do modelo de dominação e de marginalização, assim

como pelo perfil dos questionadores e transgressores.

É fundamental ressaltar a importância do estudo da formação dos processos de

criminalização dentro da nossa sociedade para que se possa compreender os mecanismos de

31 Sobre o caráter materialista das teorias sociológicas, ver Baratta: “Cuando hablamos de criminologia crítica, y dentro de este movimiento nada homogeneo del pensamiento criminológico contemporaneo situamos el trabajo que se esta haciendo para la construcción de una teoria materialista, es decir economico-politica, de la desviacion, de los comportamientos socialmente negativos y de la criminalización, un trabajo que tiene en cuenta instrumentos conceptuales e hipotesis elaboradas en el ambito del marxismo, no solo estamos conscientes de la relación problematica que subsiste entre criminologia y marxismo, sino que consideramos tambien que semejante elaboracion teórica no puede hacerse derivar unicamente, por cierto, de una interpretacion del os textos marxianos [...], sino que requiere de una vasta obra de observación empirica en la cual ya pueden considerarse válidos datos bastante importantes, muchos de los cuales han sido recogidos y elaborados en contextos teoricos diversos del marxismo” (BARATTA, 2004, p. 165) – Quando falamos de criminologia crítica, e dentro deste movimento nada homogêneo do pensamento criminológico contemporâneo situamos o trabalho que se está fazendo para a construção de uma teoria materialista (econômico-política) do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, um trabalho que lança mão de instrumentos conceituais e hipóteses elaboradas no âmbito do marxismo, não só estamos conscientes da relação problemática que subsiste entre criminologia e marxismo, como também consideramos que semelhante elaboração teórica não pode ser derivada unicamente de uma interpretação dos textos marxianos. É necessária uma observação empírica na qual se consideram válidos dados bastante importantes, muitos dos quais foram coletados e elaborados em contextos teóricos diversos do marxismo (tradução livre). 32 ANDRADE (2003, p. 217).

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16

controle social e a reação do Sistema Penal com relação a determinados indivíduos e ações e,

assim, desvelar os interesses por trás da manutenção de certas normas e sua condição

descartável – inaplicabilidade - perante determinadas conjunturas políticas.

Dessa maneira, impõe-se a necessidade de reconhecer certos conflitos de maneira

positiva e transformadora, evidenciando o déficit de provimento estatal33. Atos de

desobediência civil, como ocupação de prédios públicos, muito mais do que transgredir

regras, conforme Arendt34, são atos que desafiam o não cumprimento de ordens e preceitos

estabelecidos.

O comportamento inovador de movimentos sociais provoca uma ação dos órgãos de

controle social e quanto mais acentuado seu desvio com relação àqueles que determinam ou

influenciam as normas sociais e a manutenção de determinados privilégios, mais intensa será

a reação das agências de controle institucionalizado ou difuso – Sistema Penal e mídia. A

criminalização desse desvio tem, portanto, a função de delimitar o “inimigo” para controlar

iniciativas que possam prejudicar a manutenção de um status quo dominante.

A conduta de não-conformidade, se tipificada, torna-se um alvo mais fácil. Assim, o

controle social ativa a “reação social”, trazendo uma espécie de consenso na sociedade

quando se assume o desviante como um criminoso capaz de potencialmente desestruturar o

grupo social e provocar uma situação de anomia. Indiretamente, tenta antecipar

desdobramentos futuros advindos daquela determinada ação e, consequentemente, bloqueia o

processo de mudança social.

Logo, para o que chamamos de controle social, criminalizar a conduta desviante

significa interromper um processo que gerará o “caos social da anomia”. Daí, a “justificativa”

estatal no emprego de violência excessiva contra os manifestantes do movimento “Fora

Arruda e Toda a Máfia”, no dia 9 de dezembro de 2009 - manifestação mais marcante devido

à reação truculenta do aparelho estatal contra um ato pacífico - além de outras manifestações

em que desproporcionalmente foi empregada uma violência covarde, como no dia em que os

militantes do Movimento, com o intuito de exercer seu direito de livre entrada na Câmara

33 Sobre a sociologia do conflito e sua aplicação à criminologia, afirma Baratta: “Las teorias conflictuales de la criminalidad niegan el principio del interes social y del delito natural afirmando que: a los intereses que estan en la base de la formación y de la aplicación del derecho penal son los intereses de aquellos grupos que tienen el poder de influir sobre los procesos de criminalización” (BARATTA, 2004, p. 123) – As teorias conflituais da criminalidade negam o princípio do interesse social e do delito natural afirmando que aos interesses que então na base da formação e da aplicação do direito penal são os interesses daqueles grupos que têm o poder de influir sobre os processos de criminalização (tradução livre). 34 ARENDT (2008, p.69).

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Legislativa do Distrito Federal para assistir a uma sessão plenária a qual, por lei, é pública,

foram agredidos pela polícia e impedidos de exercer seu direito.

