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LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro "E Agora Falamos Nós": Literatura Feminina Afro-brasileira[1] Moema Parente Augel Lá vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela. Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela. Bela sei que sou e vou bela. [...] E lá vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser bela. Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela, bela Sônia Fátima Conceição, Cadernos Negros, n° 6, 1983, p. 55. Não é simples nem fácil dizer um "sim" para si mesma, estar feliz e satisfeita com a própria aparência exterior. Menos comum ainda é esse "sim" ser exclamado em alto e bom som, exigindo uma certa ousadia e muita autoconfiança. E de onde tira essa mulher a coragem para invalidar as conhecidas regras da estética da beleza feminina e determinar ela mesma os seus parâmetros, pondo em descrédito sistemas e ordem estabelecidos? São muitas as transgressões às normas encontradas no texto em epígrafe. Afirmar a sua própria beleza já causa estranheza e muito mais quando são nomeados os atributos que a fazem auto admirar-se e auto estimar-se. Uma tal afirmação é feita com a patente intenção de chocar os leitores, não acostumados com explicitações desse gênero e muito menos com o fato de uma mulher, ao declarar abertamente que se acha bela, nomear as características dessa beleza: "cabelo pixaim, bunda grande". O traseiro volumoso é um dos atributos considerados claramente como característico da "raça" africana, repudiado ou admirado, mas em geral não de forma explícita, a não ser em caricaturas ou ligado a alguma conotação erótica ou mesmo lasciva, constituindo de certo modo um tabu, algo de que não se fala abertamente, ou apenas em conversas "entre homens?[2] Igualmente surpreendente e inesperado é o fato de a voz que proclama tão imodestamente a própria beleza ser a voz de uma mulher afro-brasileira, uma mulher negra que se quer negra e que faz questão de ressaltar o seu fenótipo. A transgressão gramatical, a desobediência à regra da colocação do pronome átono, também é proposital, ferindo os ouvidos dos puristas. O verbo de movimento, algumas vezes repetido, revela também a firme decisão de romper o passivismo, a subserviência, decisão de tomar nas próprias mãos o seu destino. Lá vai ela, a mulher negra, bela, sem qualquer tipo de trela, de freio ou receio, que a impeça de ser ela mesma, de autoafirmar-se.

Artigo Literatura negra feminina brasileira - E agora falamos nós

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    "E Agora Falamos Ns": Literatura Feminina Afro-brasileira[1]

    Moema Parente Augel

    L vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela. Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela.

    Bela sei que sou e vou bela. [...] E l vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser bela.

    Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela, bela

    Snia Ftima Conceio, Cadernos Negros, n 6, 1983, p. 55. No simples nem fcil dizer um "sim" para si mesma, estar feliz e satisfeita com a prpria aparncia exterior. Menos comum ainda esse "sim" ser exclamado em alto e bom som, exigindo uma certa ousadia e muita autoconfiana. E de onde tira essa mulher a coragem para invalidar as conhecidas regras da esttica da beleza feminina e determinar ela mesma os seus parmetros, pondo em descrdito sistemas e ordem estabelecidos? So muitas as transgresses s normas encontradas no texto em epgrafe. Afirmar a sua prpria beleza j causa estranheza e muito mais quando so nomeados os atributos que a fazem auto admirar-se e auto estimar-se. Uma tal afirmao feita com a patente inteno de chocar os leitores, no acostumados com explicitaes desse gnero e muito menos com o fato de uma mulher, ao declarar abertamente que se acha bela, nomear as caractersticas dessa beleza: "cabelo pixaim, bunda grande". O traseiro volumoso um dos atributos considerados claramente como caracterstico da "raa" africana, repudiado ou admirado, mas em geral no de forma explcita, a no ser em caricaturas ou ligado a alguma conotao ertica ou mesmo lasciva, constituindo de certo modo um tabu, algo de que no se fala abertamente, ou apenas em conversas "entre homens?[2] Igualmente surpreendente e inesperado o fato de a voz que proclama to imodestamente a prpria beleza ser a voz de uma mulher afro-brasileira, uma mulher negra que se quer negra e que faz questo de ressaltar o seu fentipo. A transgresso gramatical, a desobedincia regra da colocao do pronome tono, tambm proposital, ferindo os ouvidos dos puristas. O verbo de movimento, algumas vezes repetido, revela tambm a firme deciso de romper o passivismo, a subservincia, deciso de tomar nas prprias mos o seu destino. L vai ela, a mulher negra, bela, sem qualquer tipo de trela, de freio ou receio, que a impea de ser ela mesma, de autoafirmar-se.

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    O homem e a mulher negros sabem o quanto sua aparncia incomoda e os segrega num mundo centrado nos valores "brancos". A exaltao dos atributos fsicos tipicamente negros mais um recurso para a desconstruo das afirmaes que negam o negro em sua totalidade, que procuram destitu-Io de seu fentipo, ao consider-lo negativo ou inferior aos padres de beleza arianizada. A poetisa rejeita essa viso negativa do seu exterior e passa a enumerar suas caractersticas fsicas, invertendo-lhes a simbologia, emprestando-lhes um valor positivo. Quem so essas mulheres negras que decidiram quebrar o secular silncio em que estavam envolvidas e usar do papel e da palavra para a sua auto revelao? Se a literatura afro-brasileira ainda continua a ser pouco ou quase nada conhecida ou reconhecida, sobretudo dentro do Brasil mesmo, a literatura das mulheres negras at hoje, com pouqussimas excees, tem sido relegada completa desconsiderao. E no so to raras as afro-brasileiras que escrevem, que procuram explicitar pela palavra o seu estar-no-mundo o seu "ser-negra-no mundo.[3] Em meio aos muitos questionamentos que a passagem de milnio tem produzido est a questo do cnone literrio, hoje em dia no mais aceito como autoritariamente determinado a partir dos modelos da cultura hegemnica, voltada para a esttica europeia ultrapassada que, da mesma forma como ditava o modelo de beleza fsica ideal, ditava tambm os parmetros do que deveria ser considerado como "belas letras: O ps-modernismo nos catapultou a uma poca de incertezas e indefinies, onde o provisrio, a desconstruo do preestabelecido, a contestao, so mais pulsantes e instigantes do que a madorna a que a palavra autoritria de terminante da legitimidade dos discursos culturais tinha relegado as culturas menores, tomando o termo na acepo utilizada por Deleuze e Guarrari (1978): no se trata de uma literatura de um idioma menor, e sim uma literatura que uma minoria faz no seio de uma lngua maior[4]. Da mesma forma, quando se trata da cultura afro-brasileira ou de afrodescendentes de modo geral, no possvel deixar de levar em conta o contexto ps-colonial. O prefixo "ps" evidencia a poca depois das lutas de independncia e envolve as diferentes teorias do ps-colonialismo. Academicamente, o termo "ps-colonialismo" faz referncia a uma srie de estudos centrados nos efeitos da colonizao sobre as culturas e sociedades descolonizadas, estando estreitamente imbricados com a teoria ps-modernista. Dentro desse contexto, interessa-nos aqui a autor revelao das culturas e dos segmentos sociais perifricos. O centro da civilizao europeia deixa, no final do sculo vinte, de ter prioridade e esse "descentramento", segundo os tericos do ps-modernismo, traz como consequncia a emergncia das margens incluindo-se a todas as minorias raciais, as mulheres e os homossexuais.[5] Tem-se presenciado a politizao e a auto conscientizao de segmentos at agora marginalizados pela sociedade, que passaram a reclamar seus direitos. Helena Parente Cunha lembra, no prefcio de seu livro Alm do cnone (2004), que as especificidades do literrio abriram as portas a fim de dar passagem para construes discursivas provenientes de fontes afastadas das elites cultas. Hoje, pode-se ouvir um sem-nmero de vozes, dos mais variados timbres, modulaes e sotaques, mas esse lugar, conquistado no grito,

