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i Milene Bazarim CONSTRUINDO COM A ESCRITA INTERAÇÕES IMPROVÁVEIS ENTRE PROFESSORA E ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA PÚBLICA DA PERIFERIA DE CAMPINAS Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem - IEL Departamento de Lingüística Aplicada - DLA 2006

ARTIGO IMPORTANTE

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ARTIGO IMPORTANTE

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    Milene Bazarim

    CONSTRUINDO COM A ESCRITA INTERAES IMPROVVEIS ENTRE

    PROFESSORA E ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA PBLICA DA PERIFERIA DE

    CAMPINAS

    Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem - IEL

    Departamento de Lingstica Aplicada - DLA 2006

  • Milene Bazarim

    CONSTRUINDO COM A ESCRITA

    INTERAES IMPROVVEIS ENTRE PROFESSORA E ALUNOS

    DO ENSINO FUNDAMENTAL DE UMA ESCOLA PBLICA DA PERIFERIA DE

    CAMPINAS

    Dissertao apresentada ao Departamento deLingstica Aplicada, do Instituto de Estudos daLinguagem, da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenodo grau de Mestre em Lingstica Aplicada, na reade concentrao Ensino/Aprendizagem de LnguaMaterna. Orientadora: Prof. Dra. Ins Signorini

    Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Estudos da Linguagem - IEL Departamento de Lingstica Aplicada - DLA

    2006 iii

  • iv

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

    B347c

    Bazarim, Milene.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do ensino fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas / Milene Bazarim. -- Campinas, SP : [s.n.], 2006.

    Orientador : Ins Signorini. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Interao professor-aluno. 2. Letramento. 3. Pesquisa-ao -

    Metodologia. I. Signorini, Ins. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    Ttulo em ingls: Achieving through writing unlikely interactions between teacher and students.

    Palavras-chaves em ingls (Keywords): Student-teacher interaction; Literacy; Action-research.

    rea de concentrao: Lngua Materna.

    Titulao: Mestre em Lingstica Aplicada.

    Banca examinadora: Profa. Dra. Ins Signorini (orientadora), Prof. Dr. Joo Wanderley Geraldi e Profa. Dra. Raquel Salek Fiad.

    Data da defesa: 19/10/2006.

    Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada.

  • v

    BANCA EXAMINADORA

    Profo Dro Joo Wanderley Geraldi UNICAMP/DL

    Profa Dra Raquel Salek Fiad UNICAMP/DLA

    Profa Dra Ins Signorini UNICAMP/DLA (orientadora)

    Profa Dra Maria Augusta Reinaldo UFCG (suplente)

    Profa Dra Elza Taeko Di UNICAMP/DLA (suplente)

  • vii

    Aos meus alunos, por tudo que aprendemos juntos!

  • ix

    Agradecimentos,

    minha orientadora, Profa Dra Ins Signorini, por suas observaes, por sua confiana, e, principalmente, por sua pacincia.

    Aos professores Wanderley Geraldi, Raquel Fiad, Maria Augusta e Elza Doi, pela cuidadosa leitura e pelas valiosas contribuies.

    Ana Silvia, Marlia, Clcio, Clara, Robson e Janaina, companheiros de pesquisa, pelas inmeras sugestes e observaes.

    amiga Aline, com quem compartilho esse momento de alegria aps ter compartilhado outros tantos de angstia e incerteza.

    Adriana, Andressa, Cynthia, Dalva, Denise, Edna, Elaine, Luclio, Nadja, Renata, Roselma, Sandra, para sempre queridos amigos.

    Aos amigos Wagner, Eliana, Glcia, Jorge e Silvio, pela prazerosa convivncia, pelas contribuies e lies de vida.

    Ao Mrcio, Adriane, Mrcia Ado, Edilaine, Luciane, Edvnia pela amizade e pelas inmeras contribuies.

    Maria Jos Michelazzo, a pessoa e a professora que eu gostaria de me tornar.

    Ao amigo Joo B. M. Gatinho, por seu companheirismo, sua amizade, pacincia e dedicao.

    Jane Ccero da Silva, por seu carinho e confiana.

    Andria Lucena, a irm que me escolheu.

    Capes e ao Governo do Estado de So Paulo, pela ajuda financeira.

  • xi

    H tantos dilogos

    Dilogo com o ser amado o semelhante

    o diferente o indiferente

    o oposto o adversrio

    o surdo-mudo o possesso

    o irracional o vegetal o mineral

    o inominado

    Dilogo consigo mesmo com a noite

    os astros os mortos as idias o sonho

    o passado o mais que futuro

    Escolhe teu dilogo e

    tua melhor palavra ou teu melhor silncio

    Mesmo no silncio e com o silncio dialogamos.

    (Carlos Drummond de Andrade)

  • xiii

    RESUMO

    Este trabalho apresenta os resultados de uma investigao sobre a construo da

    interao em mensagens escritas trocadas entre mim, enquanto professora, e

    meus 98 alunos de uma escola pblica da periferia de Campinas-SP. Trata-se de

    uma investigao de cunho qualitativo na qual a gerao dos registros foi

    orientada pela metodologia da pesquisa-ao. As 189 mensagens que constituem

    o corpus foram geradas durante o ms de novembro de 2004, sendo que 125

    foram produzidas por mim e 64 pelos alunos de quinta e sexta sries. Inicialmente,

    essas mensagens eram curtas e visavam estabelecer um contato amigvel entre

    professora e alunos. medida que os alunos foram respondendo, as mensagens

    foram se individualizando, tornando-se mais longas e se aproximando do gnero

    carta pessoal. A troca de mensagens foi uma atividade extraclasse e os textos

    assim produzidos no foram objeto de correo ou discusso em sala de aula. As

    anlises revelaram que nessas mensagens, embora os papis institucionais de

    professora e aluno no tenham sido apagados, houve deslocamentos

    significativos e de grande interesse para a reconfigurao do contexto

    sociointeracional da sala de aula, pois procurei me construir como um interlocutor

    interessado no que o aluno teria a dizer sobre si mesmo e sobre a escola. Desse

    modo, a interao estabelecida escapa aos padres escolares vigentes naquela

    instituio sem, contudo, deixar de ter um carter institucional e pedaggico

    importante para o letramento do aluno, uma vez que houve tambm a mobilizao

    de recursos lingstico-discursivos necessrios interao via carta.

    Palavras-chave: Interao professor-aluno, letramento, pesquisa-ao.

  • xv

    ABSTRACT

    The present dissertation presents the results of a research on the accomplishment

    of interaction through the exchange of written messages between myself, as a

    teacher, and my 98 students in a peripheral public school in the city of Campinas,

    SP. It is a qualitative-driven research, and the generation of registers was based

    on the action-research methodology. The 189 messages comprising the corpus

    were written during November, 2004. From such amount, 125 were written by me,

    and 64 by the fifth and sixth grade students. At first, such messages were short,

    and aimed at making a friendly contact between teacher and students. As long as

    the students started answering, the messages became individualized, longer,

    resembling the personal letter genre. The exchange of messages was an extra

    activity, and the texts written in such context were not object of correction or class

    discussion. The analyses show that in such messages, even though the

    institutional roles of teacher and student were not erased, there were remarkable

    displacements, which are of great interest for a change in the sociointeractional

    classroom context, since I attempted to posit myself as an interlocutor who is

    interested in the student opinion on herself and on the school. Therefore, the

    accomplished interaction differs from the patterns which are common in such

    school. Such interaction has an important institutional and pedagogic feature,

    contributing to the students literacy, once it could be observed the use of linguistic-

    discursive resources necessary to the interaction through letters.

    Keywords: Student-teacher interaction, literacy, action-research.

  • xvii

    SUMRIO INTRODUO.............................................................................................................. 19

    CAPTULO I A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA............................. 21

    1.1 A gerao dos registros: contextualizando a pesquisa.............................................. 22

    1.2 Caracterizao do contexto e dos participantes........................................................ 26

    1.2.1 O bairro ................................................................................................................. 26 1.2.2 A escola ................................................................................................................. 31 1.2.3 Os alunos e a professora ....................................................................................... 33 1.3 A construo do objeto de pesquisa ......................................................................... 36

    1.3.1 A anlise ................................................................................................................ 40 1.3.2. Caracterizao das mensagens ............................................................................ 42 Concluindo o captulo..................................................................................................... 48

    CAPTULO II A INTERAO ENTRE PROFESSOR E ALUNO NO CONTEXTO ESTUDADO................................................................................................................... 49

    2.1. A interao oral em sala de aula.............................................................................. 50

    2.2 A interao mediada pela escrita .............................................................................. 60

    2.2.1 Estratgias interacionais para iniciar e/ou manter o dilogo nas mensagens escritas........................................................................................................................................ 64

    2.2.1.1 A desconstruo do papel de professor-avaliador ............................................. 66 2.2.1.2 A demonstrao de afetividade .......................................................................... 71 2.2.1.3 A demonstrao de interesse pelo aluno e pelo que ele tem a dizer ................. 74 Concluindo o captulo..................................................................................................... 86

    CAPTULO III DE BILHETES A CARTAS: A EMERGNCIA DA ESCRITA COMO UMA PRTICA SITUADA E SIGNIFICATIVA PARA O ALUNO NO CONTEXTO FOCALIZADO............................................................................................................... 87

    3.1 A experincia anterior dos alunos com a escrita durante as aulas de LM................ 88

    3.1.1 A concepo de escrita no planejamento de Lngua Portuguesa das 5as e 6as sries do ano de 2004 e no caderno de uma aluna........................................................................ 89 3.2 A produo dos bilhetes e cartas .............................................................................. 96

    3.2.1 Consideraes a respeito do processo de andaimagem........................................ 98 3.2.2 A mobilizao de recursos de edio de texto..................................................... 100 3.2.3 A reproduo e a retextualizao........................................................................ 105 Concluindo o captulo................................................................................................... 111

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 112

  • xviii

    REFERNCIAS ........................................................................................................... 114

