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2 Revelação e Inspiração Peter M. van Bemmelen Introdução O fato de o Deus vivo haver Se revelado e continuar a Se revelar à família humana é fundamental para a fé cristã. As Escrituras, tanto o AT quanto o NT, apresentam um relato da maneira pela qual Deus Se mani- festou na história humana - especialmen- te na história de Israel e supremamente na pessoa de Jesus Cristo. Sem essa revelação divina, sem o devido conhecimento do ver- dadeiro caráter e da vontade de Deus, a hu- manidade pereceria alienada por causa da culpa e do pecado. Na Bíblia, a criação do mundo e a majes- tade, beleza e as bondosas provisões da natu- reza são percebidas como manifestações da glória, sabedoria e do amoroso cuidado de Deus por Suas criaturas. A teologia chama essas manifestações de revelação geral. Con- tudo, a presente condição da humanidade e do seu mundo cheio de pecado, ruptura, de- sastre e morte levanta sérias questões sobre a possibilidade de se obter verdadeiro conhe- cimento de Deus por meio do mundo natu- ral ou da experiência humana. A evidência bíblica sugere que a sabedoria e o conheci- mento obtidos somente por meio dessas fon- I. Revelação A. Definição B. Terminologia Bíblica 1. O Antigo Testamento 2. O Novo Testamento II. Revelação Geral A. Introdução e Definição B. Modalidades da Revelação Geral tes são insuficientes para nos fornecer uma compreensão correta do caráter e do amol- de Deus e de Sua intenção em nos salvar do pecado e da morte. Deus solucionou essa dificuldade dan- do-Se a conhecer aos seres humanos em um nível pessoal. Em linguagem teológica isso recebe o nome de revelação especial, principalmente conforme se revela e regis- tra nas Escrituras. Ainda que inteiramente conscientes das diversas críticas da Bíblia - ética, histórica, linguística, científica, fi- losófica e teológica -, escolhemos nos con- centrar nas alegações feitas pelos escritores bíblicos a respeito de seus próprios escritos e, em .particular, na atitude de Jesus para com as Escrituras e o emprego que delas fez. Os profetas, os apóstolos e, mais importante, o próprio Jesus aceitavam a Bíblia como a fi- dedigna e autorizada Palavra de Deus, co- municada pelo Espírito Santo em linguagem humana. Revelação e inspiração, em última análise, são mistérios divinos. Contudo, mes- mo nossa limitada compreensão humana é de crucial importância para a fé cristã ma- dura e inteligente. 1. Natureza 2. Seres Humanos 3. História C. Teologia Natural e a Salvação dos Gentios III. Revelação Especial A. Introdução e Definição B. Características da Revelação Especial 1. Revelação Especial como Seleção 26

Artigo: Revelação e Inspiração

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Mais um artigo sobre Revelação e Inspiração das escrituras, com argumentos históricos, teológicos e hermenêuticos.

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  • 2 Revelao e Inspirao

    Peter M. van Bemmelen

    Introduo

    O fato de o Deus vivo haver Se revelado e continuar a Se revelar famlia humana fundamental para a f crist. As Escrituras, tanto o AT quanto o NT, apresentam um relato da maneira pela qual Deus Se mani-festou na histria humana - especialmen-te na histria de Israel e supremamente na pessoa de Jesus Cristo. Sem essa revelao divina, sem o devido conhecimento do ver-dadeiro carter e da vontade de Deus, a hu-manidade pereceria alienada por causa da culpa e do pecado.