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    constitui vitria sobre as hierarquias do antigo sistema. E, se bem que existe o perigo de uma padronizao e de um aplainamento das individualidades devido aos efeitos padronizantes da globalizao, prossegue Helena Parente Cunha, emergem as manifestaes em defesa da identidade individual ou de alguma coletividade que (...) no deixa de ser uma tomada de posio contra os poderosos mandantes do mercado (ib., p.19). E agora falamos ns Esse deveria ser o ttulo no Brasil de uma coletnea de poemas escritos por afro-brasileiras, organizada por Miriam Alves, e que h quase urna dcada estava pronta, sem encontrar editor ou um financiador. Esse livro foi finalmente publicado nos Estados Unidos, pela Three Continents Press (Colorado), sob o ttulo: Enfim... Ns/ Finaly Us. Escritoras negras brasileiras contemporneas / Contemporary Black Brazilian Women Writers, numa edio bilngue, portugus e ingls, com uma extensa introduo da tradutora, Carolyn R. Durham, enriquecida com entrevistas feitas com autoras. So 18 mulheres, poetisas de diversas regies do pas, das mais diferentes origens ou formao, que ali se renem para falar do amor e da vida, do ser e do no ser, de sexismo, de erotismo, da auto procura e da prpria identidade, da misria, do racismo e da discriminao. Alm dessa quase vintena de autoras ali reunidas, h muito mais, inclusive contistas e mesmo romancistas inditas. Pode-se dizer que um novo tipo de mulher surge no ltimo quartel do sculo XX. verdade que apenas h relativamente pouco tempo se podem registrar mudanas na posio da mulher no mbito da sociedade urbana brasileira. Movimentos feministas, em suas reivindicaes defendendo a emancipao da mulher, so em grande parte responsveis por isso. Mas esses movimentos no incluem em geral preocupaes de raa e as afro-brasileiras praticamente no esto ali representadas. Se bem que as lutas feministas no Brasil j sejam de longa data, consideradas como das mais vivas e dinmicas da Amrica do Sul, s muito recentemente e de forma espordica se podem registrar mulheres negras nas suas fileiras. As militantes feministas brasileiras pertencem quase sempre s classes mais privilegiadas, tm as suas empregadas domsticas, que so na maioria das vezes negras e, se bem que lhes estejam presentes as dificuldades por que passam as criadas e operrias, triplamente discriminadas pela condio de mulher, de negra e de pobre, no comum que essas sejam includas nos grupos de militncia ou que sejam reivindicadas conjuntamente as exigncias de mais igualdade, mais justia, mais conscincia social em face da especfica discriminao e desvantagens da mulher negra brasileira. As afro-brasileiras que exercem alguma militncia, em qualquer campo cultural ou social, foram e so muito mais influenciadas, direta ou indiretamente, pelos movimentos negros, sociais e urbanos, dos ltimos 30 ou 35 anos. Essas mulheres politizadas e conscientes s pouco a pouco vo aparecendo publicamente para levantarem a voz contra a distribuio tradicional dos papis a elas atribudos. Ainda so uma pequena minoria, quando se encara o vasto conjunto da populao afro-brasileira (que perfaz cerca de 50 % do total da populao do pas). Mas as vozes que escolheram a militncia atravs da literatura j so em nmero suficiente para incomodarem e chamarem a ateno sobre elas, explicitando a sua ideologia, os seus sonhos e traumas, reclamando o seu espao e o direito de falarem e serem ouvidas[6].

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    Muito se tem referido sobre o silncio ao qual so relegados os segmentos menos favorecidos da sociedade. Silenciar, ignorar as tenses sociais, uma das atitudes mais comuns, o recurso frequentemente empregado quando se trata da questo da discriminao racial, ao lado da omisso, o que tem implicaes decisivas na formao identitria na sociedade multirracial brasileira. Eny Puccinelli Orlandi, em seu livro As formas do silncio (1997), chama a ateno para as diferentes formas de silncio, distinguindo entre aquele que se esconde nos interstcios das palavras, ou aquele que de fato cala o que importante ser dito. As palavras so atravessadas de silncio, elas produzem silncio, o silncio fila por elas, elas silenciam (Orlandi, ib., p. 14). Existe, segundo Eny Orlandi, uma "poltica do silncio", uma dimenso ligada retrica da dominao e da opresso, provocando como contrapartida um comportamento de resistncia. O silenciamento seria revelado de outros significados do dito, desvelando o no dito, o que foi omitido, no verbalizado, permitindo detectar as entrelinhas e os entretons no articulados. Mesmo que me voltem as costas / as minhas palavras de figo / no pararei de gritar / no pararei / no pararei de gritar. So versos de Carlos Assumpo, um dos mais velhos poetas afro-brasileiros, versos iniciais do longo poema intitulado "Protesto", publicado pela primeira vez em 1958, setenta anos depois de sancionada a abolio da escravatura no Brasil e que considerado um dos principais marcos da poesia negra. significativa a frequncia do emprego do verbo gritar no tecido potico dos autores afro-brasileiros. Cristalizando a dor e a revolta de toda uma coletividade, gritando para no morrer de vergonha, como expressa o sugestivo ttulo de um livro de Etienne Grard, que trata da mesma problemtica no Canad[7], o escritor negro que se proclama como tal sabe muito bem do que est escondido atrs das omisses e dos silncios: A palavra negro / trovo calado na voz da nao, diz Cuti no poema "Um trao" (Cuti, 1987, p. 20). Silenciar, afirma Shirley Carreira, um no-dizer histrico e ideolgico, pois depende da posio do sujeito que fala. H um inter-relacionamento significativo entre o silenciado, a memria e o esquecimento. Atravs do instrumento do silenciamento, emudece-se a memria do subalterno, procura-se esquecer a narrao do passado vergonhoso ligado ao trfico e ao cativeiro, esvaziam-se as tentativas de resistncia. O silncio permite gritar mais alto o discurso etnocntrico, homogeneizador e monoltico que se quer nico e verdadeiro. O silncio boicota movimentos que tentam recuperar memrias sufocadas; por exemplo, a histria da populao afrodescendente. Muitas formas de dizer o dito mascaram o no dito, motivam distores, esteretipos, camuflam os conflitos entre os senhores do poder e os que lutam pela sua visibilidade social. Walter Benjamin, ao pr em relevo a histria dos vencidos, convida o leitor a "escovar a histria a contrapelo". No caso especfico do Brasil, significa levar em considerao os interstcios das relaes raciais brasileiras, as concepes que a dominaram e fizeram com que lutas fossem ignoradas e tornadas invisveis, compreender como a histria foi escrita, a que interesses essa narrativa atende, as rupturas e as experincias compartilhadas, os anseios que no se realizaram, ou seja, trazer tona o passado, exercer o exerccio da rememorao.

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    Cuti se quer combatente e lcido, usa sua poesia como arma: meu verso fora paredes (...) meu verso fila de negro / meu verso fila do grito / que os brancos no escutaram / meu verso fala / do dio encolhido / do nosso olhar exprimido (C. N. 1, 1978, "Meu verso, p. 47). Para Walter Benjamin, rememorar no tem a ver propriamente com experincias individuais, isoladas, mas sim com a experincia coletiva que est ligada tradio de um povo, de sua histria. Mas lembrar tambm significa trazer memria: fazer falar um passado coletivo que consegue altear sua voz, ultrapassando todos os silenciamentos e essa a funo primeira e mais envolvente da literatura afro-brasileira: romper com o emudecimento a que at quase agora foi relegada a real histria brasileira, em sua extenso de violncia e de injustia, de resistncia e de revolta. O escritor negro que se proclama como tal faz a seu modo uma reviso da sua herana colonial. Tratarei aqui de textos que se querem literrios, em especial da obra de trs mulheres negras que, a partir da poesia ou da fico, expressam das mais diferentes formas o seu "estar no mundo': com uma indisfarvel carga de emoo e ressentimento, mas tambm de autoconfiana e altivez. Esse devassar da prpria alma, do que h de mais entranhado no corao, uma necessidade imperiosa de denncia e de tentativa de mudana do status quo. A produo literria das afro-brasileiras encontra-se sobretudo nos Cadernos Negros, a prestigiosa publicao coletiva anual, iniciada em 1978 e que alcanou em 2005 o vigsimo oitavo ano, desafiando todas as dificuldades, transformando-se dos simples e modestos primeiros "cadernos" em livros bem acabados e tipograficamente perfeitos, congregando um nmero cada vez maior de autores e autoras negros, de diferentes regies do pas. Desde 1982 que os Cadernos Negros so publicados sob a responsabilidade e graas ao esforo, organizao e ao empenho do grupo Quilombhoje, de So Paulo. Sem lobby de qualquer tipo, sem recursos financeiros prprios e logicamente sem a oportunidade de se ver acobertada por uma editora, a produo coletiva mostrou-se como uma possvel soluo. Foi nos Cadernos Negros que se abriu a oportunidade singular de um espao para dar a voz a um punhado de escritores que, sem acesso a editoras, sem meios prprios para uma edio do autor, como tantas vezes acontece no Brasil, ali encontrar a possibilidade de se fazerem divulgados. O sistema dos Cadernos Negros de um coletivo, cada autor contribuindo financeiramente com o correspondente ao nmero de pginas que publica. O Quilombhoje publica tambm anualmente um livro individual de um dos participantes do grupo. Alm das publicaes dos Cadernos Negros, consegui computar cerca de meia centena de livros individuais, muitos deles pequenos e modestos cadernos de at menos de trinta pginas, mas que circulam em um no pequeno crculo de leitoras e leitores, sobretudo afro-brasileiros. O que mostra o quanto essas publicaes vm responder a uma demanda de um pblico cada vez mais largo, faltando apenas o meio financeiro para essas obras circularem. Um recurso frequente da imprensa alternativa a confeco de posters, cartazes de tamanhos variados, s vezes individuais, mas at mesmo este modesto recurso tem muitas vezes que ser dividido por vrios autores. Algumas das produes das mulheres afro-brasileiras conheceram esse tipo de divulgao[8]. Stuart Hall, referindo-se tipologia do sujeito, em A identidade cultural na ps-modernidade, rastreia, de modo simplificado e esquemtico, trs diferentes

