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ARTIGO IMPORTANTE
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i
Milene Bazarim
CONSTRUINDO COM A ESCRITA INTERAES IMPROVVEIS ENTRE
PROFESSORA E ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA PBLICA DA PERIFERIA DE
CAMPINAS
Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem - IEL
Departamento de Lingstica Aplicada - DLA 2006
Milene Bazarim
CONSTRUINDO COM A ESCRITA
INTERAES IMPROVVEIS ENTRE PROFESSORA E ALUNOS
DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA PBLICA DA PERIFERIA DE
CAMPINAS
Dissertao apresentada ao Departamento deLingstica Aplicada, do Instituto de Estudos daLinguagem, da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenodo grau de Mestre em Lingstica Aplicada, na reade concentrao Ensino/Aprendizagem de LnguaMaterna. Orientadora: Prof. Dra. Ins Signorini
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Estudos da Linguagem - IEL Departamento de Lingstica Aplicada - DLA
2006 iii
iv
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp
B347c
Bazarim, Milene.
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do ensino fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas / Milene Bazarim. -- Campinas, SP : [s.n.], 2006.
Orientador : Ins Signorini. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Interao professor-aluno. 2. Letramento. 3. Pesquisa-ao -
Metodologia. I. Signorini, Ins. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.
Ttulo em ingls: Achieving through writing unlikely interactions between teacher and students.
Palavras-chaves em ingls (Keywords): Student-teacher interaction; Literacy; Action-research.
rea de concentrao: Lngua Materna.
Titulao: Mestre em Lingstica Aplicada.
Banca examinadora: Profa. Dra. Ins Signorini (orientadora), Prof. Dr. Joo Wanderley Geraldi e Profa. Dra. Raquel Salek Fiad.
Data da defesa: 19/10/2006.
Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada.
v
BANCA EXAMINADORA
Profo Dro Joo Wanderley Geraldi UNICAMP/DL
Profa Dra Raquel Salek Fiad UNICAMP/DLA
Profa Dra Ins Signorini UNICAMP/DLA (orientadora)
Profa Dra Maria Augusta Reinaldo UFCG (suplente)
Profa Dra Elza Taeko Di UNICAMP/DLA (suplente)
vii
Aos meus alunos, por tudo que aprendemos juntos!
ix
Agradecimentos,
minha orientadora, Profa Dra Ins Signorini, por suas observaes, por sua confiana, e, principalmente, por sua pacincia.
Aos professores Wanderley Geraldi, Raquel Fiad, Maria Augusta e Elza Doi, pela cuidadosa leitura e pelas valiosas contribuies.
Ana Silvia, Marlia, Clcio, Clara, Robson e Janaina, companheiros de pesquisa, pelas inmeras sugestes e observaes.
amiga Aline, com quem compartilho esse momento de alegria aps ter compartilhado outros tantos de angstia e incerteza.
Adriana, Andressa, Cynthia, Dalva, Denise, Edna, Elaine, Luclio, Nadja, Renata, Roselma, Sandra, para sempre queridos amigos.
Aos amigos Wagner, Eliana, Glcia, Jorge e Silvio, pela prazerosa convivncia, pelas contribuies e lies de vida.
Ao Mrcio, Adriane, Mrcia Ado, Edilaine, Luciane, Edvnia pela amizade e pelas inmeras contribuies.
Maria Jos Michelazzo, a pessoa e a professora que eu gostaria de me tornar.
Ao amigo Joo B. M. Gatinho, por seu companheirismo, sua amizade, pacincia e dedicao.
Jane Ccero da Silva, por seu carinho e confiana.
Andria Lucena, a irm que me escolheu.
Capes e ao Governo do Estado de So Paulo, pela ajuda financeira.
xi
H tantos dilogos
Dilogo com o ser amado o semelhante
o diferente o indiferente
o oposto o adversrio
o surdo-mudo o possesso
o irracional o vegetal o mineral
o inominado
Dilogo consigo mesmo com a noite
os astros os mortos as idias o sonho
o passado o mais que futuro
Escolhe teu dilogo e
tua melhor palavra ou teu melhor silncio
Mesmo no silncio e com o silncio dialogamos.
(Carlos Drummond de Andrade)
xiii
RESUMO
Este trabalho apresenta os resultados de uma investigao sobre a construo da
interao em mensagens escritas trocadas entre mim, enquanto professora, e
meus 98 alunos de uma escola pblica da periferia de Campinas-SP. Trata-se de
uma investigao de cunho qualitativo na qual a gerao dos registros foi
orientada pela metodologia da pesquisa-ao. As 189 mensagens que constituem
o corpus foram geradas durante o ms de novembro de 2004, sendo que 125
foram produzidas por mim e 64 pelos alunos de quinta e sexta sries. Inicialmente,
essas mensagens eram curtas e visavam estabelecer um contato amigvel entre
professora e alunos. medida que os alunos foram respondendo, as mensagens
foram se individualizando, tornando-se mais longas e se aproximando do gnero
carta pessoal. A troca de mensagens foi uma atividade extraclasse e os textos
assim produzidos no foram objeto de correo ou discusso em sala de aula. As
anlises revelaram que nessas mensagens, embora os papis institucionais de
professora e aluno no tenham sido apagados, houve deslocamentos
significativos e de grande interesse para a reconfigurao do contexto
sociointeracional da sala de aula, pois procurei me construir como um interlocutor
interessado no que o aluno teria a dizer sobre si mesmo e sobre a escola. Desse
modo, a interao estabelecida escapa aos padres escolares vigentes naquela
instituio sem, contudo, deixar de ter um carter institucional e pedaggico
importante para o letramento do aluno, uma vez que houve tambm a mobilizao
de recursos lingstico-discursivos necessrios interao via carta.
Palavras-chave: Interao professor-aluno, letramento, pesquisa-ao.
xv
ABSTRACT
The present dissertation presents the results of a research on the accomplishment
of interaction through the exchange of written messages between myself, as a
teacher, and my 98 students in a peripheral public school in the city of Campinas,
SP. It is a qualitative-driven research, and the generation of registers was based
on the action-research methodology. The 189 messages comprising the corpus
were written during November, 2004. From such amount, 125 were written by me,
and 64 by the fifth and sixth grade students. At first, such messages were short,
and aimed at making a friendly contact between teacher and students. As long as
the students started answering, the messages became individualized, longer,
resembling the personal letter genre. The exchange of messages was an extra
activity, and the texts written in such context were not object of correction or class
discussion. The analyses show that in such messages, even though the
institutional roles of teacher and student were not erased, there were remarkable
displacements, which are of great interest for a change in the sociointeractional
classroom context, since I attempted to posit myself as an interlocutor who is
interested in the student opinion on herself and on the school. Therefore, the
accomplished interaction differs from the patterns which are common in such
school. Such interaction has an important institutional and pedagogic feature,
contributing to the students literacy, once it could be observed the use of linguistic-
discursive resources necessary to the interaction through letters.
Keywords: Student-teacher interaction, literacy, action-research.
xvii
SUMRIO INTRODUO.............................................................................................................. 19
CAPTULO I A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA............................. 21
1.1 A gerao dos registros: contextualizando a pesquisa.............................................. 22
1.2 Caracterizao do contexto e dos participantes........................................................ 26
1.2.1 O bairro ................................................................................................................. 26 1.2.2 A escola ................................................................................................................. 31 1.2.3 Os alunos e a professora ....................................................................................... 33 1.3 A construo do objeto de pesquisa ......................................................................... 36
1.3.1 A anlise ................................................................................................................ 40 1.3.2. Caracterizao das mensagens ............................................................................ 42 Concluindo o captulo..................................................................................................... 48
CAPTULO II A INTERAO ENTRE PROFESSOR E ALUNO NO CONTEXTO ESTUDADO................................................................................................................... 49
2.1. A interao oral em sala de aula.............................................................................. 50
2.2 A interao mediada pela escrita .............................................................................. 60
2.2.1 Estratgias interacionais para iniciar e/ou manter o dilogo nas mensagens escritas........................................................................................................................................ 64
2.2.1.1 A desconstruo do papel de professor-avaliador ............................................. 66 2.2.1.2 A demonstrao de afetividade .......................................................................... 71 2.2.1.3 A demonstrao de interesse pelo aluno e pelo que ele tem a dizer ................. 74 Concluindo o captulo..................................................................................................... 86
CAPTULO III DE BILHETES A CARTAS: A EMERGNCIA DA ESCRITA COMO UMA PRTICA SITUADA E SIGNIFICATIVA PARA O ALUNO NO CONTEXTO FOCALIZADO............................................................................................................... 87
3.1 A experincia anterior dos alunos com a escrita durante as aulas de LM................ 88
3.1.1 A concepo de escrita no planejamento de Lngua Portuguesa das 5as e 6as sries do ano de 2004 e no caderno de uma aluna........................................................................ 89 3.2 A produo dos bilhetes e cartas .............................................................................. 96
3.2.1 Consideraes a respeito do processo de andaimagem........................................ 98 3.2.2 A mobilizao de recursos de edio de texto..................................................... 100 3.2.3 A reproduo e a retextualizao........................................................................ 105 Concluindo o captulo................................................................................................... 111
CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 112
xviii
REFERNCIAS ........................................................................................................... 114
Exemplo 1 - Milene para Suzana.......................................................................................... 43 Exemplo 2 - Milene para Joo.............................................................................................. 44 Exemplo 3 - Joo para Milene.............................................................................................. 47 Exemplo 4 Ata de reunio ................................................................................................. 52 Exemplo 5 - Robson para Milene......................................................................................... 61 Exemplo 6 - Milene para Gabi ............................................................................................. 67 Exemplo 7 - Gabi para Milene ............................................................................................. 67 Exemplo 8 - Milene para Jaqueline ...................................................................................... 75 Exemplo 9 - Jaqueline para Milene ...................................................................................... 77 Exemplo 10 - Milene para Andressa .................................................................................... 82 Exemplo 11 - Andressa para Milene .................................................................................... 83 Exemplo 12 - Texto do caderno sobre linguagem e comunicao, 09/03/2004................... 91 Exemplo 13 - Texto do caderno sobre elementos da comunicao, 15/03/2004. ................ 91 Exemplo 14 Ditado, 17/05/2004........................................................................................ 93 Exemplo 15 - Redao-Poesia.............................................................................................. 94 Exemplo 16 - Ana Carla para Milene................................................................................. 100 Exemplo 17 - Milene para Ana Carla................................................................................ 100 Exemplo 19 - Primeira mensagem enviada por Bento ....................................................... 103 Exemplo 20 - Terceira mensagem enviada por Bento........................................................ 103 Exemplo 21 - Janana para Milene ..................................................................................... 104 Exemplo 22 - Milene para Camile...................................................................................... 106 Exemplo 23 - Camile para Milene...................................................................................... 106 Exemplo 24 - Milene para Bento........................................................................................ 107 Exemplo 25 - Bento para Milene........................................................................................ 107 Exemplo 26 - Milene para Jaqueline .................................................................................. 110 Exemplo 27 - Jaqueline para Milene .................................................................................. 110
19
INTRODUO
Este trabalho, que tambm dialoga com tantos outros, apresenta os
resultados de um estudo que investigou a interao mediada pela escrita entre
mim, enquanto professora, e meu(s) aluno(s) de uma escola pblica da periferia
de Campinas-SP. Aqui apresento as caractersticas gerais de um processo
interacional que, dada a singularidade da situao e de cada sujeito participante,
improvvel e nico. improvvel pela incerteza e pelo risco, nico porque se
relaciona com as angstias e inquietaes de uma professora-pesquisadora
iniciante, bem como com a histria de vida de cada um dos sujeitos participantes
fatos esses que transcendem os limites impostos por esta pesquisa acadmica.
