Artigo Opus - Negro Nas Atividades Musicais Corte Imperial

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Resumo: Este artigo tem como objetivo relacionar a cultura negra e as atividades musicais dos teatros na corte imperial durante o século XIX, demonstrando como os espetáculos apresentados nos palcos da capital espelhavam a realidade social do regime escravocrata. A teia complexa engendrada a partir dos palcos da capital imperial abrange aspectos sócio-culturais e político-econômicos e ultrapassa determinados limites de tempo estabelecendo um continuum que liga o Brasil-Império à colônia, por um lado, e à República, por outro, assim possibilitando percebermos traços marcantes da sociedade brasileira.

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    COSTA-LIMA NETO, Luiz. O teatro das contradies: o negro nas atividades musicais nos palcos da corte imperial durante o sculo XIX. Opus, Goinia, v. 14, n. 2, p. 37-71, dez. 2008.

    O teatro das contradies: o negro nas atividades musicais nos palcos da corte imperial durante o sculo XIX

    Luiz Costa-Lima Neto (ISEPE)

    Resumo: Este artigo tem como objetivo relacionar a cultura negra e as atividades musicais dos teatros na corte imperial durante o sculo XIX, demonstrando como os espetculos apresentados nos palcos da capital espelhavam a realidade social do regime escravocrata. A teia complexa engendrada a partir dos palcos da capital imperial abrange aspectos scio-culturais e poltico-econmicos e ultrapassa determinados limites de tempo estabelecendo um continuum que liga o Brasil-Imprio colnia, por um lado, e Repblica, por outro, assim possibilitando percebermos traos marcantes da sociedade brasileira.

    Palavras-chave: Musicologia histrica; teatro musicado; corte imperial; cultura negra; escravido; identidade.

    Abstract: This article draws a connection between black culture and the musical activities of theaters at the Brazilian Imperial Court during the nineteenth century, showing how performances mirrored the social reality of slavery. The complex web engendered from the stages of the Imperial capital comprises socio-cultural and politico-economic aspects and extrapolates certain time limits, thus establishing a continuum that links the Empire of Brazil to the former Portuguese colony, on the one hand, and to the later Republic, on the other hand, thus making it possible to identify significant features of Brazilian society.

    Keywords: Musical theater; Brazilian Imperial Court; black culture; slavery; identity.

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    ESCRAVO FUGIDO 500$000 Fugiu no ms de abril de 1878, da Fazenda da Cachoeira, freguesia de Nossa Senhora da Conceio de Vassouras, o escravo Venncio, pardo, natural de Minas, perfeito, oficial carpinteiro, de 40 anos de idade, estatura alta, magro, rosto descarnado, barba no queixo e bigode, olhar espantado, andar apressado, gingando, mexendo com os braos e de cabea alta; gosta muito de tocar viola e intitula-se livre, e como tal desconfia-se achar-se alugado em alguma obra da corte, na empresa Gabrielli ou no Matadouro; quem o apreender e levar fazenda acima ou ao seu senhor o Dr. Antnio Lazzarini, ou Rua dos Beneditinos, no. 10, aos Srs. Roxo Lemos C., receber a gratificao de 500$000. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1880, p. 7)1

    presente artigo teve como ponto de partida os dados colhidos em pesquisa feita nos exemplares referentes ao ms de janeiro dos anos de 1880 e 1882 do Jornal do Commercio. O referido jornal constituiu uma fonte privilegiada de

    pesquisa por permitir-me vislumbrar aspectos importantes da vida musical na capital imperial, tais como: o comrcio de partituras de polkas, lundus, valsas e tangos, bem como a venda, leilo, aluguel e conserto de pianos, harmnios, clarinetas, requintas e caixas de msica, alm da oferta de servios como aulas de piano e canto. No que tange especificamente ao tema do presente texto, os anncios publicados no Jornal do Commercio forneceram informaes vitais sobre os espetculos dramtico-musicais apresentados diariamente nos teatros imperiais. O teatro oitocentista era, de maneira semelhante aos meios de comunicao de massa atuais, o maior responsvel pela apresentao dos novos gneros e estilos para um nmero grande de pessoas na capital, o que esclarece a importncia das informaes publicadas diariamente nos peridicos. Estas incluam as denominaes dos teatros imperiais, os ttulos das produes teatrais e musicais, o tipo de espetculo (pera, comdia, opereta, mgica, farsa ornada em msica, etc.), o nome do empresrio ou da companhia responsvel pela produo, os autores e os tradutores dos espetculos, alm do elenco que participava das apresentaes e, em alguns casos, o preo dos ingressos cobrados nos teatros, dentre outros dados de interesse.

    Contudo, gradativamente, outros tipos de anncio, dispostos acima dos rodaps onde constavam as propagandas de espetculos ou espalhados em outras sees dos peridicos passaram a atrair a minha ateno, a despeito de meu objetivo inicial que era o de unicamente fazer um levantamento de dados visando relacionar a msica e o teatro na

    1 Nessa citao e nas seguintes, o grifo meu.

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    sociedade carioca durante as dcadas finais do sculo XIX. Refiro-me aos inmeros anncios de venda, compra e aluguel de escravos e escravas, negrinhas, pardas e pretas para servir de amas-de-leite,2 lavadeiras, engomadeiras, arrumadeiras, cozinheiras, carpinteiros, pedreiros:

    Vende-se uma parda, de 28 anos, sabendo fazer todo o servio domstico, podendo servir de ama-de-leite. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1880, p. 9)

    Outros anncios ofereciam gratificaes e recompensas pela delao ou captura de escravos fugidos, alguns dos quais, msicos, como, por exemplo, Venncio, o tocador de viola referido na citao que serve de epgrafe a este trabalho. A insistncia com que os anncios apareciam diariamente, em cada pgina dos jornais, demonstrava a fora da demanda e da oferta gerada pelo comrcio valioso das peas, embora, neste caso, a denominao peas no estivesse associada aos espetculos de teatro musicado, nem s partituras musicais clssicas, mas aos escravos negros:

    Vendem-se escravos, boas peas, de 14 a 20 anos de idade, tambm tendo carpinteiros, pedreiros e cozinheiros; no Largo de Santa Rita, no. 18. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1880, p. 9)

    Assim, alm de coletar as propagandas dos espetculos teatrais e musicais ocorridos nos diversos teatros da capital imperial passei a recolher os anncios referentes venda, compra, aluguel, busca e captura de escravos. So estas duas fontes principais que serviro de matria-prima para este trabalho, no qual tenho dois objetivos inter-relacionados: a) identificar as atividades musicais nos teatros da cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas dcadas finais do sculo XIX, alm das maneiras atravs das quais os cariocas se apropriaram dos gneros musicais e teatrais europeus importados, ressignificando-os, criativamente (ver MAGALDI, 2004) e; b) investigar a participao musical dos negros nos teatros da capital imperial durante o mesmo perodo e ao longo do sculo XIX, alm de contemplar os discursos sobre a cultura negra, por parte daqueles que produziam ou consumiam os espetculos na corte. Pretendo, assim, desvendar algumas teias de relaes scio-culturais e polticas nas quais os teatros imperiais tomavam parte,

    2 Observo que o aluguel de amas-de-leite representava uma atividade econmica nas cidades. Os pequenos senhores de escravos exploravam esse mercado, alugando a terceiros suas cativas em perodo ps-natal. (ALENCASTRO, 1997, p. 63-6)

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    servindo como elos que relacionavam os diversos estratos da escala social elites, classe mdia urbana e, na base da escala, os escravos, libertos, alm dos homens livres pobres.

    Concordando com Attali (1985) a respeito do papel duplo da arte como espelho e profecia, acredito que a anlise desta teia complexa engendrada a partir dos palcos cariocas revela no apenas aspectos relevantes da vida cultural e poltica da capital imperial, como, ainda, ultrapassa determinados limites de tempo e estabelece um continuum que liga o Brasil-Imprio colnia, por um lado, e Repblica, por outro, assim possibilitando percebermos traos marcantes da sociedade brasileira. Atravs deste continuum o presente percebido como um tempo que contm aspectos do passado e, simultaneamente, do futuro. Acredito que no mbito de meu trabalho esta percepo do tempo histrico evidenciada por determinadas caractersticas do perodo colonial brasileiro que foram perpetuadas na capital do Imprio, especialmente no que diz respeito ao comrcio, to lucrativo como repugnante, de escravos. Isto numa poca onde os escravos existentes provinham basicamente do contrabando e da escravido ilegal de pessoas livres:

    Aluga-se uma pessoa livre, de meia idade, para lavar e engomar. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 9 de janeiro de 1880, p. 8)

    Era justamente esta condio livre que o tocador de viola, Venncio, reivindicava para si ao fugir da Fazenda da Cachoeira, em Vassouras, na zona rural do estado do Rio de Janeiro. Dcadas aps o fim do trfico negreiro (1850), a escravido e o preconceito racial ainda se faziam sentir fortemente na capital imperial e no pareciam ter arrefecido nem mesmo nos anos que antecederam a abolio da escravatura (1888) e a proclamao da Repblica (1889). A citao, abaixo, exemplifica o que expus a respeito do tema escravido na histria do Brasil:

    O escravismo no se apresenta como uma herana colonial, como um vnculo com o passado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um compromisso para o futuro: o Imprio retoma e reconstri a escravido no quadro do direito moderno, dentro de um pas independente, projetando-a sobre a contemporaneidade. (ALENCASTRO, 1997, p. 17)

    As folhas quebradias dos exemplares originais do Jornal do Commercio escancaravam a veracidade das informaes impressas e traziam o passado para o presente, estampando o que parecia ser um contraponto total entre, de um lado, o mundo fantstico e glamoroso das comdias, peras, operetas e mgicas e, de outro, o submundo do comrcio de escravos negros. Desta maneira, uma questo foi surgindo no decorrer da pesquisa e

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    acabou me subjugando por fim: haveria alguma relao entre aqueles dois universos aparentemente to distantes, mas unidos nas pginas velhas do Jornal do Commercio?