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    etapas no percurso da histria, mapeando as mudanas de sentido que o conceito foi sofrendo. Primeiro, a ideia do sujeito, no iluminismo, estava baseada na concepo de um sujeito centrado, unificado, dotado das capacidades de razo, de conscincia e de ao. O cerne essencial do "eu" consistiria num ncleo interior que seria a identidade da pessoa. Numa segunda etapa evolutiva, a partir do sculo dezenove, refletindo a complexidade do mundo moderno, cresceu a conscincia de que esse ncleo interior no seria autnomo, muito ao contrrio, formando-se sempre numa conexo com outras pessoas. Surge "um sujeito em relao com os outros" e a identidade se estabelece na interao do "eu" com a sociedade. No se trata de negar a existncia do ncleo central e individual ("eu real"), mas sim de v-Io permanentemente influenciado, modificado e intercambiando com os valores, sentidos e smbolos dos mundos culturais "exteriores" e as identificaes por eles oferecidas (Hall, 2000, p.10-11).[9] o assim chamado "sujeito sociolgico", cujo modelo abrange de modo geral boa parte das ltimas geraes, atingindo e mesmo regendo seu comportamento. Muitos dos poemas dos autores e das autoras afro-brasileiras esto nesse espao intercambiante onde o "eu" e o "outro" se entrelaam. Encontramos, igualmente, nessas obras versos de exaltao amorosa e tambm versos denotadores de introspeco e indagao do ser e do estar-no-mundo. Essa subjetividade refere-se aos sentimentos, interioridade, introspeco, opondo-se ao mundo objetivo e aos outros sujeitos. O eu potico, num momento de desencanto, pode ver com pessimismo ou amargura seu relacionamento com o mundo exterior, no divisar perspectivas para o futuro, temendo a vida que tem pela frente. Mas o eu potico quer sacudir o desalento e retomar a caminhada, numa postura mais construtiva e operosa, motivado pelos companheiros, unidos numa mesma comunidade solidria. Sabendo-se um entre muitos iguais, pertencendo todos ao mesmo espao, todos com o passado comum de dificuldades e (des)esperanas, o poeta confia na fora da sua palavra animadora. Miriam Alves, suas buscas e desencontros Miriam Alves, paulista e assistente social, nascida em 1952, escreveu e publicou dois pequenos livros de poemas: Momentos de busca (1983) e Estrelas no dedo (1985), ambos impressos em So Paulo como edio da autora. Participou de muitas antologias, no Brasil e no exterior, e dos Cadernos Negros, em quase todos os nmeros, desde o nmero 5 (1982), tanto com poemas como com textos de fico. E das mais ativas e atuantes entre as mulheres escritoras afro-brasileiras, por muitos anos integrante do grupo Quilombhoje. Nos seus poemas claramente se sente, ao lado de uma ntida conscincia da sua condio como negra, a busca do seu espao como mulher, espao esse mais difcil de conquistar ou de delimitar. So, por exemplo, frequentes os poemas com o eu enunciador no masculino, como se ela quisesse ocultar-se, como se ainda no tivesse inteiramente encontrado a ela mesma. Miriam Alves procura uma redefinio de sua prpria pessoa (O que procuro? / O que oculto? [...] Todas as afirmaes do no? / Todas as negaes do sim? (Momentos de busca) ao longo de toda a sua obra. Medo de expor-se, insegurana no delimitar o prprio espao, a autora v-se a si mesma como uma sombra apenas, no se sabendo pessoa ou vulto

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    ("Estranho indagar", Momentos de busca, p. 12-13). Questionando-se permanentemente, tentando decifrar-se (quero agarrar o sim e o no / existente em mim, ibidem, p. 35), procurando afirmar a sua identidade, Miriam Alves vive essa busca como um desconforto, s vezes mesmo um conflito, sempre perplexa diante da indeciso na escolha: Sou a indefinio assumida. Seus poemas so cheios de pontos de interrogao, de indagaes para as quais no parece conseguir encontrar resposta. Ser e a angstia do no ser diante de um mundo catico e perturbador ( a depresso / o arrefecer da crena / no mundo; Ib., p. 20), numa escrita profundamente feminina, apesar de tantas hesitaes e dvidas (Quando nada mais restar ficam meus sonhos dependurados vazios presos nos prendedores de roupa; "Quando", Estrelas no dedo, p. 50). Mergulhando no espelho, procurando a sua identidade, a imagem vista no a verdadeira, apresenta-se distorcida pelo mundo que a oprime e reprime (as solues escapam pelos vos dos dedos, "Ganchos de interrogao"; IB., p. 20). O eu enunciador no quer que o mundo conhea a sua luta interior (esconderei meu sofrimento / nas entranhas do vento; ib., p. 16), debate-se entre a adaptao ao status quo (o tempo todo no grito; ib., p. 39) e a autenticidade (palavras de concesses / so navalhas / retalham minha pele / diluem meus sentimentos; ib., p. 27). Alm de preferir no expor suas prprias incertezas, o sujeito potico tem outros motivos de sofrimento: bater de ps nus no lodo decrpito / da humilhao imposta. / Rumor em lbios cerrados cuspindo fel / por no poder gritar (Cadernos Negros 25, 2002, "Cantata", p. 123). Essa angstia existencial verbalizada s vezes em metforas tiradas do dia-a-dia domstico:

    Minha carne queimou na panela

    Minhalma penou no poro dalgum navio Minha cabea conserva lembranas na geladeira da resistncia [...] ralo sempre os sentimentos no ralador de queijo [...] Minha carne queima na panela cozida com molhos incertos Minhalma transita outro mundo fujo para voltar [...] Calo-me para poder

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    gritar arrebentando as algemas de dor

    ("Jantar, Cadernos Negros 7, 1984,

    p. 99). E a razo dessas tenses, Miriam Alves sabe muito bem, tem a ver no somente com ela, mas com a dor coletiva dos seus iguais: Carregamos nos ombros / feito fardos / a luta, a dor dum passado // Carregamos nos ombros / feito dardo / a vergonha que no nossa ("Carregadores", Estrelas no Dedo, p. 30). Para exorcizar seus demnios, a poetisa tenta uma "Revanche", e as tenses giram sempre em torno da onipresena da cicatriz da escravido: Fiz do chicote um lao / ... enforquei feitores / chicoteei capites do mato / ceguei retalhei sinhozinhos / ... sou impune / livre (Cadernos Negros 11, 1988, p. 50). Como grande parte das escritoras e escritores afro-brasileiros, Miriam Alves escreveu tanto poemas como textos de fico. A confrontao com a pecha da escravido onipresente em todos os autores negros que trabalham esse trauma coletivo das mais diversas formas, tanto na prosa como, e, sobretudo, na poesia. Nesse sentido, um episdio do conto "Um s gole" profundamente revelador da traumatizante experincia da criana negra, confrontada pela primeira vez com a verso "branca" da histria da escravido. A menina Maria Pretinha queria ser Nossa Senhora na teatralizao do colgio e foi vtima de risota e ridculo por parte dos colegas. Essa cena deixou consequncias profundas, marcou a mulher adulta, fez dela um ser incapaz de erguer a cabea, de ser ela mesma (Afastei-me para nunca mais voltar, "Um s gole", p. 69). O afro-brasileiro, ao procurar conquistar uma ascenso social, paga geralmente um preo muito alto: o do massacre da sua prpria identidade. Tomando o branco como modelo de identificao, para muitos aparentemente nica possibilidade de tornar-se aceito, v-se submetido a exigncias que o levam recusa, negao dos valores que so de sua raa, considerados inferiores, porque afastados dos padres da sociedade envolvente. Os conflitos internos que uma tal atitude provoca esto pr-programados (ib., p. 18). extremamente difcil escapar imagem normativa que a sociedade envolvente faz da mulher afro-brasileira. Smbolo sexual, instrumento de e para o servio, objeto e no sujeito, incapaz de assumir certos papis e cargos, ocupados quando muito por mulheres brancas. A rejeio vivenciada pode levar ao desespero e chegar at mesmo a violentar o prprio fsico, numa autopunio e autodestruio. Alisar os cabelos um recurso da mulher negra para aproximar-se da esttica dominante. A jovem negra protagonista no referido conto de Miriam Alves, j traumatizada pela experincia da infncia, queima o rosto ao usar o ferro quente para amansar a rebeldia de [seus] cabelos, e aquela queimadura que a deixa deformada, com uma feia cicatriz esbranquiada, funciona como se fosse um castigo por ter tentado transgredir os seus limites: Eu era triste caricatura borrada. Eu sou uma triste caricatura borrada ("Um s gole"). Muitas vezes a sociedade envolvente predetermina o papel e o lugar que o indivduo deve ocupar e com isso condiciona de forma mais ou menos absoluta o comportamento do indivduo, impregnando-o, marcando-o totalmente, obrigando-o a certos comportamentos, como se fossem uma parte dele mesmo, exigindo dele adaptar-se s suas regras, no deixando espao para

