Artigo - O Percevejo

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Artigo - O Percevejo

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MAIAKVSKI: EXPERINCIAS E INTERPRETAES DO PROCESSO HISTRICO DA REVOLUO RUSSACom a morte de Maiakvski em abril de 1930, Rosngela Patriota Ramos (1994), aponta para o desaparecimento do homem e o surgimento do mito, de modo que surgem os ideais de perenidade conduzindo interpretaes e orientando o que deve ser resgatado pela histria ,excluindo do artista e obra sua historicidade inerente, o que acarreta a perda das experincias e interpretaes do prprio Maiakvski acerca do processo histrico vivenciado. Nesse sentido, o poeta e dramaturgo aparece revestido pela couraa do realismo, como atesta Angelo Maria Ripellino, ou mesmo pela alcunha de Poeta da Revoluo. Tais construes histricas buscam enquadrar o autor em uma determinada perspectiva estabelecida pelo regime Bolchevique no que diz respeito arte, o realismo socialista um dos grandes crticos dos rumos da Revoluo.

Assim, o nico meio de percebermos a fora das interpretaes, crticas e experincias de Maiakvski em relao ao seu tempo histrico retornar ao processo histrico, encarando-o em sua amplitude e vastido de possibilidades, eliminando aquilo que Franois Furet denomina por iluso da necessidade, uma vez que antes de se constituir em tragdia outrora o mesmo processo histrico construiu-se enquanto esperana. Para tanto, retomaremos a pea O Percevejo escrita por Maiakvski em razo do dcimo aniversrio da Revoluo e encenada somente em 1929, pouco tempo antes do suicdio do poeta.

Todavia, antes de adentrarmos anlise da pea em sua historicidade, devemos refletir acerca da retomada da obra e do pensamento de Maiakvski em nosso tempo presente, pensando em que medida este homem do incio do sculo XX pode ampliar nossas concepes acerca de ns mesmos. Nosso tempo marcado pela crise das utopias, dos grandes modelos explicativos e das grandes narrativas, de modo que h poucos ou mesmo nenhum projeto alternativo ao sistema vigente. A palavra utopia encarada como algo plenamente irrealizvel. Nesse contexto, emergem diversas propostas reformistas que no se propem, nem mesmo a longo prazo, efetuar mudanas estruturais. Nosso processo histrico parece fechado, sufocante, uma eternidade fadada a pequenas alteraes. Retomar Maiakvski trazer novamente tona as utopias, despidas de seu carter irrealizvel, os projetos alternativos ao sistema vigente e a perspectiva crtica afastada de dogmatismos ou sectarismos; , portanto, perceber que mesmo em meio quilo que se aparenta como tragdia, h perspectivas de futuro a serem apontadas.Deste modo, as experincias e interpretaes de Maiakvski desse processo histrico ocorrem tanto em suas expresses formais na arte, quanto no prprio contedo de seus poemas, filmes ou peas, de modo que devemos analisar tais proposies. De incio interessante percebermos as experincias das vanguardas artsticas russas durante os anos imediatamente anteriores Revoluo, percebendo o surgimento da personalidade artstica de Maiakvski. Para Ripellino, por mais que os crticos russos procurassem separar Maiakvski do futurismo, transformando-o em um sacerdote do realismo, este jamais deixou de se proclamar um futurista, exaltando os empreendimentos desse movimento, como no poema 150 000 000, no qual destaca-se os versos: Com os teares as pernas devorando as milhas/com os guindastes dos braos limpando as ruas/os futuristas/desmancharam o passado/atirando aos ventos o confete da velha cultura

Assim, h um mpeto dos futuristas em se contraporem ao tdio clssico, a velha cultura, subvertendo o senso do bom gosto pblico, estarrecendo os costumes da burguesia russa. Como se estivessem sempre em espetculos, os futuristas se vestiam sempre de modo extravagante. nesse momento em que Maiakvski cria a sua clebre blusa amarela. Todavia, Ripellino ressalta que h diferenas entre o cubo-futurismo russo e o futurismo italiano de Marinetti. Entre as originalidades do futurismo russo, o autor ressalta a averso pela guerra, pelo imperialismo, a revolta social e o colorismo. Ademais, h uma relao bastante profcua e original desses poetas cubo-futuristas com a pintura, permitindo uma srie de inovaes formais como atesta Ripellino:

Os cubo-futuristas construram, de fato, as prprias lricas como empastos cromticos e relaes de volumes. Pela rudeza arrojada do verso, pela superposio de planos semnticos opostos, pela consistncia tangvel dos objetos, que parecem furar com pontas agudas o tecido verbal, as pginas destes poetas derivam inteiramente da nova pintura. A poesia no mais um espelho de reflexos fulgurantes, uma distenso polida, como na poca do simbolismo, mas uma escabrosa seqncia de toros e desmoronamentos. J a partir dessas anlises de Ripellino, bem como dos excertos de poemas apresentados pelo autor, possvel percebermos as inovaes formais produzidas pelos cubo-futuristas e por Maiakvski o que, por sua vez, tambm demonstra a distncia existente entre este e o realismo socialista. Alm disso, interessante percebermos que aquelas propostas de vanguarda artstica propostas para a pintura, logo iniciam dilogo com as mais variadas linguagens artsticas, como a poesia, o teatro e o cinema. O prprio Maiakvski um desses artistas plurais, tendo composto cartazes, poemas, redigido peas de teatro e at roteiros de cinema.

A Revoluo Bolchevique, nessa esteira, interpretada como um campo aberto experimentao artstica, uma vez que esta extinguiria a velha retrica do academicismo burgus, libertando ainda mais o artista. Nesse sentido, de acordo com Ripellino, futurismo e revoluo, renovao formal e renovao poltica, pareciam sinnimos no incio do processo revolucionrio russo.

Durante o primeiro decnio da Revoluo, o teatro de vanguarda nasce a partir de tais experincias cubo-futuristas e estabelece novas expresses formais, a exemplo do suprematismo e do construtivismo, cuja influncia ntida na encenao de O Percevejo, em 1929, como atesta Ripellino. Nesse sentido, interessante notarmos a proximidade do construtivismo com os processos industriais de produo. Para os construtivistas, a arte deveria integrar-se produo na construo de objetos teis vida prtica. Nos termos de Maiakvski:

Pela primeira vez, no na Frana, mas na Rssia surgiu a nova palavra da arte, o construtivismo. Admiramo-nos at que esta palavra exista no lxico francs.No o construtivismo dos artistas, que de belos e teis fios de ferro e peas de lata criam apetrechos inteis. O construtivismo que compreende o trabalho formal do artista apenas como uma engenharia necessria para forjar toda a nossa vida prtica. Nisto os artistas franceses devem aprender de ns. Ademais, podemos perceber que h uma conscincia da inovao formal e artstica do construtivismo russo em relao s propostas dos artistas franceses, o que nos leva a problematizar o conceito de vanguarda artstica presente em Maiakvski. Em sua origem, o termo vanguarda est ligado s foras armadas, sendo utilizado para designar as tropas que ficam na linha de frente durante os combates. Durante os sculos XIX e XX, a definio de vanguarda adentra para as esferas da arte e da poltica, em sentido semelhante, designando aqueles que esto frente de algum processo ou movimento. Especificamente no mbito artstico, a vanguarda diz respeito a movimentos de ruptura com as propostas artsticas precedentes, tanto em questes relativas a forma quanto ao contedo. Partindo dessa definio, possvel compreender Maiakvski enquanto um representante das vanguardas russas do incio do sculo XX, em virtude da ruptura, consciente, que o autor estabelece com as formas artsticas anteriores. Roman Jakobson (2006) se atenta para tal fato: A poesia de Maiakvski qualitativamente diferente de tudo o que foi o verso russo antes dele, e, apesar das associaes genticas que se queira estabelecer, a estrutura de sua poesia profundamente original e revolucionria.

Contudo, essa estrutura revolucionria presente na poesia e no teatro de Maiakvski no implica em um descolamento do artista de seu tempo, ou mesmo em seu alheamento da sociedade. As propostas de vanguarda de Maiakvski se encontram profundamente radicadas em seu tempo e sua sociedade e, ainda, propem a integrao do artista produo e na construo dessa mesma sociedade. A vanguarda aqui no assume um aspecto de conduo da sociedade pelos intelectuais, de posse da iluminao, ou mesmo da recusa sociedade; ao contrrio, a vanguarda de Maiakvski busca integrar-se e construir.