    Exemplo 1 - Milene para Suzana.......................................................................................... 43 Exemplo 2 - Milene para Joo.............................................................................................. 44 Exemplo 3 - Joo para Milene.............................................................................................. 47 Exemplo 4 Ata de reunio ................................................................................................. 52 Exemplo 5 - Robson para Milene......................................................................................... 61 Exemplo 6 - Milene para Gabi ............................................................................................. 67 Exemplo 7 - Gabi para Milene ............................................................................................. 67 Exemplo 8 - Milene para Jaqueline ...................................................................................... 75 Exemplo 9 - Jaqueline para Milene ...................................................................................... 77 Exemplo 10 - Milene para Andressa .................................................................................... 82 Exemplo 11 - Andressa para Milene .................................................................................... 83 Exemplo 12 - Texto do caderno sobre linguagem e comunicao, 09/03/2004................... 91 Exemplo 13 - Texto do caderno sobre elementos da comunicao, 15/03/2004. ................ 91 Exemplo 14 Ditado, 17/05/2004........................................................................................ 93 Exemplo 15 - Redao-Poesia.............................................................................................. 94 Exemplo 16 - Ana Carla para Milene................................................................................. 100 Exemplo 17 - Milene para Ana Carla................................................................................ 100 Exemplo 19 - Primeira mensagem enviada por Bento ....................................................... 103 Exemplo 20 - Terceira mensagem enviada por Bento........................................................ 103 Exemplo 21 - Janana para Milene ..................................................................................... 104 Exemplo 22 - Milene para Camile...................................................................................... 106 Exemplo 23 - Camile para Milene...................................................................................... 106 Exemplo 24 - Milene para Bento........................................................................................ 107 Exemplo 25 - Bento para Milene........................................................................................ 107 Exemplo 26 - Milene para Jaqueline .................................................................................. 110 Exemplo 27 - Jaqueline para Milene .................................................................................. 110

  • 19

    INTRODUO

    Este trabalho, que tambm dialoga com tantos outros, apresenta os

    resultados de um estudo que investigou a interao mediada pela escrita entre

    mim, enquanto professora, e meu(s) aluno(s) de uma escola pblica da periferia

    de Campinas-SP. Aqui apresento as caractersticas gerais de um processo

    interacional que, dada a singularidade da situao e de cada sujeito participante,

    improvvel e nico. improvvel pela incerteza e pelo risco, nico porque se

    relaciona com as angstias e inquietaes de uma professora-pesquisadora

    iniciante, bem como com a histria de vida de cada um dos sujeitos participantes

    fatos esses que transcendem os limites impostos por esta pesquisa acadmica.

    Qualquer alterao numa das variveis (tempo, espao, participantes, objetivo)

    alteraria tanto o processo quanto o resultado. Isso o que tenho observado nos

    dois ltimos anos em que tenho continuado a interao com os meus alunos

    atravs da escrita.

    O que e por que uma professora escreveria para seus alunos? Os alunos

    responderiam? O que? Como? Tais perguntas me acompanharam durante todo o

    caminho percorrido at a apresentao deste trabalho. A maneira como elas foram

    feitas no teve o intuito de apagar que se trata de uma pesquisa-ao, na qual,

    simultaneamente, assumo o papel de participante e pesquisadora. No entanto,

    durante o processo nem todas as significaes que poderiam ser atribudas

    interao me pareciam evidentes, as estratgias utilizadas tambm no foram

    calculadas, muito menos os resultados alcanados. Com esses questionamentos,

    no papel de pesquisadora, tentei explicar neste trabalho por que e como iniciei a

    interao, por que e como utilizei a escrita, por que escrevi o que escrevi.

    No h aqui nenhuma pretenso de neutralidade, portanto, desde a deciso

    de fazer a pesquisa com a minha prpria sala de aula, a seleo do objeto de

    pesquisa, as anlises, tudo, est contaminado pelas minhas crenas e valores e

    pela viso mica que tive do processo. Assim, muitas vezes a voz da professora

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 20

    se sobrepe da pesquisadora e vice-versa e, o que espero que ambas no

    tenham sufocado as vozes dos alunos.

    O primeiro captulo dessa dissertao dedica-se justamente discusso

    dos aspectos metodolgicos envolvidos na investigao. Alm de explicitar como

    se deu a construo do objeto de pesquisa e contextualizar a pesquisa, procuro

    caracterizar tanto os participantes quanto os textos por eles produzidos. No

    captulo seguinte, apresento algumas das principais caractersticas da interao

    em foco e discuto as razes para diferenci-la da que geralmente se estabelece

    entre professor-aluno(s) em contexto escolar. A descrio das estratgias

    interacionais utilizadas para iniciar e/ou manter o dilogo entre mim e os alunos

    tambm so descritas neste segundo captulo. A interao estudada escapa aos

    padres escolares mais comuns vigentes naquela instituio no s por causa das

    caractersticas interacionais, mas tambm porque ela possibilitou o surgimento da

    escrita, naquele contexto especfico, como uma prtica social situada e

    significativa para os alunos, o que discutido no terceiro captulo.

    Essa diviso dos captulos busca elucidar as diferentes facetas de um

    mesmo objeto de estudo. Mas preciso lembrar que, mesmo estudadas

    separadamente, a interao oral e escrita entre mim e os meus alunos constituI

    uma mesma realidade e, na prtica, ocorreram simultaneamente. Cumpre

    salientar, ainda, que os resultados apresentados nesta dissertao, de forma

    alguma esgotam a complexidade do processo interacional estabelecido entre mim

    e meus alunos, nem exploram toda a riqueza dos registros gerados. E, dadas as

    muitas limitaes da pesquisa acadmica, acredito que este trabalho apenas

    sinaliza o que teria significado para aqueles alunos receber e/ou enviar uma carta

    na situao focalizada.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

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    CAPTULO I A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA

    Qualquer tentativa de estudar a realidade, sobretudo a linguagem, realizar,

    inevitavelmente, abstraes e redues1. impossvel fazer um mapa do tamanho

    do mundo2. Dessa forma, a maneira de construir o objeto de pesquisa no

    neutra, pois a forma como o pesquisador olha a realidade influenciada por suas

    crenas e valores, sobretudo no contexto desta pesquisa, em que o investigador

    participa da interao mediada pela escrita que objeto de anlise. Neste

    trabalho, portanto, h uma fuso entre os papis de pesquisadora e professora por

    mim assumidos.

    Neste primeiro captulo, so considerados os aspectos metodolgicos que

    orientaram a construo do objeto de pesquisa, cujo objetivo geral foi identificar e

    descrever como se deu a interao estabelecida atravs de cartas3 trocadas entre

    mim, enquanto professora, e meus alunos de quinta e sexta sries de uma escola

    pblica da periferia de Campinas-SP. As 189 cartas que compem o corpus foram

    geradas durante o ms de novembro de 2004. Dessas, 125 foram escritas por

    mim e 64 pelos alunos. A minha primeira mensagem foi respondida por 39% dos

    alunos, os demais 11%4 somente o fariam depois do recebimento da segunda

    mensagem.

    Alm das cartas, utilizo aqui outros registros tais como: interao oral na

    aula de LM, planejamento de curso, dirio de campo, seqncia de atividades

    didticas, roteiro de aulas, questionrio e produes de texto feitas pelos alunos.

    Isso permite a triangulao, a qual, segundo Canado (1994, p.58) aumenta a

    1 BORGES NETO (1985) discute esse assunto no seu artigo sobre as razes da diversidade terica na lingstica. 2 Referncia ao conto do escritor argentino J.L. Borges, parcialmente transcrito em AKMAJKIAN, A et alli (1995). 3 Utilizar o termo carta para se referir as mensagens trocadas entre professora e alunos uma escolha metodolgica que no pretende apagar o fato de a primeira mensagem, dada a sua extenso, tambm poder ser classificada como bilhete. 4 O quadro encontrado quando assumi as aulas, o que ser descrito no decorrer do captulo, torna relevante e significativa a adeso de 50% dos alunos, os quais, a princpio, tambm pareciam indiferentes ao processo de ensino-aprendizagem.

  • 22

    confiabilidade dos dados obtidos, sobretudo em situaes como esta, em que a

    voz do ator no se separa completamente da voz do analista.

    Este captulo est dividido em quatro partes. Na primeira, fao a

    contextualizao da pesquisa, explicitando como os registros foram gerados. A

    seguir, apresento a caracterizao do contexto, dos participantes e das

    mensagens que constituram o corpus de anlise. Finalmente, descrevo como se

    deu a construo do objeto de pesquisa.

    1.1 A gerao dos registros: contextualizando a pesquisa

    Antes de assumir as aulas, estive na escola para conhecer meus futuros

    alunos. As aulas de LM eram ento ministradas pela professora Tatiana, a qual

    exercia a funo em carter extraordinrio. Tatiana substitua Elisngela

    professora que iniciou o ano letivo na escola, mas que estava em licena

    maternidade desde julho de 2004. Elisngela tambm no era a titular do cargo,

    por isso foi possvel a minha nomeao. Embora isso tivesse ocorrido em julho de

    2004, s pude entrar em exerccio em novembro daquele ano.

    A professora Tatiana, quando visitei a escola em outubro de 2004, permitiu

    a minha entrada na sala e me apresentou aos alunos como sendo a nova

    professora. Naquele momento, tive o primeiro contato com os alunos. Pude ento, mais que "dar uma espiadinha", conversar com cada aluno,

    apresentando-me e perguntando no s sobre a escola, mas sobre eles: idade, do que gostavam, se moravam no bairro, se j tinham estudado em outra escola. (Dirio de campo, p. 2, 05/10/2004)

    Alm desse contato com os alunos, conversei com o vice-diretor.

    (Ele) Fez-me vrias observaes um tanto quanto negativas sobre o bairro, mas com o intuito de me informar, j que eu disse que no era de Campinas. Ele me disse que se trata de uma populao carente; que h muita violncia, principalmente por causa do trfico de drogas... E que os alunos, s vezes, so violentos tambm... (Dirio de campo, p. 3, 05/10/2004)

    Para planejar a primeira seqncia de atividades didticas, tive que

    considerar essas informaes, os relatos da professora Tatiana, dos prprios

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 23

    alunos, bem como o fato de ter sido constante a troca de professores naquele ano.