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    refletir, espelhar ou desenvolver sua prpria personalidade ou os interesses individuais. Ento o papel social adquire propores perniciosas, ocupa invasivamente o espao reservado ao desenvolvimento do "eu", da individualidade, arrasa a identidade pessoal, destruindo-a, e assim o indivduo se distancia de si mesmo, passa a robotizar-se, a exercer como um autnomo as funes sociais a ele predeterminadas, anulando sua individualidade. isso o que acontece muitas vezes nas sociedades sadas do regime escravocrata, onde o afrodescendente continua marginalizado, com a pecha de inferior e subalterno, e essa etiqueta muitas vezes assumida pelo prprio sujeito, numa autocolonizao ou colonizao interna de que tratou Andrea Allerkamp (1991). Nessas sociedades, como a brasileira, os afrodescendentes que se adaptam, aceitando a discriminao como incontornvel, renunciam sua individualidade, sua identidade e podem ser "punidos" com desprezo, desvantagens, marginalizao os que se negam a dobrarem-se completamente s exigncias da camada social mais prestigiada. Ou o indivduo mesmo que psicologicamente sucumbe a essa perda do seu "eu. O campo de tenso entre renncia, revolta e adaptao pode ser mais ou menos amplo, mais ou menos doloroso, pode provocar um conformismo ablico ou uma revolta irrefreada. A literatura reflete ambos os polos dessa tenso. O branco em geral desconhece os conflitos que suas atitudes desencadeiam e os suplcios que so provocados no ntimo daqueles que, no sendo aceitos, internalizaram o ideal do branqueamento. O indivduo que sucumbe a esse processo est condenado desarticulao psicolgica e ao desajuste. H uma desintegrao do seu eu interior e da sua identidade: tentando em vo encarnar fsica e idealmente o Ego do sujeito branco, recusa interiormente a prpria cor, o seu prprio Ego e, com toda a carga negativa que uma tal atitude traz, falta-lhe o cho firme da aceitao de si mesmo, nica via possvel para um equilbrio positivo emocional e psicolgico (Souza, 1983). No conto "Um s gole", a protagonista encontra-se num tremendo drama interior, levada ao desespero por no aceitar-se a si mesma tal como . Parada s margens da prpria vida, levada por pensamentos suicidas, o difcil no morrer. O grande pavor outro: sinto medo de viver. Medo da vida. A mulher est beira do abismo, sem rumo, como sempre. Por toda a vida, marcada pelo episdio da infncia, procurou no chamar a ateno, no exteriorizar os seus sentimentos (Eu sempre me contive, densa [...] Sempre silenciei os barulhos surdos do meu poro interior ib.). Medos e alucinaes a perseguem, sente-se incapaz de erguer-se sobre os ps, obrigada a rastejar. A autodestruio foi devida a interferncias exteriores, mas prosseguiu a sua obra demolidora dentro do seu eu. Calosidades deformam-lhe o corpo e a foram a curvar-se para baixo, ela mesma que estreita os seus limites, recusando-se a andar, a por-se de p. As partes do corpo, cabea, pernas, coluna dorsal, deformadas e monstruosas, traduzem a sua impotncia a qualquer tipo de reao, o estado patolgico do seu sofrimento. Mas, de repente, o "eu" interrompe o seu delrio e tenta reagir, defender-se. Era preciso libertar o grito rouco daquela dor. Revoltei-me, fitando o monstro em que me tornei... Deu-se um processo da restaurao daquele corpo deformado e destrudo, tentativa de ultrapassar os limites entre o exterior e o interior da prpria pessoa. A boca cresceu e enormes dentes devoraram as prprias calos

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    idades. A minha enorme boca, fora de mim, comeu-me (ib.) e tambm todos os medos. A recuperao da prpria individualidade pode propiciar o desencadeamento de um processo de transformao por colocar em questionamento cdigos e categorias que legitimam a forma como a sociedade estruturada. Assim, quando indivduos at ento silenciados posicionam-se como sujeitos, tomando a si a posio de autoridade e sendo capazes de expressar desejos e vivncias prprias, desencadeia-se um processo que implica a recusa dos termos que os tm tornado "reconhecveis" e a consequente elaborao de outros que fogem aos paradigmas impostos pelos cdigos sociais. Um processo muitas vezes marcado por contradies e ambiguidades, uma vez que reflete a forma como a sociedade est sendo vivenciada por esses indivduos. Na verdade, trata-se de um mecanismo de descentramento que procura colocar em evidncia o que permanecia nas margens, propiciando a emergncia de um modo alternativo e diferenciado de se ver e de ler o mundo (Bezerra, 1999). Um tal final feliz como foi o de "Um s gole" compreensvel se pensado no carter de exemplo e de incentivo da literatura afro-brasileira. Acreditando na fora da sua palavra, que pode mudar as circunstncias do presente, denunciando os aspectos negativos do momento atual, abrindo ao mesmo tempo uma alternativa para um futuro melhor, Miriam Alves, tal como os demais autores e autoras afro-brasileiros, convencidos do seu papel como mentores intelectuais e representantes de uma vanguarda, v a literatura tambm como possuidora da funo didtica de formar a personalidade dos seus concidados, levando-os a uma maior auto segurana, fazendo-os orgulhosos de si mesmos e das suas origens.[10] Geni Guimares e a ternura da infncia Quase sempre, aberta ou veladamente, a histria da prpria autora que est na base dos textos a serem aqui referidos. Vivncias muitas vezes traumticas que precisam ser trabalhadas e superadas, sonhos e esperanas de um mundo mais justo e mais equnime, histrias de dominao e explorao, sofrimento e humilhaes, estratgias de sobrevivncia, registro da fora de vontade, da dignidade, da alegria e das esperanas que tecem o enredo da vida de cada uma. Entre as autoras afro-brasileiras, darei destaque aqui a Geni Guimares. Nascida em 1947, a primeira autora negra contempornea a publicar um livro: Terceiro filho, j em 1979. E isso em Bauru, cidade do interior paulistano. Segue-se outra pequena brochura, um simples caderno, Da flor o afeto, da pedra o protesto, editado pela autora tambm em Barra Bonita. Possuo a segunda edio, de 1981, supondo ser a primeira do mesmo ano. Em ambos, poemas do dia-a-dia, poemas que s uma mulher poderia escrever: do sentimento maternal (afaguei-me o ventre, cresceu-me o corao, / estufei a barriga, me soltei na cidade / ... afaguei com carinho a cabea de um engraxate que passava; Terceiro Filho, p. 9), sobre a emoo despertada pelos seus alunos deficientes (trmulas mozinhas agarram pincis / constroem no papel desenhos esquisitos: / cabeas quadradas, coraes compridos, "Meu grande pequeno mundo" (Terceiro filho, p. 11)[11], sobre os pequenos acontecimentos domsticos (o padeiro est por vir; o caminho da faxina passou, o gs esta

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    chegando; Notcias; Da flor o afeto, da pedra o protesto, p. 7). Mas tambm sobre o orgulho de ser negra (Ser negra, de carapinhas, de dorso brilhante, de ps soltos nos caminhos // Ser negra, de negras mos, de negras mamas, de negra alma, "Integridade"; Da flor o afeto, da pedra o protesto, p. 8)[12], sobre o domnio do homem sobre a mulher e do incmodo que para a sociedade envolvente a presena dos no brancos (Esses homens me insultam no leite da feira / ... me encurralam em estupro invisvel. // Esses homens me querem / alvejada. / Me querem torcida / batida, esfregada / depois de guardada / cinco dias na espuma do sabo em p, "Esses homens: Ax, p. 64). Mais uma vez aqui os lexemas escolhidos para ilustrar sua ideia foram retirados do universo quotidiano das donas-de-casa. De novo a maternidade motivo de um poema e Geni, que no seu primeiro livro exterioriza arrebatada a alegria da sua primeira gravidez, uma dcada depois confessa: Meu cu esta terra / onde meu filho imberbe / brinca de atleta e sorri / mostrando o limpo dos dentes / ante a ereo do pnis / e se acredita homem ("Terrena, Bal das emoes, p. 40). A verbalizao da sexualidade sem tabus e sem malcia, o festejar das pequenas alegrias maternas, a escrita feminina se manifestando. Sim, o seu cu aqui na terra, na alegria de sentir a natureza e as coisas simples do seu modesto grande mundo, povoado de recordaes da prpria infncia: Banhvamos o corpo nas guas sujas dos rios. / Vigivamos os ninhos dos pardais / e ninvamos os filhos pequeninos [...] Quantas vezes arranquei a unha do dedo I nas corridas loucas / pelas terras sem limites ("Lembranas: ib., p. 84). E, como no podia deixar de ser, tambm est presente nos poemas de Geni a permanente lembrana da escravido, o tema da mulher negra vilipendiada e humilhada: Sinto a dor humilhante / do pudor sequestrado / .... arde-me o sexo ultrajado / da negra cativa / usada no tronco / quebrada e inservida / ... di-me o feto imposto ao negro ventre virgem ("Negritude", in Ax, p. 69). No mesmo poema, Geni conclui com muita altivez: Mas contudo / alm de tudo / ... restou-me invulnervel / um imutvel bem: / ultrajadas as razes / negados os direitos / ningum roubou-me o lacre da pele. / Nenhum senhor. Ningum! (id., p. 71). Geni Guimares levou quase uma dcada sem publicar nada. Em 1990, apresenta um livro em prosa, em forma de contos curtos, autobiogrfico, do qual falarei em seguida. Seu ltimo livro de poesia saiu em 1993, numa edio da autora, em Barra Bonita: Bal das emoes[13], com ilustraes a partir de belas fotografias de Luis Antnio Rodrigues. uma poesia muito mais amadurecida, de grande lirismo, s vezes muita amargura, mas tambm muita alegria e de extrema sensibilidade. A sua sensualidade se mostra mais diferenciada e sutil, quando por exemplo exclama, cheia de desejo: Vem passear em mim / de novo / lanar-me a asa / em brasa / desde sempre a querer / esta priso que vem de ti. // Vem se fazer mar / no mar de mim / e assim / salivar o ar / do meu corpo (fogo e sufoco) ("Passeio: B.E., p. 122). Ou quando anseia em pousar de leve em teu pescoo a minha mo / ... trilhar-te, passo a passo / como se soltasse as mos sobre pianos / ... ser recheio desta concha voc ("Desejo: ib., p. 82). O texto se desenrola dentro da tenso do desejo gerando a linguagem e da linguagem que gera o poema (Soares, 1999). Geni Guimares liberando sua libido, joga com maestria com a dimenso literria do ertico, considerando seu corpo como territrio de prazer, territrio descolonizado e do qual ela a senhora.