    Consideraes iniciais

    Na poca da Independncia (1822), a populao do Rio de Janeiro era de 100.000 habitantes, quantitativo que aumentou em 1872 para 275.000. Deste ano, at a proclamao da repblica em 1889, a populao da cidade praticamente dobrou. Os teatros eram frequentados pela elite composta pela Famlia Real, pela aristocracia e pelas grandes oligarquias e famlias que dominavam a poltica, a administrao e a economia desde a colnia (aproximadamente 2 a 5% da populao total da corte). Alm da elite, afluam aos teatros a classe mdia urbana integrada heterogeneamente por brasileiros e imigrantes, na qual figuravam intelectuais, estudantes, artesos, doutores, msicos, costureiros, comerciantes, donos de pequenos negcios e burocratas, dentre outros profissionais. (MAGALDI, 2004, p. xiii, xix)

    Desde o incio do sculo XIX at 1868,3 alguns teatros e companhias lricas e dramticas foram subvencionados diretamente pela monarquia, o que comprova a importncia estratgica dos teatros no cenrio poltico do Imprio no Brasil. Todas as festividades importantes da corte, tais como nascimentos, aniversrios e eventos polticos eram comemorados com apresentaes teatrais ou musicais. (MAGALDI, 2004, p. 13) Atravs dos teatros o regime monrquico exercia claramente uma forma de colonialismo cultural, como uma estratgia de dominao mais eficaz do que a guerra e bem mais barata do que esta, na qual a pera (italiana) figurava como emblema central da ideia europeia de civilizao, vida urbana e modernidade. (p. 24, 36) Aps o sucesso das peras de Rossini, iniciado em 1820, a pera comeou a entrar em decadncia na segunda metade do sculo XIX, sendo substituda gradativamente, no gosto da nova classe mdia urbana, pelas operetas, comdias, mgicas e revistas de ano. Assim, graas a um jogo ambguo e paradoxal onde, de um lado, a cultura e os valores europeus eram imitados e, de outro, eram reapropriados e ressignificados pelos cariocas, a vida musical da capital imperial tornou-se indissociavelmente relacionada ao teatro.

    3 AUGUSTO afirma que os teatros So Pedro de Alcntara e Provisrio receberam subvenes permanentes do regime monrquico at 1868, enquanto que os teatros Ginsio Dramtico e So Janurio receberam subvenes em determinados perodos ao longo de seu funcionamento. (AUGUSTO, 2008, p. 104)

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    Entretanto, a sociedade no ia aos teatros imperiais apenas para assistir aos espetculos artsticos, mas para ver e ser vista. Magaldi (2004, p. 37) menciona a observao arguta do renomado escritor mulato (ou negro?) Machado de Assis4 (1839-1908) de que os camarotes dos teatros da corte eram eles mesmos, palcos em miniatura. De fato, a elite e a classe mdia urbana da cidade em vias de modernizao procuravam os teatros para fazer negcios, ter encontros amorosos, alm de assistir aos espetculos, cujos programas consistiam de uma mistura hbrida de pera, opereta, msica instrumental, teatro, dana e poesia alguns teatros podiam, inclusive, servir de picadeiro circense. Os teatros permaneceram onipresentes na vida musical dos cariocas at a dcada de 1880, quando, gradualmente, a msica sinfnica e de cmara da tradio clssica comeou a ser apresentada de maneira independente em salas de concerto pequenas. Entretanto, mesmo nas dcadas finais do sculo XIX, o carter hbrido do repertrio antes apresentado nos teatros se manteve nas novas salas de concerto atravs da combinao heterognea de excertos de pera, nmeros de dana extrados de operetas e solos instrumentais virtuossticos baseados nas rias de pera.

    Mas e quanto aos negros? Aps o fim do primeiro reinado (1822-1831), mais exatamente no perodo 1821-1849, a corte passou a agregar 110.000 escravos para 266 mil habitantes, o que conferia capital as caractersticas de uma cidade quase negra, como uma cidade meio africana. (ALENCASTRO, 1997, p. 24-25) Entre 1850 e 1872 o nmero de habitantes se manteve praticamente inalterado, mas com a transferncia dos cativos para as plantaes de caf na zona rural do estado e a chegada de imigrantes portugueses a composio tnica e social da corte alterou-se bastante. Assim, no censo de 1872, de cada dez habitantes, seis foram classificados como brancos. O conservadorismo dos senhores de escravos fluminenses se fez sentir politicamente quando onze dos doze deputados da provncia do Rio de Janeiro e da corte votaram contra a Lei do Ventre Livre (1871) e, da mesma maneira, em 13 de maio de 1888, oito dos nove deputados que votaram contra a Lei urea, haviam sido eleitos na provncia fluminense. (ALENCASTRO, 1997, p. 30)

    Um relato citado por Bittencourt-Sampaio, referente a um episdio ocorrido durante a Regncia, revela o cenrio de discriminao sexual e racial que caracterizava o Rio de Janeiro no incio do sculo XIX. Num comunicado remetido ao Juiz do Crime do Bairro de So Jos, em 15 de maio de 1809, relatado o tumulto ocorrido no Teatro Rgio Manuel Lus antes do incio da pera, no dia de aniversrio de Sua Alteza Real. Este tumulto

    4 Machado de Assis geralmente denominado pela historiografia nacional como sendo mulato, contudo, aps a publicao recente do livro escrito pelo crtico literrio norte-americano Harold Bloom, no qual este descreve o escritor brasileiro como sendo o o maior literato negro surgido at o presente, criou-se uma grande polmica sobre o assunto. (BLOOM, 2003)

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    deveu-se a presena, no camarote, de uma criada parda do Desembargador Francisco Batista Rodrigues. Segundo o relato dos frequentadores esta ocorrncia vinha se repetindo contra a polcia que se deve guardar no teatro e contra a decncia mesmo. (apud BITTENCOURT-SAMPAIO, 2008, p. 26) O incidente revela como a presena simultnea de homens e mulheres nos camarotes dos teatros representava um problema na poca, agravado ainda pelo fato de que a mulher, neste caso, era parda.

    Na mesma poca, o compositor mulato e neto de escravos, o Padre Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-1830), foi designado por D. Joo VI para dirigir a Capela Real. At a vinda da corte o preconceito racial no constitua um impeditivo para a prtica musical e a regra era a de que os compositores fossem mulatos, pois poucos brancos quiseram e/ou chegaram a ser msicos profissionais durante a colnia. Contudo, para ocupar uma posio de tamanho destaque, como a direo musical da Capela Real, o mais natural seria o monarca escolher um msico europeu (branco), que foi o que acabou sucedendo. Assim, em 1811, Jos Maurcio foi substitudo por Marcos Portugal (1762-1830), um compositor portugus muito famoso naquela poca.

    Alm de Jos Maurcio, sobreviveu histria o nome da atriz e cantora lrica negra, Joaquina Maria da Conceio Lapa (apelidada Lapinha), nascida no Rio de Janeiro durante a segunda metade do sculo XVIII. Provavelmente pensando na voz de Lapinha, Jos Maurcio comps as partes vocais do Coro 1808, alm dos dramas com msica O Triunfo da Amrica e Ulissea, Drama herico, ambos de 1809, obras que foram interpretadas pela cantora carioca.5

    A trajetria bem sucedida de Lapinha causa certo espanto, pois a intrprete negra alcanou sucesso como atriz e cantora primeiramente nos teatros de Lisboa, a partir de 1794 (ou 17956) e, depois, nos teatros de Manuel Lus e So Joo na cidade do Rio de Janeiro, no incio do sculo XIX. A atuao de mulheres em cenas passou a ser restringida em Portugal a partir de 1775, devido ao famoso episdio envolvendo a cantora italiana Anna Zamperini e o filho do Marqus de Pombal, embora essa restrio no parea ter sido total, como observou Manuel Carlos de Brito. (1989, p. 104) De qualquer maneira, at o

    5 Ver LEEUWEN; HORA, 2008. Ao invs do Coro 1808 BITTENCOURT-SAMPAIO (2008) faz meno ao Entremez de Manuel Mendes (para coro, orquestra de cordas, duas flautas e duas trompas). Na realidade, ambos os ttulos se referem mesma obra, sendo o referido coro um nmero musical da obra Entremez de Manuel Mendes, composta por Jos Maurcio Nunes Garcia em 1808; o texto da farsa intitulada Manuel Mendes, muito famosa em Portugal, era proveniente do sculo XVIII, e, ao que tudo indica, onde quer que a obra fosse encenada, algum compositor local adicionaria os nmeros musicais.

    6 No se sabe a data exata. Ver BITTENCOURT-SAMPAIO, 2008, p. 33.

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    ano de 1790, quando a proibio foi finalmente revogada, os personagens femininos nos bailados e peras seriam, com poucas excees, desempenhados por homens travestidos. Assim, quando a intrprete negra Lapinha conseguiu permisso para cantar no renomado teatro lisboeta, as barreiras contra a presena de mulheres no palco j haviam sido revogadas. Contudo, parecia restar ainda uma importante barreira, a racial, que ela superou de maneira surpreendente, como comprova a notcia publicada em 2 de fevereiro de 1796, na Gazeta de Lisboa:

    Do Porto aviso que no Theatro daquella Cidade houvera a 29 de Dezembro hum beneficio a favor da celebre Cantora Joaquina Maria da Conceio Lapinha, no qual todas as pessoas presentes admiraro a melodia da sua voz, e a sua grande execuo, de sorte que ella a 3 de janeiro se vio obrigada a voltar ao Theatro, prestando-se aos insistentes rogos das pessoas, que por no caberem alli da primeira vez a no tinho ouvido. (apud BITTENCOURT-SAMPAIO, 2008, p. 36)

    Se o pblico da cidade do Porto parece ter escutado a voz da intrprete sem levar em considerao a cor de sua pele ou apreciou ainda mais seus dotes vocais justamente por causa da cor extica de sua pele e de sua voz7 para outros observadores estrangeiros, como o viajante sueco Carl Israel Ruders, a negritude de Lapinha foi motivo de certo estranhamento, o que se torna evidente atravs do relato escrito em 1800:

    A terceira actriz chama-se Joaquina Lapinha. natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente porem remedeia-se com cosmeticos. Fora disso tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramtico. (apud LEEUWEN e HORA, 2007, p. 18; BITTENCOURT-SAMPAIO, 2008, p. 39-40)

    O relato de Ruders revelador. Primeiro, ele identifica o nome da intrprete, depois, a nacionalidade, em seguida, a procedncia mulata motivo que explica a cor escura de sua pele, um inconveniente que, segundo o viajante sueco, o uso de cosmticos poder remediar. Alm disso, acrescenta Ruders, Lapinha tem uma figura imponente e (finalmente!) tem boa voz, alm de muito sentimento dramtico...