Entretanto, segundo Ripellino, as propostas construtivistas, encarnadas na LEF, tornam-se bastante dogmticas, perdendo, portanto, sua fora de renovao formal. Para o autor, enquanto o construtivismo falhara nos outros campos artsticos, no campo teatral que sua fora triunfa, permitindo uma srie de inovaes cnicas, reforando a proposta de insero e aproximao da arte na indstria moderna. Nas palavras de Ripellino:

Se no conseguiu condicionar os costumes soviticos, o construtivismo teve ao menos seu triunfo no campo do teatro. Dispensando os painis pintados e as decoraes suprfluas, os construtivistas erigiram sobre o palco despojado armaes abstratas que continham torno e tear, encaixes engenhosos de torres e escadas e partes giratrias. A ribalta assumiu o aspecto esqueltico de um viaduto ferrovirio de uma estrutura composta de peas de um mecano

Postas tais reflexes, iremos agora para a anlise da pea em si, selecionando alguns trechos que melhor ilustram as construes de Maiakvski, sempre buscando compreend-las em um processo histrico aberto. A pea, O Percevejo, foi escrita em 1928 e encenada no ano seguinte, no entanto, a escrita da pea deveria ter se dado anteriormente em razo de que esta fora encomendada Maiakvski no intuito da comemorao do decnio da Revoluo Bolchevique. Em virtude da enormidade de compromissos assumidos pelo autor, outra pea foi entregue a encenao: O Percevejo.Um dos primeiros pontos que gostaramos de destacar ocorre logo na primeira cena, quando Baian, Prisspkin e Roslia Pvlovna vo s compras para o casamento arranjado entre Prisspkin e a filha de Pvlovna, Elzevira Renaissence. Durante a cena vrios produtos so oferecidos, comprados e pagos por Roslia Pvlovna, seguindo os desejos de Prisspkin, sempre orientados pelo ex-proprietrio Bain. Em meio as compras Baian diz:

Compre, Roslia Pvlovna, compre! Ele no mais um homem vulgar! assim que a classe ascendente v as coisas. E esta classe est a, bem na nossa frente. Ela traz sua imaculada origem proletria, um carto do sindicato e voc, Roslia Pvlovna, paga! A casa dele ser o corno da abundncia! J por meio desse excerto podemos notar a crtica de Maiakvski ao contexto de seu tempo histrico. Prisspkin, um proletrio em meio consolidao da Revoluo Socialista, comporta-se como um homem de classe ascendente, que disfara seus costumes burgueses e consumistas a partir de sua imaculada origem proletria, a qual busca transferir para a famlia de sua futura esposa. Com isso, podemos nos reportar ao contexto da NEP Nova Poltica Econmica -, implementada aps o trmino da guerra civil. Por um lado, as novas polticas econmicas revitalizaram a Rssia aps os tormentos e a escassez da guerra, retomando a vida urbana, a produo e o comrcio; por outro, gerou um surto de consumismo desenfreado e a emergncia de novos ricos de elegncia e costumes burgueses, matizados pelo verniz do comunismo, como aponta Ripellino. No entanto, Prisspkin, ainda se diz contra os costumes pequeno-burgueses, como no excerto reproduzido abaixo:Camarada, Baian, eu tambm sou contra todos esses costumes pequeno-burgueses...essas cortinas com lacinhos, gernios e passarinhos...Eu sou homem de perspectivas histricas! No momento o que eu mais quero uma cristaleira! Essa passagem, de cida e refinada ironia, caminha no sentido daquilo que estamos analisando. Prisspkin, acredita ser um homem de perspectivas histricas, o que podemos aproximar com a idia da possa das leis da Histria pelos revolucionrios, de modo que estes sabem, a partir da exatido de seus conhecimentos cientficos, por onde so trilhados os rumos da Histria. Aqui, o processo histrico parece ter alado Prisspkin condio de classe dominante, em razo de suas lutas na guerra civil e na revoluo, o que o torna um homem de perspectivas histricas. No entanto, esse homem deseja apenas comprar uma cristaleira. Nesse sentido, a perspectiva histrica desses homens parece se concentrar em reproduzir os costumes burgueses de elegncia, exibicionismo e consumo.Todavia, a atitude de Prisspkin no passa desapercebida de todos os personagens da pea. De volta ao dormitrio de estudantes e operrios, Prisspkin duramente criticado por seus colegas de quarto, o rapaz descalo, o jovem operrio, o inventor, o da vassoura e o serralheiro. Todos estes homens percebem que Prisspkin est abandonando sua classe de origem, traindo-a em um casamento com Elzevira Renaissence, acertando de vez as contas com o proletariado. Nesse sentido o homem Descalo e o Serralheiro dizem:

O Descalo: Mas isso mesmo o que ele um Ramsay MacDonald! O problema no a gravata que est presa nele, ele que est preso na gravata. Agora ele j no pensa mais... Tem medo de fazer o crebro trabalhar.

(...)

O Serralheiro: Entre ele e um operrio no existe nenhuma semelhana. Ele at j pediu para acertar as contas. Vai se casar com uma mocinha cujo papai cabeleireiro. Ela caixa e manicure. Elzevira Renaissance, que agora vai lhe fazer as unhas.

Assim, aqueles que seriam os verdadeiros representantes da classe operria, colegas de Prisspkin, continuam descalos ou trabalhando pesado, enquanto Prisspkin abandona sua classe a partir da um casamento supostamente vermelho com algum que em troca receber sua imaculada origem proletria. Nessa passagem interessante notar que Prisspkin est preso aos objetos que consome, no caso a gravata. H, portanto, diferenas a serem notadas em relao temtica dos objetos nessa pea. Enquanto os Mistrio Bufo, os objetos encontram-se na Terra Prometida, sem donos, prontos para serem utilizados pelos impuros para o livre desenvolvimento da terra, em O Percevejo, o homem est preso ao objeto que o impede de pensar suas prprias atitudes. Contudo, diante de todas as acusaes dos companheiros, Prisskpin rebate:Cuide dos seus negcios, respeitvel camarada! Por que voc pensa que eu lutei? Lutei por uma vida boa e melhor e agora tenho tudo isso: uma esposa, um lar e boas maneiras. Em caso de necessidade sempre sei qual o meu dever! Aquele que fez a guerra tem todo o direito de se deitar beira do rio e repousar! E tenho o dito! Meu bem-estar pessoal pode at elevar o nvel toda a minha classe! E tenho o dito! Somente quele que lutou na guerra dado o direito de repousar beira do rio e a possibilidade de uma boa vida com esposa, lar e boas maneiras, enquanto aqueles que no lutaram durante a guerra prosseguem em uma vida semelhante, no entanto, na concepo de Prisspkin no h problemas nisso, uma vez que sua melhora de vida significa uma elevao no nvel de vida de toda sua classe. ntido que o personagem se distancia de seus colegas de quarto e passa a pensar somente em si mesmo e na boa vida que conseguir a partir do casamento. O casamento, que em toda sua produo almeja ser um casamento vermelho, , na verdade, uma unio entre Capital e Trabalho, envernizada pelo marxismo (pseudomarxismo) de Baian:Nos tempos em que ramos oprimidos sob o jugo da autocracia, como nossos grandes mestres Marx e Engels poderia imaginar que os laos do Himeneu poderiam unir o Trabalho annimo mas grandioso, ao Capital, destronado, mas sempre sedutor? A partir desse excerto podemos refletir acerca de Baian na pea. Como j elucidamos este personagem um ex-proprietrio, que agora busca ascender socialmente ou mesmo manter o padro de vida precedente, nos novos tempos revolucionrios aproximando-se de Prisspkin e da nova classe ascendente. Nessa aproximao Prisspkin quem aprende os costumes e as boas maneiras do ex-proprietrio, que praticamente conduz os preparativos para o casamento. Ademais, Baian que atesta para a unio entre capital e trabalho selada pelo casamento. Mesmo depois da revoluo o capital ainda de tal modo sedutor que termina por se unir ao trabalho, classe revolucionria, que ainda assimila os costumes, valores e tradies burguesas.

