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O BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-RECLUSÃO E SUA INTERPRETAÇÃO SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL: Por Daniel Mourgues Cogoy* I – INTRODUÇÃO: O auxílio-reclusão é o benefício previdenciário devido aos dependentes do segurado recolhido à prisão. Sua existência é motivo de debate na doutrina previdenciária. Para Sérgio Pinto Martins 1 , “Eis um benefício que deveria ser extinto, pois não é possível que a pessoa fique presa e ainda a sociedade como um todo tenha de pagar um benefício à família do preso, como se este tivesse falecido. De certa forma, o preso é que deveria pagar por se encontrar nesta condição, principalmente por roubo, furto, tráfico, homicídio, etc.Entretanto, quer parecer que o presente instituto deve ser interpretado em harmonia com os princípios norteadores da Constituição Federal. Primeiramente, tem-se que o instituto em tela atende ao comando do art. 226 da CF, o qual prevê “especial proteção” à família por parte do Estado 2 . Na seara previdenciária, a família é protegida por meio dos benefícios de pensão por morte e auxílio-reclusão. Em ambos o risco social atendido é a perda da fonte de subsistência do núcleo familiar, na primeira hipótese em razão do óbito do segurado, na segunda, por ocasião de sua detenção prisonal. Sendo assim, o auxílio-reclusão é prestação pecuniária, de caráter substitutivo, destinado a suprir, ou pelo menos minimizar, a falta do provedor as necessidades econômicas dos dependentes. 1 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. Editora Atlas. 22ª Edição. São Paulo. 2005, página 414. 2 FORTES, Simone Barbisan. Direito da Seguridade Social. Editora Livraria do Advogado. 1ª Edição. Porto Alegre, 2005. Página 139.

Artigo interpretação Daniel Auxílio Reclusão

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O BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-RECLUSÃO E SUA

INTERPRETAÇÃO SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL:

Por Daniel Mourgues Cogoy*

I – INTRODUÇÃO:

O auxílio-reclusão é o benefício previdenciário devido

aos dependentes do segurado recolhido à prisão. Sua existência é motivo de

debate na doutrina previdenciária. Para Sérgio Pinto Martins1, “Eis um

benefício que deveria ser extinto, pois não é possível que a pessoa fique presa

e ainda a sociedade como um todo tenha de pagar um benefício à família do

preso, como se este tivesse falecido. De certa forma, o preso é que deveria

pagar por se encontrar nesta condição, principalmente por roubo, furto,

tráfico, homicídio, etc.”

Entretanto, quer parecer que o presente instituto deve

ser interpretado em harmonia com os princípios norteadores da Constituição

Federal.

Primeiramente, tem-se que o instituto em tela atende

ao comando do art. 226 da CF, o qual prevê “especial proteção” à família por

parte do Estado2. Na seara previdenciária, a família é protegida por meio dos

benefícios de pensão por morte e auxílio-reclusão. Em ambos o risco social

atendido é a perda da fonte de subsistência do núcleo familiar, na primeira

hipótese em razão do óbito do segurado, na segunda, por ocasião de sua

detenção prisonal. Sendo assim, o auxílio-reclusão é prestação pecuniária, de

caráter substitutivo, destinado a suprir, ou pelo menos minimizar, a falta do

provedor as necessidades econômicas dos dependentes.

1 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. Editora Atlas. 22ª Edição. São Paulo. 2005,

página 414. 2 FORTES, Simone Barbisan. Direito da Seguridade Social. Editora Livraria do Advogado. 1ª Edição. Porto

Alegre, 2005. Página 139.

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Além de proteger a instituição familiar, o benefício em

análise está amparado no art. 5º, XLV, também da Constituição Federal:

Nenhuma pena passará da pessoa

condenado, podendo a obrigação de reparar o

dano e a decretação do perdimento de bens ser,

nos termos da lei, estendidas aos sucessores e

contra eles executadas, até o limite do valor do

patrimônio transferido.(sem grifo no original).