    Embora em sua obra o escritor Machado de Assis trate do tema escravido sempre de forma oblqua, h no livro Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881) um episdio

    7 O termo extico designa algo que no se conhece e est semntica e etimologicamente ligado viso ex-optica , do ponto de vista. No que diz respeito ao som, contudo, seria mais adequado, talvez, falar em ponto de escuta (ex-acustica). (ver PINTO, 2008, p. 100)

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    que ilustra bem o contexto scio-poltico do perodo no qual Jos Maurcio e Lapinha se encontraram durante a Regncia. Refiro-me ao grande jantar que Cubas pai oferece Famlia Real para celebrar a queda de Napoleo, ocorrida no ano de 1815. Nesta festa, entre comidas, discursos e namoros surge a notcia da compra de cento e vinte negros novos, negociados em Luanda,8 dos quais quarenta cabeas j estavam pagas. O trecho exemplifica a promiscuidade entre vida familiar, festa cvica e horrores do trfico negreiro, trao bem caracterstico da sociedade brasileira em todo o sculo XIX. (SCHWARZ, 2000, p. 112)

    A partir da dcada de 1840, em meio ao boom do trfico negreiro, alguns negros livres foram utilizados como intrpretes nas orquestras de teatro, apenas para suplementar os conjuntos trazidos pelas companhias lricas. Geralmente, eles no participavam diretamente dos espetculos e estavam ali como guarda-costas, no tinham cadeiras na plateia e ficavam nos corredores, fora dos camarotes, para servir a seus senhores. Sua presena, algo fantasmagrica, compunha a pintura esttica da hierarquia social local (MAGALDI, 2004, p. 39), e sua apario inconstante como serviais dependia dos desejos e solicitaes eventuais de seus donos.

    Neste cenrio de racismo institucionalizado, a obra teatral do comedigrafo, crtico musical, alm de cantor e compositor, Luis Carlos Martins Pena (1815-1848) apresenta caractersticas pioneiras, por demonstrar uma viso crtica sobre a questo da escravido e introduzir o gesto musical afro-brasileiro nos palcos da corte em pleno regime escravocrata. Nascido no Rio de Janeiro, Martins Pena foi, ao lado de Joo Caetano (1808-1863) e Gonalves Magalhes (1811-1888), um dos fundadores do teatro brasileiro no sculo XIX e o introdutor da comdia de costumes no Brasil. Sua obra influenciou o escritor Machado de Assis, na composio de trechos do livro Memrias Pstumas de Brs Cubas, antes citado, bem como o comediante Francisco Correa Vasquez (1838-1892), ator e autor da pardia Orfeu na Roa, estreada em 1868, alm do maior revisteiro brasileiro do sculo XIX, o dramaturgo negro Arthur Azevedo (1855-1908), dentre vrios outros autores.

    A cena citada a seguir exemplifica como as comdias de Martins Pena retratavam o cotidiano e as mazelas da sociedade brasileira, incluindo a questo do racismo. A cena foi

    8 Luanda, capital de Angola, era o principal porto africano de onde zarpavam os navios abarrotados de negros para servirem de mo-de-obra escrava no Brasil e nas Amricas. Sem Angola no h Brasil, afirmou o jesuta Gonalo Joo, em 1646. A afirmao confirmada numericamente: entre 1551 e 1850, foram desembarcados no Brasil cerca de 4 804 900 africanos. A cidade do Rio de Janeiro constitua o principal ponto de desembarque no pas. (ALENCASTRO, 2000, p. 43, 69, 226, 375-80, 389)

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    extrada da pea Os Dois ou O Ingls Maquinista, comdia em um ato, escrita provavelmente em 1842:

    Cena XIII

    Entra Negreiro acompanhado de um preto de ganho com um cesto cabea coberto com um cobertor de baeta encarnada.

    Negreiro Boas noites.

    Clemncia Oh, pois voltou? O que traz este preto?

    Negreiro Um presente que lhes ofereo.

    Clemncia Vejamos o que .

    Negreiro Uma insignificncia... Arreia, pai! (Negreiro ajuda ao preto a botar o cesto no cho. Clemncia, Mariquinha chegam-se para junto do cesto, de modo, porm que este fica vista dos espectadores.)

    Clemncia gentes!

    Marquinha, ao mesmo tempo Oh!

    Felcio, ao mesmo tempo Um meia-cara!

    Negreiro Ento, hem? (Para o moleque) Quenda, quenda! (Puxa o moleque para fora.)

    Clemncia Como bonitinho!

    Negreiro Ah, ah!

    Clemncia Pra que o trouxe no cesto?

    Negreiro Por causa dos malsins...

    Clemncia Boa lembrana (Examinando o moleque:) Est gordinho... bons dentes...

    Negreiro, parte, para Clemncia dos desembarcados ontem no Botafogo...

    Clemncia Ah! Fico-lhe muito obrigada.

    Negreiro, para Mariquinha H ser seu pajem.

    Mariquinha No preciso de pajem.

    Clemncia Ento, Mariquinha?

    Negreiro Est bom, trar-lhe-ei uma mocamba.

    Clemncia Tantos obsquios... D licena que o leve para dentro?

    Negreiro Pois no, seu.

    (Martins Pena, 1956, p. 122)9

    9 Para uma maior contextualizao histrica de esta cena ver ALENCASTRO, 2000, p. 39.

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    opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

    Nesta cena, Martins Pena inclui um jovem gr-fino (contrabandista) que leva para a noiva um presente escondido dentro de um grande cesto: um pajem, isto , um escravo de sete para oito anos de idade, recm-chegado da frica, depois de ter sido desembarcado ilegalmente na praia de Botafogo. Talvez a ironia da cena parea um pouco inocente para os dias de hoje, mas quando a comdia Os Dois ou O Ingls Maquinista estreou, em 1845, foi automaticamente censurada pela Cmara dos Deputados. (ARAS, 2002) Na poca, estava no auge a contenda entre Brasil e Inglaterra, na qual certas camadas da sociedade defendiam o direito soberano de o Brasil continuar a praticar o comrcio negreiro, enquanto, ao mesmo tempo, os navios ingleses policiavam as guas continentais brasileiras para coibir o trfico.

    No final da comdia, aps a briga entre os dois antagonistas, isto , o jovem contrabandista de africanos e um ingls espertalho inventor de uma mquina supostamente capaz de fazer acar utilizando ossos como matria-prima Martins Pena faz entrar em cena uma folia de reis cujos participantes cantam: No Cu brilhava uma estrela, que a trs Magos conduzia, para o bero onde nascera, nosso Conforto e Alegria. (PENA, 1956, p. 133) O choque causado pela incluso algo abrupta da folia no fora, entretanto, gratuito. Como Reily (2002) demonstrou em seu estudo, atravs das folias de reis os participantes, a maioria constituda de trabalhadores pobres, realizam temporariamente seus ideais de reciprocidade mtua e igualdade social, com base nas crenas religiosas. Ao incluir a cantoria do rancho de moos e moas da folia de reis logo aps uma cena de pancadaria e como desfecho de uma comdia que girava em torno da questo do trfico de escravos, Martins Pena parece ter almejado um objetivo duplo: provocar o riso atravs do contraste sbito e, simultaneamente, expor o avesso dos ideais de harmonia social dos folies, entremostrando o grotesco sob a mscara da ironia.

    Os teatros imperiais

    Aps este panorama breve, em seguida reconstituirei a histria dos teatros imperiais, especialmente daqueles que apareceram nas propagandas includas no Jornal do Commercio. Nas notcias referentes ao ms de janeiro do ano de 1880, por exemplo, figuram as seguintes denominaes:

    a) Teatro Ginsio Dramtico

    b) Fnix Dramtica

    c) Imperial Teatro D. Pedro II

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    d) Teatro Recreio Dramtico

    e) Teatro Circo

    f) Teatro So Pedro de Alcntara

    g) Teatro Santo Antnio [em Niteri]

    No ano de 1882, por sua vez, alm de alguns dos teatros acima mencionados, aparecem outras denominaes como:

    h) Teatro SantAnna

    i) Teatro Prncipe Imperial

    j) Teatro So Luiz

    k) Teatro Lucinda

    Alguns destes teatros foram construdos nas primeiras dcadas do sculo XIX, aps a chegada da Famlia Real portuguesa em 1808, sendo remodelados ou reconstrudos posteriormente, aps terem sofrido incndios ou sido degradados pela ao natural do tempo, enquanto outros, ainda, foram construdos a partir do decnio de 1870. At o ano de 1865 destacavam-se os teatros So Pedro, Lrico Fluminense e So Janurio, inspirados no modelo neoclssico do teatro So Pedro de Alcntara para tentar projetar uma imagem de conforto e riqueza, mantendo em seu interior a diviso de camarotes e cadeiras de diversas ordens que reproduziam, em sua espacialidade, a rgida hierarquizao da sociedade senhorial a que estavam submetidos. (AUGUSTO, 2008, p. 97) Cristina Magaldi (2004, p. 101) por sua vez, observa que especialmente na segunda metade do sculo XIX, os teatros cariocas passaram a servir de palco para a inverso da hierarquia senhorial, possibilitando a crtica, a stira e a pardia dirigida pela classe mdia urbana contra a ordem poltica estabelecida, isto , o regime monrquico do Segundo Reinado, que tinha como representante mximo, Pedro II. Entretanto, antes de aprofundar a discusso sobre os discursos e as tticas de sobrevivncia e estratgias de dominao (ULHA, 1997, p. 80-100; BOURDIEU, 1996) utilizadas no contexto do final do Imprio pela nova classe mdia urbana e pela populao pobre, de um lado, e pela monarquia e pelas elites, de outro, apresentarei em seguida outros dados referentes histria dos teatros imperiais.

    O luxuoso e espaoso Imperial Teatro So Pedro de Alcntara (atual Teatro Joo Caetano), com 1.200 lugares, foi originalmente denominado Real Teatro So Joo, (MAGALDI, 2004, p. xvii, 14-5) tendo sido construdo em 12 de outubro de 1813 por iniciativa de Joo VI, com o objetivo de possibilitar a apresentao de grandes peas teatrais,

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    bem como a existncia local de um dos mais importantes smbolos da elite cultural europeia: a pera. Este gnero preenchia as aspiraes da monarquia em transformar o Brasil numa nao europeia e, desta maneira, numa sociedade mais civilizada. (p. 55) A destinao dupla dramtica e musical dos teatros cariocas foi uma marca hbrida desde a colnia, caracterstica esta que perdurou na segunda metade do sculo XIX, quando a pera entrou em decadncia, dando lugar s operetas cmicas, mgicas e revistas de ano. Como eu havia mencionado acima, frequentemente ocorriam incndios nos teatros imperiais, destino do qual no escapou o Teatro So Joo, que ardeu em 1824, sendo reformado e reinaugurado com o nome de Teatro So Pedro de Alcntara em 1827, ao som da pera de Rossini, La Cenerentola. O Teatro So Pedro de Alcntara tambm pegou fogo repetidas vezes, mas, apesar disso, continuou em atividade at depois da proclamao da repblica.