Ironicamente, Maiakvski, nos diz que o casamento vermelho terminou em um carro com a cruz vermelha. Durante um grave incndio todos os personagens morrem, exceto Prisspkin que fora congelado pela gua dos bombeiros. Cinqenta anos mais tarde, em 1979, o corpo congelado de Prissipkin encontrado e descongelado, fazendo-o retornar vida em uma sociedade totalmente diferente.

importante aqui refletirmos acerca da temtica do futuro e da ressurreio na obra de Maiakvski. O Percevejo no a nica obra em que um personagem transportado para outro tempo, ou que se passa no futuro. Em Os Banhos, h uma personagem que retorna ao passado do futuro. O poema Sobre Isto, mostra um qumico do sculo XXX a ressuscitar alguns mortos em busca de algum do sculo XX. Quanto ressurreio, Maiakvski realmente acreditava em sua possibilidade a partir dos desenvolvimentos cientficos da poca. Deste modo, devemos perceber como as temticas da ressurreio e do futuro aparecem na obra de Maiakvski, pesando, como aponta Roman Jakobson que a obra do poeta o desenvolvimento dialtico de um tema:A obra potica de Maiakvski, desde os primeiros versos em Bofetada no gosto pblico, at as ltimas linhas, nica e indivisvel. o desenvolvimento dialtico de um nico tema. Um sistema simblico extraordinariamente unificado. O smbolo, lanado uma vez como aluso, desdobra-se e mostra-se em seguida sob perspectiva diferente. (...) Por vezes, uma imagem apresentada humoristicamente pode, mais tarde, em outro contexto, perder seu efeito cmico; ao contrrio, um motivo apresentado inicialmente de forma solene pode repetir-se em tom de pardia. Mas no se trata da profanao da crena de ontem; so dois planos de uma nica simbologia o trgico e o cmico, como no teatro medieval. A partir das reflexes de Jakobson podemos considerar a ressurreio e o futuro como imagens ou smbolos que se desenvolvem dialeticamente entre a tragdia e a comdia. Em Mistrio-Bufo, por exemplo, as perspectivas de futuro so excelentes. Os impuros conseguem livrar-se dos puros, alcanando a Terra Prometida, onde podem desenvolver-se livremente a partir da utilizao dos objetos e das mquinas sem donos e da ausncia dos puros que os oprimem. Essa obra, uma comemorao ao primeiro aniversrio da Revoluo Russa, em um momento em que a mesma no se encontrava consolidada e seus rumos estavam ainda mais abertos que no contexto da escrita do Percevejo, em 1928.Prisspkin, por outro lado, descongelado e volta a vida em 1979 junto com um percevejo que tambm esteve congelado nesses cinqenta anos, em um mundo que os v com uma reao de estranhamento. Em 1979, a Revoluo Socialista Mundial j est pronta, no entanto, essa sociedade aparece com extraordinria esterilidade: as guitarras e serenatas so artigos para se drogar as massas, o cigarro, se perguntam os habitantes de 1979, poderia matar um elefante, assim como tambm se perguntam o significado de alcolico, baguna, burguesia, burocracia, bordel, boemia.Nesse contexto, Prisspkin considerado como um animal portador de doenas que terminam por contaminar pessoas e animais domsticos. O reprter noticia que uma pobre garota que mora ao lado de Prisspkin, ao ouvir o som de sua guitarra, comea a perder seu juzo e os cientistas diagnosticam que a garota sofre de uma doena extinta do passado: a Paixo. Diante desse mundo, Prisspkin reclama com o Professor:Prisspkin: Voc me ressuscitou para qu? Para rir da minha cara? Isso aqui faz o efeito que um refresco a um elefante.

Professor: A sociedade queria dar-lhes os meios necessrios de voltar ao estado humano.

Prisspkin: Ento pega essa sociedade e manda ela pro inferno! E vai tambm junto, vai! Eu no pedi para ningum me ressuscitar! Me congelem de novo! E tenho o dito.Professor: Eu no entendo o que voc quer dizer. As nossas vidas pertencem nossa coletividade e ningum pode...