    Em conversas com a Tatiana, ela revelou que os alunos apresentavam

    dificuldades na leitura, na escrita e em tpicos como ortografia, acentuao,

    pontuao, etc. Ao ouvir os relatos da professora, tive a impresso de que as

    dificuldades de leitura apresentadas pelos alunos diziam respeito decodificao.

    J no que diz respeito escrita, Tatiana tambm mencionou que os alunos no

    conseguiam produzir um texto coerente e que apresentavam muita dificuldade na

    paragrafao. Em uma breve conversa com os alunos, confirmei boa parte dos

    relatos da professora Tatiana: muitas crianas/adolescentes afirmaram no gostar

    de ler nem das aulas de LM e no ter acesso a livros, jornais, revistas, etc.

    Como era a terceira a ministrar aulas de LM naquele ano letivo, desconfiei

    que, de alguma forma, isso poderia ter prejudicado o processo de

    ensino/aprendizagem, pois professores diferentes, geralmente, apresentam

    maneiras diferenciadas de conduzir as aulas e de avaliar. Quando uma aluna

    escreveu dizendo Eu gosto da Tatiana s ela me entende se no fosse por ela eu

    no sabia nada. (Dalva 08/11/2004), os impactos que essa troca de professores

    pode ter causado nas crianas/adolescentes se tornaram ainda mais explcitos.

    As informaes de que dispus me permitiram traar um perfil provisrio dos

    alunos e at a identificao, mesmo que parcial, de uma situao-problema: os

    alunos no tinham acesso a jornais e revistas. Conforme o exposto acima, isso foi

    revelado pelas prprias crianas/adolescentes que, quando questionados sobre os

    seus hbitos de leitura, disseram no ter contato com gneros da mdia impressa,

    tais como notcias e reportagens.

    Em um segundo momento, tais informaes foram utilizadas na elaborao

    de um plano de interveno pedaggica, neste caso especfico, a seqncia de

    atividades didticas, "um conjunto provisrio de atividades variadas, direcionais,

    metdicas e sistemticas que sero empreendidas pelo professor/professora junto

    aos alunos em busca de objetivos definidos para a aula de LM. Entendida como

    tendo uma configurao provisria pelo fato de o processo didtico ser dinmico e

    estar sujeito a modificaes ao longo de sua atualizao." (GATINHO, 2004).

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

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    Em contextos de ensino/aprendizagem, o fato de ter identificado o(s)

    problema(s) no garante a elaborao de um plano que realmente contribua para

    a soluo. Rojo (2001), em artigo que analisa uma experincia com a formao de

    professores, relata que Fazia parte de nossas crenas, enquanto formadores, que a atividade de

    planejar aes didticas, uma vez detectada a necessidade de ensino e as possibilidades de aprendizagem e conhecido o objeto de ensino, caracterstica da profisso e no precisaria, portanto, ser objeto de formao, dado que seria sobejamente conhecida. Da a nossa surpresa que a dificuldade no se encontrasse na descrio do gnero ou na avaliao das possibilidades de aprendizagem (ZPD) tarefas essas que julgvamos mais difceis e objetos de formao, perfeitamente realizadas pelos professores-bolsistas mas justamente na modelizao didtica, ou seja, na seleo de o qu e como ensinar. (Rojo, 2001, p. 328)

    No meu caso, em consonncia com o perfil provisrio que tracei dos alunos,

    elegi a leitura/escrita do gnero reportagem como objeto de ensino programtico.

    Segue a passagem na seqncia de atividades didticas elaborada que

    demonstra isso: OBJETIVO Utilizando o gnero reportagem, propor atividades que contemplem leitura,

    escrita e oralidade. Com este trabalho, alm da exposio do aluno ao gnero (estratgias de leitura, forma, funo e contedo temtico), pretende-se traar um perfil das turmas, identificando as suas principais dificuldades na leitura e escrita, o que nortear outras atividades de interveno. LEITURA: trabalhar as estratgias necessrias para a leitura do gnero questionrio e reportagem; explorar a multimodalidade; fazer um percurso do macro ao micro, isto , da apresentao do texto, dos infogrficos, ttulos ao texto escrito, no qual sero explorados os elementos lingsticos e estruturais. ESCRITA: com forma, funo e contedo temtico adequados aos gneros a serem produzidos - esquema, questionrio e reportagem; trabalho intenso com produes coletivas, em que o professor funciona como um escriba, e reescrita, a qual dever considerar as especificidades do gnero produzido. GRAMTICA: os tpicos gramaticais a serem trabalhados emergiro da leitura dos textos e da produo textual dos alunos, portanto o trabalho com a gramtica ser vinculado ao de leitura e escrita do gnero. (...) (Seqncia de atividades didticas O que as crianas e adolescentes fazem todos os dias? Introduo ao gnero reportagem , 04 de novembro de 2004)

    Dessa forma, o gnero reportagem se apresentou, naquele momento, como

    o organizador da seqncia de atividades didticas proposta, a qual se desdobrou

    em vrios roteiros de aula. No entanto, ao mencionar nos objetivos da seqncia

    de atividades que pretendia traar um perfil das turmas, identificando as suas

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 25

    principais dificuldades na leitura e na escrita, o que nortear outras atividades de

    interveno, deixava aberta a possibilidade de trabalho com outros gneros.

    Essa necessidade de traar um perfil dos alunos, muito mais que uma

    postura de desconfiana em relao s informaes j obtidas, pretendia ser lida

    como uma tentativa de evidenciar que era preciso planejar as atividades

    pedaggicas tendo como base as prprias necessidades e interesses (ou aquilo

    que se imaginava ser) de ensino/aprendizagem dos alunos. De fato, em um

    primeiro momento, iniciei a troca das cartas tambm com esse objetivo de traar

    um perfil do desempenho dos alunos, pois as suas respostas, uma escrita

    espontnea, constituiriam uma rica fonte de informaes a esse respeito.

    Apesar de no estar prevista como atividade programtica na seqncia de

    atividades didticas, a troca de mensagens foi mencionada nos roteiros de aula,

    conforme abaixo: O bilhete Elaborei um bilhete para cada aluno. Trata-se de uma tentativa de me

    aproximar dos alunos e de estimular a escrita com um fim social, neste caso a correspondncia entre professor-aluno e quem sabe depois aluno-aluno. (Roteiro 1 e 2 aulas)

    No trecho da aula reproduzido abaixo, ao tentar explicar aos alunos a

    funo do questionrio5 que eles iriam preencher, destaquei que a principal funo

    das mensagens era obter informaes Eu quero saber coisas sobre vocs. Milene6 - -Professora:

    A muitos de vocs/ l no bilhetinho eu pedi conte sobre voc, falesobre voc mesmo, o que voc gosta de fazer. Alguns responderamoutros no n? Ento o que que acontece? Eu quero saber coisas sobre vocs e no d para eu ir conversando um por um n?7

    (Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)

    5 Tal questionrio, com o qual se pretendia obter informaes pessoais, estava relacionado com a reportagem que foi estudada, pois abordava os mesmos temas. Isso possibilitou a captao de informaes sobre a turma, as quais foram comparadas aos dados apresentados pela pesquisa divulgada na reportagem. O questionrio e a reportagem esto nos anexos. 6 Todas as transcries presentes neste trabalho foram autorizadas pela escola e pelos alunos e, de comum acordo, ficou estabelecido que todos os nomes utilizados, exceto o meu, seriam fictcios.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    7 Sinais utilizados na transcrio, adaptados de Marcuschi (2003, p.9-13) : ( ) Dvidas suposies ; (( )) Comentrios do analista ; xxxx Incompreensvel ; : : : : Alongamento da vogal ; AAA Enfase ou acento forte ; , Subida leve ; (+) Pausa equivalente a 0,5 segundos, cada + corresponde 0,5 segundos ; (1,5) Acima de 1,5 segundos registra-se o tempo ; / Truncamentos ; ? Subida forte equivalente a uma pergunta.

  • 26

    As mensagens escritas por mim e meus alunos no se constituram,

    portanto, como um objeto de instruo em sala de aula, mas sim uma atividade

    extraclasse que, dada a sua ocorrncia rotineira, propiciou a mobilizao, com

    base nos textos trocados, de recursos lingstico-discursivos prprios dos

    gneros utilizados. Quando escrevi minha primeira mensagem, no visava ensinar

    os alunos a escreverem bilhetes ou cartas, conforme evidenciado no trecho que

    segue. Por mais que reconhea ser pouco provvel que eu no avalie as

    produes desses alunos, ressalto que a inteno no essa. Meu objetivo principal estabelecer um canal de comunicao com esses alunos. (Roteiro 1 e 2 aulas)

    Minha inteno, portanto, era abrir um espao para que os alunos se

    manifestassem atravs da escrita, a qual foi vivenciada pelo grupo como uma

    prtica social situada e no como um exerccio de codificao ou um pretexto para

    a aplicao da metalinguagem, fatos que ainda ocorrem na escola.

    Evidentemente, isso me possibilitou conhecer a escrita daquelas

    crianas/adolescentes de uma forma diferente da que comumente praticada em

    contexto escolar.