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    Seu desejo de amor, Geni j tinha expressado abertamente em poemas anteriores, por exemplo, da seguinte forma:

    Quero um homem, Sensvel, gostoso, Malandro e moleque. Quero um homem De garras, Coragem, Astcia: Quero um negro. Quero um homem, De cama, De colo, De terra macia. [...] De riso na testa, De olhos nos dedos, Andares no peito Quero um negro.

    (Caa, in: Ax, p. 65) No Brasil multitnico, pela sua estrutura social e pelo seu passado histrico, a cor da pele e as caractersticas fenotpicas exercem funes simblicas, valorativas e estratificadoras. A categoria racial influencia a distribuio dos indivduos em diferentes posies na estrutura de classes: pertencendo aos padres cromticos da classe dominante h uma maior aceitao por parte da sociedade envolvente. Embora, de modo geral, nos trs livros de poemas publicados, Geni Guimares no insista no tema do racismo, so muito expressivos seus poemas nesse teor. Em um deles, dialogando com hipotticos interlocutores brancos, declara: Sou doda, verdade / tenho choros, confesso. / No vos alerto por represlia / nem vos cobro meus direitos por vingana. / S quero / banir de nossos peitos / esta gosma hereditria e triste / que muito me magoa / e tanto te envergonha ("Explicao", ib., p. 74). A passagem da segunda pessoa do plural para a do singular muda o tom do dilogo, o leitor se sente mais diretamente convidado a refletir sobre a vergonha e o absurdo que representa a discriminao racial. No poema intitulado "Condio", a poetisa ressalta provocantemente os atributos negroides que tanto parecem incomodar. No Brasil multitnico e hbrido, o relacionamento amoroso entre brancos e negros sempre esteve presente, embora nem sempre sob condies de igualdade: se podes aguentar meu desejo de justia / e ouvir meu grito no silncio / ... e se, sobretudo, meu aroma de frica / te for agradvel e no toque, meu pixaim / no te causar arrepios, / se puderes agasalhar meu .frio secular / se em ti couber meus lbios grossos, ao me beijar. // Vem, / vem que eu invento um modo doce e lento / pra gente ser feliz. / Minha kizomba ser a nossa eleita / poderemos fazer a mesma ceia / e quebrar esta corrente de tronos e vergonha. (ib., p. 66). Estamos diante da expresso do corpo descolonizado e da mulher emancipada, consciente de suas origens e de seus valores, consciente

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    tambm que o relacionamento s pode ser harmonioso e bem sucedido se for um relacionamento sem assimetrias e no respeito pelas diferenas. Sempre alerta e sempre pronta a apontar a injustia e a discriminao que acompanham os seus irmos de cor, Geni tambm aponta com o dedo, o prprio marasmo dos no-brancos, que no reagem s humilhaes de que so vtimas: suporta-se o verbo na garganta / a inrcia de canos entupidos / as labaredas dentro dos barris / o cuidado com as cinzas. Mas toda essa passividade no tem razo a no ser se por estratgia, por necessidade de urna aparente capitulao. Geni sabe que muitos negros brasileiros ainda no reconhecem a prpria fora, o direito de ter a sua individualidade respeitada. E conclui, numa advertncia, num apontar a direo: e por incrvel que parea / a porta est aberta (ib., "Conivncia", p. 44). com A cor da ternura, seu livro autobiogrfico, que Geni Guimares atinge o momento mais alto como escritora. O livro valeu-lhe o Prmio Jabuti, em 1990 e o prmio Adolf Aisen, da Academia Brasileira de Letras, em 1992. Sempre reeditado, tem sido utilizado em muitas escolas em So Paulo, tem valido autora convites para palestras em muitas cidades brasileiras e tambm no exterior. Mas, na verdade, quem o conhece? Quem j o leu? Onde se pode encontrar alguma recenso, alguma notcia sobre ele? De novo o silncio anulante dos detentores da mdia e da opinio pblica, o ignorar do que no corresponde aos modelos e s leis cannicas da crtica literria estabelecida. Trata-se de um livro claramente escrito a partir de uma perspectiva feminina, abordando temas e questes diretamente ligadas ao papel da mulher, acrescido por esse elemento a mais, da especificidade da mulher negra brasileira. Foi inicialmente publicado sob o ttulo Leite do peito, pela Fundao Nestl de Cultura (1988), tendo conhecido uma segunda edio no ano seguinte. Em 1989 a editora FDT republicou o livro sob o ttulo A cor da ternura, que em 1998 estava na 12a edio. Em 2001, as duas verses foram fundidas numa s, reeditadas pela Editora Mazza. Alm de reunir o conjunto de captulos dos anteriores e de ter sido ampliado com alguns novos "contos, como Geni chama os diferentes episdios, o volume conservou o ttulo Leite do Peito[14]. A autobiografia como estilo literrio utilizada aqui como um meio nesse processo de desnudamento e denncia, de autorreflexo e testemunho, possibilitando, para o pblico branco, um lanar de olhos na realidade cotidiana, nos conflitos, nos sonhos e desejos da mulher afro-brasileira. O leitor e a leitora descendentes de africanos vo encontrar ali elementos de identificao e reconhecimento, incentivo e solidariedade, a base comum da vivncia coletiva de cerca da metade da populao brasileira. "Escrevi porque eu tinha que registrar a vivncia de uma famlia negra, porque este livro autobiogrfico, eu precisava falar dos meus traumas, das minhas dores e das minhas alegrias, eu tinha que colocar isso para fora. So palavras da autora numa entrevista revista americana Callaloo (1995). Embora no ttulo do livro conste tratar-se de um volume de contos, a ordenao cronolgica dos acontecimentos aponta para um registro autobiogrfico e verdico. Quase sempre, aberta ou veladamente, a histria da prpria autora que est na base dos textos singelamente narrados. Vivncias da infncia protegida e feliz, lembranas muitas vezes traumticas que precisam ser trabalhadas e superadas, tenses provocadas pelo confronto com o mundo dos adultos,

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    estratgias de sobrevivncia, registro da fora de vontade, da dignidade, da alegria e das esperanas de uma menina pobre, negra e interiorana. Uma histria de vida bem mais que uma estria. Ecla Bosi, em seu livro Memria e sociedade, lembrando Henri Bergson (Matria e memria) refere-se aos mecanismos que regem a dinmica interao entre o passado evocado pela fora memorialstica e o momento presente:

    Somos tentados, na esteira de Bergson, a pensar na etimologia do verbo. Lembrar-se, em francs se souvenir, significaria um movimento de vir de baixo; sous-venir, vir ti tona o que estava submerso. Esse afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da percepo [...]. Pela memria, o passado no s vem tona das guas presentes, misturando-se com as percepes imediatas, como tambm empurra, "desloca" estas ltimas, ocupando o espao todo da conscincia. A memria aparece como fora subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.

    Bergson estabelece a diferena entre reminiscncias, que so compreendidas como um fenmeno consciente, que guarda fatos passados, registrando-os como verdadeiros, e que constituem a lembrana hbito, resultante da repetio; e a lembrana imagem ligada representao, fenmeno inconsciente, que consiste na revivncia afetiva de acontecimentos, evocada por sensaes que retornam renovadas. A recriao dessas memrias, diz Anglica Soares,

    integra a ficcionalidade do texto pois, da reelaborao literria do passado desrealizado emerge o verossmil. No memorialismo lrico, parece-me que a ao de recordar traz-nos, mais fortemente, a fora originria do re-cordis (pr de novo no corao) mobilizador da disposio anmica, que nos pe nas coisas e elas em ns (Soares, 1999).

    Em A cor da ternura, texto memorialstico camuflado em fico, emerge um grande lirismo, e os captulos se desenrolam na tenso contraditria entre o perecer da memria e o desejo de 'salvar o passado do esquecimento, convocando-se emocionalmente uma conservao subliminar, subconsciente, de toda a vida psicolgica j transcorrida. Os estados psquicos j vivenciados continuam latentes e podem aflorar em diferentes momentos, a partir de novos estmulos (Soares, ib.). A cor da ternura salpicado com detalhes do dia-a-dia da vida daquela famlia pobre e do interior, uma famlia em que um pai analfabeto e forte protegia os seus, a me toda poderosa era luz e alegria para a filha sensvel e de prodigiosa imaginao, as irms mais velhas como que a complementar aquele osis que foram os primeiros anos da sua infncia protegida e feliz, ao mesmo tempo impregnada de crenas (o saci era terrvel, vinha nos redemoinhos, roubava os filhos das mes e sumia com eles, ib., p. 43), usos e costumes afro-brasileiros (um que trazer a menina aqui nove dias seguidos. Est com acompanhamento. O esprito de Zumbi est do lado direito dela. Afasto o coisa-ruim e peo a guarda da Menina Izildinha, ib., p. 36).