5 AÇÕES DE MOVIMENTOS SOCIAIS SOB UMA PERSPECTIVA D OS DIREITOS

HUMANOS

Com base em tudo que já foi exposto, faz-se necessária uma análise das ações dos

movimentos sociais sob uma perspectiva dos Direitos Humanos, relembrando a dimensão

histórica da construção do Direito e das suas transformações a partir da luta e da reivindicação

de grupos socialmente marginalizados pelos detentores do poder. É preciso lembrar que

somente por meio dessas iniciativas foi possível consolidar e validar direitos como a greve, o

voto universal, a livre manifestação, o contraditório, a ampla defesa e tantos outros.

No paradigma do Estado Democrático de Direito, ganha destaque especial a

utilização do espaço público como âmbito de reivindicação de direitos e expressão de novas

demandas da sociedade. É possível evidenciar assim déficits no provimento estatal e exigir

providências que supram as carências populares. Esse espaço para a livre comunicação e

expressão deve ser garantido e possibilitado pelo Estado, como um pressuposto democrático

de participação e exercício da cidadania35.

Assim, cabe ao Estado, e ao aparato de controle social que lhe é próprio, observar

ações como a de movimentos sociais não sob a perspectiva cristalizadora da criminalização,

mas a partir de uma perspectiva dinâmica de direitos humanos que amplie a compreensão das

articulações populares, sem marginalizá-las.

A ocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal, promovida pelo movimento

“Fora Arruda e Toda a Máfia”, deve ser compreendida de acordo com os pressupostos

supracitados. O reconhecimento do conflito como modo de construção de direitos, por meio

da discussão desses em espaços legitimamente – mas não necessariamente de maneira

institucionalizada – constituídos para tal, não pode levar a um processo de criminalização

35 Habermas põe o respeito aos direitos humanos como condição de possibilidade fundamental para a existência de uma esfera pública democrática. “Do ponto de vista normativo, não há Estado de Direito sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os quais simplesmente não pode haver um direito legítimo: em primeira linha o direito a liberdades de ação subjetivas iguais, que por sua vez pressupõe uma defesa jurídica individual e abrangente” (HABERMAS, 2007, p. 251).

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18

num contexto democrático-constitucional, vez que é justamente essa discussão que se espera

que ocorra no interior de organismos sociais.

Imaginar minorias dissidentes como traidoras ou simples rebeldes vai contra o

espírito da Constituição, sempre tão preocupada com o controle do poder de uma maioria

desenfreada. Nesse sentido, pode-se dizer que as ações truculentas da cavalaria da Polícia

Militar e do BOPE desviaram-se da função garantista de proteção de direitos e contensão de

excessos para recair na agressão. O comportamento observado nas cenas amplamente

divulgadas pelo país somente pode ser visto como negação do próprio Direito, que, enquanto

construção coletiva dos cidadãos, é algo que deve ser compreendido sob uma lógica de

alteridade.

Nas palavras de Carbonari,

O núcleo dos direitos humanos radica-se na construção de reconhecimento. Dizer isso significa posicionar os direitos humanos como relação – antes de posicioná-los como faculdade dos indivíduos. Isto significa dizer que mais do que prerrogativa disponível, direitos humanos constituem-se em construção que se traduz em processo de criação de condições de interação multidimensional. A interação, esquematicamente, dá-se em planos ou dimensões diversas e múltiplas: interpessoal (singular), grupal-comunitária (particular), genérico-planetária (universal), conjugando cotidiano e utopia, cultura e natureza, ação e reflexão, entre outras. Em outras palavras, os direitos humanos nascem da alteridade, nunca da mesmice ou da mesmidade.36

Perceber o papel catalisador das ações de movimentos sociais como motor de

transformações é de extrema importância para a compreensão dos processos sociais, políticos,

econômicos e jurídicos que geram o não-reconhecimento das necessidades do outro, negando

que nossos direitos também correspondem a deveres com relação a esse mesmo outro, sob

uma perspectiva da alteridade. A ausência desse entendimento legitima a manutenção de

privilégios e relações de poder em espaços que são públicos por excelência, como a política e

o próprio Estado.

Sob esse viés, as ações de movimentos sociais devem ser compreendidas, em

primeiro lugar, como uma conseqüência de desigualdades, para que, a partir de uma

perspectiva de direitos humanos, possamos observar como os mecanismos de reivindicação se

tornam instrumentos e motores de transformações sociais e garantidores da efetivação de

direitos.

36 CARBONARI (2007).

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Conforme expõe Carbonari (2007), existe uma necessidade de identificação de

dissonâncias a fim de gerar a harmonização de interesses contrários ou que concreta e

pontualmente se mostram antagônicos. Também compõe esse processo de reconhecimento a

identificação do surgimento de novas necessidades ou de sua repressão tão intensa que

impossibilite seu reconhecimento pela maioria da população, seja por completa ignorância

com relação à demanda, seja por manipulação por parte da mídia ou do Estado, como ocorreu

no caso de Brasília.

Dessa maneira, a prática da alteridade torna-se imperiosa como conseqüência da

interação decorrente da necessidade da construção do reconhecimento. Tendo como

pressuposto o paradigma do Estado Democrático de Direito no qual vivemos, as relações e

fatos sociais devem ser vistos sob uma perspectiva de intersubjetividade e entendimento

mútuo.