Qualquer alterao numa das variveis (tempo, espao, participantes, objetivo)
alteraria tanto o processo quanto o resultado. Isso o que tenho observado nos
dois ltimos anos em que tenho continuado a interao com os meus alunos
atravs da escrita.
O que e por que uma professora escreveria para seus alunos? Os alunos
responderiam? O que? Como? Tais perguntas me acompanharam durante todo o
caminho percorrido at a apresentao deste trabalho. A maneira como elas foram
feitas no teve o intuito de apagar que se trata de uma pesquisa-ao, na qual,
simultaneamente, assumo o papel de participante e pesquisadora. No entanto,
durante o processo nem todas as significaes que poderiam ser atribudas
interao me pareciam evidentes, as estratgias utilizadas tambm no foram
calculadas, muito menos os resultados alcanados. Com esses questionamentos,
no papel de pesquisadora, tentei explicar neste trabalho por que e como iniciei a
interao, por que e como utilizei a escrita, por que escrevi o que escrevi.
No h aqui nenhuma pretenso de neutralidade, portanto, desde a deciso
de fazer a pesquisa com a minha prpria sala de aula, a seleo do objeto de
pesquisa, as anlises, tudo, est contaminado pelas minhas crenas e valores e
pela viso mica que tive do processo. Assim, muitas vezes a voz da professora
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
20
se sobrepe da pesquisadora e vice-versa e, o que espero que ambas no
tenham sufocado as vozes dos alunos.
O primeiro captulo dessa dissertao dedica-se justamente discusso
dos aspectos metodolgicos envolvidos na investigao. Alm de explicitar como
se deu a construo do objeto de pesquisa e contextualizar a pesquisa, procuro
caracterizar tanto os participantes quanto os textos por eles produzidos. No
captulo seguinte, apresento algumas das principais caractersticas da interao
em foco e discuto as razes para diferenci-la da que geralmente se estabelece
entre professor-aluno(s) em contexto escolar. A descrio das estratgias
interacionais utilizadas para iniciar e/ou manter o dilogo entre mim e os alunos
tambm so descritas neste segundo captulo. A interao estudada escapa aos
padres escolares mais comuns vigentes naquela instituio no s por causa das
caractersticas interacionais, mas tambm porque ela possibilitou o surgimento da
escrita, naquele contexto especfico, como uma prtica social situada e
significativa para os alunos, o que discutido no terceiro captulo.
Essa diviso dos captulos busca elucidar as diferentes facetas de um
mesmo objeto de estudo. Mas preciso lembrar que, mesmo estudadas
separadamente, a interao oral e escrita entre mim e os meus alunos constituI
uma mesma realidade e, na prtica, ocorreram simultaneamente. Cumpre
salientar, ainda, que os resultados apresentados nesta dissertao, de forma
alguma esgotam a complexidade do processo interacional estabelecido entre mim
e meus alunos, nem exploram toda a riqueza dos registros gerados. E, dadas as
muitas limitaes da pesquisa acadmica, acredito que este trabalho apenas
sinaliza o que teria significado para aqueles alunos receber e/ou enviar uma carta
na situao focalizada.
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
21
CAPTULO I A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA
Qualquer tentativa de estudar a realidade, sobretudo a linguagem, realizar,
inevitavelmente, abstraes e redues1. impossvel fazer um mapa do tamanho
do mundo2. Dessa forma, a maneira de construir o objeto de pesquisa no
neutra, pois a forma como o pesquisador olha a realidade influenciada por suas
crenas e valores, sobretudo no contexto desta pesquisa, em que o investigador
participa da interao mediada pela escrita que objeto de anlise. Neste
trabalho, portanto, h uma fuso entre os papis de pesquisadora e professora por
mim assumidos.
Neste primeiro captulo, so considerados os aspectos metodolgicos que
orientaram a construo do objeto de pesquisa, cujo objetivo geral foi identificar e
descrever como se deu a interao estabelecida atravs de cartas3 trocadas entre
mim, enquanto professora, e meus alunos de quinta e sexta sries de uma escola
pblica da periferia de Campinas-SP. As 189 cartas que compem o corpus foram
geradas durante o ms de novembro de 2004. Dessas, 125 foram escritas por
mim e 64 pelos alunos. A minha primeira mensagem foi respondida por 39% dos
alunos, os demais 11%4 somente o fariam depois do recebimento da segunda
mensagem.
Alm das cartas, utilizo aqui outros registros tais como: interao oral na
aula de LM, planejamento de curso, dirio de campo, seqncia de atividades
didticas, roteiro de aulas, questionrio e produes de texto feitas pelos alunos.
Isso permite a triangulao, a qual, segundo Canado (1994, p.58) aumenta a
1 BORGES NETO (1985) discute esse assunto no seu artigo sobre as razes da diversidade terica na lingstica. 2 Referncia ao conto do escritor argentino J.L. Borges, parcialmente transcrito em AKMAJKIAN, A et alli (1995). 3 Utilizar o termo carta para se referir as mensagens trocadas entre professora e alunos uma escolha metodolgica que no pretende apagar o fato de a primeira mensagem, dada a sua extenso, tambm poder ser classificada como bilhete. 4 O quadro encontrado quando assumi as aulas, o que ser descrito no decorrer do captulo, torna relevante e significativa a adeso de 50% dos alunos, os quais, a princpio, tambm pareciam indiferentes ao processo de ensino-aprendizagem.
22
confiabilidade dos dados obtidos, sobretudo em situaes como esta, em que a
voz do ator no se separa completamente da voz do analista.
Este captulo est dividido em quatro partes. Na primeira, fao a
contextualizao da pesquisa, explicitando como os registros foram gerados. A
seguir, apresento a caracterizao do contexto, dos participantes e das
mensagens que constituram o corpus de anlise. Finalmente, descrevo como se
deu a construo do objeto de pesquisa.
1.1 A gerao dos registros: contextualizando a pesquisa
Antes de assumir as aulas, estive na escola para conhecer meus futuros
alunos. As aulas de LM eram ento ministradas pela professora Tatiana, a qual
exercia a funo em carter extraordinrio. Tatiana substitua Elisngela
professora que iniciou o ano letivo na escola, mas que estava em licena
maternidade desde julho de 2004. Elisngela tambm no era a titular do cargo,
por isso foi possvel a minha nomeao. Embora isso tivesse ocorrido em julho de
2004, s pude entrar em exerccio em novembro daquele ano.
A professora Tatiana, quando visitei a escola em outubro de 2004, permitiu
a minha entrada na sala e me apresentou aos alunos como sendo a nova
professora. Naquele momento, tive o primeiro contato com os alunos. Pude ento, mais que "dar uma espiadinha", conversar com cada aluno,
apresentando-me e perguntando no s sobre a escola, mas sobre eles: idade, do que gostavam, se moravam no bairro, se j tinham estudado em outra escola. (Dirio de campo, p. 2, 05/10/2004)
Alm desse contato com os alunos, conversei com o vice-diretor.
(Ele) Fez-me vrias observaes um tanto quanto negativas sobre o bairro, mas com o intuito de me informar, j que eu disse que no era de Campinas. Ele me disse que se trata de uma populao carente; que h muita violncia, principalmente por causa do trfico de drogas... E que os alunos, s vezes, so violentos tambm... (Dirio de campo, p. 3, 05/10/2004)
Para planejar a primeira seqncia de atividades didticas, tive que
considerar essas informaes, os relatos da professora Tatiana, dos prprios
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
23
alunos, bem como o fato de ter sido constante a troca de professores naquele ano.