    Outro exemplo de teatro imponente, que tambm figurava nas edies do Jornal do Commercio, era o Teatro Imperial Dom Pedro II, construdo em 1871, que se localizava na Rua da Guarda Velha, na regio onde atualmente fica a Rua Treze de Maio. Este teatro foi assim descrito no Almanaque Laemmert de 1883:

    o maior teatro da corte, e pode, quanto as suas vastas dimenses, competir com os maiores teatros da Europa; comporta 2.500 pessoas, inclusive a orquestra e os artistas cnicos, e tem 40 camarotes de 1. classe, 40 ditos de 2., 426 cadeiras nas varandas e 500 lugares nas galerias. (apud AUGUSTO, 2008, p. 102)

    O Teatro Imperial Dom Pedro II servia para apresentaes teatrais, mas o palco era removvel e, quando retirado, sua rea era transformada em picadeiro para exibies circenses. Este teatro recebeu vrios artistas de renome, dentre os quais Arturo Toscanini, ento um jovem violoncelista italiano que, em 1886, foi escalado inesperadamente para reger a orquestra nas peras Aida, Les Huguenots e Faust, tarefa que o maestro improvisado desempenhou com excelncia, atraindo as crnicas elogiosas dos jornais cariocas. (MAGALDI, 2004, p. 44)

    Outro teatro destinado a conquistar a preferncia das classes sociais mais abastadas era o Ginsio Dramtico, inspirado no modelo do Thatre du Gymnase Dramatique, em Paris, (SOUZA, 2002) embora no fosse to grande como o Teatro Imperial Dom Pedro II e o Teatro So Pedro de Alcntara. Inaugurado em 1855, utilizava o espao fsico do Teatro So Francisco, construdo em 1832, e reformado em 1846, pelo ator clebre Joo Caetano. O assim rebatizado Teatro Ginsio Dramtico passou a contar com uma tribuna imperial recm-criada e com mais uma ordem de camarotes no interior da sala. Em sua composio exterior recebeu, no primeiro pavimento, trs portas e, no segundo, duas

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    janelas com sacadas, entre pilastras com capitis. (AUGUSTO, 2008, p. 103) Em 1858 o teatro foi novamente remodelado para receber cadeiras mais confortveis, assim como um ventilador grande (mecnico), aguardado com muita ansiedade pelos frequentadores do teatro na esperana de que amenizasse os problemas crticos causados pela falta de ventilao. (MAGALDI, 2004, p. 21)

    O pblico que frequentava o Teatro Ginsio era heterogneo, constitudo pela nata da intelectualidade integrada por escritores do porte de Machado de Assis e Gonalves Dias, bem como por famlias e senhoras distintas, alm de, eventualmente, o prprio Pedro II, como comprova o anncio no Jornal do Commercio:

    Teatro Ginsio

    HOJE SEXTA-FEIRA 9 DE JANEIRO HOJE

    Espetculo dramtico, vocal e instrumental promovido pelo Crculo Italiano Vittorio Emanuel II, honrado com a augusta presena de Suas Majestades Imperiais. A chegada de Suas Majestades Imperiais tocar-se- pela Banda dos Meninos Desvalidos, o Hino Nacional e imediatamente a Marcha Real Italiana.

    PROGRAMA

    1. Parte [...] Ser representada a comdia La Locandiera di Nuovo Genere.

    2. Parte O muito popular e talentoso artista Vasquez representar uma das suas mais agradveis cenas cmicas do seu escolhido repertrio.

    3. Parte Variaes de piano [...], rias para Bartono e Baixo [...], fantasia para flauta [...], romance composto pela artista lrica a Exma. Sra. D. Cinira Polnio, executado pela Exma. Sra. D. Maria Luiz de Sanken, acompanhada ao piano pela mesma autora D. Polnio, [...] variaes de piano, [...] ballata da pera Guarany, [...] dueto da pera Aida. (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, sexta-feira, 9 de janeiro de 1880, p. 8)

    O Teatro Ginsio Dramtico sofreu novas reformas em 1872 com o objetivo de abrigar um pblico mais amplo. Para atrair a classe mdia urbana em ascenso eliminou-se a diviso dos camarotes transformando-a em uma galeria aberta a todos, permitindo audincia usar chapus e fumar. O repertrio tambm foi modificado e passou a acolher de comdias a concertos, alm de operetas, buscando oferecer entretenimento leve e barato para as famlias. O teatro fechou suas portas em 1884, ou seja, cinco anos antes da proclamao da repblica. Como outros teatros imperiais, o Ginsio Dramtico no parece ter resistido aos novos tempos, pois muitos de seus espetculos eram antes subvencionados diretamente pelo prprio Pedro II, o qual se encontrava, naquele momento crtico do fim do Imprio, com graves problemas de caixa. (MAGALDI, 2004, p. 22, 55)

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    O Teatro So Luiz, inaugurado em 1870 pelo ator e imigrante portugus, Furtado Coelho (1831-1900), tinha como diretor musical o maestro e compositor Henrique Alves de Mesquita e era localizado ao lado do Ginsio Dramtico, tentando com este rivalizar ao adotar um repertrio semelhante, partilhando, inclusive, suas caractersticas arquitetnicas, dentro dos padres estticos do estilo neoclssico. O So Luiz era um pouco maior que o Ginsio Dramtico e a seo da orquestra abrigava 294 cadeiras numeradas, enquanto que as bancadas ao longo das paredes laterais acomodavam mais 32 espectadores. Os 32 camarotes estavam dispostos em dois nveis e dois camarotes imperiais localizados no lado direito do palco eram providos de uma entrada privada e de uma sala de espera. De acordo com os comentrios dos frequentadores o palco do So Luiz possua boa acstica e permitia a movimentao fcil das cortinas, alm disso, a luz a gs possibilitava uma iluminao excelente e bons efeitos cnicos.10 O teatro abrigava companhias teatrais reduzidas e apresentava peas ligeiras com acompanhamento musical.

    Em 17 de fevereiro de 1859 foi inaugurado um novo teatro na cidade, no mais destinado s famlias distintas: o Alcazar Lrico (inspirado no modelo do Theatro Alcazar Lyrique, em Paris), que se consagrou por abrigar as vaudevilles, operetas, operetas cmicas e revistas de ano musicais, com suas canonetas, atrizes e cancs esfuziantes. O teatro, frequentado predominantemente por homens, atraiu crticas enraivecidas por parte daqueles que nele viam um incentivo degradao dos bons costumes, entretanto, os mesmos que o criticavam, s vezes se deixavam seduzir por alguns de seus encantos. Isto ocorreu, por exemplo, com o escritor Machado de Assis, o qual, apesar de escrever vrias crticas ao novo teatro publicadas nos jornais da poca, no resistiu ao charme da atriz e cantora francesa Aime, qual ele descreveu como um demoninho louro, uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabea meio feminina, meio anglica, uns olhos vivos, um nariz como o de Safo, uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canes de Ovdio. (AUGUSTO, 2008, p. 107) A lista de frequentadores do Alcazar era grande e inclua, alm de escritores, intelectuais, estudantes e administradores, nomes

    10 interessante notar que somente nos anos 1860 a iluminao a gs entra nas casas mais ricas e, em 1874, cerca de 10 mil casas j dispunham desta novidade. Esta informao demonstra como o teatro So Luiz era, em 1870, data de sua inaugurao, um teatro moderno e high-tech. (ALENCASTRO, 1997, p. 85)

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    representativos da poltica nacional, como o Baro de Cotegipe, o conselheiro Silveira da Mota, o Baro de Rio Branco,11 o Conde de Porto Alegre, Silveira Martins, dentre outros.

    O Alcazar Lrico serviu de inspirao para outros dois teatros polmicos, o pequeno Teatro Flora (1866), depois nomeado Fnix Dramtica (1868), alm do Cassino (1872), conhecido anos depois como SantAnna (1880), hoje sob a denominao de Teatro Carlos Gomes. Esses espaos privilegiavam, de acordo com o autor de A Moreninha, (1844), o escritor Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), as indecncias da cena corrompida com o recurso de dramas fantsticos e mgicos. (AUGUSTO, 2008, p. 109) O Fnix Dramtica ocupou uma posio de destaque na cena dramtico-musical da capital, com as representaes das pardias do ator cmico Francisco Correa Vasquez, das mgicas e operetas com msica de Henrique Alves de Mesquita, sempre sob os auspcios da empresa de Jacinto Heller, que tambm acumulava a direo do Teatro SantAnna, sendo responsvel por vrios sucessos do teatro musicado12. O nome de Heller aparece em inmeras propagandas do Jornal do Commercio nos anos de 1880 e1882, dentre as quais a abaixo citada:

    Teatro Fnix Dramtica

    EMPRESA DO ARTISTA HELLER

    HOJE QUINTA-FEIRA 15 DE JANEIRO HOJE

    Representar-se- a espirituosa comdia em 1 ato do repertrio da atriz Hermnia,

    A SENHORA EST DEITADA

    Dar fim ao espetculo a 34 apresentao da espirituosa comdia-opereta em 3 atos, traduo de Arthur Azevedo,

    NINICHE

    (Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, quinta-feira, 15 de janeiro de 1880, p. 6)

    Assim como o Teatro Fnix Dramtica, outros teatros tambm apresentaram um repertrio de teatro ligeiro, como os teatros Recreio Dramtico, Lucinda, o Variedades e

    11 A casa do Baro de Rio Branco, localizada prximo ao Campo de Santana, hoje ocupada pela Escola Tcnica Estadual de Teatro Martins Pena, a mais antiga escola de teatro da Amrica Latina, contando com cem anos de existncia.

    12 MAGALDI (2004, p. 21 e 49) observa que o teatro Fnix Dramtica abrigou uma grande variedade de novidades vindas da Europa, como, por exemplo, as populares zarzuelas e as tonadillas espanholas, alm da primeira exposio do fongrafo para os cariocas em 1879.