Por conta disso, as ações de movimentos sociais devem pressupor a re-significação

de cada indivíduo perante o coletivo. Faz-se necessário um processo de auto-conhecimento e

uma ruptura de pré-conceitos para que se perceba a necessidade não apenas de serem todos

iguais perante a lei, formal e materialmente, mas também de serem reconhecidas as diferenças

entre indivíduos e grupos37.

Os desvios, em sentido criminológico, devem ser compreendidos da mesma maneira,

ou seja, devemos re-significar nossas pré-concepções sobre determinados atos e

acontecimentos a fim de vislumbrarmos uma tentativa de se criar uma crise, uma ruptura,

como forma necessária, e talvez única, da real efetivação do Estado Democrático de Direito.

Atos como a ocupação da Câmara Legislativa do Distrito Federal e a manifestação

no Eixo Monumental no bojo das ações do movimento “Fora Arruda e Toda a Máfia” tornam

possível o início de uma transformação política do DF, na exata medida em que expõem a

necessidade de reconhecimento da legitimação de comportamentos socialmente qualificados

como delituosos, mas que, em verdade, buscam apenas ocupar seu espaço na esfera pública e

fazer-se ouvir perante o todo social.

37 “As reivindicações nas ruas por liberdade e por igualdade levantam publicamente a pretensão constitucional de que as diferenças específicas do grupo que as conduz sejam reconhecidas, daquele momento em diante, como igualdade, e exigem o respeito público à sua liberdade de serem diferentes. Os debates sobre diferenças de gênero, de cor, de orientação sexual, de arcabouços culturais, de práticas religiosas ou mesmo anti-religiosas (sic) revelam a todos a inconstitucionalidade concreta de toda forma de discriminação. De outra parte, para a efetiva igualdade no respeito às diferenças, é necessário assegurar-se a esfera de liberdade para o exercício dessas diferenças. Tal esfera não requer (nem pode exigir) que tenhamos simpatia ou afeto por valores diversos dos nossos. Mas, a Constituição impõe, sim, o respeito à liberdade, o respeito às diferenças reconhecidas como igualdade.” (BLAIR & CARVALHO NETTO, 2008, p. 7)

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CONCLUSÃO

A publicização cada vez maior dos espaços públicos fere uma gama de interesses de

agentes que insistem em fazer da vida política seus negócios particulares. E, pior, utilizam-se

do violento aparato estatal para fazer valer os interesses privados, sobrepostos à coisa pública.

Nesses momentos, fica ainda mais patente a importância dos movimentos sociais

para a efetivação do Estado Democrático de Direito. É necessário que à força desmedida do

aparato estatal, apropriado de forma anômala, oponha-se o debate racional e aberto por meio

da defesa efusiva dos direitos de cidadania.

O poder, para Hannah Arendt,

corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido. [...] A partir do momento em que o grupo do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo: sem um povo ou grupo não há poder) desaparece, ‘seu poder’ também se esvanece.38

Trata-se do exercício concreto do poder pelo seu legítimo detentor numa democracia.

Nas recentes mobilizações em repúdio aos escândalos de corrupção no Distrito Federal, pôde-

se perceber essa clara contraposição entre o exercício legítimo de direitos políticos e o uso

instrumental da força para proteção de interesses particulares. Nesse sentido, não poderia ser

mais atual a leitura de Lyra Filho:

O conjunto das instituições e a ideologia que a pretende legitimar (a ideologia de classe e grupos dominantes) padronizam-se numa organização social, que se garante com instrumentos de controle social: o controle é a central de operações das normas dinamizadas, dentro do ramo centrípeto, a fim de combater a dispersão, que desconjuntaria a sociedade e comprometeria a “segurança” da dominação. [...] ao menor risco de se acentuar um desvio, mesmo dentro das regras, o poder enrijece o controle alarmado ou o sistema subjacente para colocar um outro, mais enérgico, na direção. 39

Assim, a utilização de forças policiais para conter as legítimas manifestações

estudantis tinha o objetivo único de conter a pulsão democrática popular, promovendo, dessa

forma, um bloqueio à rememoração dos acontecimentos noticiados, o qual era a pretensão

maior daquelas manifestações.

Resta, portanto, para que haja um pleno vigor do Estado Democrático de Direito no

Brasil, reconhecer essa forma de tratamento dispensado às mobilizações sociais em prol do

regime de legalidade como clara manifestação de violência institucional. A partir deste 38 ARENDT (2009, pp. 60-61) 39 LYRA FILHO (2006, p. 69)

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reconhecimento, torna-se premente a necessidade de mudança da atuação estatal para que se

ampliem os debates públicos lançados pelos questionamentos postos à comunidade política.

A efetuação de tais mudanças, contudo, somente pode partir da formação de coletivos

no interior desta mesma comunidade que busquem desvelar as pretensões que se escondem

entre tropas e armas. Ocupar a esfera pública e chamar a atenção dos cidadãos para tais

pretensões é fundamental caso se almeje, para tais coletivos, uma pretensão de legitimidade.

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