Em conversas com a Tatiana, ela revelou que os alunos apresentavam
dificuldades na leitura, na escrita e em tpicos como ortografia, acentuao,
pontuao, etc. Ao ouvir os relatos da professora, tive a impresso de que as
dificuldades de leitura apresentadas pelos alunos diziam respeito decodificao.
J no que diz respeito escrita, Tatiana tambm mencionou que os alunos no
conseguiam produzir um texto coerente e que apresentavam muita dificuldade na
paragrafao. Em uma breve conversa com os alunos, confirmei boa parte dos
relatos da professora Tatiana: muitas crianas/adolescentes afirmaram no gostar
de ler nem das aulas de LM e no ter acesso a livros, jornais, revistas, etc.
Como era a terceira a ministrar aulas de LM naquele ano letivo, desconfiei
que, de alguma forma, isso poderia ter prejudicado o processo de
ensino/aprendizagem, pois professores diferentes, geralmente, apresentam
maneiras diferenciadas de conduzir as aulas e de avaliar. Quando uma aluna
escreveu dizendo Eu gosto da Tatiana s ela me entende se no fosse por ela eu
no sabia nada. (Dalva 08/11/2004), os impactos que essa troca de professores
pode ter causado nas crianas/adolescentes se tornaram ainda mais explcitos.
As informaes de que dispus me permitiram traar um perfil provisrio dos
alunos e at a identificao, mesmo que parcial, de uma situao-problema: os
alunos no tinham acesso a jornais e revistas. Conforme o exposto acima, isso foi
revelado pelas prprias crianas/adolescentes que, quando questionados sobre os
seus hbitos de leitura, disseram no ter contato com gneros da mdia impressa,
tais como notcias e reportagens.
Em um segundo momento, tais informaes foram utilizadas na elaborao
de um plano de interveno pedaggica, neste caso especfico, a seqncia de
atividades didticas, "um conjunto provisrio de atividades variadas, direcionais,
metdicas e sistemticas que sero empreendidas pelo professor/professora junto
aos alunos em busca de objetivos definidos para a aula de LM. Entendida como
tendo uma configurao provisria pelo fato de o processo didtico ser dinmico e
estar sujeito a modificaes ao longo de sua atualizao." (GATINHO, 2004).
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
24
Em contextos de ensino/aprendizagem, o fato de ter identificado o(s)
problema(s) no garante a elaborao de um plano que realmente contribua para
a soluo. Rojo (2001), em artigo que analisa uma experincia com a formao de
professores, relata que Fazia parte de nossas crenas, enquanto formadores, que a atividade de
planejar aes didticas, uma vez detectada a necessidade de ensino e as possibilidades de aprendizagem e conhecido o objeto de ensino, caracterstica da profisso e no precisaria, portanto, ser objeto de formao, dado que seria sobejamente conhecida. Da a nossa surpresa que a dificuldade no se encontrasse na descrio do gnero ou na avaliao das possibilidades de aprendizagem (ZPD) tarefas essas que julgvamos mais difceis e objetos de formao, perfeitamente realizadas pelos professores-bolsistas mas justamente na modelizao didtica, ou seja, na seleo de o qu e como ensinar. (Rojo, 2001, p. 328)
No meu caso, em consonncia com o perfil provisrio que tracei dos alunos,
elegi a leitura/escrita do gnero reportagem como objeto de ensino programtico.
Segue a passagem na seqncia de atividades didticas elaborada que
demonstra isso: OBJETIVO Utilizando o gnero reportagem, propor atividades que contemplem leitura,
escrita e oralidade. Com este trabalho, alm da exposio do aluno ao gnero (estratgias de leitura, forma, funo e contedo temtico), pretende-se traar um perfil das turmas, identificando as suas principais dificuldades na leitura e escrita, o que nortear outras atividades de interveno. LEITURA: trabalhar as estratgias necessrias para a leitura do gnero questionrio e reportagem; explorar a multimodalidade; fazer um percurso do macro ao micro, isto , da apresentao do texto, dos infogrficos, ttulos ao texto escrito, no qual sero explorados os elementos lingsticos e estruturais. ESCRITA: com forma, funo e contedo temtico adequados aos gneros a serem produzidos - esquema, questionrio e reportagem; trabalho intenso com produes coletivas, em que o professor funciona como um escriba, e reescrita, a qual dever considerar as especificidades do gnero produzido. GRAMTICA: os tpicos gramaticais a serem trabalhados emergiro da leitura dos textos e da produo textual dos alunos, portanto o trabalho com a gramtica ser vinculado ao de leitura e escrita do gnero. (...) (Seqncia de atividades didticas O que as crianas e adolescentes fazem todos os dias? Introduo ao gnero reportagem , 04 de novembro de 2004)
Dessa forma, o gnero reportagem se apresentou, naquele momento, como
o organizador da seqncia de atividades didticas proposta, a qual se desdobrou
em vrios roteiros de aula. No entanto, ao mencionar nos objetivos da seqncia
de atividades que pretendia traar um perfil das turmas, identificando as suas
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
25
principais dificuldades na leitura e na escrita, o que nortear outras atividades de
interveno, deixava aberta a possibilidade de trabalho com outros gneros.
Essa necessidade de traar um perfil dos alunos, muito mais que uma
postura de desconfiana em relao s informaes j obtidas, pretendia ser lida
como uma tentativa de evidenciar que era preciso planejar as atividades
pedaggicas tendo como base as prprias necessidades e interesses (ou aquilo
que se imaginava ser) de ensino/aprendizagem dos alunos. De fato, em um
primeiro momento, iniciei a troca das cartas tambm com esse objetivo de traar
um perfil do desempenho dos alunos, pois as suas respostas, uma escrita
espontnea, constituiriam uma rica fonte de informaes a esse respeito.
Apesar de no estar prevista como atividade programtica na seqncia de
atividades didticas, a troca de mensagens foi mencionada nos roteiros de aula,
conforme abaixo: O bilhete Elaborei um bilhete para cada aluno. Trata-se de uma tentativa de me
aproximar dos alunos e de estimular a escrita com um fim social, neste caso a correspondncia entre professor-aluno e quem sabe depois aluno-aluno. (Roteiro 1 e 2 aulas)
No trecho da aula reproduzido abaixo, ao tentar explicar aos alunos a
funo do questionrio5 que eles iriam preencher, destaquei que a principal funo
das mensagens era obter informaes Eu quero saber coisas sobre vocs. Milene6 - -Professora:
A muitos de vocs/ l no bilhetinho eu pedi conte sobre voc, falesobre voc mesmo, o que voc gosta de fazer. Alguns responderamoutros no n? Ento o que que acontece? Eu quero saber coisas sobre vocs e no d para eu ir conversando um por um n?7
(Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)
5 Tal questionrio, com o qual se pretendia obter informaes pessoais, estava relacionado com a reportagem que foi estudada, pois abordava os mesmos temas. Isso possibilitou a captao de informaes sobre a turma, as quais foram comparadas aos dados apresentados pela pesquisa divulgada na reportagem. O questionrio e a reportagem esto nos anexos. 6 Todas as transcries presentes neste trabalho foram autorizadas pela escola e pelos alunos e, de comum acordo, ficou estabelecido que todos os nomes utilizados, exceto o meu, seriam fictcios.
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
7 Sinais utilizados na transcrio, adaptados de Marcuschi (2003, p.9-13) : ( ) Dvidas suposies ; (( )) Comentrios do analista ; xxxx Incompreensvel ; : : : : Alongamento da vogal ; AAA Enfase ou acento forte ; , Subida leve ; (+) Pausa equivalente a 0,5 segundos, cada + corresponde 0,5 segundos ; (1,5) Acima de 1,5 segundos registra-se o tempo ; / Truncamentos ; ? Subida forte equivalente a uma pergunta.
26
As mensagens escritas por mim e meus alunos no se constituram,
portanto, como um objeto de instruo em sala de aula, mas sim uma atividade
extraclasse que, dada a sua ocorrncia rotineira, propiciou a mobilizao, com
base nos textos trocados, de recursos lingstico-discursivos prprios dos
gneros utilizados. Quando escrevi minha primeira mensagem, no visava ensinar
os alunos a escreverem bilhetes ou cartas, conforme evidenciado no trecho que
segue. Por mais que reconhea ser pouco provvel que eu no avalie as
produes desses alunos, ressalto que a inteno no essa. Meu objetivo principal estabelecer um canal de comunicao com esses alunos. (Roteiro 1 e 2 aulas)
Minha inteno, portanto, era abrir um espao para que os alunos se
manifestassem atravs da escrita, a qual foi vivenciada pelo grupo como uma
prtica social situada e no como um exerccio de codificao ou um pretexto para
a aplicao da metalinguagem, fatos que ainda ocorrem na escola.
Evidentemente, isso me possibilitou conhecer a escrita daquelas
crianas/adolescentes de uma forma diferente da que comumente praticada em
contexto escolar.
1.2 Caracterizao do contexto e dos participantes
1.2.1 O bairro A escola em que se deu essa pesquisa fica em um bairro da periferia de
Campinas-SP. Tal bairro, conforme informaes do vice-diretor, dos funcionrios
da escola e de algumas reportagens veiculadas na mdia, conhecido pelas
ocorrncias de violncia. Essa caracterizao negativa compartilhada pelos
alunos, embora a isso eles acrescentem outras caractersticas. Em uma pesquisa
realizada no arquivo digital do jornal Correio Popular, o qual circula em
Campinas e regio, foram encontradas, de 2002 a 2005, 16 notcias a respeito do
bairro. Dessas, 10 tinham como tema a violncia e/ou trfico de drogas conforme
pode ser percebido abaixo.