Prisspkin: Vida? isso que voc chama de vida? Voc no pode nem pregar o retrato da namorada na parede que as tachinhas entortam nesses vidros malditos. A sociedade em que Prisspkin vivia em 1929 apresenta vrios elementos crtica, a exemplo da permanncia dos costumes burgueses revestidos pelo verniz comunista, a unio entre capital e trabalho, o surgimento dos novos ricos que se tornam a nova classe ascendente, dentre outros. Cinqenta anos depois, essa sociedade parece ainda mais problemtica porque tolhe as possibilidades de vida, extinguindo inclusive o amor, em nome de uma determinada coletividade que tudo comanda. A revoluo, encarada pelos futuristas como possibilidade de desenvolvimento artstico, social e poltico, termina por conter as expresses da vida, em uma organizao racional, sem mpeto, sem condensaes suprfluas de energia, sem devaneios. A revoluo social do mundo foi concluda, mas a revoluo do esprito ainda est pela frente.. Deste modo, compreensvel a recusa de Prisspkin existncia nessa nova sociedade.

Em 1979, a humanidade de Prisspkin retirada por meio do discurso cientfico do diretor, que o considera um animal parasita semelhante ao percevejo que se congelou com seu corpo. Assim como no h mais rastros do passado da sociedade dos anos 1920, no h tambm traos de sua humanidade, crem os homens racionais dos anos 1970. Vale a pena registrarmos a passagem da pea onde o Diretor apresenta no zoolgico Prisspkin:So dois os parasitas, diferentes no tamanho mas semelhantes quanto espcie: um o famoso Percevejus normalis e o outro o Philisteus vulgaris. Ambos tm o mesmo habitat: os velhos colches embolorados pelo tempo. O Percevejus normalis, depois de sugar o sangue de um s homem, saciado, cai por debaixo da cama. O Philisteus vulgaris, depois de sugar o sangue de toda a humanidade, saciado, tambm cai debaixo da cama. Esta a nica diferena. Depois da Revoluo, quando a massa trabalhadora se agitava e se debatia, livrando-se da sujeira que a recobria, estes parasitas se apropriavam dessa sujeira, construindo nela seus ninhos e casas, espancando suas mulheres, invocando Babel e repousando na beatitude e no oportunismo. Entre os dois, o Philisteus vulgaris o mais terrvel.(...) Estes pssaros faziam seus ninhos nos camarotes dos teatros, se deliciavam com as peras, bocejam com A Internacional, transformavam Tolstoi em Marx, e permitam-me a expresso, justificada pelo carter cientfico desta exposio, produziram excrementos em quantidade demasiadamente grande, o que os diferenciava dos pssaros. Os homens do futuro, a partir de suas experincias rigidamente cientficas, categorizam o homem do passado como um filisteu vulgar e conseguem desmascarar os excrementos produzidos por filisteus vulgares como Prisspkin. Estes filisteus vulgares atuam como parasitas sugando o sangue de toda humanidades at que saciados caem por debaixo da cama; aps a Revoluo aproveitam-se do clima de instabilidade para ascenderem socialmente, sempre ancorados por um falso marxismo que transforma Tolstoi em Marx.

Nesse ponto, os homens do futuro parecem ter se tornado conscientes dos problemas apresentados pelos homens dos tempos da NEP, crendo que estes habitam somente os colches embolorados do tempo, podendo somente aparecer aps o descongelamento de um corpo preservado por cinqenta anos. Todavia, na cena final Prisspkin, quando exposto populao do mundo todo, que assiste quilo com um misto de terror e surpresa, toma o microfone do Diretor do zoolgico e diz: Cidados!Meu povo! Meus irmos! De onde vocs vieram? Vocs so tantos. Quando vocs foram descongelados? Por que eu estou sozinho na jaula? Meus amigos, meus irmos! Venham comigo! Por que estou sofrendo tudo isso? Camaradas!... (MAIAKVSKI, 2009, p. 75) A partir da fala final de Prisspkin a platia se aterroriza com suas palavras. O professor diz que o barulho e os fogos de artifcio causaram agitaes e alucinaes no animal, que no dia seguinte estaria mais calmo e disposto visitao.