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    Geni Guimares no escreve quase nunca sobre conflitos diretos entre as raas, como o caso em alguns dos seus poemas e na obra da grande maioria dos autores negros. Mas, como ela mesma diz nas notas sobre si que escreve no final do livro, tem a pretenso de conscientizar e alertar atravs da sua literatura (C.T.,[15] p. 94). Neste seu livro, o que salta aos olhos sobretudo a interao entre as pessoas da pequena comunidade onde viveu na infncia. Geni narra o seu acordar para o mundo, desde as mais tenras lembranas, quando ainda pequenina procurava o seio materno, os cimes, conflitos e sofrimentos com o nascimento do irmozinho que lhe tomou o lugar de caula (nunca mais vou xingar o nen de diabo e coc no meu corao .. daqui pra frente s vou falar Jesus e doce-de-Ieite pra ele; ih., p.20), o incio traumtico da vida escolar, a primeira menstruao, as brincadeiras infantis. Pouco a pouco foram sendo superados os traumas iniciais com o confronto com o mundo exterior, para alm dos limites da propriedade agrcola onde viviam como colonos. O primeiro grande choque acontecido foi no primeiro contato com a escola. A criana havia ouvido histrias dos seus antepassados, contadas pela V Rosria, inclusive a histria da libertao dos escravos (e s com um risco que fiz no papel, libertou todo aquele povaru da escravido; ib., p. 49). Na escola, aprendeu que os negros que vinham da frica ... eram amarrados nos troncos e espancados as vezes at a morte (ib., p. 65). E a menina viu que aquela "narrativa no batia com a que nos fizera a V Rosria. Aqueles eram bons, simples, humanos, religiosos", enquanto que os africanos da professora eram bobos, covardes, imbecis ... no reagiam aos castigos, no se defendiam. Na classe, ela era a nica representando uma raa digna de compaixo, desprezo (ib., p. 65). E a menina conclua: Por isso que meu pai tinha medo do seu Godi, o administrador, e minha me nos ensinava a no brigar com o Flvio. Negro era tudo mole mesmo. At meu pai, minha me ... (ib., p. 67). Ao voltar para casa, arrasada de vergonha e dor (como estanc-la l dentro, onde a ferida aberta era um silncio todo meu, dor sem parceria?; ib., p. 67), a garota no comeu o feijo preto do almoo, jogando fora todos os gros, foi para o quintal e comeou a raspar com tijolo a prpria perna (esfreguei, esfreguei e vi que diante de tanta dor era impossvel tirar todo o negro da pele, ib., p. 69). So cenas fortes, que ajudam talvez aos no negros a compreenderem - e respeitarem - o que se passa no ntimo dos descendentes de uma raa to discriminada. Apesar de tudo, sobressaem nos textos de Geni Guimares a ternura e a autoconfiana. Um livro em que o positivo tem mais peso do que as experincias negativas, em que as raivas no se transformam em dios, em que a dignidade da famlia no deixa espao para complexos de inferioridade ou humilhao. Uma saudvel confiana em si mesma, uma enorme garra para ultrapassar as dificuldades. No difcil, entretanto, detectar como o comportamento daquela famlia negra era marcado ou mesmo orientado pelas normas e at certo ponto ideais da sociedade branca envolvente, como no captulo sobre a sua formatura e o esforo de todos os seus para se vestirem convenientemente, o esquecimento do pai que, por falta de costume, calou sapatos sem as meias, o que lhe provocou dolorosos ferimentos nos ps (Imagine s ... Esquecer de usar a meia. J pensou se um dos seus amigos visse? Deus me livre de te envergonhar!; ib., p. 85).

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    Pode-se concluir sem dificuldade a enorme e positiva influncia que essa confiana transmite nos receptores dessas estrias que na verdade so histria. No se trata apenas de episdios de uma biografia ficcionalizada, a histria silenciada de uma coletividade que no festejada nem mesmo considerada no que tem de "normal': normalidade que no merece manchetes sensacionalistas e que poderia exibir a verdadeira face da vida cotidiana do subalterno afro-brasileiro. Histria e documento do dia-a-dia batalhador e vencedor de grande parte dos afrodescendentes, em flagrante contraste com as manchetes sensacionalistas dos jornais que quase somente pem em relevo a criminalidade e a exceo. Tendo concludo o curso de professora, logo nos primeiros dias a narradora de A cor da ternura teve que enfrentar na classe a sua primeira grande prova: uma menina clara, linda e terna, empacou na porta e se ps a chorar, sem querer entrar na sala. Tenho medo de professora preta, disse-me ela, simples e puramente (ib., p. 87). A jovem professora consegue conquistar-lhe a confiana e as palavras finais do livro mostram o profundo significado dessa aparentemente pequena vitria: E sentimentos placentrios escaparam do tero, meu tero das minhas razes, grafaram leis regentes de todos os meus dias. Sou, desde ontem da minha infncia, bagagem esfolada, curando feridas no arquitetar contedo para o cofre dos redutos (ib., p. 93). Aline Fraca e a heroizao da raa Na mesma poca em que Geni Guimares publicava seus livros de poemas, uma outra mulher, na Bahia, Aline Frana, escreveu dois romances: um, lanado em 1978, com o ttulo Nego Dony, trata da vida de um modesto funcionrio do manicmio judicirio do Estado, profundo conhecedor dos segredos do candombl. O segundo romance, A mulher de Aleduma, foi publicado em 1981, tendo tido mais tarde uma segunda edio. Segundo artigo no jornal A Tarde, de 17 de Julho de 1981,

    depois que os chamados movimentos negros na Bahia conseguiram desligar-se das tranas de Gilberto Gil, a militante Aline Frana renunciou a postura de jamaicana'; deixou de sonhar com o retorno s razes e voltou-se mais para o seu espao de negra de sua terra, vestindo as roupas que sempre vestira, procurando conhecer melhor a realidade baiana, a realidade do espao onde vivia, passando a ter uma outra viso a propsito dos compromissos sociais de seu povo.

    Achando que a denncia pura no ajuda a solucionar as discriminaes raciais e que lamentaes no logram resolver os problemas bsicos que martirizam sobretudo a populao negra brasileira, tais como a falta de moradia, o no acesso aos sistemas de educao ou de sade, entre outros, Aline Frana, simples telefonista de uma unidade da Universidade Federal da Bahia, partiu para uma outra atitude. E essa foi a de comear a escrever. Escrever sobre coisas ligadas ao mundo negro, mas produtos da sua incrvel fantasia. Com a obra de Aline Frana, estamos diante de uma vertente inusitada e extremamente original no conjunto da literatura afro-brasileira. O lugar no negro na sociedade brasileira tem a ver com a categoria do subalterno, tanto pela sua posio no mercado de trabalho como pela sua j referida invisibilidade. A construo dessa categoria de "subalterno" enfrenta dificuldades,

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    ambiguidades e contradies, mas considero pertinente inclu-Ia ao se analisar a literatura afro-brasileira.[16] Sobretudo desde a expanso dos Estudos Culrurais, so muitos os autores, como Homi Bhabha e Stuart Hall, que do relevncia s manifestaes do descolonizado e do subalterno e de suas representaes discursivas, apontando as estratgias subversivas empregadas por escritores do assim chamado "terceiro mundo", que desconstroem o discurso eurocntrico e patriarcal do colonizador ou, alargadamente das classes hegemnicas. Em geral os escritores negros no contestam essa posio, embora muitos deles estejam em situao privilegiada em comparao com a coletividade da qual so porta-vozes. A dico habitual, dos poemas ou contos afro-brasileiros, escondida pelo diapaso da denncia e do ressentimento, do dilaceramento interior, da afirmao identitria, quase sempre tendo-se presente, mesmo quando no claramente enunciada, a confrontao com o mundo branco, envolvente e dominador, arrogante, injusto e etnocentrado - como que para confirmar o que j registrava Frantz Fanon: o negro determinado a partir do exterior. Por tudo isso, apraz-me sobressaltar a obra de uma afro-brasileira baiana, independente, longe dos centros de influncia de movimentos literrios conscientizadores, com dois livros publicados j no final da dcada de setenta do sculo vinte. A mulher de Aleduma um canto de confiana e de orgulho, uma exaltao alegrica raa negra. Aline reinventou as origens da sua raa, simbolizando uma luta em que a figura central Aleduma negro quase divino, faz gestar no pas imaginrio de Ignum, uma populao negra e bela, mas com um pormenor: as pessoas ali nascidas tinham os ps para trs. S com o passar dos tempos que seus ps se voltam para a frente, numa alegoria sobre as dificuldades e empecilhos ultrapassados. Foi preciso uma penosa mutao, uma lenta metamorfose, para aquele povo atingir o seu objetivo, que era poder seguir em frente, o seu prprio caminho, com os seus prprios ps. Entre as muitas dificuldades e desgraas por que passou o povo de Aleduma estava a escravido: A tempestade caiu sobre os negros da Terra, aquele sofrimento previsto pelo Velho Aleduma estava presente, a escravido tomou conta daquela gente, o canto alegre do ibedejum emudeceu, e toda a histria do continente estremeceu. (Frana, 1981, p. 9-10). A "ilha maravilhosa" de Coinj, a ilha de Aleduma, foi o refgio dos negros que conseguiram escapar do cativeiro. O lugar apropriado para um recomeo de povoao (ib., p. 10). Ilha utpica, onde tudo era harmonia e beleza, onde as mulheres andam nuas com toda a singeleza, e cujos habitantes tm uma misso a cumprir: um filho de Coinj ir distribuir uma energia que abranger todos os povos do universo, sem distino de raa ou de religio (ib., p. 59). A paz daquele povo foi perturbada pela chegada de brancos ambiciosos, que vieram explorar as riquezas da ilha e tentaram em vo descobrir o segredo daquela harmonia. As mulheres descendentes de Aleduma ocupam um lugar central no romance. A bela Maria Vitria a figura mais ativa do livro, dotada de qualidades sobrenaturais e encarnando o elemento continuador e o sustentculo da raa. A velha Catil, portadora de dons de cura, tinha as orelhas em forma de estrela (ib., p. 57), reveladoras do seu papel especial. As Granas, seres fantsticos e perigosos, mulheres que tm uma fileira de mamas, que vo das orelhas at o