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
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Buracos dificultam trnsito em rua do Jd. Santo Antnio8. (14/11/2005) Ao Solidria mobiliza o Santo Antnio. (18/9/2005) Policiais ocupam as ruas do Jardim Santo Antnio. (3/6/2005) Emdec retira abrigo de ponto de nibus do Jardim Santo Antnio sem avisar usurios. (7/5/2004) Terreno baldio vira depsito de lixo e irrita morador do Jardim Santo Antnio. (7/2/2004) Enchente ainda perturba o Santo Antnio. (19/3/2003) Queda de rvore interrompe energia no Santo Antnio. (14/2/2003) Garoto de 15 anos detido com cocana no Santo Antnio. (30/12/2002) Polcia investiga morte de homem no Jd. Santo Antnio. (2/11/2002) Ladres armados assaltam vigilante no Santo Antnio. (7/10/2002) Polcia descobre drive thru e drogas no Santo Antnio (12/9/2002) Seis so detidos na favela do Santo Antnio por trfico. (22/8/2002) PM apreende papelotes de cocana no Santo Antnio. (15/7/2002) Dois so presos com drogas no Jardim Santo Antnio. (30/6/2002) Polcia faz operaes no Santo Antnio e prende 5. (8/6/2002) Homem executado a tiros no Jardim Santo Antnio. (23/4/2002) (Jornal Correio Popular, www.cpopular.com.br, ltimo acesso em julho de 2006)
Alm das notcias acima, localizei a reportagem Perfil: a construtora de
ninhos que trata de uma ONG localizada no bairro. Essa reportagem foi publicada
em 28/01/2003 no caderno Sinapse do jornal Folha On Line. Tive acesso tambm
a uma notcia sobre a inaugurao de uma academia de Kung Fu no bairro, a qual
foi publicada em 01/06/2003 no portal Cosmo On Line.
(http://www.cosmo.com.br/esportes/2003/06/01/materia_esp_54453.shtm).
A caracterizao negativa do bairro o ponto comum entre todas as
notcias e reportagens. Alm da categorizao favela, h outras tantas, conforme
pode ser observado nos exemplos abaixo: Apontado como um dos principais redutos do trfico de drogas em Campinas, O Jardim Santo Antnio foi ocupado pela Polcia Militar na noite de ontem, onde foi feita um varredura no bairro. (http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1368695&area=2020&authent=9D51214F935452BF73036DB176709D , publicado em 3/6/2005) Com vrios mandados de priso em mos, a incurso da PM num dos redutos tradicionais do trfico de drogas da cidade, resultou na priso de cindo homens e na apreenso de vrios objetos entre eles rdios, modelo HT, que copiavam a freqncia da Polcia. (http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=36265&area=2020&authent=660140265244236204706601402652, publicado em 8/6/2002)
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8 Trata-se de um nome fictcio.
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Todos (referindo-se s crianas/adolescentes atendidas pela ONG) vm de famlias desestruturadas, marcadas pela pobreza extrema e pela violncia do local onde vivem: o Jardim Santo Antnio, uma das favelas mais perigosas de Campinas (SP). (http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u278.shtml, publicado em 28/01/2003). Outro objetivo transformar a imagem de bairro violento que o Jardim Santo Antnio adquiriu pela fama de morada do criminoso W.P.L... (http://www.cosmo.com.br/esportes/2003/06/01/materia_esp_54453.shtm, publicado em 01/06/2003).
Tambm na produo9 feita pelos alunos, na qual eles deveriam me
apresentar o bairro em que moram, so encontradas passagens tais como O
bairro que eu moro favela, mas acho que legal de brincar. (Andria), a
denominao favela aparece como uma expresso predicativa, com o sentido
negativo popularmente disseminado tambm presente nas notcias e reportagens
mencionadas. Esse trao negativo fica evidente dada a presena da conjuno
adversativa mas, usada pela aluna em uma tentativa de reverter a imagem
negativa criada. Com esse uso, a aluna parece querer ressaltar que, apesar de ser
favela, o bairro tem coisas boas, pessoas honestas e no somente bandidos,
violncia e trfico de drogas.
A informao de que o lugar onde vivem uma favela, conforme a
transcrio abaixo, tambm foi fornecida por uma aluna durante a interao oral
em uma aula cujo objetivo era o preenchimento do questionrio com informaes
pessoais, entre elas o endereo residencial.
Milene (Professora):
E qual que vocs acham que meu objetivo com esse questionrio que vocs ainda no vem / no viram? O que vocs acham que pode ter l?
Willian: Perguntas e respostas Milene Tem as perguntas, mas que tipo de pergunta? Que tipo de pergunta
que voc acha que pode ter l? Luciana: Aonde? Milene Nesse questionrio que eu trouxe pra vocs. Luciana Sobre a vida, sobre a gente. Milene T. Que mais? Melhora isso. O que eu posso perguntar sobre voc? Alunos: ((vrios falam ao mesmo tempo)) Quantos anos voc tem? Aonde voc
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9 Tal produo foi por mim solicitada para que eu pudesse obter a opinio dos alunos a respeito do bairro e da escola. Apesar de ter sido feita em sala de aula, tal atividade no estava prevista na seqncia de atividades didticas.
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mora? Luciana Aonde voc mora? Eu moro na favela.Milene: Quantos anos voc tem, idade, onde voc mora, que mais? Luciana: Ns mora na favela. (Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)
Nesse trecho percebe-se que, assim como nas notcias e no texto escrito
por Andria, os alunos aderem categorizao do bairro como favela. Somente
no trecho citado, Luciana d a mesma informao duas vezes talvez porque a
sua revelao tenha sido por mim ignorada e assim ela o faz novamente quando
mostrei como se preenche o endereo residencial.
J em uma outra produo escrita, aparece No meu bairro tem muitas
casas e viela e tambm pessoas, bandidos, 99% das pessoas fofoqueiros 1%
boas. (Edvaldo), a categorizao favela no aparece diretamente, mas
possvel retom-la pelo uso da expresso viela. O aluno em questo prefere dar
maior nfase aos aspectos negativos, segundo ele apenas 1% das pessoas do
bairro boa. interessante observar que as palavras pessoas e bandidos
esto separadas, talvez para deixar bem clara a diferena entre as pessoas boas
e os bandidos.
A viso dos alunos sobre a agitao e a baguna que estariam
presentes na rotina do bairro fica evidente em outro texto em que a aluna diz: O
Santo Antnio um bairro muito agitado e muito barulhento e muito
bagunceiro. (Alice.). Talvez em resposta a esse tipo de enunciado, uma outra
aluna tenha colocado Eu queria que melhorasse muitas coisa como sem brigas,
mortes, violhesa [violncia] ... (Marta), ou seja, a agitao, o barulho e a
baguna citados por Alice podem fazer referncia s brigas, mortes e
violhesa [violncia], explicitados por Marta.
O desejo de melhora que encontrado no texto de Marta no se repete no
da Andressa: Antigamente aps s 18:00 h ningum podia sair para a rua [ela] ficava
rodeada de fumantes de droga e bandido, mas hoje j no tem tanto perigo, mas em vez em quanto tem um tiroteio, a ns fechamos as janelas e as portas e ficamos em lugar bem fechado esperamos pasar.
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Mas no nada no ns j nos acostumamos, mas tambm a [h] lugares bons e legais como o stio, a lanchonete. (Andressa )
No exemplo acima, o que se percebe um sentimento de adaptao s
condies oferecidas pelo bairro para a sobrevivncia a ns fechamos as janelas
e as portas e ficamos em lugar bem fechado esperamos pasar; e de tentativa de
se convencer que a situao no to ruim assim mas tambm a [h] lugares
bons e legais como o stio, a lanchonete. Como a interlocutora a professora
nova, percebe-se o esforo da aluna em mostrar que o bairro melhorou e que, por
isso, no haveria motivos para ela se assustar.
Em documento disponibilizado pela Secretaria Municipal de Sade de
Campinas (http://www.campinas.sp.gov.br/saude/dados/icv/ICV.pdf), a regio
onde se localiza o bairro Jardim Santo Antnio est entre as que possuem o
melhor ndice de Condio de Vida10 (ICV) do municpio (3,1), atrs somente do
Taquaral (3,4), Aurlia (3,4), F.Lima ( 3,3) e Centro (3,3). O ICV foi proposto para
identificar diferenas nos nveis de qualidade de vida e sade das reas de
abrangncias dos Centros de Sade de Campinas. Tal ndice, no entanto, tem que
ser utilizado com restries, pois ele se refere a todos os 17 bairros que so
atendidos pelo Centro de Sade do Jardim Santo Antnio, inclusive a favela a
que os alunos se referem.
Para a caracterizao, procurei utilizar as informaes prestadas pelos
prprios alunos, bem como algumas notcias e reportagens sobre o bairro a que
tive acesso. Conforme demonstrei, tanto as publicaes veiculadas na mdia
quanto os textos dos alunos colocam em destaque a violncia, associada ao
trfico e ao consumo de drogas. No entanto, tais caractersticas no so to
facilmente percebidas por aqueles que apenas passam pela regio, principalmente
porque a favela apenas um dos elementos o bairro. Em minha primeira visita,
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10 Os indicadores utilizados so: proporo de populao moradora em sub-habitao; proporo de chefes de famlia sem ou com menos de um ano de instruo; taxa de crescimento anual (91-96); proporo mdia de mes com menos de 20 anos de idade; coeficiente mdio de mortalidade infantil 1998-2000; incidncia mdia de desnutrio entre os menos de 5 anos 1996-2000; incidncia mdia de tuberculose 1996-2000 (http://www.campinas.sp.gov.br/saude/dados/icv/ICV.pdf)
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por exemplo, pude verificar que se tratava de um local aparentemente tranqilo
onde residiam algumas famlias de baixa renda.