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    o Prncipe Imperial. Especialmente o Teatro Recreio Dramtico, inaugurado em 1877, tornou-se um sucesso de pblico a partir de 1880, com as montagens de comdias nacionais, peras e mgicas. Em seguida, a sua descrio pelo Almanaque Laemmert, de 1883:

    Este bonito teatro campestre tem 16 camarotes, 310 cadeiras e galerias, e lugares de entrada geral para mais de 500 pessoas. Atualmente nele funciona uma excelente companhia portuguesa, dando espetculos todas as noites. Preos: Camarotes 15$, cadeiras e galerias 2$, entrada geral 1$000. (AUGUSTO, 2008, p. 111)

    Estes teatros eram diferentes do modelo neoclssico que servia de modelo para a arquitetura de outros espaos cnicos da capital, como, por exemplo, os teatros So Pedro e So Luiz. A sua maior novidade era a adoo do estilo teatro-campestre: uma rea ao ar livre ou um jardim ao redor dos teatros, no qual eram servidas bebidas e refeies, sendo utilizado como um espao de sociabilidade que suspendia temporariamente as divises sociais presentes na espacialidade interna dos teatros. Mas no era apenas a sua arquitetura que diferia do padro, como tambm os preos das entradas. Este dado importante, pois o valor do preo do ingresso estava relacionado ao tipo de pblico frequentador dos teatros da capital. O Almanaque Laemmert revela os preos cobrados pelos teatros da capital imperial:

    Tabela 1. Preos de ingressos dos teatros. (AUGUSTO, 2008, p. 115)

    Camarotes 1 classe

    Camarotes 2 classe

    Camarotes 3 classe

    Cadeiras 1 classe

    Cadeiras 2 classe

    Galeria Nobre

    Galeria Geral

    So Pedro 15$ 15$ 10$ 3$ 2$ 1$

    Lucinda

    15$ 3$ 2$ 1$500

    SantAnna 15$ 12$ 2$ 1$

    So Luiz 15$ 2$ 2$ 1$500

    Recreio Dramtico

    15$ 2$ 2$ 1$

    Prncipe Imperial

    15$ 2$ 2$ 1$

    Fnix Dramtica

    12$ 2$ 2$ 1$500

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    O Teatro Pedro II no foi includo na tabela acima, mas as crnicas jornalsticas escritas por Arthur Azevedo e Machado de Assis em, respectivamente, 1877 e 1876, mencionam que os camarotes do referido teatro podiam custar quarenta ou, ainda, 200 mil ris, preos considerados abusivos por ambos os escritores e que pareciam, de fato, destoar dos preos mdios praticados nos teatros da cidade. Para termos algum parmetro que permita uma comparao, segundo Lilia Schwarcz (p. 116) um bom almoo na corte custava entre 1$500 e 2$000, enquanto um mais comedido ficava em $700, o que nos leva a supor que provavelmente era difcil, se no impossvel, que a populao mais pobre da cidade pudesse frequentar os teatros, mesmo nas galerias, cujo preo era mais em conta.

    Voltando epgrafe deste artigo, na qual consta a informao de que a recompensa oferecida pela captura do escravo fugitivo Venncio perfazia a quantia de 500$000, estabelecerei, a seguir, algumas comparaes a fim de verificar o que representava este valor naquela poca. A recompensa correspondia a 250 bons almoos ou a 714 almoos simples na corte (ao preo de, respectivamente, 2$000 ou $700). Se comparada aos preos dos ingressos teatrais a mesma recompensa correspondia a 500 galerias gerais (as mais baratas, ao preo de 1$), 250 galerias nobres (ao preo de $2), 250 ou cerca de 170 cadeiras de 1 classe (dependendo do valor do ingresso, se 2$ ou 3$) e, finalmente, 50 camarotes de 3 classe (ao preo de $10) ou cerca de 41 ou 33 camarotes de 1 ou 2 classe (dependendo do valor do ingresso, se 15$ ou 12$). Estas comparaes permitem estimar o que representava a recompensa oferecida pela captura de Venncio. Seria possvel ainda tentar descobrir o valor de venda das peas no mercado da corte. Quanto custaria um escravo saudvel como o carpinteiro Venncio? O equivalente ao preo de um, dois, ou dez pianos novos? Esta resposta escapa, contudo, aos limites deste trabalho apenas lembro ao leitor sobre o trecho antes citado, extrado do livro Memrias Pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis, no qual a notcia de uma partida valiosa de 120 negros animou vivamente um jantar oferecido a Famlia Real durante a Regncia. Mesmo sem possuir nmeros absolutos, j podemos estimar o quo lucrativo era o mercado de escravos ao longo do sculo XIX. Nas duas pontas deste mercado estavam, de um lado, os grandes e pequenos proprietrios urbanos e rurais de escravos (alm dos comerciantes e contrabandistas) e, de outro, a elite e a classe mdia urbana, que utilizavam amplamente a mo-de-obra negra nos servios mais variados, em casa e na rua, como comprovam os inmeros anncios de aluguel de amas-de-leite, cozinheiras, pedreiros, marceneiros, etc.

    Vejamos a seguir como os espetculos apresentados nos teatros da corte espelhavam a iniquidade da realidade social.

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    O repertrio

    peras fantsticas, operetas, comdias e mgicas. As propagandas publicadas no Jornal do Commercio nos anos de 1880 e 1882 anunciavam a programao intensa dos teatros imperiais grandes ou pequenos, neoclssicos ou modernos, caros ou relativamente baratos. Diariamente, um sem-nmero de gneros musicais e teatrais hbridos, eruditos e populares, cmicos e trgicos, vocais e instrumentais, eram apresentados nos palcos da cidade. Na sequncia listarei os anncios colhidos em minha pesquisa, incluindo, em colchetes, os dias em que ocorreram as apresentaes, alm de outras observaes de interesse.

    Em janeiro de 1880, as propagandas teatrais publicadas foram os seguintes:

    a) Teatro Ginsio Dramtico Drama em 4 atos, Magdalena (Pinheiro Chagas) [dias 1, 3, 4, 21]; A cruz da Morta, esplndido drama de dEnnery e A. Bourgois [dias 14, 15, 16, 17, 19, 22, 24, 25, 27, 29. Observao: no dia 17, sbado, a propaganda de A cruz da Morta incluiu os seguintes dizeres, aps o ttulo do espetculo: ainda que chova e o cenrio quase todo novo e pintado com esmero]; dio de Raa a primeira representao neste teatro, do drama de costumes brasileiros, original do distinto escritor portugus Gomes de Amorim e que tanta impresso causou no Teatro de D. Maria II, em Lisboa, e cujo nmero de representaes foi imenso [em seguida, o anncio inclui informaes sobre o elenco e apresenta um resumo do enredo dos 3 atos], terminar o espetculo com a engraada comdia em 1 ato, de Eduardo Garrido, Por um triz / Camarotes de 1 e 2 ordens 10$000, Cadeiras numeradas 2$000, Galerias 1$000; A 3 representao da espirituosa comdia em 1 ato, O Criado do Hotel Very, s 4 da tarde [dias 6, 8, 10, 11] [...] A 1 representao do festejado drama em 4 atos de A. [ilegvel], Os Engeitados, s 8 da noite. [dias 11, 18, 26]; Empresa Dias Braga & Mattos, o ditoso fado pela atriz Maria Amelia e o ator Mattos cantando-se o fadinho portugus com variados e novos quadros. O Corpo Dramtico Italiano, composto de crianas, sob a direo do Ilm. Sr. Eugnio Gianni representar pela primeira vez tarde a interessante comdia em 1 ato, escrita pelo mesmo diretor, La Locandiere de Nuovo Genre. Grande Novidade! O Advogado dos Caixeiros ou O Sr. Isidro, inspetor de quarteiro, cena cmica escrita pelo distinto ator Vasquez e desempenhada pelo ator Mattos. Segue-se o 2 Ato do drama Os Engeitados [...] Terminar o espetculo o ator Peregrino fazendo o papel de Petit Duc, o qual cantar o dueto do 2 Ato; Joo, o cocheiro [dia 18, apresentao nica].

    b) Fnix Dramtica pera-pardia, de Arthur Azevedo, msica do Maestro Lecoq, A Filha de Maria Ang (121. representao) [dias 1, 6]; Sonhos dOiro, grande pera fantstica [dias 3, 10, 18, 28]; A Senhora est Deitada do repertrio da atriz Hermnia [dias 4, 8, 15, 23]. Dar fim ao espetculo a 31 representao da comdia-opereta Niniche [dias 2, 8, 15]; ria do bartono Roger [...], Les Noces de Jeannette (pera-cmica em 1 ato), [...] Intermdio de canto [...] Le Mari dans du coton (comdia em 1 ato) [...], Le Petit Duc (rond do 2 ato, cantado e representado pela Sra. Hermnia), Intermdio de canto com a

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    canoneta Cest si bom e Un vieu professeur (Mlle. Martha) e a popular canoneta Nana; Barba-Azul, rcita extraordinria em benefcio do ator Lisboa representar-se- a Grande pera Burlesca em 3 atos e 4 quadros [tambm denominada, no dia 3, de opera bufa], Msica do Maestro Offenbach [dias 7, 14, 17, 27]; Rcita em benefcio da atriz Anna Costa o artista Vasquez, em obsquio homenageada, representar a grande cena dramtica do repertrio do ator Taborda, A Histria de um Marinheiro. [O programa deste dia incluiu, ainda:] A Senhora est deitada, e O jovem Telmaco [O Jovem... foi apresentado somente no dia 23]; A primeira representao da espirituosa comdia opereta em 4 atos. Msica original do distinto Maestro Joaquim de Macedo, Antonica da Silva, com o Sr. Vasquez no personagem de Benjamin sob o suposto nome de Antonica da Silva [dia 29].

    c) Imperial Teatro D. Pedro II Os sinos de Corneville (132 apresentao), pera-cmica, traduo de E. Garrido, msica do festejado maestro Planquette [dias 11, 13, 20, 22, 24, 25]; Comdia-opereta Niniche (traduo de Arthur Azevedo) [dias 2, 8, 15]; Grande espetculo equestre (ginstico e acrobtico).

    d) Teatro Recreio Dramtico Rosa Miguel - verdadeiro sucesso europeu [neste] esplndido e elegantssimo teatro [...] em 3 atos, de E. Blum, traduo de Lino Assumpo [dias 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 17]; A Douda de Montmayor [dias 14, 15, 20]; A muito engraada comdia em 3 atos, Moos e Velhos [...] a espirituosa comdia Os Annexins [...] terminar o espetculo com a muito esplndida farsa ornada em msica, Os Trinta Botes [dia 16, 18, 21, 22]; Os 30 Milhes de Gladiador primeira representao da esplndida e interessante comdia em 4 atos, de Eugnio Labiche e Pelippe Gille, traduo livre de Azeredo Coutinho [dias 23, 24, 25, 26, 27, 28]; Les Baisers (Mlle. Martha) e Le Barbier de Seville (Mlle. Bella) [dia 29].

    e) Teatro-Circo Grande e esplndido espetculo em benefcio da atriz J. Amlia de Bellido com a 1. representao do muito inteligente e simptico escritor portugus Rangel de Lima, A Vingana de Mulher, pelo ator Jorge Lisboa ser recitada uma linda poesia. Finalizar o espetculo com a brilhante comdia em 1 ato Os Trs Noivos Distintos. Tomaro parte em todo o espetculo os artistas Prima da Costa, Lisboa, Braga, Mauro, D. Cllia, Palmyra e a beneficiada, s 8 e horas [dias 16, 20]; Poesia dramtica A rf [dia 20]; A notvel e magnfica pea Trabalho e Honra [dia 24].

    f) Teatro So Pedro de Alcntara Drama em 5 atos, A Torre Negra [dia 19].

    g) Teatro Santo Antnio [em Niteri] Representao da aplaudida mgica, em 4 atos e 11 quadros, ornada de msica, bailados, transformaes, visualidades e aparies, Nini ou A Gruta Misteriosa. Dar fim ao espetculo, Um Passo a Dois [dia 24].