    1.2 Caracterizao do contexto e dos participantes

    1.2.1 O bairro A escola em que se deu essa pesquisa fica em um bairro da periferia de

    Campinas-SP. Tal bairro, conforme informaes do vice-diretor, dos funcionrios

    da escola e de algumas reportagens veiculadas na mdia, conhecido pelas

    ocorrncias de violncia. Essa caracterizao negativa compartilhada pelos

    alunos, embora a isso eles acrescentem outras caractersticas. Em uma pesquisa

    realizada no arquivo digital do jornal Correio Popular, o qual circula em

    Campinas e regio, foram encontradas, de 2002 a 2005, 16 notcias a respeito do

    bairro. Dessas, 10 tinham como tema a violncia e/ou trfico de drogas conforme

    pode ser percebido abaixo.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 27

    Buracos dificultam trnsito em rua do Jd. Santo Antnio8. (14/11/2005) Ao Solidria mobiliza o Santo Antnio. (18/9/2005) Policiais ocupam as ruas do Jardim Santo Antnio. (3/6/2005) Emdec retira abrigo de ponto de nibus do Jardim Santo Antnio sem avisar usurios. (7/5/2004) Terreno baldio vira depsito de lixo e irrita morador do Jardim Santo Antnio. (7/2/2004) Enchente ainda perturba o Santo Antnio. (19/3/2003) Queda de rvore interrompe energia no Santo Antnio. (14/2/2003) Garoto de 15 anos detido com cocana no Santo Antnio. (30/12/2002) Polcia investiga morte de homem no Jd. Santo Antnio. (2/11/2002) Ladres armados assaltam vigilante no Santo Antnio. (7/10/2002) Polcia descobre drive thru e drogas no Santo Antnio (12/9/2002) Seis so detidos na favela do Santo Antnio por trfico. (22/8/2002) PM apreende papelotes de cocana no Santo Antnio. (15/7/2002) Dois so presos com drogas no Jardim Santo Antnio. (30/6/2002) Polcia faz operaes no Santo Antnio e prende 5. (8/6/2002) Homem executado a tiros no Jardim Santo Antnio. (23/4/2002) (Jornal Correio Popular, www.cpopular.com.br, ltimo acesso em julho de 2006)

    Alm das notcias acima, localizei a reportagem Perfil: a construtora de

    ninhos que trata de uma ONG localizada no bairro. Essa reportagem foi publicada

    em 28/01/2003 no caderno Sinapse do jornal Folha On Line. Tive acesso tambm

    a uma notcia sobre a inaugurao de uma academia de Kung Fu no bairro, a qual

    foi publicada em 01/06/2003 no portal Cosmo On Line.

    (http://www.cosmo.com.br/esportes/2003/06/01/materia_esp_54453.shtm).

    A caracterizao negativa do bairro o ponto comum entre todas as

    notcias e reportagens. Alm da categorizao favela, h outras tantas, conforme

    pode ser observado nos exemplos abaixo: Apontado como um dos principais redutos do trfico de drogas em Campinas, O Jardim Santo Antnio foi ocupado pela Polcia Militar na noite de ontem, onde foi feita um varredura no bairro. (http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1368695&area=2020&authent=9D51214F935452BF73036DB176709D , publicado em 3/6/2005) Com vrios mandados de priso em mos, a incurso da PM num dos redutos tradicionais do trfico de drogas da cidade, resultou na priso de cindo homens e na apreenso de vrios objetos entre eles rdios, modelo HT, que copiavam a freqncia da Polcia. (http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=36265&area=2020&authent=660140265244236204706601402652, publicado em 8/6/2002)

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    8 Trata-se de um nome fictcio.

  • 28

    Todos (referindo-se s crianas/adolescentes atendidas pela ONG) vm de famlias desestruturadas, marcadas pela pobreza extrema e pela violncia do local onde vivem: o Jardim Santo Antnio, uma das favelas mais perigosas de Campinas (SP). (http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u278.shtml, publicado em 28/01/2003). Outro objetivo transformar a imagem de bairro violento que o Jardim Santo Antnio adquiriu pela fama de morada do criminoso W.P.L... (http://www.cosmo.com.br/esportes/2003/06/01/materia_esp_54453.shtm, publicado em 01/06/2003).

    Tambm na produo9 feita pelos alunos, na qual eles deveriam me

    apresentar o bairro em que moram, so encontradas passagens tais como O

    bairro que eu moro favela, mas acho que legal de brincar. (Andria), a

    denominao favela aparece como uma expresso predicativa, com o sentido

    negativo popularmente disseminado tambm presente nas notcias e reportagens

    mencionadas. Esse trao negativo fica evidente dada a presena da conjuno

    adversativa mas, usada pela aluna em uma tentativa de reverter a imagem

    negativa criada. Com esse uso, a aluna parece querer ressaltar que, apesar de ser

    favela, o bairro tem coisas boas, pessoas honestas e no somente bandidos,

    violncia e trfico de drogas.

    A informao de que o lugar onde vivem uma favela, conforme a

    transcrio abaixo, tambm foi fornecida por uma aluna durante a interao oral

    em uma aula cujo objetivo era o preenchimento do questionrio com informaes

    pessoais, entre elas o endereo residencial.

    Milene (Professora):

    E qual que vocs acham que meu objetivo com esse questionrio que vocs ainda no vem / no viram? O que vocs acham que pode ter l?

    Willian: Perguntas e respostas Milene Tem as perguntas, mas que tipo de pergunta? Que tipo de pergunta

    que voc acha que pode ter l? Luciana: Aonde? Milene Nesse questionrio que eu trouxe pra vocs. Luciana Sobre a vida, sobre a gente. Milene T. Que mais? Melhora isso. O que eu posso perguntar sobre voc? Alunos: ((vrios falam ao mesmo tempo)) Quantos anos voc tem? Aonde voc

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    9 Tal produo foi por mim solicitada para que eu pudesse obter a opinio dos alunos a respeito do bairro e da escola. Apesar de ter sido feita em sala de aula, tal atividade no estava prevista na seqncia de atividades didticas.

  • 29

    mora? Luciana Aonde voc mora? Eu moro na favela.Milene: Quantos anos voc tem, idade, onde voc mora, que mais? Luciana: Ns mora na favela. (Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)

    Nesse trecho percebe-se que, assim como nas notcias e no texto escrito

    por Andria, os alunos aderem categorizao do bairro como favela. Somente

    no trecho citado, Luciana d a mesma informao duas vezes talvez porque a

    sua revelao tenha sido por mim ignorada e assim ela o faz novamente quando

    mostrei como se preenche o endereo residencial.

    J em uma outra produo escrita, aparece No meu bairro tem muitas

    casas e viela e tambm pessoas, bandidos, 99% das pessoas fofoqueiros 1%

    boas. (Edvaldo), a categorizao favela no aparece diretamente, mas

    possvel retom-la pelo uso da expresso viela. O aluno em questo prefere dar

    maior nfase aos aspectos negativos, segundo ele apenas 1% das pessoas do

    bairro boa. interessante observar que as palavras pessoas e bandidos

    esto separadas, talvez para deixar bem clara a diferena entre as pessoas boas

    e os bandidos.

    A viso dos alunos sobre a agitao e a baguna que estariam

    presentes na rotina do bairro fica evidente em outro texto em que a aluna diz: O

    Santo Antnio um bairro muito agitado e muito barulhento e muito

    bagunceiro. (Alice.). Talvez em resposta a esse tipo de enunciado, uma outra

    aluna tenha colocado Eu queria que melhorasse muitas coisa como sem brigas,

    mortes, violhesa [violncia] ... (Marta), ou seja, a agitao, o barulho e a

    baguna citados por Alice podem fazer referncia s brigas, mortes e

    violhesa [violncia], explicitados por Marta.

    O desejo de melhora que encontrado no texto de Marta no se repete no

    da Andressa: Antigamente aps s 18:00 h ningum podia sair para a rua [ela] ficava

    rodeada de fumantes de droga e bandido, mas hoje j no tem tanto perigo, mas em vez em quanto tem um tiroteio, a ns fechamos as janelas e as portas e ficamos em lugar bem fechado esperamos pasar.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 30

    Mas no nada no ns j nos acostumamos, mas tambm a [h] lugares bons e legais como o stio, a lanchonete. (Andressa )

    No exemplo acima, o que se percebe um sentimento de adaptao s

    condies oferecidas pelo bairro para a sobrevivncia a ns fechamos as janelas

    e as portas e ficamos em lugar bem fechado esperamos pasar; e de tentativa de

    se convencer que a situao no to ruim assim mas tambm a [h] lugares

    bons e legais como o stio, a lanchonete. Como a interlocutora a professora

    nova, percebe-se o esforo da aluna em mostrar que o bairro melhorou e que, por

    isso, no haveria motivos para ela se assustar.

    Em documento disponibilizado pela Secretaria Municipal de Sade de

    Campinas (http://www.campinas.sp.gov.br/saude/dados/icv/ICV.pdf), a regio

    onde se localiza o bairro Jardim Santo Antnio est entre as que possuem o

    melhor ndice de Condio de Vida10 (ICV) do municpio (3,1), atrs somente do

    Taquaral (3,4), Aurlia (3,4), F.Lima ( 3,3) e Centro (3,3). O ICV foi proposto para

    identificar diferenas nos nveis de qualidade de vida e sade das reas de

    abrangncias dos Centros de Sade de Campinas. Tal ndice, no entanto, tem que

    ser utilizado com restries, pois ele se refere a todos os 17 bairros que so

    atendidos pelo Centro de Sade do Jardim Santo Antnio, inclusive a favela a

    que os alunos se referem.

    Para a caracterizao, procurei utilizar as informaes prestadas pelos

    prprios alunos, bem como algumas notcias e reportagens sobre o bairro a que

    tive acesso. Conforme demonstrei, tanto as publicaes veiculadas na mdia

    quanto os textos dos alunos colocam em destaque a violncia, associada ao

    trfico e ao consumo de drogas. No entanto, tais caractersticas no so to

    facilmente percebidas por aqueles que apenas passam pela regio, principalmente

    porque a favela apenas um dos elementos o bairro. Em minha primeira visita,

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    10 Os indicadores utilizados so: proporo de populao moradora em sub-habitao; proporo de chefes de famlia sem ou com menos de um ano de instruo; taxa de crescimento anual (91-96); proporo mdia de mes com menos de 20 anos de idade; coeficiente mdio de mortalidade infantil 1998-2000; incidncia mdia de desnutrio entre os menos de 5 anos 1996-2000; incidncia mdia de tuberculose 1996-2000 (http://www.campinas.sp.gov.br/saude/dados/icv/ICV.pdf)

  • 31

    por exemplo, pude verificar que se tratava de um local aparentemente tranqilo

    onde residiam algumas famlias de baixa renda.