1.2.2 A escola A escola em questo possui cerca de 750 alunos, divididos em trs turnos:
manh, tarde e noite11. Ela atende crianas/adolescentes que cursam o Ensino
Fundamental I, de primeira a quarta srie; o Ensino Fundamental II, de quinta a
oitava srie; e o Ensino Mdio.
Nessa caracterizao, inevitvel relacionar as caractersticas do bairro
que parecem interferir no funcionamento da escola. No trecho abaixo, Vitor se
mostra bastante incomodado com a presena de bandidos e pichadores, pois,
principalmente os ltimos, so responsabilizados pela poluio visual do bairro e
da escola: No Jardim Santo Antnio tem que muda muitas coisas como tirar os
pinxadores que pinxa e tirar os maconheiros (...) os bandidos que robam e o bairro no meresse isso porque no pode robar, pinxar, fumar principalmente os pinxasores pinxa as escolas, as casas os predios e etc
Quando solicitados a falar especificamente sobre a escola, as
caractersticas interacionais dos alunos, descritas como fazer baguna,
(des)respeitar os professores, falar palavro, bem como as pichaes
receberam destaque. Em seu texto, ao dizer como gostaria que a escola fosse,
Edvaldo acaba deixando isso bem evidente. Eu gostaria de ter uma escola sem pichaso, alunos educados.
Professores menos nervosos. quando fossemos para paseios sem bagunsa e respeitando os professores.
E tambm sem alunos ficarem paseando pela classe de aula e tambm [sem] falar. quando se sentamos em grupo mais silencio. (Edvaldo)
No texto de Lcia, tambm se percebe como ela v a escola pela sua
descrio de como gostaria que a escola fosse.
11 No incio de 2006, ela foi transformada em Escola em tempo integral, ou seja, os alunos passaram a ficar na instituio das 7h00 s 16h00.
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Eu queria que a escola fosse sem baguna, no convera, quando a professora estiver falando augo que vale para nota. Que respeitase as(os) professora (o), a Tireo, a Teca e todos que trabaiam na escola. No pinchar a escola no esdorar bombas no banheiro, falar palavram . (Lcia)
Assim como Vitor, Lcia destaca a baguna, a conversa, a falta de respeito,
o fato de falarem palavro e estourar bombas no banheiro. Isso tudo no foi por
mim percebido quando estive na escola pela primeira vez, ao contrrio, registrei
aqueles que seriam os pontos positivos, conforme consta abaixo: Pude perceber vrios pontos positivos na escola: ela pequena, apenas 5
salas para o ensino fundamental; os alunos que mudam de sala, logo vou poder organizar a sala de portugus da melhor maneira possvel... (Dirio de Campo, p.3, 05/10/2004)
Ao mencionar como principal caracterstica o fato de a escola ser pequena,
estava pensando nos benefcios que isso poderia trazer, tais como: maior
proximidade com a direo, contato intenso com todos os professores,
possibilidade de conhecer boa parte dos alunos. Outro fato que me chamou
ateno foi a sala ambiente, a qual poderia facilitar o meu trabalho, j que
organizaria ali todo o material de que necessitasse. Tambm durante a correo
das redaes do SARESP 200412, tive a oportunidade de conhecer o desempenho
da escola como um todo, conforme relato abaixo: A parte boa que a correo [das redaes do Saresp] tem revelado
surpresas agradveis, a meninada da escola no est mal, ao contrrio, at agora vimos mais redaes excelentes que redaes pssimas. (Dirio de campo, p.16, 05/12/2004)
As caractersticas apontadas pelos alunos esto relacionadas s relaes
individuais e em grupo e ao ambiente em que eles circulam. Isso significa que eles
vm e categorizam a escola de um lugar diferente do meu, no fazendo
referncia, por exemplo, aos diversos projetos pedaggicos que foram
desenvolvidos na escola no ano de 2004, tais como o Projeto gua, o Projeto Sala
Ambiente, a Fanfarra e o Coral.
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12 O SARESP o Sistema de Avaliao do Rendimento Escolar de So Paulo, o qual aplicado para todos os alunos das escolas da rede estadual de ensino.
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1.2.3 Os alunos e a professora Com base no questionrio respondido pelas crianas/adolescentes durante
as primeiras aulas, consegui vrias informaes. Eram 95 alunos, distribudos em
trs quintas e uma sexta sries, isso significa que as turmas eram compostas por
24 alunos, em mdia. Em geral, as meninas eram maioria nessas turmas, as
quais contavam, em mdia, com 14 alunas e 10 alunos. A maior parte dos alunos
das quintas sries tinha entre 11 e 12 anos, j na sexta srie, a maioria tinha entre
13 e 15 anos, o que constitui um indcio de evaso ou reteno.
No questionrio, quase metade das crianas/adolescentes revelou que no
cultivava o hbito da leitura dos gneros mencionados (rtulos, cartazes,
placas/outdoors, folhetos, revistas, gibis, jornais e livros) fora da escola. Aqueles
que diziam faz-lo, mencionaram a histria em quadrinhos como leitura favorita. A
grande maioria afirmou assistir televiso de uma a trs horas por dia, preferindo
novelas, principalmente, Malhao. Ouvir rdio tambm foi apontada como uma
atividade freqente, tendo a preferncia dos jovens as rdios que tocam rap,
samba/pagode e ax. Apesar de o computador ser conhecido pela maioria dos
alunos, eles disseram que geralmente o utilizavam apenas para jogos.
A fim de obter outras informaes necessrias caracterizao, convidei os
alunos a responderem um outro questionrio cujo objetivo era conseguir
informaes sobre as condies socioeconmicas da famlia, bem como sobre as
suas prticas de letramento. Dos 98 alunos, 47 aceitaram o convite e
responderam ao questionrio, permitindo que fosse traado o perfil abaixo.
Em relao s caractersticas da famlia h um equilbrio no grupo que
respondeu ao questionrio: 49% das famlias so compostas por pai, me e
irmos; a maioria dos alunos (51%), no entanto, revelou a ausncia do pai,
morando apenas com a me e irmos ou com os avs e irmos. As famlias no
so numerosas: 48% dos alunos residem com mais duas ou trs pessoas; 23%,
com 4; 14%, com 5; 9%, com 6. A renda mensal de 70% das famlias no
ultrapassa R$ 700,00.
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A maioria dos pais e mes desse grupo de alunos sabe ler e escrever e
freqentou a escola durante, pelo menos, quatro anos. H apenas 5 ocorrncias
de pais que nunca freqentaram a escola e, segundo os alunos, no sabem ler
nem escrever. Em relao escolaridade dos pais presentes, foi constatado que
16% concluram o Ensino Fundamental (de 1. a 8. oitava srie); 38% no
completaram o Ensino Fundamental, sendo que a maioria cursou at a quarta
srie; 8% iniciaram o Ensino Mdio, mas no concluram; 22% cursaram e
concluram o Ensino Mdio. Foi mencionado um pai com curso universitrio, o
qual se formou em engenharia mecnica. As profisses desses pais concentram-
se na rea de prestao de servios e construo civil: 21% so ajudantes de
servios gerais; 17%, porteiros; 14%, pedreiros e 11%, motoboys.
As informaes apuradas a respeito da escolaridade e profisso das mes
do grupo de alunos que respondeu ao questionrio mostram que: 17,5%
concluram o Ensino Fundamental; 60% no completaram o Ensino Fundamental,
sendo que a maioria cursou at a quarta srie; 15% iniciaram o Ensino Mdio,
dessas, 5% no chegaram a conclu-lo. A imensa maioria (66%) trabalha como
empregada domstica.
As prticas de letramento apontadas pelos alunos como mais freqentes
em suas famlias so: verificao de data e valor de pagamento em contas de
consumo (70%); leitura de textos religiosos, principalmente a Bblia, (68%);
leitura/escrita de nomes, telefones, endereos em agendas/cadernos (64%);
leitura de cartas (61%); leitura de rtulos (55,5%). A escrita de cartas foi
apontada como uma atividade freqente na famlia por 32% dos alunos. Em
relao aos gneros encontrados em casa, 76% dos alunos mencionaram a Bblia;
74% mencionaram folhinhas/calendrios; 70%, cadernos/livros de receitas; 70%,
dicionrios; 66%, lista telefnica; 66%, revistas; 50%, livros didticos.
Segundo minhas anotaes no dirio de campo e trechos das aulas, as
turmas podem ser consideradas como bastante agitadas. Nos exemplos abaixo,
reproduzo o trecho de uma interao na aula realizada em 09/11/2004, meu
segundo dia como professora na escola. Nesta aula estava planejado
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preenchimento de um questionrio com dados pessoais e a leitura de uma
reportagem. A seguir, transcrevo tambm uma parte de uma reflexo que fiz
tendo em vista o desenvolvimento dessa mesma aula.
Milene (Professora):
((muito barulho)) tudo bem ningum me escuta, uma coisa de louco, mas vamos l (0,10). J que voc t em p, distribui pra mim, por favor.
(Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)
Como eles so? Carentes. S. (...) Gritam muito, falam muito palavro, tudo motivo para brigar, para bater ... Dai eu caio l de pra-quedas , com um discurso e uma postura totalmente diferentes, qual ser a primeira reao: recusa, resultado de um estranhamento talvez. Fico imaginando ... se eles agem dessa forma porque algum age assim com eles... talvez l fora, no grupo que eles freqentam, esse seja o "padro". Se por um lado sei disso, por outro reconheo que simplesmente aceitar essa "cultura " seria cercear o direito desses jovens e adolescentes de fazerem as suas escolhas (...) Mas como apresentar esse novo sem agredi-los, ou melhor, como fazer com que eles percebam que h outras possibilidades e que essas possibilidade esto, de uma forma ou de outra, relacionadas lngua ? Hoje as aulas foram mais tumultuadas.... Agora noite vou rever algumas atividades. (Dirio de campo, p. 8, 09/11/2004)
A reflexo acima faz referncia, principalmente, aos fatos ocorridos na 6
srie A. Nesse dia, quando tive as duas primeiras aulas na turma, tinha planejado
o uso do retroprojetor, o qual deveria me auxiliar no trabalho com o questionrio e
com a reportagem Superligados na TV13 ( Folha de So Paulo, Caderno Folha
Ilustrada, p. E1, em 17 de outubro de 2004). A primeira reconfigurao teve que se
dar logo no incio da aula, pois o aparelho no estava disponvel. Passados 10
minutos da aula, o retroprojetor chegou. Tive que parar a aula para ligar o
equipamento. Os alunos ficaram ainda mais inquietos porque a projeo no ficou
muito boa.
Ao mencionar Dai eu caio l de pra-quedas, com um discurso e uma
postura totalmente diferentes, qual ser a primeira reao: recusa, resultado de
um estranhamento talvez., manifesto a conscincia a respeito do estranhamento
que a minha maneira de conduzir a aula pode ter causado ao grupo. Os
acontecimentos na 6 A no s fizeram com que desistisse do uso do retroprojetor
Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas
13 Tanto o questionrio quanto a reportagem podem ser consultados nos anexos.
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naquele dia, mas que as aulas fossem reformuladas Agora noite vou rever
algumas atividades.
Na caracterizao dos alunos, tentei no apagar os conflitos que ocorreram
durante as aulas. Conforme trecho da interao citada anteriormente, nem sempre
os alunos estavam engajados nas atividades propostas e, muitas vezes, tiveram
comportamentos agressivos, gritando, falando palavres, brigando com colegas
de turma durante as aulas, por exemplo.
Quando assumi o cargo contava com dois anos de experincia no
magistrio, sendo que em apenas um deles tinha exercido a funo de professora
eventual14 em escolas estaduais de So Paulo. Fica evidente que, apesar de ter
formao acadmica compatvel ao cargo (licenciatura em Letras-Portugus,
2002; especializao Metodologia de Ensino de Lngua Portuguesa, 2004), no
contava com uma vasta experincia profissional.
1.3 A construo do objeto de pesquisa
As teorias so maneiras diversas de tentar articular diversos aspectos de
um processo global e de explicitar uma viso de conjunto (SANTOS FILHO &
GAMBOA, 1995, p. 88). A opo por diferentes teorias tem as suas conseqncias
metodolgicas (ROCKWELL, 1989, p.43). Admitir a possibilidade de olhar a
interao escrita que se deu entre professora e alunos atravs de diferentes
teorias, significa tambm admitir que possam ser construdos diferentes objetos de
pesquisa. Enquanto pesquisadora, luz das minhas crenas e valores e das
teorias as quais aderi, selecionei os aspectos que pareceram mais relevantes.
Ao falar sobre a construo do objeto de estudo, preciso ressaltar que,
conforme o descrito anteriormente, quando assumi as aulas na escola no me
apresentei como pesquisadora, mas sim como professora. Esses papis, na
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14 Na rede estadual de ensino de So Paulo, denomina-se professor eventual aquele que ministra a(s) aula(s) quando o professor responsvel pela disciplina no comparece.
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prtica, acabaram se fundindo: Ainda no sei separar a pesquisadora da
professora.. (Dirio de Campo, p. 2, 05/10/2004). Enquanto professora, minha
maior preocupao era com o processo de ensino-aprendizagem. No entanto,
todas as aes realizadas na escola foram registradas, pois, enquanto
pesquisadora estava buscando informaes para elucidar uma pergunta
norteadora mais geral O que acontece nas aulas de lngua materna (doravante
LM)15 que pode influenciar a aprendizagem da escrita? Somente em um segundo
momento, quando o ano letivo havia sido concludo e junto com ele a gerao dos
registros, houve a preocupao com a construo do objeto de pesquisa, o qual,
com a anlise dos primeiros registros passou a ser a interao entre professora e
alunos mediada pela escrita. Dada essa reconfigurao a pergunta de pesquisa
passou a ser: como se deu a construo da interao mediada pela escrita entre professora e alunos no contexto focalizado?
Ao focar a interao mediada pela escrita, atravs do gnero bilhete/carta,
procuro preservar a multiplicidade e a complexidade de fatores que a constituem.
Aqui, o termo complexo assume o mesmo sentido proposto por Morin (2002, p. 16)
o que est tecido em conjunto. Para Morin (2002, p. 72), enfrentar a
complexidade do real significa perceber as ligaes, interaes e implicaes
mtuas de fenmenos multidimensionais e de realidades que so
simultaneamente solidrias e conflitantes. Essa perspectiva tambm inscreve esta
pesquisa no campo da lingstica aplicada, em sua concepo transdisciplinar
(SIGNORINI, 1998).
A complexidade j aparece na minha deciso de escrever a primeira
mensagem, bem como na escolha do contedo. Tal deciso parece ter resultado
no somente da necessidade de me aproximar dos alunos, mas tambm da
tentativa de me contrapor ao discurso desqualificador a respeito dos alunos, da
escola e do bairro. Essa escolha, que a princpio pareceu ter sido fruto do acaso,
mantm uma estreita relao com a minha histria de letramento, na qual as
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15 Aqui, o termo LM tambm utilizado para se referir disciplina escolar Lngua Portuguesa.
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cartas sempre tiveram presena marcante, bem como com o meu processo de
formao, atravs do qual tive acesso s teorias sociointeracionais de
ensino/aprendizagem.
A primeira mensagem constitui, portanto, uma tentativa de dilogo, no
somente com os alunos, mas, sobretudo, com aquilo que se falou sobre eles e
sobre as possveis conseqncias da minha entrada na escola, como professora,
a um ms do encerramento do ano letivo e aps uma seqncia de professores
substitutos16.
Tambm foi preciso considerar que a interao na aula de LM oral e
escrita tem caractersticas especficas, sobretudo porque o resultado almejado
a aprendizagem e a lngua , simultaneamente, meio/instrumento de trabalho e
objeto de ensino.
Dada a natureza multifacetada e complexa desse objeto de estudo, no foi
seguido aqui um percurso de investigao que obedecesse a um programa fixo
pr-montado, mas sim um plano sempre orientado para as regularidades
locais e para as relaes moventes (SIGNORINI, 1998, p. 102-103) presentes
na troca das mensagens analisadas. Isso com o intuito de manter a
especificidade, o novo e o complexo como elementos constituintes do objeto
selecionado. A abordagem eminentemente qualitativa, foram utilizados tanto
elementos metodolgicos da etnografia quanto da pesquisa-ao, porque: a) os
dados foram gerados em situao natural; b) a maior preocupao, durante a
anlise, residiu no processo e nos significados atribudos pelos participantes s
mensagens; c) assumida a interferncia do pesquisador na construo do objeto
de pesquisa, dado o contato direto e prolongado com o ambiente e a situao
investigada; d) seguido um processo indutivo de anlise.
Ao utilizar a etnografia no campo educacional, no a considerei uma
simples tcnica, mas sim uma opo metodolgica (ROCKWELL, 1989, p.35). Os
propsitos essenciais da etnografia aqui foram documentar em detalhe o
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16 Conforme o mencionado anteriormente, eu era a terceira a ministrar aulas de LM. Devido convocao dos aprovados no concurso pblico em julho de 2004, os professores de matemtica, geografia, ingls e educao artstica, tambm foram substitudos.
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desenrolar de um evento que se tornou cotidiano entre mim e os alunos, bem
como identificar os significados atribudos a esse evento tanto por aqueles que
participaram, quanto por aqueles que observaram. A nfase desta pesquisa,
portanto, foram as interpretaes dos participantes, as quais so consideradas de
maneira crtica pelo pesquisador. (ERICKSON, 2001, p.12-13)17.
Como na pesquisa em questo a pesquisadora participante, exercendo
simultaneamente o papel de ator na ao considerada, esta pode ser
caracterizada como uma pesquisa-ao. Nos termos propostos por Morin (2004),
trata-se uma pesquisa-ao integral e sistmica (PAIS), a qual prev a utilizao
de outras metodologias, entre elas a etnografia.
A PAIS uma metodologia de base qualitativo-interpretativista, aberta
complexidade do real e interdisciplinaridade, o que a torna compatvel com o
campo de investigao da Lingstica Aplicada (doravante LA). Na PAIS, a
participao dos atores direcionada para mudanas na ao e/ou na reflexo.
Aqui, percebe-se que atravs das mensagens procurei realinhar uma situao
inicial que se apresentava francamente desfavorvel: assumir as aulas no final do
ano letivo, aps vrias trocas de professores, em um bairro de periferia cujas
informaes iniciais eram bastante negativas.
Nas palavras de Morin (2004, p.91), a PAIS pode ser definida como uma metodologia de pesquisa que utiliza o pensamento sistmico18 para
modelar um fenmeno complexo ativo em um ambiente igualmente em evoluo no intuito de permitir a um ator coletivo intervir nele [fenmeno complexo ativo] para induzir a mudana.