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    umbigo, representam foras malignas que precisavam ser vencidas e ultrapassadas. Alm do velho Aleduma, a personagem masculina que se sobressai Tadeu, negro, bonito e muito cobiado pelas mulheres, filho adotivo de um abastado empresrio da capital e noivo de uma mulher branca. Mas Tadeu se sentiu inexplicavelmente atrado por uma miragem, uma viso, por quem se apaixonou e, de quem foi procura. Maria Vitria, do outro lado do mar, na sua ilha encantada, quem atraa telepaticamente Tadeu. Os dois se encontraram e se amaram e Maria Vitria revelou a Tadeu que a sua verdadeira identidade era outra, ele era de fato um filho da ilha e que a ela retornou, estando-lhe destinada uma grande tarefa. Tadeu representa de certo modo o negro na dispora, afastado do seu povo e de sua cultura ancestral, mas que no fim do romance retorna s suas origens. Os heris de Aline Frana so possuidores de uma fora incomum, um poder sobrenatural que a autora conhece dos rituais da religio afro-brasileira do Candombl e que ela, no romance, procura mostrar como podendo ser transmitido a todos os negros que aceitarem a mensagem do planeta Ignum, o planeta de origem do velho Aleduma. Os exemplos de um tal poder multiplicam-se no livro: um operrio estava sobre um andaime, pintando uma parede, quando, olhando para baixo, viu Salpia e saiu correndo, gritando que tinha sido convidado para participar de um congresso no planeta Ignum; num bairro de prostitutas, uma mulher tinha um homem sobre o seu ventre quando tambm recebeu uma mensagem semelhante, largando o cliente, apressando-se em atender quela estranha solicitao; um grupo de negros estava organizando um seminrio sobre o papel do Negro na sociedade contempornea, quando todos foram tomados por uma grande febre e, transpirantes e ofegantes, constataram que tinham sido convidados para participar de um congresso no planeta Ignum. Tambm Tadeu de Abrantes captou uma mensagem do Planeta Nagro, despiu suas roupas ocidentais, passando a tranar os cabelos e a usar vestimentas africanas, mesmo na alta sociedade da qual fazia parte. Descobrindo a sua verdadeira identidade como negro, abandonou a noiva branca, assumindo seu relacionamento com Maria Vitria, a herdeira de Aleduma, a ilha utpica da salvao e da plena realizao da raa negra... O livro teve duas edies consecutivas, foi adaptado para o teatro, conhecendo um impressionante sucesso no seio do povo negro da Bahia, no s entre os intelectuais do Movimento Negro e demais grupos envolvidos com a cultura afro-brasileira, mas inclusive entre iletrados, o povo simples da rua, pessoas no acostumadas leitura de romances. Pode-se perguntar como uma autora desconhecida alcanou tanta repercusso e como foi possvel atingir esse pblico em princpio avesso s letras.[17] Um mrito do livro est na perspectiva, no enfoque completamente diverso do que se encontra em geral dentro do vasto e variado espectro da literatura afro-brasileira: um livro cheio de otimismo e confiana, com uma estria onde os negros so heris, belos, corajosos e dignos, seres extraordinrios, dotados de qualidades e poderes fora do comum. O livro no tematiza os horrores da escravido, nem as misrias ou humilhaes por que passam atualmente os afro-brasileiros. Afirma com convico que a sua raa, a raa negra, est destinada a feitos gloriosos, dos quais todos se orgulharo. A linguagem

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    simples e despretensiosa, nem sempre muito cuidadosa. O romance singelo, mas ao mesmo tempo de extrema ousadia, recheado de episdios estranhos, onde o fantstico maravilhoso e o realismo mgico caminham lado a lado com narraes prosaicas e ingnuas. Aline Frana consegue criar um universo fantstico, onde a dimenso da magia ocupa um lugar proeminente, misturada vida cotidiana e a estrias de amor, cime e vingana. Recuperao e subverso Para o pblico estrangeiro, mas tambm para a maioria dos brasileiros que se interessam por literatura, essas autoras e autores so quase completamente desconhecidos. At mesmo o universo do qual eles saram, ou onde eles circulam, em geral estranho ao mundo ledor no-negro, e para penetrar melhor no sentido desses textos preciso um aprendizado e uma reviso da prpria maneira de ver o negro brasileiro; preciso, inclusive, a superao das ideias pr-fixadas sobre a historiografia nacional, que continua a marginalizar e a discriminar o afro-brasileiro. A literatura negra uma literatura procura da auto identidade e do resgate, uma literatura comprometida, como um instrumento de transformao de uma realidade que nega o direito especificidade, enquanto indivduo e enquanto coletivo. Embora o raio de influncia e de recepo da literatura negra no seja dos mais amplos, ela se est impondo nos meios urbanos brasileiros. A recepo dos textos das escritoras e dos escritores afro-brasileiros pode ter resultados dos mais diversos, dependendo da socializao, das opes tericas do leitor ou leitora, ou mesmo simplesmente da sua sensibilidade ou posio ideolgica. Pode ser um instrumento de lazer ou desfastio, pode servir de estmulo ou de provocao, pode ser profundamente irritante e incmodo ou profundamente revelador. Consegue-se, atravs do discurso textual aqui analisado, recuperar o coletivo que est por trs, reconstituir-se toda uma histria da vida e da luta, das penas e das vitrias do afro-brasileiro. Pode-se tentar identificar as intenes dessas autoras, ou desvendar nos silncios e entrelinhas o que foi calado, o que ainda est para ser dito. Pode ser tambm uma oportunidade para repensar certas posies e posturas que aqueles que no so atingidos pela pecha da inferioridade racial muitas vezes nem pressentem. Lanando mo de uma imagem de Wolfgang Bader, os poetas negros se definem no mais como um contra espao ou como uma periferia, mas como o seu prprio centro, no mais se vendo como espelho ou reflexo da realidade histrica, mas como sua antecipao. Embora emerjam de uma situao comum a todo povo negro, que a de constiturem uma comunidade de sofrimento, dada pela condio de um passado escravo, os autores afrodescendentes no se querem corno simples artesos do reflexo dessas situaes, mas adiantam-se prpria realidade (Bader, 1986). Imbudos do seu papel de mentores intelectuais e representantes de uma vanguarda, veem a literatura tambm como uma funo didtica de formar a personalidade dos seus concidados, levando-os a uma maior auto segurana, fazendo-os orgulhosos de si mesmos e da sua raa. Como expressa o poema com que o paulista Cuti abre o seu livro Batuque de tocaia, o poeta acredita que a sua luz, o seu fogo ir acender outros fogos e alimentar assim a altivez que est no corao de cada um. J no incio da dcada de oitenta, ele conclamava os seus concidados: Leva / a lava leve de meu vulco / pra casa / e coloca na