De fato, cabe ao condenado arcar com as

consequências de seu delito. Porém esta responsabilidade não se estende aos

seus familiares. Ora, não bastasse o sofrimento da família em ser alijada do

convívio do recluso, em razão de evento para o qual não concorreu, a prisão

do segurado pode gerar toda uma série de consequências econômicas para

seus dependentes. Cabe ao Estado o dever de zelar pela minimização de tais

prejuízos.

Tal instituto encontra consonância também no princípio

da dignidade humana constante no art. 1º, inciso III, bem como no

compromisso de erradicação da pobreza, elencado no art. 3º, e no princípio da

solidariedade social. Em análise sistemática cabe ao Estado, conjuntamente

com a sociedade, proteger, contra eventuais infortúnios, a família agora

desamparada, tal qual se dá com a pensão por morte. Assim sendo, com o

devido respeito aos entendimentos contrários, a previsão do legal do benefício

em tela é plenamente justificável.

II – DOS REQUISITOS PARA CONCESSÃO DO

BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-RECLUSÃO:

O artigo 80 da Lei nº 8.213/91 prevê como

pressupostos à obtenção do benefício de auxílio-reclusão: a) o recolhimento do

segurado à prisão; b) o não-recebimento de remuneração da empresa ou de

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benefício previdenciário; c) a qualidade de dependente do requerente; d) a

prova de que o presidiário era, ao tempo de sua prisão, segurado junto ao

INSS. Além desses requisitos, a Emenda Constitucional nº 20/98 alterou a

redação do art. 201, IV, exigindo ser o segurado oriundo de família de baixa

renda. Não é necessária carência de contribuições, tal qual ocorre no benefício

de pensão por morte.

O recolhimento à prisão deve ser demonstrado por

meio de certidão do órgão prisional ao qual o segurado se encontra recolhido.

A lei não faz distinção quanto à natureza da prisão (se cautelar ou decorrente

de sentença condenatória com trânsito em julgado), nem quanto ao seu

regime. A doutrina, porém, têm entendido que, nas hipóteses de regime

aberto, descabe a concessão do benefício, em razão de se encontrar o

segurado apto para o retorno ao trabalho. Também é indiferente tratar-se de

prisão em razão de ilícito cível, penal ou administrativo. A condição de recluso

deve ser demonstrada, por certidão, trimestralmente (RPS, art. 117, § 1º),

sendo que, em caso de fuga, o benefício deve ser suspenso.

O termo inicial para concessão do benefício é a data do

recolhimento do segurado à prisão, desde que o pedido seja protocolado em

até trinta dias do fato. Caso isto não ocorra, terá por data de início a do

requerimento administrativo. O termo final é o livramento do apenado, ou

progressão para regime aberto. Ressalte-se que a liberdade do segurado não é

obstáculo ao recebimento de parcelas devidas, mas não pagas na época

própria.

O dependente não faz jus ao auxílio-reclusão caso o

segurado recluso esteja em gozo de auxílio-doença, aposentadoria, abono de

permanência em serviço, ou, ainda, em exercício de atividade laboral

remunerada.

Exige-se, por parte do beneficiário, a condição de

dependente, conforme previsto no art. 16 da Lei nº 8.213/91. Finalmente,

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basta a prova de que o recluso, ao tempo da prisão, mantinha qualidade de

segurado junto ao INSS.

III – DA BAIXA RENDA COMO PRESSUPOSTO PARA

OBTENÇÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-RECLUSÃO:

No que tange à baixa renda do segurado, trata-se de

inovação prevista EC 20/98. Primeiramente, tem-se que o legislador não

andou bem ao limitar a concessão do auxílio-reclusão. Ora, quer parecer

evidente estar-se diante de uma restrição inconstitucional, face não apenas

aos princípios já citados (proteção à família, diminuição dos efeitos reflexos da

pena, erradicação da pobreza e solidariedade social), mas também ao princípio

da isonomia. A emenda em análise criou distinção entre segurados da

previdência, sem explicitar os fundamentos para tal procedimento. Note-se

que, para a família do recluso, é indiferente a renda familiar anterior ao

recolhimento do segurado à prisão. Não importa quanto este recebesse a título

de salário, certo é que, uma vez preso, deixará de receber qualquer quantia.