    Observo que em janeiro de 1882 houve uma diminuio aparente da programao nos teatros e os rodaps das pginas do Jornal do Commercio, antes destinados somente os anncios de espetculos artsticos, passaram a dividir espao com anncios de produtos diversos (gua florida, pasta de lrio e drogas medicinais). Em seguida, as propagandas teatrais publicadas neste ano:

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    opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

    a) Teatro Ginsio Dramtico Pea Luiz de Cames O Prncipe dos Poetas [dia 8]; Drama em 5 atos O Ermito da Serra de Cintra para maior brilhantismo da festa, uma Banda de Msica, das 5 horas em diante, tocar no saguo do teatro [dia 15].

    b) Fnix Dramtica Nenhum anncio.

    c) Imperial Teatro D. Pedro II Nenhum anncio.

    d) Teatro Recreio Dramtico Engraada comdia em 1 ato, ornada de msica, Uma Experincia, em que toma parte a simptica e festejada cantora Mll. Suzanne Castera [dia 2] [...] a canoneta Taissez-vouz, Joseph, o 2 Ato da comdia A Vnus de Milo, o dueto bufo O Meirinho e a Pobre, a popular comdia de costumes brasileiros, original do Sr. Arthur de Azevedo, Uma Vspera de Reis[dia 2, 10]; Drama religioso-fantstico D. Joo Tenrio [...] do clebre poeta espanhol D. Jos Zorilla, verso em portugus de Fernando Caldeira [...]. Ttulos dos atos: 1 Libertinagem e escndalo, 2. Destreza, 3 O Diabo s portas do cu, 4 A sombra de D. Ignez, 5 O convidado de Pedra, 6 Misericrdia de Deus e Apoteose do Amor [dias 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 20]; Os Sinos de Corneville em Pindamonhangaba, O Meirinho e a Pobre, O Casamento de Maria Ang, [...] a popular comdia em 1 ato, grande sucesso do ator Xisto Bahia, Uma Vspera de Reis [dia 10]; Apresentao da lenda dramtica Os Milagres da Senhora de Nazareth [dia 11]; Brevemente estreia da atriz cantora Amlia de Gubernatis, na opereta-pardia A Gr-Duquesa de Giz-olar-se-tem, msica do clebre mestre Offenbach, que foi cena em um dos teatros de Lisboa repetidas vezes, tendo feito um verdadeiro sucesso [dia 21].

    e) Teatro Circo Nenhum anncio.

    f) Teatro So Pedro de Alcntara Nenhum anncio.

    g) Teatro Santo Antnio [em Niteri] Nenhum anncio.

    h) Teatro SantAnna pera-cmica em 5 atos, traduo livre de E. Garrido e Arthur Azevedo, msica do afamado Maestro Franz de Supp, Empresa do Artista Heller, Fatinitza, os principais papis pelos artistas Mlles. Delmary, Villot, e os atores Vasquez, Guilherme de Aguiar, Mattos, Lisboa Pinto.; 190 apresentao da pea fantstica, escrita pelo escritor portugus, E. Garrido, e msica original do maestro brasileiro Henrique Alves de Mesquita, Ali-Bab ou os Quarenta Ladres (conto das Mil e uma Noites), mise-en-scene do ator Vasquez [dias 5, 6, 7, 8, 11, 15]; pera cmica, da Empresa do Artista Heller, traduo livre de E. Garrido, msica do festejado maestro E. Audran, A Mascote, pela primeira vez [dias 9, 10, 17, 20]; pera cmica em 3 atos, original de Arthur Azevedo, msica do pranteado maestro portugus S Noronha, A Princesa dos Cajueiros, Empresa do Artista Heller [dias 11].

    i) Teatro Prncipe Imperial 1 Representao da magnfica pera fantstica em 4 atos e 10 quadros, do festejado escritor portugus Augusto Garraio, O Espelho das Vaidades, direo de A. Souza Bastos [dias 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 17, 20].

    j) Teatro So Luiz O clebre drama em 5 atos, baseado em fatos histricos, dos notveis escritores Alboise e Malliau, A Louca ou O Castelo das Sete Torres, direo artstica de Guilherme da Silveira [dias 1, 5, 6]; Drama A Boca do Inferno [dias 7, 8].

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    k) Teatro Lucinda A excelente comdia em 1 ato Obsequiar o meu amor [...] O Defensor dos Caixeiros (pelo ator Martins). Prestidigitao e Escamotagem, Magia e Desaparies (pelo prestidigitador O Sr. Giacomo Samelli), O Ovo do Diabo, As laranjas mgicas, Os novelos encantados, O relgio fantstico, A iluminao chinesa, A garrafa do grande mgico (licores de todas as qualidades), O Chapu de Satans, O homem-galinha e outros diversos trabalhos [...] O Sr. Domingos fora do srio cena cmica escrita pelo distinto artista Vasquez e desempenhada pelo artista Flvio. A linda opereta em um ato, msica de Lecoq, O Casamento de Maria Ang [dia 1]; A grande cena cmica Provas Pblicas (toda ornada de canto, dana), [...] Alta prestidigitao (escamotagens, iluses, etc.) [dia 5]; Uma reapario de Palmyra Martins. A comdia-drama martima em 3 atos com canes, coros e fadinhos portugueses cantados por esta, acompanhando-se guitarra, O Grumete A ao transcorre nas ilhas da Frana. Vesturio todo novo. O resto do espetculo ser amanh declarado. [dia 20].

    Os gneros dramtico-musicais acima listados apresentam as seguintes denominaes: pea fantstica, drama, drama religioso-fantstico, lenda dramtica, comdia, comdia-drama, comdia-opereta, cena cmica, pera (inteira ou, ainda, atos isolados), opereta, pera-pardia, pera-cmica, pera fantstica, pera burlesca, farsa ornada em msica e mgica. Os programas revelam ainda que, eventualmente, os programas incluam canonetas, fados, rias de solista e duetos extrados de peras italianas, poesias declamadas e encenadas, nmeros de dana e circenses, alm de apresentaes de Bandas de Msica.

    Outras informaes importantes dizem respeito galeria vasta de profissionais envolvidos nos espetculos, incluindo compositores e maestros, dramaturgos, tradutores, atores e empresrios. Dentre estes, Arthur Azevedo, autor da pera-pardia A filha de Maria Angu (adaptao de La Fille de Mme. Angot, de Siraudin, Clairville e Koning, com msica de Alexandre Charles Lecocq) e da pera cmica A princesa dos Cajueiros, na qual satirizava o prprio Pedro II; o compositor Henrique Alves de Mesquita, autor da msica da pera fantstica Ali-Bab ou Os quarenta ladres, em sua 190 representao; o tambm compositor Eduardo Garrido, especializado em Mgicas; o famoso ator Vasquez e suas cenas cmicas; o ator, cantor e compositor Xisto Bahia, alm de, finalmente; o empresrio Jacinto Heller, responsvel pela programao dos teatros Fnix Dramtica e SantAnna.

    Na sequncia, farei uma breve histria do teatro musicado no sculo XIX, com o objetivo de esclarecer a gnese e as caractersticas dos principais gneros dramtico-musicais acima relacionados. Todos estes parecem estar associados, de uma forma ou outra, pera, mas no com o sentido que hoje emprestamos a este termo. Budasz (apud LEEUWEN, 2007, p. 19) informa que:

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    opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

    Durante o sculo XVII, no se tem notcia na colnia da apresentao de peras no sentido moderno, ou seja, a encenao de um enredo integralmente posto em msica. Mesmo no sculo XVIII, alm do modelo das peras de Antnio Jos da Silva, com dilogos falados e poucos nmeros musicais, no era incomum encenarem-se libretos opersticos sem qualquer emprego de msica, funes que eram mesmo assim denominadas pera.

    Assim, durante a colnia, o termo casa de pera significava o mesmo que teatro. A observao de Budasz corroborada por Bittencourt-Sampaio, (p. 31) o qual acrescenta ainda que, a exemplo da pera, o drama era tambm um gnero hbrido, aparecendo na forma de drama com msica. O entremez (ou intermezzo), por sua vez, teve grande importncia na gnese da comdia brasileira. Surgido na Idade Mdia, era uma representao breve, de carter jocoso e muito apreciado em Espanha e Portugal onde seu texto era vendido nas feiras em forma de folheto de cordel sempre intercalado entre os atos de uma tragdia ou comdia ou aps a concluso da pea principal, sem nenhuma relao com a mesma. (Ver BUDASZ, 2008, p. 5-22) Com o objetivo de fazer rir, utilizava personagens tpicos, mscaras grotescas, truques, mmicas, caretas, situaes grotescas e gestos e palavras escatolgicas ou obscenas. Sua funo principal consistia em atenuar a tenso dos dramas mais longos e era geralmente terminado por um nmero musical cantado. interessante notar que havia muitos personagens negros e mulatos nos entremezes e farsas portugueses durante todo o sculo XVIII e primeiras dcadas do XIX, mas sempre como figuras cmicas secundrias. A partir dos anos de 1840 e 1850 o entremez foi misturado no teatro musicado carioca s tonadillas e zarzuelas espanholas, ambas com carter cmico.

    Antes de prosseguir no estudo de outros gneros dramtico-musicais, convm fazer um parntesis breve. interessante notar que a natureza hbrida dos espetculos apresentados no Rio de Janeiro nos anos de 1880 e 1882 encontrava correspondncia no tipo de artista que subia aos palcos. Este era o caso, por exemplo, de Cinira Polnio (1857-1938), que tomou parte como compositora e pianista na apresentao antes referida, no Teatro Ginsio Dramtico, apresentao que contou com a presena dos monarcas imperiais. Cinira, contempornea de Chiquinha Gonzaga, era polivalente e acumulava as funes de atriz, cantora, compositora, pianista, dramaturga, alm de dona de companhias teatrais. (ver REIS, 2001, p. 13-17) O mesmo perfil hbrido se verifica quanto atriz e cantora negra Conceio Lapa, j mencionada, e tambm no que se refere ao cantor, compositor e violonista Xisto Bahia, ator na comdia Uma Vspera de Reis, de Arthur Azevedo.