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    boca do teu [...] O fogo de outrora / do centro da terra / vir sem demora. / Porque no h / por completo / vulco extinto no peito. (Cuti, 1982, p. 13). O escritor ou escritora afro-brasileiros so representantes daquela "literatura menor" de que falam Deleuze e Guattari, j referidos, so parte do amplo sujeito subalterno coletivo e, instrumentados com o discurso literrio, so mediadores daquele subalterno silencioso e omitido, que no pode alar sua voz nem empunhar sua pena. Quis aqui, neste artigo, ressaltar sobretudo a atividade autoral de algumas escritoras afro-brasileiras, embora tenha lanado mo s vezes de outros autores. Atravs da especfica escrita da mulher negra, atravs do seu olhar individual e da sua experincia pessoal, certos clichs e esteretipos passam a ser questionados. A mulher negra brasileira, ao escrever, tematizando ela mesma a sua prpria experincia, seus prprios problemas, suas angstias, necessidades e desejos, explicitando de uma forma ou de outra as marcas deixadas pela escravido, pondo a nu a discriminao racial e social sentidas na prpria pessoa e nos que lhe so prximos, denunciando sexismo e machismo, questionando a ligao amorosa entre negros e brancos, a dependncia econmica, a desigualdade social, a emancipao feminina, integrando o ficcional e o documental, a escritora afro-brasileira est prestando uma relevante contribuio para corrigir e rever os mitos e esteretipos que estigmatizam a mulher negra, recompondo-se como pessoa, ressaltando o seu verdadeiro e multiforme papel na sociedade brasileira. Tm essas autoras bem clara a conscincia da dupla colonizao que oprime as mulheres de sociedades desenvolvidas sob os efeitos tanto da ideologia colonial quanto da ideologia patriarcal. No conjunto do material aqui apresentado, e preciso sublinhar que se trata apenas de uma estreitssima amostragem, possvel detectar a presena de uma linguagem que reflete a identidade feminina, com suas realizaes simblicas. Lanando mo das idias desenvolvidas por autoras como Hlne Cixous (1980), Ingeborg Weber (1994), Isabel Allegro de Magalhes (1992, 1994), vimos que a autoreferencialidade, a intersubjetividade, o envolvimento afetivo, o registro confessional (ou quase), a percepo interior em que o corpo, em vez de ser visto de fora, expresso a partir de dentro, assim como ainda a referncia realidade domstica como realidade artstica, so elementos caractersticos de uma escrita essencialmente feminina (Magalhes, 1992) e dos quais pude aqui dar muitos exemplos. Ao lado da atitude negativista, espelhada em muitos textos da literatura afro-brasileira, predomina entre as autoras aqui escolhidas uma reao ao modelo neocolonial imposto, to conhecido. Dentro desse conjunto de atitudes que vo de encontro ao comportamento mais generalizado, est justamente a afronta conscientemente chocante, at escandalosa, aos ideais da esttica envolvente, numa aceitao plena e provocante do prprio corpo. E de novo Geni Guimares a porta-voz daquelas que se querem livres para pensarem e serem como lhes apetece, hipostasiando sua alteridade, incomode a quem incomodar: Deixa-me assim mesmo. / Desde sempre carrego um olho vesgo / na testa, e um dedo sem unhas / atrs da orelha. // Me leve este jeito / acostumei-me a ter um osso liquefeito / no hemisfrio sul do corao // e este pulmo de pelcia / to singular, meu. [...] // Deixa-me ser este adereo antigo. / Por que razo tenho de ser de ferro? ("Apelo; B. das., p. 112).

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    Na escolha dos textos que serviram de base a esta anlise, levei em considerao certos aspectos relativos ao contexto scio cultural aqui ressaltado. Eles esto presentes na representao simblica do corpus escolhido, com elementos que fazem dessas obras textos fundamentalmente negros, tais como a recuperao da memria coletiva, comum aos afro-brasileiros; a quebra do silenciamento imposto pelo discurso dominante; a reviso do passado colonial e o resgate da imagem do negro; a recorrente referncia cor da pele; o uso de lexemas e do aparato simblico ligados ao cativeiro e ao sofrimento da advindo; a contestao e a subverso dos valores vigentes, numa consciente e proposital desconstruo ideolgica. Temos aqui a ver com um discurso textual em busca da sua prpria autenticidade e do seu papel social especfico como instrumento a servio da transformao do status quo e da mentalidade reinante, que negam s pessoas de pele escura o direito sua forma especfica de vida, tanto como indivduos quanto como parte essencial da sociedade. Retornando ao texto que serviu de epgrafe a este trabalho e repensando os demais textos sobre os quais nos baseamos para estas reflexes, verificamos que a altiva exploso de Snia Conceio refora o caminho pelo qual todas querem trilhar: o da autoafirmao do seu ser negra no mundo. Ela demonstra a vontade firme e a deciso da parte da autora de no aceitar mais passar despercebida, de impor-se como mulher negra na literatura e na vida real, sem qualquer trela que cubra ela. Referncias

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    [1] Este artigo uma verso alargada de um outro artigo meu, publicado sob o ttulo "Quando elas rompem o silncio. Literatura feminina afro-brasileira, in: Lusorama. Zeitschrift fr Lusitanistik: Revista de Estudos sobre os pases de Lngua Portuguesa, Frankfurt, FFM, n30, p. 5-25, jun.1996.

    [2] verdade que nos ltimos anos no Brasil o culto ao "bumbum" foi popularizado pela televiso, com suas estrelas danarinas de corpo escultural, em coreografias que ressaltam aquela parte da anatomia, tendo sido mesmo transformado em padro de beleza.

    [3] No passado, registrem-se os nomes de Maria Firmina dos Reis, que escreveu o romance rsula (So Lus: Typographia do Progresso, 1859, 199 p .. Republicado em 1988 pela Editora

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    Presena e o Instituto Nacional do Livro, atualizado por Luiza Lobo e com prefcio de Charles Martin) e Auta de Souza (1876-1901, R. G. Norte), que deixou Horto (poemas), 1900. No nos reteremos aqui nessas autoras, pois nos interessa no momento o testemunho das afro-brasileiras contemporneas. [4] As trs caractersticas de uma literatura menor so: desterritorializao da lngua, a articulao do individual no imediato poltico; o dispositivo coletivo de enunciao. O que equivale a dizer que "menor" no qualifica uma certa literatura, seno as condies revolucionrias de qualquer literatura no seio da chamada maior (ou estabelecida). Cf. Deleuze, Guilles e Guattari, Felix, Kafka por uma literatura menor. Ediciones Eras, D.F, 1978, p. 28, 36.

    [5] Reflexes a partir de um comentrio de Shirley de Souza G. Carreira a propsito de um artigo do professor italiano Armando Gnisci, "A descolonizao que no passa.

    [6] Ainda no existem muitos estudos a respeito da mulher negra brasileira. Cf. p. ex. Maria Lcia Mott (1990), Laura Padilha (1990), Luiza Lobo (1987,1994).

    [7] Grard, Etienne, Crier pour ne pas crever de honte, Montral, Nouvelle Optique, 1982.

    [8] o caso do cartaz de Lia Vieira, Eu mulher, e um outro, Vozes Mulheres, com a participao de Conceio Evaristo, Lia Vieira, Bernadete Angelo, Lcia Romeu, Maria Zilah, Roseli Rocha, Sissa Schultz, Tima Ferraz Gomes. Muitas delas passaram a publicar nos Cadernos Negros, sendo Conceio Evaristo a mais freqente. Dela o primeiro romance editado por uma afrodescendente desde a publicao de rsula, por Maria Firmina dos Reis (1859; cf. nota 10). Cf. Evaristo, Conceio, Ponci Vicncio. Belo Horizonte: Mazza edies, 2003.

    [9] A terceira etapa corresponderia fragmentao da identidade, resultante da provisoriedade advinda das grandes mudanas estruturais e institucionais dos ltimos decnios, caracterizando o sujeito da ps-modernidade por "uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possveis" (HALL, ib., p.13). [10] Cf. Cadernos Negros 8, 1985, p. 67-71. Passarei a citar abreviadamente U.G. Esse conto foi publicado na Alemanha, na antologia Schwarze Prosa-Prosa negra (Augel, 1992).

    [11] No faria justia obra literria de Miriam Alves se no me referisse, pelo menos de passagem, face ta engajada e participativa de sua poesia. A ttulo de exemplo, lembro um dos seus poemas publicados em um dos ltimos nmeros dos C.N. e que tem por ttulo "Sem": Nesse espao onde a palavra polida, limada / faca, navalha, espada // Neste espao polido, potico, poltico / a olho nu sou: / Sem teto / Sem-terra / Cidado Sem / Trs vezes Sem / Apesar de morrer aos montes / Sem que me vejam / Broto resistente (Cadernos Negros 25, 2002, p.129).

    [12] De agora por diante, passarei a citar abreviadamente T.F. [13] De agora por diante, passarei a citar abreviadamente B. E. [14] De agora por diante, passarei a citar abreviadamente B.E.

    [15] Cf. a bibliografia final. Dois dos nove captulos de Leite do Peito ("Fim dos meus natais de macarronadas", p. 33, e "Banho no santo", p. 41), no constam dos dez captulos de A corda ternura (2001), que por sua vez traz mais trs captulos novos. Como o mais divulgado, utilizo aqui o livro na sua primeira verso, na edio de 1988.

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    [16] De agora por diante, passarei a citar abreviadamente CT. [17] O termo "subalterno", cunhado por Gramsci na acepo de despossudo economicamente, foi respropriado por crticos indianos que desenvolveram estudos sobre o subalterno. Entre eles, destacam-se Ranajit Guha e a muito conhecida Gayatri C. Spivak, que quiseram repensar a historiografia colonial da ndia, dominada pelo elitismo, a partir da perspectiva das margens silenciosas ou silenciadas, estigmatizadas pela violncia imperialista, coletividades marginalizadas sem voz prpria, sem uma