    1.2.2 A escola A escola em questo possui cerca de 750 alunos, divididos em trs turnos:

    manh, tarde e noite11. Ela atende crianas/adolescentes que cursam o Ensino

    Fundamental I, de primeira a quarta srie; o Ensino Fundamental II, de quinta a

    oitava srie; e o Ensino Mdio.

    Nessa caracterizao, inevitvel relacionar as caractersticas do bairro

    que parecem interferir no funcionamento da escola. No trecho abaixo, Vitor se

    mostra bastante incomodado com a presena de bandidos e pichadores, pois,

    principalmente os ltimos, so responsabilizados pela poluio visual do bairro e

    da escola: No Jardim Santo Antnio tem que muda muitas coisas como tirar os

    pinxadores que pinxa e tirar os maconheiros (...) os bandidos que robam e o bairro no meresse isso porque no pode robar, pinxar, fumar principalmente os pinxasores pinxa as escolas, as casas os predios e etc

    Quando solicitados a falar especificamente sobre a escola, as

    caractersticas interacionais dos alunos, descritas como fazer baguna,

    (des)respeitar os professores, falar palavro, bem como as pichaes

    receberam destaque. Em seu texto, ao dizer como gostaria que a escola fosse,

    Edvaldo acaba deixando isso bem evidente. Eu gostaria de ter uma escola sem pichaso, alunos educados.

    Professores menos nervosos. quando fossemos para paseios sem bagunsa e respeitando os professores.

    E tambm sem alunos ficarem paseando pela classe de aula e tambm [sem] falar. quando se sentamos em grupo mais silencio. (Edvaldo)

    No texto de Lcia, tambm se percebe como ela v a escola pela sua

    descrio de como gostaria que a escola fosse.

    11 No incio de 2006, ela foi transformada em Escola em tempo integral, ou seja, os alunos passaram a ficar na instituio das 7h00 s 16h00.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 32

    Eu queria que a escola fosse sem baguna, no convera, quando a professora estiver falando augo que vale para nota. Que respeitase as(os) professora (o), a Tireo, a Teca e todos que trabaiam na escola. No pinchar a escola no esdorar bombas no banheiro, falar palavram . (Lcia)

    Assim como Vitor, Lcia destaca a baguna, a conversa, a falta de respeito,

    o fato de falarem palavro e estourar bombas no banheiro. Isso tudo no foi por

    mim percebido quando estive na escola pela primeira vez, ao contrrio, registrei

    aqueles que seriam os pontos positivos, conforme consta abaixo: Pude perceber vrios pontos positivos na escola: ela pequena, apenas 5

    salas para o ensino fundamental; os alunos que mudam de sala, logo vou poder organizar a sala de portugus da melhor maneira possvel... (Dirio de Campo, p.3, 05/10/2004)

    Ao mencionar como principal caracterstica o fato de a escola ser pequena,

    estava pensando nos benefcios que isso poderia trazer, tais como: maior

    proximidade com a direo, contato intenso com todos os professores,

    possibilidade de conhecer boa parte dos alunos. Outro fato que me chamou

    ateno foi a sala ambiente, a qual poderia facilitar o meu trabalho, j que

    organizaria ali todo o material de que necessitasse. Tambm durante a correo

    das redaes do SARESP 200412, tive a oportunidade de conhecer o desempenho

    da escola como um todo, conforme relato abaixo: A parte boa que a correo [das redaes do Saresp] tem revelado

    surpresas agradveis, a meninada da escola no est mal, ao contrrio, at agora vimos mais redaes excelentes que redaes pssimas. (Dirio de campo, p.16, 05/12/2004)

    As caractersticas apontadas pelos alunos esto relacionadas s relaes

    individuais e em grupo e ao ambiente em que eles circulam. Isso significa que eles

    vm e categorizam a escola de um lugar diferente do meu, no fazendo

    referncia, por exemplo, aos diversos projetos pedaggicos que foram

    desenvolvidos na escola no ano de 2004, tais como o Projeto gua, o Projeto Sala

    Ambiente, a Fanfarra e o Coral.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    12 O SARESP o Sistema de Avaliao do Rendimento Escolar de So Paulo, o qual aplicado para todos os alunos das escolas da rede estadual de ensino.

  • 33

    1.2.3 Os alunos e a professora Com base no questionrio respondido pelas crianas/adolescentes durante

    as primeiras aulas, consegui vrias informaes. Eram 95 alunos, distribudos em

    trs quintas e uma sexta sries, isso significa que as turmas eram compostas por

    24 alunos, em mdia. Em geral, as meninas eram maioria nessas turmas, as

    quais contavam, em mdia, com 14 alunas e 10 alunos. A maior parte dos alunos

    das quintas sries tinha entre 11 e 12 anos, j na sexta srie, a maioria tinha entre

    13 e 15 anos, o que constitui um indcio de evaso ou reteno.

    No questionrio, quase metade das crianas/adolescentes revelou que no

    cultivava o hbito da leitura dos gneros mencionados (rtulos, cartazes,

    placas/outdoors, folhetos, revistas, gibis, jornais e livros) fora da escola. Aqueles

    que diziam faz-lo, mencionaram a histria em quadrinhos como leitura favorita. A

    grande maioria afirmou assistir televiso de uma a trs horas por dia, preferindo

    novelas, principalmente, Malhao. Ouvir rdio tambm foi apontada como uma

    atividade freqente, tendo a preferncia dos jovens as rdios que tocam rap,

    samba/pagode e ax. Apesar de o computador ser conhecido pela maioria dos

    alunos, eles disseram que geralmente o utilizavam apenas para jogos.

    A fim de obter outras informaes necessrias caracterizao, convidei os

    alunos a responderem um outro questionrio cujo objetivo era conseguir

    informaes sobre as condies socioeconmicas da famlia, bem como sobre as

    suas prticas de letramento. Dos 98 alunos, 47 aceitaram o convite e

    responderam ao questionrio, permitindo que fosse traado o perfil abaixo.

    Em relao s caractersticas da famlia h um equilbrio no grupo que

    respondeu ao questionrio: 49% das famlias so compostas por pai, me e

    irmos; a maioria dos alunos (51%), no entanto, revelou a ausncia do pai,

    morando apenas com a me e irmos ou com os avs e irmos. As famlias no

    so numerosas: 48% dos alunos residem com mais duas ou trs pessoas; 23%,

    com 4; 14%, com 5; 9%, com 6. A renda mensal de 70% das famlias no

    ultrapassa R$ 700,00.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 34

    A maioria dos pais e mes desse grupo de alunos sabe ler e escrever e

    freqentou a escola durante, pelo menos, quatro anos. H apenas 5 ocorrncias

    de pais que nunca freqentaram a escola e, segundo os alunos, no sabem ler

    nem escrever. Em relao escolaridade dos pais presentes, foi constatado que

    16% concluram o Ensino Fundamental (de 1. a 8. oitava srie); 38% no

    completaram o Ensino Fundamental, sendo que a maioria cursou at a quarta

    srie; 8% iniciaram o Ensino Mdio, mas no concluram; 22% cursaram e

    concluram o Ensino Mdio. Foi mencionado um pai com curso universitrio, o

    qual se formou em engenharia mecnica. As profisses desses pais concentram-

    se na rea de prestao de servios e construo civil: 21% so ajudantes de

    servios gerais; 17%, porteiros; 14%, pedreiros e 11%, motoboys.

    As informaes apuradas a respeito da escolaridade e profisso das mes

    do grupo de alunos que respondeu ao questionrio mostram que: 17,5%

    concluram o Ensino Fundamental; 60% no completaram o Ensino Fundamental,

    sendo que a maioria cursou at a quarta srie; 15% iniciaram o Ensino Mdio,

    dessas, 5% no chegaram a conclu-lo. A imensa maioria (66%) trabalha como

    empregada domstica.

    As prticas de letramento apontadas pelos alunos como mais freqentes

    em suas famlias so: verificao de data e valor de pagamento em contas de

    consumo (70%); leitura de textos religiosos, principalmente a Bblia, (68%);

    leitura/escrita de nomes, telefones, endereos em agendas/cadernos (64%);

    leitura de cartas (61%); leitura de rtulos (55,5%). A escrita de cartas foi

    apontada como uma atividade freqente na famlia por 32% dos alunos. Em

    relao aos gneros encontrados em casa, 76% dos alunos mencionaram a Bblia;

    74% mencionaram folhinhas/calendrios; 70%, cadernos/livros de receitas; 70%,

    dicionrios; 66%, lista telefnica; 66%, revistas; 50%, livros didticos.

    Segundo minhas anotaes no dirio de campo e trechos das aulas, as

    turmas podem ser consideradas como bastante agitadas. Nos exemplos abaixo,

    reproduzo o trecho de uma interao na aula realizada em 09/11/2004, meu

    segundo dia como professora na escola. Nesta aula estava planejado

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 35

    preenchimento de um questionrio com dados pessoais e a leitura de uma

    reportagem. A seguir, transcrevo tambm uma parte de uma reflexo que fiz

    tendo em vista o desenvolvimento dessa mesma aula.

    Milene (Professora):

    ((muito barulho)) tudo bem ningum me escuta, uma coisa de louco, mas vamos l (0,10). J que voc t em p, distribui pra mim, por favor.