    A pera, em sua verso italiana, moderna, chegou ao Rio de Janeiro nos anos de 1820. Para serem viabilizadas nos teatros da capital do Imprio as obras tinham, contudo,

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    que passar por um processo de adaptao, sendo cortadas e rearranjadas para que coubessem nas orquestras pequenas e no elenco reduzido de cantores e cantoras. Alm disso, era normal que fossem colocadas juntas partes de obras diferentes: por exemplo, o primeiro ato de La Cenerentola, o terceiro ato da Norma e o segundo ato de La fille du rgiment poderiam facilmente ser includos no mesmo programa e interpretados pelo mesmo cast. (ver MAGALDI, 2004, p. 46)

    Aps o sucesso da pera italiana entre 1820 e 1850 e sua posterior decadncia a partir de meados do sculo, a conexo musical entre o Rio de Janeiro imperial e a capital francesa tornou-se mais forte nas dcadas de 1860, 1870 e 1880, quando a receita gerada pela exportao do caf e a transformao da corte numa cidade mais cosmopolita fizeram com que a classe mdia em ascenso procurasse freneticamente os prazeres da vida urbana europeia para diversificar suas escolhas musicais locais. Assim, a partir de 1859, com a abertura do Teatro Alcazar Lrico e, mais especificamente, em 1865, com a estreia de Orphe aux enfers (1858), de Jacques Offenbach (1829-1880), as operetas comearam a dominar a cena carioca, tendo permanecido por quase duas dcadas na preferncia do pblico. (p. 3, 48)

    Orphe aux enfers foi apresentada 255 vezes no Alcazar. A possibilidade de mixar, interpolar e recriar as peras, zarzuelas, tonadillas, intermezzos e operetas foi o motivo principal pelo qual estes e outros gneros importados foram adotados pelos cariocas. As rias eram substitudas por canes locais ou por rias mais populares de outras peras, enquanto vestgios opersticos apareciam em outros gneros musicais como danas, hinos e composies religiosas. Era comum, ainda, a apresentao de canes de pera como intermezzos nas peas de teatro e nas comdias. (p. 56) Esta possibilidade de ressignificar criativamente um determinado gnero de maneira a fazer com que ele passasse a significar outra coisa tornou possvel, por exemplo, que o cancan esfuziante do final da opereta Orphe aux enfers fosse utilizado como stira e crtica poltica e social. Assim como os bomios parisienses, os artistas cariocas, alm dos intelectuais e profissionais liberais, criticavam a sociedade imperial e o regime monrquico, mas, contraditoriamente, dependiam do patrocnio e do suporte poltico da elite. Desta maneira, em 1866, um ano aps a estreia de Orphe aux enfers, os cariocas utilizaram o cancan para expressar seu descontentamento com Pedro II e, num baile de mscaras no teatro So Pedro de Alcntara, os folies danaram a quadrilha A derrota dos Paraguaios, que se transformou por fim num galope infernal. A quadrilha era uma crtica guerra do Paraguai, (p. 100-101) que trouxe muitas dvidas monarquia e que sacrificou a vida de inmeros soldados negros, aos quais foi oferecida a alforria, se da guerra voltassem vivos, claro.

    Danas derivadas da cultura africana gradualmente substituram o cancan nos finais

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    opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    alegres e irreverentes das produes teatrais locais. Para competir com o Alcazar, o Teatro Fnix Dramtica trouxe ao pblico carioca uma pardia da opereta francesa Orphe aux enfers, intitulada Orfeu na Roa, com libreto do comediante Francisco Correa Vasquez. A pardia de Vasquez estreou em 1868 e alcanou o nmero de 100 apresentaes somente no primeiro ano. Utilizava deliberadamente a msica original do Orphe aux enfers, como um recurso humorstico e uma maneira de criar familiaridade com o pblico. Na pardia, a morte de Eurdice substituda pelo sequestro de Brgida, que fica felicssima por sua liberdade inesperada. O juiz, por sua vez, tenta se aproveitar da situao ao manter Brgida perto de si e longe de Zeferino (Orfeu). No final, Vasquez substituiu o cancan por um fado brasileiro. A instrumentao caracterstica, solicitada pelo autor e pelo compositor Manoel Joaquim Maria, indicava que a dana do fado deveria ser tocada como na zona rural, ou seja, com viola, violo e pandeiros. A coreografia inclua, por sua vez, movimentos com conotaes erticas, por parte de Brgida, simulando a umbigada negra. (p. 106-110)

    A pardia de Vasquez remete comdia escrita provavelmente em 1833 por Martins Pena, O Juiz de Paz na Roa (estreada em 1838). Como informa Melo Morais Filho (apud SOUZA, 2002, p. 242; ver tambm ABREU, 1999; MENCARELLI, 1999), Vasquez travou contato com a obra de Martins Pena no teatro de feira, especialmente atravs dos espetculos representados na Barraca do Teles ou as Trs Cidras do Amor durante a Festa do Divino Esprito Santo, no Campo de Santana, na corte. O Teatro do Teles era iluminado a velas e azeite, e seus espetculos eram frequentados por um pblico heterogneo constitudo tanto por escravos e trabalhadores pobres, como por aristocratas e homens de letras. O programa hbrido consistia de nmeros musicais, circenses, de dana, mgica, teatrinho de bonecos, imitaes, alm de comdias, como O Judas em Sbado de Aleluia (1844), de Martins Pena. Havia um conjunto de flauta, violo e cavaquinho, que tocava oculto quando danavam os bonecos e uma orquestra que executava valsas, polkas e outros estilos. O teatro de feira, cujas origens remontam Idade Mdia, parece ter sido, junto com o entremez, um elo fundamental ao ligar as comdias de costumes, as pardias brasileiras das operetas, as mgicas e as revistas de ano.

    Voltando a O Juiz de Paz na Roa observo que, em 1833, a roa comeava a um passo da cidade , no desfecho da comdia, Pena solicitou que todos os personagens cantassem e danassem festivamente em roda, ao som de um fado bem rasgadinho... bem choradinho, acompanhado pela tirana na viola. (PENA, 1956, p. 54-5)13 O juiz de paz,

    13 A tirana, segundo nos informa Cmara Cascudo, era um canto e dana em compasso composto originrios da Espanha que recebemos atravs de Portugal. O fado, por sua vez, seria de origem brasileira, vinda do lundu, e j divulgada entre o povo quando a corte portuguesa se estabeleceu no Brasil. (CMARA CASCUDO, 1972, vol. I, p. 363-364, vol. II, p. 852-853)

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    ridicularizado em sua funo de autoridade, liderava a roda.14 Na cena 10 da mesma comdia ocorre o julgamento do negro Gregrio, acusado por seus donos, o casal Incio Jos e Josefa Joaquina, de ter agredido a mulher com uma umbigada, acusao repudiada veementemente pelo negro, alegando que no dava umbigada em bruxas. Como se sabe, a umbigada movimento coreogrfico em diversos tipos de dana da cultura negra, podendo servir, ainda, como expresso de desejo sexual, que, pelo menos a princpio, no representa uma agresso. Durante a audincia com o juiz de paz, Josefa Joaquina insinua o carter sexual da umbigada ao declarar que aquela no havia sido a primeira vez... Exemplificando o carter cmico e absurdo da cena, o casal exige nada menos que a pena de degredo para o negro, mas este absolvido pelo juiz: Est bem, senhora, sossegue Sr. Incio Jos, deixe-se dessas asneiras, dar embigadas (sic) no crime classificado no cdigo. Sr. Gregrio, faa o favor de no dar mais embigadas na senhora; quando no, arrumo-lhe com a lei s costas e meto-o na cadeia. (PENA, 1956, p. 46) Incio Jos ainda arremata, ameaando Gregrio: L fora me pagars, mas o juiz finge no ouvir e profere a declarao tradicional esto conciliados.15

    Assim como a comdia de Pena, a coreografia de Orfeu na Roa, de Vasquez, foi considerada imoral segundo os padres da poca, mas, apesar disso, se tornou um grande sucesso. Ela continha uma dupla crtica endereada, de um lado, ao sistema escravista monrquico e, de outro, justificativa religiosa que lhe servia de fundamento. Como Alencastro observou com preciso, (2000, p. 178) a Igreja Catlica apoiou a escravido sob a argumentao teolgica (?) de que, ao sequestrar os negros da frica para torn-los escravos no Brasil, na verdade Portugal estaria piedosamente salvando-os do paganismo africano. Neste sentido, a coreografia do fado de Orfeu na Roa representava uma crtica s instituies polticas e religiosas que insistiam em adiar a abolio da escravatura no Brasil. Estes nmeros de msica e dana refletiam, contudo, uma viso algo estereotipada da cultura negra. Como Magaldi bem assinalou, havia um contraste ntido entre as representaes que associavam a cultura afro-brasileira ao ritmo, a sensualidade, ao primitivismo e ao riso ou, ainda, violncia enquanto que, cultura europeia estavam

    14 Cito a seguir o parecer do Dr. Andr Pereira de Lima, advogado e censor do Conservatrio Dramtico Brasileiro: O Juiz de Paz na Roa uma farsa escrita em baixo cmico e destituda de tudo quanto se pode desejar, quer para o entretenimento do esprito, quer para o melhoramento dos costumes. Ofende indiretamente as instituies do pas [...] e, por isso, a considero em circunstncias de no ser apresentada. (MAGALHES JNIOR, 1972, p. 107; ver tambm ARAS, 1987)

    15 Ver a anlise excelente da cena do julgamento de O Juiz de Paz na Roa em COSTA, 1989, vol.12. p. 1-22.

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    opus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

    associadas a melodia, a harmonia, a razo e a civilizao. (MAGALDI, 2004, p. 128). Tratava-se parcialmente, portanto, de um preconceito s avessas.