Não há fundamento, portanto, para a diferenciação realizada pelo legislador.

Além disso, insta asseverar que, se tal distinção

pudesse ser admitida, teria de ser fundada em dados objetivos. Entretanto a

emenda nº 20/98 traz em seu bojo um valor aleatório, fixado de forma

arbitrária.

Por estes motivos, tem-se que o requisito “baixa

renda”, por discriminatório, e em razão de seu descompasso com a

Constituição Federal, não deve ser levado em conta.

Impõe-se, porém, a análise em detalhe da referida

Emenda Constitucional, a começar por seu artigo 1º, o qual determinou a

seguinte redação à Constituição Federal:

“Art. 201. A Previdência Social será organizada sob

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a forma de regime geral, de caráter contributivo e

filiação obrigatória, observados critérios que

preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e

atenderá, nos termos da lei a:

IV – Salário-família e Auxílio-reclusão para os

dependentes dos segurados de baixa-renda.

Mais adiante, em seu artigo 13º, assim determinou:

Até que a lei discipline o acesso ao salário-família

e auxílio-reclusão para os servidores, segurados e

seus dependentes, esses benefícios serão

concedidos apenas àqueles que tenham renda

bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00

(trezentos e sessenta reais), que, até a publicação

da lei, serão corrigidos pelos mesmos índices

aplicados aos benefícios do regime geral de

previdência social.

Ao analisar aos artigos em comento, é bastante claro

que o termo “baixa renda” se refere aos dependentes do segurado, e não a ele

próprio. Aliás, é lógico que assim seja, mesmo porque, como já antes

asseverado, a proteção é destinada à família do preso, e não a ele próprio.

O artigo 116 do Decreto 3.048/99, de redação pouco

feliz, veio a restringir ainda mais as hipóteses de concessão do benefício. Leia-

se:

O auxílio-reclusão será devido, nas mesmas

condições da pensão por morte, aos dependentes

do segurado recolhido à prisão que não receber

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remuneração da empresa nem estiver em gozo de

auxílio-doença, aposentadoria ou abono de

permanência em serviço, desde que seu último

salário de contribuição seja inferior ou igual a R$

360,00 (trezentos e sessenta reais).3

Em primeiro lugar, cabe salientar que a remessa da

aferição da baixa renda familiar ao valor do último salário-de-contribuição pode

não demonstrar a situção de penúria da família. Basta lembrar que o segurado

pode manter sua filiação ao regime da Previdência Social, mesmo quando

desempregado. Assim sendo, como bem tem interpretado a jurisprudência4,

deve ser analisada a renda familiar quando da detenção do segurado, e não

quando do percebimento de sua última remuneração.

Em segundo lugar, o art. 84, IV, da Carta Magna

determina que somente para cumprir dispositivos legais pode o Executivo

expedir regulamentos. Daí resulta que somente por lei é possível fazer alguma

restrição aos direitos de propriedade e liberdade. O regulamento não pode

contrariar a lei, estando subordinado a ela, sob pena de ferir-se o princípio da

legalidade (art. 5.º, II e art. 37, I, ambos da CF).

Portanto, é ilegal o Decreto nº 3.048/99 naquilo que vai

além do disposto no art. 13 da EC 20/98. Se tal norma constitucional não

dispôs acerca de serem considerados os vencimentos do segurado recluso, não

pode o regulamento fazê-lo56.