    (Trecho da aula na 6. srie A em 09/11/2004)

    Como eles so? Carentes. S. (...) Gritam muito, falam muito palavro, tudo motivo para brigar, para bater ... Dai eu caio l de pra-quedas , com um discurso e uma postura totalmente diferentes, qual ser a primeira reao: recusa, resultado de um estranhamento talvez. Fico imaginando ... se eles agem dessa forma porque algum age assim com eles... talvez l fora, no grupo que eles freqentam, esse seja o "padro". Se por um lado sei disso, por outro reconheo que simplesmente aceitar essa "cultura " seria cercear o direito desses jovens e adolescentes de fazerem as suas escolhas (...) Mas como apresentar esse novo sem agredi-los, ou melhor, como fazer com que eles percebam que h outras possibilidades e que essas possibilidade esto, de uma forma ou de outra, relacionadas lngua ? Hoje as aulas foram mais tumultuadas.... Agora noite vou rever algumas atividades. (Dirio de campo, p. 8, 09/11/2004)

    A reflexo acima faz referncia, principalmente, aos fatos ocorridos na 6

    srie A. Nesse dia, quando tive as duas primeiras aulas na turma, tinha planejado

    o uso do retroprojetor, o qual deveria me auxiliar no trabalho com o questionrio e

    com a reportagem Superligados na TV13 ( Folha de So Paulo, Caderno Folha

    Ilustrada, p. E1, em 17 de outubro de 2004). A primeira reconfigurao teve que se

    dar logo no incio da aula, pois o aparelho no estava disponvel. Passados 10

    minutos da aula, o retroprojetor chegou. Tive que parar a aula para ligar o

    equipamento. Os alunos ficaram ainda mais inquietos porque a projeo no ficou

    muito boa.

    Ao mencionar Dai eu caio l de pra-quedas, com um discurso e uma

    postura totalmente diferentes, qual ser a primeira reao: recusa, resultado de

    um estranhamento talvez., manifesto a conscincia a respeito do estranhamento

    que a minha maneira de conduzir a aula pode ter causado ao grupo. Os

    acontecimentos na 6 A no s fizeram com que desistisse do uso do retroprojetor

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    13 Tanto o questionrio quanto a reportagem podem ser consultados nos anexos.

  • 36

    naquele dia, mas que as aulas fossem reformuladas Agora noite vou rever

    algumas atividades.

    Na caracterizao dos alunos, tentei no apagar os conflitos que ocorreram

    durante as aulas. Conforme trecho da interao citada anteriormente, nem sempre

    os alunos estavam engajados nas atividades propostas e, muitas vezes, tiveram

    comportamentos agressivos, gritando, falando palavres, brigando com colegas

    de turma durante as aulas, por exemplo.

    Quando assumi o cargo contava com dois anos de experincia no

    magistrio, sendo que em apenas um deles tinha exercido a funo de professora

    eventual14 em escolas estaduais de So Paulo. Fica evidente que, apesar de ter

    formao acadmica compatvel ao cargo (licenciatura em Letras-Portugus,

    2002; especializao Metodologia de Ensino de Lngua Portuguesa, 2004), no

    contava com uma vasta experincia profissional.

    1.3 A construo do objeto de pesquisa

    As teorias so maneiras diversas de tentar articular diversos aspectos de

    um processo global e de explicitar uma viso de conjunto (SANTOS FILHO &

    GAMBOA, 1995, p. 88). A opo por diferentes teorias tem as suas conseqncias

    metodolgicas (ROCKWELL, 1989, p.43). Admitir a possibilidade de olhar a

    interao escrita que se deu entre professora e alunos atravs de diferentes

    teorias, significa tambm admitir que possam ser construdos diferentes objetos de

    pesquisa. Enquanto pesquisadora, luz das minhas crenas e valores e das

    teorias as quais aderi, selecionei os aspectos que pareceram mais relevantes.

    Ao falar sobre a construo do objeto de estudo, preciso ressaltar que,

    conforme o descrito anteriormente, quando assumi as aulas na escola no me

    apresentei como pesquisadora, mas sim como professora. Esses papis, na

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    14 Na rede estadual de ensino de So Paulo, denomina-se professor eventual aquele que ministra a(s) aula(s) quando o professor responsvel pela disciplina no comparece.

  • 37

    prtica, acabaram se fundindo: Ainda no sei separar a pesquisadora da

    professora.. (Dirio de Campo, p. 2, 05/10/2004). Enquanto professora, minha

    maior preocupao era com o processo de ensino-aprendizagem. No entanto,

    todas as aes realizadas na escola foram registradas, pois, enquanto

    pesquisadora estava buscando informaes para elucidar uma pergunta

    norteadora mais geral O que acontece nas aulas de lngua materna (doravante

    LM)15 que pode influenciar a aprendizagem da escrita? Somente em um segundo

    momento, quando o ano letivo havia sido concludo e junto com ele a gerao dos

    registros, houve a preocupao com a construo do objeto de pesquisa, o qual,

    com a anlise dos primeiros registros passou a ser a interao entre professora e

    alunos mediada pela escrita. Dada essa reconfigurao a pergunta de pesquisa

    passou a ser: como se deu a construo da interao mediada pela escrita entre professora e alunos no contexto focalizado?

    Ao focar a interao mediada pela escrita, atravs do gnero bilhete/carta,

    procuro preservar a multiplicidade e a complexidade de fatores que a constituem.

    Aqui, o termo complexo assume o mesmo sentido proposto por Morin (2002, p. 16)

    o que est tecido em conjunto. Para Morin (2002, p. 72), enfrentar a

    complexidade do real significa perceber as ligaes, interaes e implicaes

    mtuas de fenmenos multidimensionais e de realidades que so

    simultaneamente solidrias e conflitantes. Essa perspectiva tambm inscreve esta

    pesquisa no campo da lingstica aplicada, em sua concepo transdisciplinar

    (SIGNORINI, 1998).

    A complexidade j aparece na minha deciso de escrever a primeira

    mensagem, bem como na escolha do contedo. Tal deciso parece ter resultado

    no somente da necessidade de me aproximar dos alunos, mas tambm da

    tentativa de me contrapor ao discurso desqualificador a respeito dos alunos, da

    escola e do bairro. Essa escolha, que a princpio pareceu ter sido fruto do acaso,

    mantm uma estreita relao com a minha histria de letramento, na qual as

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    15 Aqui, o termo LM tambm utilizado para se referir disciplina escolar Lngua Portuguesa.

  • 38

    cartas sempre tiveram presena marcante, bem como com o meu processo de

    formao, atravs do qual tive acesso s teorias sociointeracionais de

    ensino/aprendizagem.

    A primeira mensagem constitui, portanto, uma tentativa de dilogo, no

    somente com os alunos, mas, sobretudo, com aquilo que se falou sobre eles e

    sobre as possveis conseqncias da minha entrada na escola, como professora,

    a um ms do encerramento do ano letivo e aps uma seqncia de professores

    substitutos16.

    Tambm foi preciso considerar que a interao na aula de LM oral e

    escrita tem caractersticas especficas, sobretudo porque o resultado almejado

    a aprendizagem e a lngua , simultaneamente, meio/instrumento de trabalho e

    objeto de ensino.

    Dada a natureza multifacetada e complexa desse objeto de estudo, no foi

    seguido aqui um percurso de investigao que obedecesse a um programa fixo

    pr-montado, mas sim um plano sempre orientado para as regularidades

    locais e para as relaes moventes (SIGNORINI, 1998, p. 102-103) presentes

    na troca das mensagens analisadas. Isso com o intuito de manter a

    especificidade, o novo e o complexo como elementos constituintes do objeto

    selecionado. A abordagem eminentemente qualitativa, foram utilizados tanto

    elementos metodolgicos da etnografia quanto da pesquisa-ao, porque: a) os

    dados foram gerados em situao natural; b) a maior preocupao, durante a

    anlise, residiu no processo e nos significados atribudos pelos participantes s

    mensagens; c) assumida a interferncia do pesquisador na construo do objeto

    de pesquisa, dado o contato direto e prolongado com o ambiente e a situao

    investigada; d) seguido um processo indutivo de anlise.

    Ao utilizar a etnografia no campo educacional, no a considerei uma

    simples tcnica, mas sim uma opo metodolgica (ROCKWELL, 1989, p.35). Os

    propsitos essenciais da etnografia aqui foram documentar em detalhe o

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    16 Conforme o mencionado anteriormente, eu era a terceira a ministrar aulas de LM. Devido convocao dos aprovados no concurso pblico em julho de 2004, os professores de matemtica, geografia, ingls e educao artstica, tambm foram substitudos.

  • 39

    desenrolar de um evento que se tornou cotidiano entre mim e os alunos, bem

    como identificar os significados atribudos a esse evento tanto por aqueles que

    participaram, quanto por aqueles que observaram. A nfase desta pesquisa,

    portanto, foram as interpretaes dos participantes, as quais so consideradas de

    maneira crtica pelo pesquisador. (ERICKSON, 2001, p.12-13)17.

    Como na pesquisa em questo a pesquisadora participante, exercendo

    simultaneamente o papel de ator na ao considerada, esta pode ser

    caracterizada como uma pesquisa-ao. Nos termos propostos por Morin (2004),

    trata-se uma pesquisa-ao integral e sistmica (PAIS), a qual prev a utilizao

    de outras metodologias, entre elas a etnografia.

    A PAIS uma metodologia de base qualitativo-interpretativista, aberta

    complexidade do real e interdisciplinaridade, o que a torna compatvel com o

    campo de investigao da Lingstica Aplicada (doravante LA). Na PAIS, a

    participao dos atores direcionada para mudanas na ao e/ou na reflexo.

    Aqui, percebe-se que atravs das mensagens procurei realinhar uma situao

    inicial que se apresentava francamente desfavorvel: assumir as aulas no final do

    ano letivo, aps vrias trocas de professores, em um bairro de periferia cujas

    informaes iniciais eram bastante negativas.

    Nas palavras de Morin (2004, p.91), a PAIS pode ser definida como uma metodologia de pesquisa que utiliza o pensamento sistmico18 para

    modelar um fenmeno complexo ativo em um ambiente igualmente em evoluo no intuito de permitir a um ator coletivo intervir nele [fenmeno complexo ativo] para induzir a mudana.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    Tal opo metodolgica exige no apenas que o investigador participe

    enquanto observador, mas que ele se implique como ator. Conforme Morin (2004,

    17 Quando o estudo se concentra em uma anlise detalhada do registro em udio ou vdeo da interao que ocorre nos eventos educacionais, o que no se deu aqui, tem-se microetnografia. A microetnografia, etnografia que mais contribuiu para o entendimento dos fenmenos educacionais, tem suas razes tericas na sociolingstica de Hymes e Cazden, conforme consta em Rockwell (1998, p.41). 18 Em Morin (2004, p. 98-99), so citadas as trs caracterstica essenciais do pensamento sistmico: dialogismo, recursividade e viso global ou hologramtica. A primeira consiste em associar elementos complementares concorrentes e antagnicos em uma nica perspectiva; a segunda, em organizar elementos conforme um processo de autoproduo ; a terceira consiste em abandonar a explicao linear em prol de uma explicao em movimento e circular, a qual vai das partes ao todo e do todo s partes.