    Antes de passar s concluses deste trabalho, abordarei um gnero sem o qual no ficar suficientemente claro o porqu da meno insistente ao carter fantstico das peras, operetas, dramas, comdias, lendas e prestidigitaes nos espetculos dramtico-musicais apresentados na cidade do Rio de Janeiro nos anos de 1880 e 1882. Refiro-me mgica, cujas origens remontam s feries francesas do sculo XVIII, gnero de teatro musicado que se utilizava de temas mitolgicos. Segundo Freire (1999), a referncia mais antiga a um espetculo denominado mgica data de 22 de janeiro de 1815, quando a Gazeta do Rio de Janeiro anunciou a nova comdia mgica intitulada o Mgico de Valena. Segundo a mesma autora foi na segunda metade do sculo XIX que o gnero parece ter ganhado mais espao nos palcos cariocas. Neste perodo, uma das mgicas de maior sucesso foi a Rom do Amor, apresentada em 1861, no Teatro So Pedro de Alcntara, alm de o Amor e o Diabo, estreada em 1870, no Teatro So Lus, provavelmente uma traduo da pera-ferie francesa Les Amours du Diable, datada de 1853. (AUGUSTO, 2008, p. 206). A mgica no se resumia, contudo, a uma mera traduo da ferie e, numa segunda fase, passou a ser veculo de crtica social, no que teria influenciado a opereta e a revista de ano. No Brasil, o gnero adquiriu importncia especial devido a sua msica, que inclua, pioneiramente, formas populares urbanas, como o tango brasileiro, o maxixe, a polca e a valsa. A mgica sintetizava elementos da ferie francesa, da pera italiana, da opereta francesa e da zarzuela espanhola. (ver FREIRE, 1999) Da ferie, a mgica herdou os temas mitolgicos ou fantsticos e os efeitos espaciais; da pera, as introdues orquestrais e a tcnica vocal do bel canto; da opereta, a comicidade e, finalmente; da zarzuela, as partes faladas intercaladas com as partes instrumentais e, sobretudo, os nmeros de dana. A mgica demandava compositores e intrpretes de qualidade, como, por exemplo, o j mencionado Eduardo Garrido, alm de Henrique Alves de Mesquita e, ainda, Carlos Severiano Cavalier Darbilly. (AUGUSTO, 2008)

    O carter fantstico da mgica tambm estava presente na revista de ano, gnero cujas razes remontam ao teatro popular de feira da Renascena francesa, ao teatro de Gil Vicente (1465-1536), em Portugal, e ao de Caldern de la Barca (1600-1681), na Espanha. (ver RUIZ; BRANDO, 1988; VENEZIANO, 1991) A revista pioneira apresentada no Brasil estreou no Teatro Alcazar Lrico, em 1859, com o ttulo As Surpresas do Sr. Jos Piedade, de Figueiredo de Novaes, mas foi a partir da revista-opereta com msica original especialmente composta, O Mandarim (1884), de autoria do dramaturgo, tradutor e acadmico negro Arthur Azevedo, que o gnero adquiriu projeo popular. A denominao revista de ano deve-se a seu carter crtico, passando em revista aos fatos polticos e sociais mais escabrosos ocorridos durante o ano anterior. Era comum que o prlogo da revista de ano contivesse uma

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    cena passada no Olimpo repleto de deuses, no Parnaso com Apolo e suas musas ou no inferno com os diabinhos. Um desses seres desceria a Terra para sondar como estavam as coisas e, durante seu passeio, tudo lhe pareceria confuso. Esse personagem poderia ser um estrangeiro ou um roceiro e, atravs de seus olhos, a plateia via a si mesma e a sua realidade, sempre retratadas de maneira irnica. Tornando extico o familiar e utilizando o recurso da caricatura pessoal caracterstica que a aproximava do entremez e da revista portuguesa a revista-opereta O Mandarim inclua, por exemplo, o personagem Baro de Caiap, interpretado pelo ator e cantor Xisto Bahia. Este personagem foi inspirado numa pessoa de carne e osso, Joo Jos Fagundes de Resende e Silva, conhecido como Baro do Caf. Este, ao perceber que fora retratado ironicamente no palco, entrou com uma queixa na polcia e passou a exigir publicamente a proibio do espetculo, atravs do Jornal do Commercio. Arthur Azevedo respondeu queixa e o Baro do Caf foi vencido. Para o desespero do ofendido, o caso ganhou as ruas e ajudou a promover ainda mais a O Mandarim, que se tornou o primeiro grande sucesso do gnero revista, com seus tangos, polkas e maxixes. (ver MENCARELLI, 2003)

    Concluso

    Como mencionei anteriormente, desde meados do sculo XIX muitos escravos da corte foram enviados para a zona rural do estado para trabalhar nas plantaes de caf, produto cuja exportao fez a fortuna das oligarquias nas dcadas finais do sculo XIX e incio do sculo XX, beneficiando direta ou indiretamente a classe mdia na capital, bem como financiando a melhoria progressiva da infra-estrutura urbana. Assim, o trabalho escravo na zona rural do estado propiciou a ascenso da classe mdia e alimentou a oferta e a procura de diverso nos teatros da capital. Paradoxalmente, setores desta mesma classe mdia (estudantes, escritores, profissionais liberais e intelectuais), que frequentavam os teatros da corte, criticavam o regime monrquico e exigiam a abolio da escravatura. Enquanto isso, o violeiro negro, Venncio, fugia da Fazenda da Cachoeira, em Vassouras, uma fazenda de plantio de caf, (STEIN, 1957)17 para se refugiar na capital, misturando-se multido para ludibriar os caadores de recompensa.

    Percorrendo um caminho inverso ao de Venncio, os artistas da capital se voltavam para a cultura afro-brasileira da zona rural, levada junto com os escravos para as

    17 Na p. 82 desta obra mencionado o nome do dono de Venncio, um Baro do Caf, o Dr. Antnio Lazzarini.

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    opus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

    plantaes de caf. Tendo como antecedentes remotos o teatro popular de feira e o entremez, tradicionalmente encerrado com um nmero musical cantado, o final da comdia de costumes O Juiz de Paz na Roa (1833), de Martins Pena, contava com um fado afro-brasileiro e uma dana de roda, no que influenciou a pardia de opereta Orfeu na Roa (1868), de autoria do comediante Vasquez. A partir desta pardia a incluso de nmeros afro-brasileiros de msica e dana (jongos, umbigadas, fados, tangos) foi se tornando uma constante no teatro musicado carioca, despontando nas mgicas e, principalmente, nas revistas de ano, a partir de O Mandarim (1884), de Arthur Azevedo. O processo de naturalizao do Outro (negro) ganha um impulso decisivo com o surgimento do samba urbano nas dcadas iniciais do sculo XX e, paradoxalmente, completado na ditadura do Estado Novo (1937-1945), de Getlio Vargas. O samba, at ento um herdeiro da tradio da malandragem, remodelado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo e purificado de seus elementos dionisacos, como a apologia da boemia e a idealizao da figura do malandro (o ex-escravo). Dessa maneira, o gnero musical passa a promover a ordem e o trabalho cvico, (ver WISNIK, 1982, p. 190) enquanto, simultaneamente, transmitido para todo o Brasil atravs das ondas da rdio Nacional.

    O relato antes citado mostrou que o pastor protestante sueco Carl Ruders prescreveu, em 1800, o uso de cosmticos para embranquecer a pele escura da atriz e cantora lrica brasileira Lapinha. Fazendo uma comparao entre a poca de Lapinha e a era Vargas verifica-se uma inverso curiosa de papis, atravs da qual a intrprete operstica brasileira e negra troca de lugar com uma sambista branca e portuguesa. Como num nmero de mgica, no incio dos anos de 1940 a Poltica da Boa Vizinhana dos EUA cooptou o Estado Novo ento perigosamente prximo Alemanha nazista e, de maneira estratgica, utilizou a poderosa indstria cultural norte-americana e os filmes de Walt Disney (Al, amigos!, 1942) para converter a cantora, atriz e danarina, Carmen Miranda, em smbolo internacional de brasilidade. (ver McCANN, 2004) A julgar por este episdio de mgica poltica pode-se supor que o regime populista de Vargas aprendeu um dos truques do teatro musicado, isto , a pardia, que, na verso getulista, deixou de lado a pera europia da corte imperial e se voltou para o samba afro-brasileiro da Repblica, convertendo-o em simulacro hollywoodiano, para ingls ver.

    A imagem fielmente distorcida da realidade. Tendo como ponto de partida a roa no perodo colonial, passando pelo teatro de feira da Festa do Divino Esprito Santo, no Campo de Santana, e pelos demais palcos da corte Imperial, at atravessar a Repblica e chegar Praa da Apoteose, onde se encerra o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, aos poucos foi sendo construda no pas (e fora dele) uma imagem, inseparavelmente acompanhada de uma trilha sonora. Entretanto, entretanto, mesmo a imagem refletida no espelho invertida, apesar de, aparentemente, corresponder

  • O teatro das contradies . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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    realidade. O processo de naturalizao do Outro parece ter resultado num processo de controle e domesticao da diferena, atravs da aceitao superficial. Afinal, a hibridez cultural brasileira no resultou da harmonizao cordial entre as culturas europeia, africana e indgena, mas sim de um processo histrico longo e acidentado, no qual as misturas culturais foram acompanhadas por choques e conflitos. (ver CEVASCO, 2006) No decorrer deste percurso, to hbrido quanto violento, tentou-se integrar um Outro (o negro africano, a cultura afro-brasileira, o campo), a um Mesmo (o branco civilizado, a cultura europeia transplantada para os trpicos, a cidade). Enquanto isso, o ndio era gradativamente empurrado do litoral para os confins do territrio brasileiro, apesar de o Romantismo literrio e musical do sculo XIX t-lo convertido, paradoxalmente, em smbolo de nacionalidade (ver, por exemplo, a pera O guarany, de Carlos Gomes (1836-1896)). Tanto o paradoxo indianista como as inmeras notcias publicadas no Jornal do Commercio em 1880 e 1882 sobre a venda, compra e o aluguel de escravos poucos anos antes da Proclamao da Repblica e da abolio da escravatura , exemplificam como a configurao scio-cultural e polticoeconmica brasileira resultou de uma construo marcada historicamente pela excluso de ndios e negros, na qual os discursos oficiais tm como norma afirmarem exatamente o contrrio daquilo que posto efetivamente em prtica. Este divrcio entre discurso e prtica pode ser creditado ao que Roberto Schwarz (1977, p. 13-29) denominou de as idias fora de lugar, isto , o descompasso entre, de um lado, os ideais liberais burgueses europeus importados, segundo os quais a lei era igual para todos e mesmo um simples operrio poderia chegar ao mais alto posto e, de outro lado, o regime escravocrata do Imprio do Brasil, o qual institucionalizava a desigualdade e contradizia, na prtica, o liberalismo de fachada.

    Como bem exemplificou a cena da comdia censurada O Juiz de Paz na Roa, escrita por Martins Pena em 1833, a suposta umbigada de um negro em uma branca podia tornar-se motivo de julgamento e seu autor ameaado com o degredo para a frica. Entretanto, se um ato semelhante partisse de um branco contra uma negra provavelmente no seria passvel de punio, talvez at mesmo nos dias de hoje. Na dimenso cultural est contida a problemtica tnica, pois a miscigenao racial foi fruto de um intercurso sexual unilateral, dos colonos com as nativas e dos senhores brancos com suas escravas negras. Para Alencastro,