Assim, as duas sociedades de 1929 e 1979 so aproximadas quando Prisspkin enxerga naqueles homens do futuro seus semelhantes, que ignoram sua prpria humanidade. Nesse sentido, os homens do futuro, que criam ter se livrado dos parasitavas habitantes dos colches embolorados do tempo, so, na verdade, herdeiros destes filisteus, ainda que continuem a negar e interpretar como alucinadas as palavras de Prisspkin. Nesse momento, a crtica de Maiakvski aos rumos da Revoluo Bolchevique nos seus primeiros dez anos, se completa de forma de magistral. Percebendo a vulgaridade do discurso dos revolucionrios de sua poca, Maiakvski aponta para a continuidade desse falso discurso comunista, que, afinal, propagado por uma nova burguesia que surge sob o macaco do proletariado. A vitria desse discurso perigosa, pois apaga as possibilidades de sua prpria contestao, de modo a considerar como ilusria qualquer tentativa de fuga aos seus padres, perpetuando os costumes anteriores prpria Revoluo, em um processo de fechamento e sufocamento da Histria.No que tange Maiakvski (lembrando aqui que no devemos confundir nessa pea a personagem Prisspkin e Maiakvski), Jakobson aponta para um eterno esprito de revolta presente no poeta, de modo que este por vezes sente-se preso aos grilhes da terra, sem poder libertar-se. O eu do poeta um arete que golpeia o Futuro proibido; a vontade lanada alem do limite derradeiro para a encarnao do Futuro, para a plenitude absoluta da existncia: preciso arrancar alegria ao futuro . Na contramo desse mpeto transformador, impe-se a Maikvski um presente estagnado, fechado, que sufoca a vida criando padres rgidos de difcil superao.

Contudo, podemos problematizar que no h em Maiakvski, apesar do suicdio, um desencanto total em relao s possibilidades de transformao da sociedade. Quando o diretor expe o filisteu vulgar, expe concomitantemente os excrementos produzidos pelo animal, desvendando sua atuao no passado. O nico ponto que ignora o fato de que aquela sociedade herdeira daquele parasita. Outrossim, a crtica ao passado feita. Mesmo nesse mundo estril, h a possibilidade de algum lampejo de lucidez, que tambm toca Prissipkin que, ao fim, percebe que h tambm semelhanas entre os dois tempos. Assim, a anlise de Jakobson acerca do desenvolvimento dialtico entre tragdia e comdia na obra de Maiakvski parece encaixar-se perfeitamente na anlise de O Percevejo.Com isso podemos refletir acerca do suicido de Maiakvski e de outros artistas fizeram o mesmo ou foram mortos pelo regime sovitico. Para Jakobson, o suicdio, na concepo de Maiakvski, uma das formas de interrupo de um tempo decrpito. E h a sensao de viver em um tempo decrpito. Devemos a todo tempo recordar que Maiakvski um homem com o esprito eterno da revolta e da transformao que assiste e participa de um processo revolucionrio, que poderia potencializar as transformaes sociais, mas que, no seu desenrolar, termina por fechar-se novamente em concepes rgidas, inclusive no mbito da arte. Nesse contexto, as propostas crticas e vanguardistas de Maiakvski no se encaixam. Os arautos do realismo socialista o taxam de formalista e incompreensvel para as massas e, aps sua morte, o cobrem com a couraa do realismo. Assim, por a vida o ponto final de um balao uma opo para interromper esse tempo.

O tempo interrompido no significa, todavia, o abandono da crena e da utopia. Maiakvski acreditava de fato na possibilidade da ressurreio. Quando do suicdio afirma estar quite com a vida, pede aos homens que sejam felizes e lhes diz que a luta continua. No futuro, Maiakvski espera ressuscitar para viver aquilo lhe cabe, aquilo que lhe foi vedado durante sua vida. E assim como Maiakvski, muitos, como Iessinin, sentiram-se sufocados pelo tempo, matando-se, ou sendo mortos por desafiarem esse mesmo tempo. Assim, Roman Jakobson, escrevendo logo aps o suicdio de Maiakvski, em tom sombrio e melanclico, reflete sobre a perda e sobre aquela gerao que perdeu seus cantores, sobre a uma gerao deserdada, que teve seus poetas esbanjados:

Nossa gerao estreou extraordinariamente cedo: Somente ns somos a face do nosso tempo. A trompa do tempo ressoa por nosso intermdio. Mas no h, at agora e disto Maiakvski deu-se conta muito cedo nem rendio, nem esforo parcial. Entretanto, a voz e o pathos falharam, a reserva aberta de emoes, alegria e aflio, sarcasmo e entusiasmo foi consumida, e eis que a convulso dessa gerao sem sucessores aparece no como um destino particular, mas como o rosto do nosso tempo, uma sufocao da histria. (...) Quando os cantores so assassinados e as canes, arrastadas ao museu e presas ao passado, a gerao atual torna-se ainda mais desolada, mais abandonada e mais perdida, mais deserdada, no sentido mais verdadeiro da palavra.

Portanto, a partir disso pudemos perceber as experincias e interpretaes de Maiakvski do processo histrico da Revoluo Bolchevique partindo de uma leitura da pea O Percevejo enquanto fonte histrica que denota a abertura do processo histrico em questo. Com isso, pudemos desconstruir alguns mitos correntes acerca de Maiakvski. O primeiro destes, apontado por Ripellino diz respeito ao enquadramento do poeta dentro da corrente do realismo socialista. O segundo ponto diz respeito a Maiakvski enquanto o Poeta da Revoluo. De fato, Maiakvski acreditou no ideal revolucionrio e foi o poeta da revoluo, no entanto, no o poeta da Revoluo Bolchevique, que ocorreu concretamente na Rssia. A crtica a Revoluo Bolchevique no exclui as propostas de revoluo de Maiakvski, o que refora a necessidade da retomada da obra e do pensamento do autor.

BIBLIOGRAFIAFURET, Franois. A Paixo Revolucionria. In: O passado de uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So Paulo: Siciliano, 1995, p. 15-46.

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MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009.

PATRIOTA, Rosngela. Histria e Teatro: Dilemas Estticos e Polticos de Vladmir Maiakvski. In: Histria. So Paulo: UNESP, volume 13, 1994, p. 185-196.

RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. So Paulo: Editora Perspectiva, 1971.

TRAGTENBERG, Maurcio. A Revoluo Russa. So Paulo: Editora Atual, 2 Edio, 1988.

Notas

PATRIOTA, Rosngela. Histria e Teatro: Dilemas Estticos e Polticos de Vladmir Maiakvski. In: Histria. So Paulo: UNESP, volume 13, 1994, p. 185-196 p. 185

RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. So Paulo: Editora Perspectiva, 1971.

FURET, Franois. A Paixo Revolucionria. In: O passado de uma iluso: ensaios sobre a idia comunista no sculo XX. So Paulo: Siciliano, 1995, p. 15-46.

MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009.

RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. So Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 12

Idem, p 32-33.

Ibidem, p. 120

JAKOBSON, Roman. A Gerao que Esbanjou Seus Poetas. Traduo: GONALVES, Sonia Regina Martins. So Paulo: Cosac Naify, 2006.

Idem, p. 9

RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakvski e o Teatro de Vanguarda. So Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 123

MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009, p. 14

Idem, p. 17

Ibidem, p.23-25

MAIAKVSKI, Vladmir. Mistrio-Bufo: Um retrato herico, pico, satrico da nossa poca. Traduo: BELIAEV, Dmitri. So Paulo: Editora Musa, 2 Edio, 2001.

MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009, p. 30

Idem, p. 35-36

JAKOBSON, Roman. A Gerao que Esbanjou Seus Poetas. Traduo: GONALVES, Sonia Regina Martins. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 13

MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009, p. 64

JAKOBSON, Roman. A Gerao que Esbanjou Seus Poetas. Traduo: GONALVES, Sonia Regina Martins. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 25

MAIAKVSKI, Vladmir. O Percevejo: Comdia fantstica em nove cenas. Traduo: CORRA, Luiz Antnio Martinez. So Paulo: Editora 34, 2009, p. 73

Idem, p. 75

JAKOBSON, Roman. A Gerao que Esbanjou Seus Poetas. Traduo: GONALVES, Sonia Regina Martins. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 15

Idem, p. 52-53