  • 40

    p. 52) ele [o investigador] se implica, ele se explica e ele se aplica em uma

    realizao educativa (grifo meu). Na presente pesquisa, h o grau mximo de

    implicao, pois participo da interao que est sendo objeto de estudo e tambm

    assumo o papel de analista. Trata-se, portanto, de uma oportunidade de reflexo

    sobre o meu prprio fazer docente. Esse fato, que poderia comprometer a

    anlise, teve contribuio determinante, pois me permitiu, quando no papel de

    analista, recuperar as minhas intenes, enquanto professora, durante a troca das

    mensagens.

    As tcnicas de gerao de registros da PAIS, assemelham-se s da micro-

    etnografia: gravao em udio e documentos escritos, tais como o planejamento

    anual, o caderno, a seqncia de atividades didticas, roteiros de aulas, dirio de

    campo, questionrio respondido pelos alunos e cartas escritas por mim e pelos

    meus alunos. Essa diversidade de registros permitiu que fosse feita a

    triangulao, j mencionada anteriormente. Fica evidente, portanto, que esse

    deslocamento operado na construo do objeto de pesquisa na LA possibilita que

    se considere a interferncia das crenas, valores e teorias assumidas pelo

    investigador na prpria maneira como ele olha e (re)constri a realidade. No

    caso especfico desta pesquisa, portanto, interferncia do pesquisador na ao e

    do ator na anlise uma opo metodolgica.

    1.3.1 A anlise O paradigma de pesquisa qualitativo j conquistou seu espao nas cincias

    humanas, por isso a discusso qualitativo versus quantitativo se apresenta como

    um falso problema, uma vez que, resguardando-se as especificidades, evidente

    a complementaridade entre ambos. No entanto, ainda h discusses a respeito da

    validade das anlises interpretativistas que seguem o mtodo indutivo,

    principalmente nas ocasies em que o pesquisador participante.

    Esta pesquisa pode contribuir para uma discusso a respeito da questo

    Como se aproximar de um saber digno de credibilidade quando o ator est em

    situao de juiz e de parte integrante? (MORIN, 2004, p.155). Tal pergunta, no

    entanto, pode ser reformulada da seguinte maneira: Diante da grande quantidade Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental

    de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 41

    e diversidade de registros, como analis-los respeitando-se o objeto de pesquisa,

    adquirindo credibilidade e contribuindo para o conhecimento prtico? (MORIN,

    2004, p.155). A fim de responder a tais questionamentos, torna-se necessria a

    descrio das ferramentas utilizadas durante as diferentes etapas da anlise dos

    registros.

    A observao, a classificao e a elaborao de concluses foram

    procedimentos utilizados durante o processo de anlise dos registros. Tendo em

    vista que no seguido aqui um percurso de anlise linear e que a retroao um

    movimento necessrio para a validao das hipteses que foram geradas ao

    longo do processo, impossvel fazer uma diviso estanque entre tais fases.

    Durante o processo de anlise, houve redues, j que seria impossvel

    construir um mapa do tamanho do mundo. Em um primeiro momento, a maior

    preocupao residiu em agregar os registros, formando uma espcie de mosaico

    que levasse compreenso do sentido dos acontecimentos. Para tanto, foram

    agrupados os registros de diferentes naturezas gerados durante a pesquisa de

    campo. Tal agrupamento, que prev um distanciamento em busca da significao,

    foi feito para permitir a triangulao e a descrio do campo. Devido a essa

    necessidade de descrever o campo, foi iniciada a anlise documental pelas cartas,

    as quais, segundo minha hiptese, forneceriam elementos para a caracterizao

    dos alunos, da escola e do bairro. Como conseqncia dessa observao, houve

    a reconfigurao do objeto de pesquisa.

    Ao olhar os registros sob a perspectiva da sociolingstica interacional, foi

    possvel perceber a diminuio da assimetria entre interlocutores que ocupam

    papis institucionais to distintos professor e aluno e assimtricos pela prpria

    natureza. Tendo em vista uma concepo bakhtiniana de gnero, foi constatado

    que, durante as trocas de mensagens, aquilo que primeiramente se assemelhou a

    um bilhete, foi se aproximando do gnero carta pessoal. Isso pde ser percebido

    devido mudana da funo da escrita bilhete para o contato inicial, carta para

    dar continuidade conversa e, conseqentemente a mobilizao, por parte dos

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 42

    alunos, de recursos lingstico-discursivos prprios desse gnero presentes nas

    mensagens escritas por mim.

    1.3.2. Caracterizao das mensagens Em um primeiro momento, as mensagens trocadas com meus alunos foram

    categorizadas como bilhete, pois eram curtas. Quanto ao contedo, as

    mensagens podem ser consideradas uma rplica ao discurso desqualificador a

    respeito dos alunos, da escola e do bairro que ouvi quando, antes de assumir as

    aulas, visitei a escola. Se o que foi ouvido e compreendido de modo ativo

    encontra, cedo ou tarde, um eco no discurso ou no comportamento do ouvinte

    (BAKHTIN, 1997, p.291), h um eco daquele discurso desqualificador na minha

    deciso de escrever para os alunos. Assim, ao tentar construir a minha chegada

    na escola como algo positivo, ao convidar aquelas crianas/adolescentes a me

    dizerem quem eram, do que gostavam, o que achavam sobre a escola, estava,

    nesse primeiro momento, alm de tentando lhes dar outras oportunidades de

    dizerem o que pensavam, posicionando-me de uma forma mais receptiva. Isso fez

    com que o estilo das mensagens, tanto as escritas por mim quanto pelos alunos,

    fosse pouco formal e interativo. A pouca formalidade se deve ao fato de ter me

    proposto a estabelecer um tipo de interao que aproximasse, professora e

    alunos, enquanto interlocutores. por essa razo que encontrado Querida

    Suzana. e no Prezada Aluna, Beijocas e no Atenciosamente. um estilo

    altamente interativo, no sentido de que pressupe um envolvimento entre os

    interlocutores, o qual marcado, sobretudo, nas expresses de abertura e

    encerramento. A seguir, apresento um exemplo das mensagens enviadas logo no

    incio.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 43

    Exemplo 1 - Milene para Suzana 07/11/04 Querida Suzana19! Espero que voc esteja bem. Eu estou e escrevo justamente para dizer o quanto fico feliz por estar aqui e, principalmente, por ter a oportunidade de conhec-la. Gostaria muito que voc respondesse esse bilhetinho contando mais coisas sobre voc: coisas que voc gosta de fazer, matria que mais gosta, etc. Sinta-se vontade para responder ou no. Beijocas Prof Milene Notei que voc e a Sabrina fazem aniversrio no mesmo dia, mas vocs no seriam irms, seriam?

    Apesar das semelhanas entre as primeiras mensagens, houve uma

    tentativa de individualizao, que se deve ao fato de todas estarem manuscritas e

    direcionadas a cada aluno individualmente. Alm disso, no decorrer do perodo de

    troca, medida que as mensagens foram se individualizando, elas adquiram

    caractersticas que as tornaram ainda mais prximas do gnero carta pessoal.

    Se a carta pessoal considerada uma produo de linguagem socialmente

    situada, que engendra uma forma de interao particular (SILVA, 2002, p.79), as

    minhas mensagens e as de meus alunos tornaram-se, resguardadas as diferenas

    provocadas pela situao de comunicao, um tipo de carta pessoal. Quando

    atribu ao que, a princpio chamei de bilhete, a funo de me aproximar dos

    alunos, apontei para uma das caractersticas desse gnero que a de constituir

    um espao propcio para o incio de novas relaes sociais (SILVA, 2002,p.13).

    Mesmo no tendo sido produzidas na escola e nem como uma atividade

    escolar programtica, foi no tempo e no espao escolar que as mensagens

    19 Todos os nomes dos participantes, exceto o meu, so fictcios.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 44

    circularam, isto , a primeira mensagem foi entregue no meu primeiro dia como

    professora na escola e, assim que foi encerrado o ano letivo, as trocas cessaram.

    A presena de expresses como dar aula nesta escola e o fato de assinar como

    Prof. explicitam a esfera na qual as cartas circularam, conforme exemplo (2).

    Exemplo 2 - Milene para Joo

    07/11/04 Oi Joo Sabe por que eu estou escrevendo? S para saber se voc est bem e, principalmente, para dizer o quanto me sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta escola. Sabe como eu ficaria anda mais feliz? Se voc tambm escrevesse para mim. Abraos! Prof.a Milene

    Em meu plano inicial, as primeiras mensagens direcionadas aos alunos

    deveriam ser entregues no final da aula, mas dada a experincia positiva em uma

    das turmas, decidi que todos os alunos receberiam a mensagem no incio, antes

    do comeo da aula propriamente dito. No houve nenhuma ocorrncia de troca

    em outro espao que no fosse o da sala de aula. Mesmo que nos

    encontrssemos no corredor, no ptio, na sala dos professores, tanto eu quanto

    os alunos deixvamos para entregar a folha com a mensagem quando

    estivssemos na sala de aula.

    Por mais informal que seja a interao que se estabelece nessas cartas, ela

    se d entre uma professora e seus alunos e no entre amigos, parentes, etc. Isso textualmente marcado na assinatura, a qual acompanhada pela

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 45

    expresso Prof., que designa o papel institucional que por mim exercido, ou

    pela palavra aluno, a qual tambm est presente em 24% das mensagens

    escritas pelas crianas/adolescentes.

    Na passagem em que justifico a escrita da mensagem Sabe por que eu

    estou escrevendo? / S para saber se voc est bem e, / principalmente, para

    dizer o quanto me/ sinto feliz por te conhecer e por dar aula nesta escola.