3 R$ 586,19 (valor em vigor a partir de 01/06/2004). 4 Acordão Origem: TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO Classe: AC - APELAÇÃO CIVEL – 383840 Processo:

200004011386708 UF: RS Órgão Julgador: SEXTA TURMA Data da decisão: 20/03/2001 Documento: TRF400081346 Fonte DJU DATA:22/08/2001 PÁGINA: 1119 DJU DATA:22/08/2001 Relator(a) JUIZ JOÃO SURREAUX CHAGAS Decisão A TURMA, POR UNANIMIDADE, DEU PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO E À REMESSA OFICIAL, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. Ementa PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO.É devido o auxílio-reclusão aos dependentes do segurado que não tiver salário-de-contribuição na data do recolhimento à prisão por estar desempregado, sendo irrelevante circunstância anterior do último salário percebido pelo segurado ultrapassar o teto previsto no art. 116 do Decreto nº 3.048/99. Apelação e remessa oficial providas em parte.

5 Ementa PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 13 DA EC 20/98. BAIXA RENDA DOS DEPENDENTES. ART. 116 DO DECRETO 3048/99. LIMITE REGULAMENTADOR EXTRAPOLADO. VALOR DO BENEFÍCIO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

1. O auxílio-reclusão visa a proteger os dependentes do segurado, sendo que a renda a ser considerada na época da prisão é a dos seus dependentes e não a do segurado. Essa é a interpretação que se extrai do disposto no artigo 13 da EC 20/98 quando refere que esses benefícios serão concedidos apenas

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IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O benefício de auxílio-reclusão encontra amparo nos

princípios da proteção a família, individualização da pena, solidariedade social,

dignidade humana e erradicação da pobreza. Visa atender ao risco social da

perda da fonte de renda familiar, em razão da prisão do segurado, e tem por

destinatários os dependentes do recluso.

É inconstitucional a restrição da concessão do benefício

aos dependentes de baixa renda do segurado, em razão da aplicação do

princípio da isonomia.

Na análise da concessão do benefício, deve ser

analisada a renda dos dependentes do segurado, e não dele próprio, haja vista

que a redação do art. 116 do Decreto nº 3.048/99 ferir o princípio da

legalidade, uma vez estar em descompasso com a redação prevista nos arts.

1º e 13 da Emenda Constitucional nº 20/98.

* O autor é Defensor Público da União, Professor de Direito Civil da Fundação

Escola Superior da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e Professor de

Direito Civil da Faculdade Atlântico Sul em Pelotas/RS.

àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00.

2. Assim, o art. 116 do Decreto 3048/99 extrapolou a sua função regulamentadora ao estabelecer que o auxílio-reclusão só seria devido quando o salário de contribuição do segurado fosse inferior ou igual ao R$ 360,00, pois o benefício de auxílio-reclusão, como é sabido, é concedido aos dependentes do segurado e não a este.

3. Considerando-se que, na época da prisão do segurado, os seus dependentes não trabalhavam, não possuindo qualquer renda, é de ser-lhes concedido o benefício em valor a ser calculado nos termos dos arts. 28, 29, 33 e 75, desde a data do requerimento administrativo.

4. Nas ações previdenciárias, os honorários advocatícios devem ser fixados no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, assim consideradas as parcelas devidas até a prolação da sentença, excluídas as parcelas vincendas, na forma da Súmula 111 do STJAcordão Origem: TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO Classe: AC - APELAÇÃO CIVEL Processo: 200304010163970 UF: PR Órgão Julgador: SEXTA TURMA Data da decisão: 19/10/2005 Documento: TRF400116173 Fonte DJU DATA:16/11/2005 PÁGINA: 937 Relator(a) JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA Decisão A TURMA, POR UNANIMIDADE, NEGOU PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO DA PARTE AUTORA E DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DO INSS E À REMESSA OFICIAL, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.

6 Em igual sentido a Súmula nº 05 da Turma Regional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais: “Para fins de concessão de auxílio-reclusão, o conceito de renda bruta mensal se refere á renda auferida pelos dependentes e não a do segurado recluso.”