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Tal opo metodolgica exige no apenas que o investigador participe
enquanto observador, mas que ele se implique como ator. Conforme Morin (2004,
17 Quando o estudo se concentra em uma anlise detalhada do registro em udio ou vdeo da interao que ocorre nos eventos educacionais, o que no se deu aqui, tem-se microetnografia. A microetnografia, etnografia que mais contribuiu para o entendimento dos fenmenos educacionais, tem suas razes tericas na sociolingstica de Hymes e Cazden, conforme consta em Rockwell (1998, p.41). 18 Em Morin (2004, p. 98-99), so citadas as trs caracterstica essenciais do pensamento sistmico: dialogismo, recursividade e viso global ou hologramtica. A primeira consiste em associar elementos complementares concorrentes e antagnicos em uma nica perspectiva; a segunda, em organizar elementos conforme um processo de autoproduo ; a terceira consiste em abandonar a explicao linear em prol de uma explicao em movimento e circular, a qual vai das partes ao todo e do todo s partes.
40
p. 52) ele [o investigador] se implica, ele se explica e ele se aplica em uma
realizao educativa (grifo meu). Na presente pesquisa, h o grau mximo de
implicao, pois participo da interao que est sendo objeto de estudo e tambm
assumo o papel de analista. Trata-se, portanto, de uma oportunidade de reflexo
sobre o meu prprio fazer docente. Esse fato, que poderia comprometer a
anlise, teve contribuio determinante, pois me permitiu, quando no papel de
analista, recuperar as minhas intenes, enquanto professora, durante a troca das
mensagens.
As tcnicas de gerao de registros da PAIS, assemelham-se s da micro-
etnografia: gravao em udio e documentos escritos, tais como o planejamento
anual, o caderno, a seqncia de atividades didticas, roteiros de aulas, dirio de
campo, questionrio respondido pelos alunos e cartas escritas por mim e pelos
meus alunos. Essa diversidade de registros permitiu que fosse feita a
triangulao, j mencionada anteriormente. Fica evidente, portanto, que esse
deslocamento operado na construo do objeto de pesquisa na LA possibilita que
se considere a interferncia das crenas, valores e teorias assumidas pelo
investigador na prpria maneira como ele olha e (re)constri a realidade. No
caso especfico desta pesquisa, portanto, interferncia do pesquisador na ao e
do ator na anlise uma opo metodolgica.
1.3.1 A anlise O paradigma de pesquisa qualitativo j conquistou seu espao nas cincias
humanas, por isso a discusso qualitativo versus quantitativo se apresenta como
um falso problema, uma vez que, resguardando-se as especificidades, evidente
a complementaridade entre ambos. No entanto, ainda h discusses a respeito da
validade das anlises interpretativistas que seguem o mtodo indutivo,
principalmente nas ocasies em que o pesquisador participante.
Esta pesquisa pode contribuir para uma discusso a respeito da questo
Como se aproximar de um saber digno de credibilidade quando o ator est em
situao de juiz e de parte integrante? (MORIN, 2004, p.155). Tal pergunta, no
entanto, pode ser reformulada da seguinte maneira: Diante da grande quantidade Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental
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e diversidade de registros, como analis-los respeitando-se o objeto de pesquisa,
adquirindo credibilidade e contribuindo para o conhecimento prtico? (MORIN,
2004, p.155). A fim de responder a tais questionamentos, torna-se necessria a
descrio das ferramentas utilizadas durante as diferentes etapas da anlise dos
registros.
A observao, a classificao e a elaborao de concluses foram
procedimentos utilizados durante o processo de anlise dos registros. Tendo em
vista que no seguido aqui um percurso de anlise linear e que a retroao um
movimento necessrio para a validao das hipteses que foram geradas ao
longo do processo, impossvel fazer uma diviso estanque entre tais fases.
Durante o processo de anlise, houve redues, j que seria impossvel
construir um mapa do tamanho do mundo. Em um primeiro momento, a maior
preocupao residiu em agregar os registros, formando uma espcie de mosaico
que levasse compreenso do sentido dos acontecimentos. Para tanto, foram
agrupados os registros de diferentes naturezas gerados durante a pesquisa de
campo. Tal agrupamento, que prev um distanciamento em busca da significao,
foi feito para permitir a triangulao e a descrio do campo. Devido a essa
necessidade de descrever o campo, foi iniciada a anlise documental pelas cartas,
as quais, segundo minha hiptese, forneceriam elementos para a caracterizao
dos alunos, da escola e do bairro. Como conseqncia dessa observao, houve
a reconfigurao do objeto de pesquisa.
Ao olhar os registros sob a perspectiva da sociolingstica interacional, foi
possvel perceber a diminuio da assimetria entre interlocutores que ocupam
papis institucionais to distintos professor e aluno e assimtricos pela prpria
natureza. Tendo em vista uma concepo bakhtiniana de gnero, foi constatado
que, durante as trocas de mensagens, aquilo que primeiramente se assemelhou a
um bilhete, foi se aproximando do gnero carta pessoal. Isso pde ser percebido
devido mudana da funo da escrita bilhete para o contato inicial, carta para
dar continuidade conversa e, conseqentemente a mobilizao, por parte dos
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alunos, de recursos lingstico-discursivos prprios desse gnero presentes nas
mensagens escritas por mim.
1.3.2. Caracterizao das mensagens Em um primeiro momento, as mensagens trocadas com meus alunos foram
categorizadas como bilhete, pois eram curtas. Quanto ao contedo, as
mensagens podem ser consideradas uma rplica ao discurso desqualificador a
respeito dos alunos, da escola e do bairro que ouvi quando, antes de assumir as
aulas, visitei a escola. Se o que foi ouvido e compreendido de modo ativo
encontra, cedo ou tarde, um eco no discurso ou no comportamento do ouvinte
(BAKHTIN, 1997, p.291), h um eco daquele discurso desqualificador na minha
deciso de escrever para os alunos. Assim, ao tentar construir a minha chegada
na escola como algo positivo, ao convidar aquelas crianas/adolescentes a me
dizerem quem eram, do que gostavam, o que achavam sobre a escola, estava,
nesse primeiro momento, alm de tentando lhes dar outras oportunidades de
dizerem o que pensavam, posicionando-me de uma forma mais receptiva. Isso fez
com que o estilo das mensagens, tanto as escritas por mim quanto pelos alunos,
fosse pouco formal e interativo. A pouca formalidade se deve ao fato de ter me
proposto a estabelecer um tipo de interao que aproximasse, professora e
alunos, enquanto interlocutores. por essa razo que encontrado Querida
Suzana. e no Prezada Aluna, Beijocas e no Atenciosamente. um estilo
altamente interativo, no sentido de que pressupe um envolvimento entre os
interlocutores, o qual marcado, sobretudo, nas expresses de abertura e
encerramento. A seguir, apresento um exemplo das mensagens enviadas logo no
incio.
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Exemplo 1 - Milene para Suzana 07/11/04 Querida Suzana19! Espero que voc esteja bem. Eu estou e escrevo justamente para dizer o quanto fico feliz por estar aqui e, principalmente, por ter a oportunidade de conhec-la. Gostaria muito que voc respondesse esse bilhetinho contando mais coisas sobre voc: coisas que voc gosta de fazer, matria que mais gosta, etc. Sinta-se vontade para responder ou no. Beijocas Prof Milene Notei que voc e a Sabrina fazem aniversrio no mesmo dia, mas vocs no seriam irms, seriam?
Apesar das semelhanas entre as primeiras mensagens, houve uma
tentativa de individualizao, que se deve ao fato de todas estarem manuscritas e
direcionadas a cada aluno individualmente. Alm disso, no decorrer do perodo de
troca, medida que as mensagens foram se individualizando, elas adquiram
caractersticas que as tornaram ainda mais prximas do gnero carta pessoal.
Se a carta pessoal considerada uma produo de linguagem socialmente
situada, que engendra uma forma de interao particular (SILVA, 2002, p.79), as
minhas mensagens e as de meus alunos tornaram-se, resguardadas as diferenas
provocadas pela situao de comunicao, um tipo de carta pessoal. Quando
atribu ao que, a princpio chamei de bilhete, a funo de me aproximar dos
alunos, apontei para uma das caractersticas desse gnero que a de constituir
um espao propcio para o incio de novas relaes sociais (SILVA, 2002,p.13).
Mesmo no tendo sido produzidas na escola e nem como uma atividade
escolar programtica, foi no tempo e no espao escolar que as mensagens
19 Todos os nomes dos participantes, exceto o meu, so fictcios.
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circularam, isto , a primeira mensagem foi entregue no meu primeiro dia como
professora na escola e, assim que foi encerrado o ano letivo, as trocas cessaram.
A presena de expresses como dar aula nesta escola e o fato de assinar como
Prof. explicitam a esfera na qual as cartas circularam, conforme exemplo (2).
Exemplo 2 - Milene para Joo
07/11/04 Oi Joo Sabe por que eu estou escrevendo? S para saber se voc est bem e, principalmente, para dizer o quanto me sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta escola. Sabe como eu ficaria anda mais feliz? Se voc tambm escrevesse para mim. Abraos! Prof.a Milene
Em meu plano inicial, as primeiras mensagens direcionadas aos alunos
deveriam ser entregues no final da aula, mas dada a experincia positiva em uma
das turmas, decidi que todos os alunos receberiam a mensagem no incio, antes
do comeo da aula propriamente dito. No houve nenhuma ocorrncia de troca
em outro espao que no fosse o da sala de aula. Mesmo que nos
encontrssemos no corredor, no ptio, na sala dos professores, tanto eu quanto
os alunos deixvamos para entregar a folha com a mensagem quando
estivssemos na sala de aula.
Por mais informal que seja a interao que se estabelece nessas cartas, ela
se d entre uma professora e seus alunos e no entre amigos, parentes, etc. Isso textualmente marcado na assinatura, a qual acompanhada pela
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expresso Prof., que designa o papel institucional que por mim exercido, ou
pela palavra aluno, a qual tambm est presente em 24% das mensagens
escritas pelas crianas/adolescentes.