    Exemplo (2), fica evidente o meu intuito de construir, atravs da escrita, um

    espao comum que possibilitasse uma interao franca e em um tom cordial entre

    ns. No trecho exemplificado, as expresses em destaque so usadas como

    modalizadores e so estrategicamente utilizadas a fim de amenizar as tenses

    verificadas em sala de aula, conforme apontado na seo anterior. Nesse

    contexto, o uso do principalmente alm de dar maior visibilidade ao aluno,

    ressalta a importncia da vontade enunciativa. O uso de O quanto enfatiza ao

    destinatrio a intensidade da minha felicidade por estar naquela escola. Partindo-

    se do princpio de que ningum se sentiria feliz em um lugar desagradvel e com

    pessoas desagradveis, em tal enunciado est implcita uma apreciao valorativa

    positiva em relao aos interlocutores.

    No que diz respeito estrutura composicional, tanto o Exemplo (1), quanto

    o Exemplo (2), assim como as demais mensagens do corpus, apresentam:

    abertura, corpo de texto e encerramento como partes fcil e visualmente

    identificveis. Alm disso, nas etapas de abertura e encerramento so

    encontradas seqncias discursivas prototpicas, altamente recorrentes, que

    expressam, de forma clara (...) a natureza do relacionamento dos interlocutores, a

    finalidade que cumpre a interao em curso e, sobretudo, o carter dialogal e

    dialgico desse gnero (...) (SILVA, 2002, p.137).

    Na abertura dos exemplos (1) e (2), que composta pelo cabealho e pela

    saudao, no h indicao do local, apenas uma forma resumida de se colocar a

    data (07/11/04). A ausncia do local pode ser justificada pelo fato de que a

    mensagem foi entregue em mos para interlocutores que compartilhavam o

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 46

    mesmo espao. Na saudao do Exemplo (1), h Querida + nome; no Exemplo

    (2), Oi + nome, nos demais registros aparece tambm Ol + nome.

    Essas seqncias discursivas prototpicas utilizadas na saudao servem

    para iniciar a interao, expressando uma atitude de polidez em relao ao

    destinatrio, bem como indicando o tipo de relacionamento entre os interlocutores,

    neste caso de uma forma no to institucionalizada como geralmente ocorre entre

    professor-aluno(s). O querido(a) uma maneira afetuosa de se dirigir ao

    interlocutor, mesmo quando, como nesse caso, h um contato inicial para o

    estabelecimento de novas relaes. J o OI utilizado com muita freqncia em

    gneros orais ou em gneros em que h forte influncia da oralidade. O uso

    dessas expresses evidencia a pouca formalidade da interao em curso, que

    uma conseqncia da prpria escolha do gnero, pois os gneros ntimos, tais

    como a carta pessoal, repousam numa mxima proximidade entre os

    interlocutores. Atravs do uso dessas expresses, o locutor manifesta confiana

    no seu destinatrio, na sua simpatia, na sensibilidade e boa vontade de sua

    compreenso responsiva (BAKHTIN, 1997, p.323).

    somente no corpo do texto que ficam evidentes as duas aes

    discursivas comuns a todas as primeiras mensagens por mim enviadas: informar o

    aluno sobre a minha representao positiva a respeito dele e da escola, assim

    como solicitar que a mensagem fosse respondida atravs da escrita.

    Para encerrar a carta, so utilizadas vrias expresses, tais como

    Beijocas, exemplo (1) e Abraos, Exemplo (2), as quais, alm de sinalizarem o

    fim da carta, demonstram a tentativa de minimizar o distanciamento que

    geralmente existe entre professor e aluno. Na assinatura, evidenciada a autoria,

    mas tambm explicitado o papel institucional que me cabido, o de professora.

    As expresses formulaicas de abertura e encerramento sinalizam tambm

    diferenas de tratamento relacionadas ao gnero do interlocutor. Assim comum

    encontrar: Querida (nome).... Beijocas, quando a mensagem se destina a uma

    aluna (Exemplo 1); Oi (nome)... Abraos (e/ou Beijos/Beijo), (Exemplo 2),

    quando a mensagem se destina a um aluno.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 47

    O Exemplo (3), a seguir, bastante representativo em relao s demais

    cartas que recebi dos alunos em resposta a minha primeira mensagem. Exemplo 3 - Joo para Milene

    DE Joo PARA Milene Professora Milene gostei muito da sua aula acho voc muito legal e gentil . Nunca esperei em ter uma professora como voc espero que seje sempre assim e eu queria te conhecer desde o primeiro dia de aula mas no teve aula com voce E espero que Goste Muito desta cartinha Beijo e Abraos Responda se voc gostou da minha carta Sim ou no

    Na mensagem acima aparecem marcas da esfera na qual a interao se

    d pelo uso das expresses professora, aula. O fato de o aluno ter devolvido a

    minha carta, juntamente com a sua resposta e ter reproduzido no post scriptum

    um teste de mltipla escolha, indica que o aluno parece lanar mo de uma

    estratgia j conhecida. Na escola, ao final da resoluo de um exerccio, deve-se

    devolver professora tanto a folha com as perguntas, quanto a que contm as

    respostas. A presena do teste de mltipla escolha, que remete ao questionrio

    escolar, evidencia a relao intergenrica que se d nas mensagens. Alm disso,

    so encontradas marcas de uma escrita escolarizada na forma como o aluno faz a

    paragrafao. Ele indica a mudana de pargrafos de trs formas diferentes. O

    espao que dado antes da primeira palavra do pargrafo e o intervalo marcado

    por uma linha em branco so constantes. H ainda um ponto antes da palavra

    nunca, recurso muito utilizado nas sries iniciais.

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 48

    A referncia ao tempo e espao escolar, por exemplo, aparece quando

    Joo diz eu queria te conhecer desde o primeiro dia de aula. Com base nessa

    mesma passagem, presente no corpo do texto, observa-se que o aluno aderiu ao

    meu posicionamento receptivo, pois ele manifesta seu apreo em relao a minha

    presena na escola a ponto de desejar que isso tivesse ocorrido desde o incio do

    ano. Alm disso, ele tambm solicita uma resposta, ou seja, a escrita de uma nova

    carta.

    No que diz respeito estrutura composicional, verifica-se que na abertura

    no h indicao do local, nem da data, mas sim um outro tipo de cabealho DE:

    / PARA o qual comum em bilhetes e recados. Esse tipo de construo

    encontrado em 28% das cartas produzidas pelos alunos. Assim como nos

    exemplos (1) e (2), a omisso do local no cabealho pode ser atribuda situao

    imediata em que se deu a troca: em mos, na sala, antes do incio da aula. No

    encerramento aparece a expresso de despedida Beijos e Abraos e no h a

    assinatura, pois o remetente foi indicado no cabealho.

    Concluindo o captulo

    Neste captulo me propus a esclarecer os aspectos metodolgicos que

    embasaram a pesquisa. Antes de caracterizar os participantes professora e

    alunos preocupei-me em relatar o contexto em que as mensagens foram

    geradas, isso com o intuito de evidenciar que elas foram uma atividade

    extraclasse utilizada estrategicamente para estabelecer uma interao

    diferenciada entre professora e aluno(s). Quando falei a respeito da construo do

    objeto de pesquisa, salientei que ele apenas um entre vrios possveis e que

    essa construo esteve inteiramente relacionada a minha opo pela metodologia

    da pesquisa-ao. Por fim, ao caracterizar as mensagens, o focalizei as

    estratgias interacionais tpicas do(s) gnero(s) que foram mobilizados bilhete e

    carta que do o tom cordial e amigvel interao que se estabeleceu entre

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

  • 49

    professora e aluno(s), um tom improvvel naquele contexto, no momento de

    minha chegada.

    CAPTULO II A INTERAO ENTRE PROFESSOR E ALUNO NO CONTEXTO ESTUDADO

    O conceito de interao verbal que permeia este trabalho o proposto por

    Bakhtin (1977 [2004], p. 23). Segundo esse autor, a interao verbal que

    constitui a realidade fundamental da lngua e no o sistema abstrato de formas

    lingsticas objetivismo abstrato nem a enunciao monolgica subjetivismo

    individualista.

    Nesse sentido, a atividade enunciativa encarada como o resultado da

    interao entre indivduos socialmente organizados. Mesmo no havendo um

    interlocutor real, no sentido de fisicamente presente, esse pode ser representado

    pela imagem que o locutor possui a respeito de um representante do grupo para o

    qual destina seu enunciado. Diferentemente do que postula o objetivismo abstrato,

    que concebe a lngua como um sistema objetivo, externo e independente da

    conscincia individual, e do subjetivismo individual, no qual a enunciao tida

    como um ato puramente individual, Bakhtin defende a tese de que a enunciao

    de natureza social.

    Se a enunciao se d na interao entre indivduos socialmente

    organizados, ento a palavra, signo20 ideolgico por excelncia, procede de

    algum e se dirige a algum, como uma ponte lanada entre mim e o outro

    (BAKHTIN, 1977 [2004]). Com isso, a estrutura da enunciao determinada

    Construindo com a escrita interaes improvveis entre professora e alunos do Ensino Fundamental de uma escola pblica da periferia de Campinas

    20 Bakhtin (1977 [2004]) define o signo como, por natureza, vivo, mvel, plurivalente e ideolgico. Para ele a palavra o signo ideolgico por excelncia porque ela registra as menores variaes nas relaes sociais, na ideologia do cotidiano que exprime a vida corrente, o lugar onde se formam e se renovam as ideologias constitudas.

  • 50

    tanto pela situao imediata em que se d a interao, quanto pelo meio social

    mais amplo.

    Em vrios estudos sobre a interao verbal na aula de LM, tais como

    Erickson (1982), Cazden (1988), Bortolotto (1998), Costa (2000), Matncio (2001),

    Cox & Assis-Peterson (2001), Macedo (2005), entre outros, percebe-se alguma

    influncia da concepo bakhtiniana de linguagem e interao verbal. Esses

    trabalhos, que se filiam a cor