Na passagem em que justifico a escrita da mensagem Sabe por que eu
estou escrevendo? / S para saber se voc est bem e, / principalmente, para
dizer o quanto me/ sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta escola.
Exemplo (2), fica evidente o meu intuito de construir, atravs da escrita, um
espao comum que possibilitasse uma interao franca e em um tom cordial entre
ns. No trecho exemplificado, as expresses em destaque so usadas como
modalizadores e so estrategicamente utilizadas a fim de amenizar as tenses
verificadas em sala de aula, conforme apontado na seo anterior. Nesse
contexto, o uso do principalmente alm de dar maior visibilidade ao aluno,
ressalta a importncia da vontade enunciativa. O uso de O quanto enfatiza ao
destinatrio a intensidade da minha felicidade por estar naquela escola. Partindo-
se do princpio de que ningum se sentiria feliz em um lugar desagradvel e com
pessoas desagradveis, em tal enunciado est implcita uma apreciao valorativa
positiva em relao aos interlocutores.
No que diz respeito estrutura composicional, tanto o Exemplo (1), quanto
o Exemplo (2), assim como as demais mensagens do corpus, apresentam:
abertura, corpo de texto e encerramento como partes fcil e visualmente
identificveis. Alm disso, nas etapas de abertura e encerramento so
encontradas seqncias discursivas prototpicas, altamente recorrentes, que
expressam, de forma clara (...) a natureza do relacionamento dos interlocutores, a
finalidade que cumpre a interao em curso e, sobretudo, o carter dialogal e
dialgico desse gnero (...) (SILVA, 2002, p.137).
Na abertura dos exemplos (1) e (2), que composta pelo cabealho e pela
saudao, no h indicao do local, apenas uma forma resumida de se colocar a
data (07/11/04). A ausncia do local pode ser justificada pelo fato de que a
mensagem foi entregue em mos para interlocutores que compartilhavam o
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mesmo espao. Na saudao do Exemplo (1), h Querida + nome; no Exemplo
(2), Oi + nome, nos demais registros aparece tambm Ol + nome.
Essas seqncias discursivas prototpicas utilizadas na saudao servem
para iniciar a interao, expressando uma atitude de polidez em relao ao
destinatrio, bem como indicando o tipo de relacionamento entre os interlocutores,
neste caso de uma forma no to institucionalizada como geralmente ocorre entre
professor-aluno(s). O querido(a) uma maneira afetuosa de se dirigir ao
interlocutor, mesmo quando, como nesse caso, h um contato inicial para o
estabelecimento de novas relaes. J o OI utilizado com muita freqncia em
gneros orais ou em gneros em que h forte influncia da oralidade. O uso
dessas expresses evidencia a pouca formalidade da interao em curso, que
uma conseqncia da prpria escolha do gnero, pois os gneros ntimos, tais
como a carta pessoal, repousam numa mxima proximidade entre os
interlocutores. Atravs do uso dessas expresses, o locutor manifesta confiana
no seu destinatrio, na sua simpatia, na sensibilidade e boa vontade de sua
compreenso responsiva (BAKHTIN, 1997, p.323).
somente no corpo do texto que ficam evidentes as duas aes
discursivas comuns a todas as primeiras mensagens por mim enviadas: informar o
aluno sobre a minha representao positiva a respeito dele e da escola, assim
como solicitar que a mensagem fosse respondida atravs da escrita.
Para encerrar a carta, so utilizadas vrias expresses, tais como
Beijocas, exemplo (1) e Abraos, Exemplo (2), as quais, alm de sinalizarem o
fim da carta, demonstram a tentativa de minimizar o distanciamento que
geralmente existe entre professor e aluno. Na assinatura, evidenciada a autoria,
mas tambm explicitado o papel institucional que me cabido, o de professora.
As expresses formulaicas de abertura e encerramento sinalizam tambm
diferenas de tratamento relacionadas ao gnero do interlocutor. Assim comum
encontrar: Querida (nome).... Beijocas, quando a mensagem se destina a uma
aluna (Exemplo 1); Oi (nome)... Abraos (e/ou Beijos/Beijo), (Exemplo 2),
quando a mensagem se destina a um aluno.
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O Exemplo (3), a seguir, bastante representativo em relao s demais
cartas que recebi dos alunos em resposta a minha primeira mensagem. Exemplo 3 - Joo para Milene
DE Joo PARA Milene Professora Milene gostei muito da sua aula acho voc muito legal e gentil . Nunca esperei em ter uma professora como voc espero que seje sempre assim e eu queria te conhecer desde o primeiro dia de aula mas no teve aula com voce E espero que Goste Muito desta cartinha Beijo e Abraos Responda se voc gostou da minha carta Sim ou no
Na mensagem acima aparecem marcas da esfera na qual a interao se
d pelo uso das expresses professora, aula. O fato de o aluno ter devolvido a
minha carta, juntamente com a sua resposta e ter reproduzido no post scriptum
um teste de mltipla escolha, indica que o aluno parece lanar mo de uma
estratgia j conhecida. Na escola, ao final da resoluo de um exerccio, deve-se
devolver professora tanto a folha com as perguntas, quanto a que contm as
respostas. A presena do teste de mltipla escolha, que remete ao questionrio
escolar, evidencia a relao intergenrica que se d nas mensagens. Alm disso,
so encontradas marcas de uma escrita escolarizada na forma como o aluno faz a
paragrafao. Ele indica a mudana de pargrafos de trs formas diferentes. O
espao que dado antes da primeira palavra do pargrafo e o intervalo marcado
por uma linha em branco so constantes. H ainda um ponto antes da palavra
nunca, recurso muito utilizado nas sries iniciais.
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A referncia ao tempo e espao escolar, por exemplo, aparece quando
Joo diz eu queria te conhecer desde o primeiro dia de aula. Com base nessa
mesma passagem, presente no corpo do texto, observa-se que o aluno aderiu ao
meu posicionamento receptivo, pois ele manifesta seu apreo em relao a minha
presena na escola a ponto de desejar que isso tivesse ocorrido desde o incio do
ano. Alm disso, ele tambm solicita uma resposta, ou seja, a escrita de uma nova
carta.
No que diz respeito estrutura composicional, verifica-se que na abertura
no h indicao do local, nem da data, mas sim um outro tipo de cabealho DE:
/ PARA o qual comum em bilhetes e recados. Esse tipo de construo
encontrado em 28% das cartas produzidas pelos alunos. Assim como nos
exemplos (1) e (2), a omisso do local no cabealho pode ser atribuda situao
imediata em que se deu a troca: em mos, na sala, antes do incio da aula. No
encerramento aparece a expresso de despedida Beijos e Abraos e no h a
assinatura, pois o remetente foi indicado no cabealho.
Concluindo o captulo
Neste captulo me propus a esclarecer os aspectos metodolgicos que
embasaram a pesquisa. Antes de caracterizar os participantes professora e
alunos preocupei-me em relatar o contexto em que as mensagens foram
geradas, isso com o intuito de evidenciar que elas foram uma atividade
extraclasse utilizada estrategicamente para estabelecer uma interao
diferenciada entre professora e aluno(s). Quando falei a respeito da construo do
objeto de pesquisa, salientei que ele apenas um entre vrios possveis e que
essa construo esteve inteiramente relacionada a minha opo pela metodologia
da pesquisa-ao. Por fim, ao caracterizar as mensagens, o focalizei as
estratgias interacionais tpicas do(s) gnero(s) que foram mobilizados bilhete e
carta que do o tom cordial e amigvel interao que se estabeleceu entre
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professora e aluno(s), um tom improvvel naquele contexto, no momento de
minha chegada.
CAPTULO II A INTERAO ENTRE PROFESSOR E ALUNO NO CONTEXTO ESTUDADO
O conceito de interao verbal que permeia este trabalho o proposto por
Bakhtin (1977 [2004], p. 23). Segundo esse autor, a interao verbal que
constitui a realidade fundamental da lngua e no o sistema abstrato de formas
lingsticas objetivismo abstrato nem a enunciao monolgica subjetivismo
individualista.
Nesse sentido, a atividade enunciativa encarada como o resultado da
interao entre indivduos socialmente organizados. Mesmo no havendo um
interlocutor real, no sentido de fisicamente presente, esse pode ser representado
pela imagem que o locutor possui a respeito de um representante do grupo para o
qual destina seu enunciado. Diferentemente do que postula o objetivismo abstrato,
que concebe a lngua como um sistema objetivo, externo e independente da
conscincia individual, e do subjetivismo individual, no qual a enunciao tida
como um ato puramente individual, Bakhtin defende a tese de que a enunciao
de natureza social.
Se a enunciao se d na interao entre indivduos socialmente
organizados, ento a palavra, signo20 ideolgico por excelncia, procede de
algum e se dirige a algum, como uma ponte lanada entre mim e o outro
(BAKHTIN, 1977 [2004]). Com isso, a estrutura da enunciao determinada
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20 Bakhtin (1977 [2004]) define o signo como, por natureza, vivo, mvel, plurivalente e ideolgico. Para ele a palavra o signo ideolgico por excelncia porque ela registra as menores variaes nas relaes sociais, na ideologia do cotidiano que exprime a vida corrente, o lugar onde se formam e se renovam as ideologias constitudas.
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tanto pela situao imediata em que se d a interao, quanto pelo meio social
mais amplo.
Em vrios estudos sobre a interao verbal na aula de LM, tais como
Erickson (1982), Cazden (1988), Bortolotto (1998), Costa (2000), Matncio (2001),
Cox & Assis-Peterson (2001), Macedo (2005), entre outros, percebe-se alguma
influncia da concepo bakhtiniana de linguagem e interao verbal. Esses
trabalhos, que se filiam a cor