    Na Bblia, a criao do mundo e a majes-tade, beleza e as bondosas provises da natu-reza so percebidas como manifestaes da glria, sabedoria e do amoroso cuidado de Deus por Suas criaturas. A teologia chama essas manifestaes de revelao geral. Con-tudo, a presente condio da humanidade e do seu mundo cheio de pecado, ruptura, de-sastre e morte levanta srias questes sobre a possibilidade de se obter verdadeiro conhe-cimento de Deus por meio do mundo natu-ral ou da experincia humana. A evidncia bblica sugere que a sabedoria e o conheci-mento obtidos somente por meio dessas fon-

    I. Revelao

    A. Definio

    B. Terminologia Bblica

    1. O Antigo Tes tamen to

    2. O Novo Tes tamen to

    II. Revelao Geral

    A. Introduo e Definio

    B. Modalidades da Revelao Geral

    tes so insuficientes para nos fornecer uma compreenso correta do carter e do amol-de Deus e de Sua inteno em nos salvar do pecado e da morte.

    Deus solucionou essa dificuldade dan-do-Se a conhecer aos seres humanos em um nvel pessoal. Em linguagem teolgica isso recebe o nome de revelao especial, principalmente conforme se revela e regis-tra nas Escrituras. Ainda que inteiramente conscientes das diversas crticas da Bblia - tica, histrica, lingustica, cientfica, fi-losfica e teolgica -, escolhemos nos con-centrar nas alegaes feitas pelos escritores bblicos a respeito de seus prprios escritos e, em .particular, na atitude de Jesus para com as Escrituras e o emprego que delas fez. Os profetas, os apstolos e, mais importante, o prprio Jesus aceitavam a Bblia como a fi-dedigna e autorizada Palavra de Deus, co-municada pelo Esprito Santo em linguagem humana. Revelao e inspirao, em ltima anlise, so mistrios divinos. Contudo, mes-mo nossa limitada compreenso humana de crucial importncia para a f crist ma-dura e inteligente.

    1. Na tureza

    2. Seres H u m a n o s

    3. Histria

    C. Teologia Natural e a Salvao dos Gentios

    III. Revelao Especial

    A. Introduo e Definio

    B. Caractersticas da Revelao Especial

    1. Revelao Especial como Seleo

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  • REVELAAO E INSPIRAAO

    2. Revelao Especial como Redeno

    3. Revelao Especial como Acomodao

    IV. Inspirao da Bblia

    A. Introduo: o Problema da Definio

    B. Uma Concepo Bblica de Inspirao

    1. Inspirao: Palavra ou Conceito?

    2. A Forma H u m a n a da Escritura

    3 . O C a r t e r D i v i n a m e n t e I n s p i r a d o

    da Escr i tura

    C. Modo, Locus e Extenso da Inspirao

    1. O Modo da Inspirao

    2. O Locus da Inspirao

    3. A Extenso da Inspirao

    D. Efeitos da Inspirao

    1. Escr i tura : a Viva Voz de Deus

    2. Escr i tura : sua Autor idade

    3. Escri tura: sua Veracidade

    4. Escr i tura : sua Clareza e Suficincia

    V. Aplicaes Prt icas

    VI. Resumo Histrico

    A. Igrejas Antiga e Medieval

    13. Reforma e Contra-Reforma

    C. Era da Razo e o Iluminismo

    D. Desenvolvimento Contemporneo

    E. Concepo Adventista

    VII. Coment r ios de Eilen G. W h i t e

    A. Introduo

    B. Revelao

    C Escritura e Inspirao

    VIII . Literatura

    I. Revelao

    A. Definio O substantivo "revelao" e o verbo "reve-

    lar" so usados tanto em linguagem teolgica como secular. O significado bsico do verbo, que deriva do latim revelare, retirar o vu, descobrir algo que estava escondido. Sig-nifica, portanto, fazer conhecido o que era secreto ou ignorado. O substantivo pode se referir ao de revelar, mas tambm ao seu efeito. Em linguagem comum, empregam-se muitas outras palavras para comunicar a mesma ideia, tais como "contar", "tornar co-nhecido", "patentear", "trazer luz".

    Com referncia ao ato de Deus de re-velar famlia humana Sua pessoa, von-tade e propsito, essas palavras adquirem uma nova profundidade semntica. pos-svel sintetizar a essncia da revelao di-vina afirmando-se que Deus Se revela em palavras e aes, atravs de muitos e dife-rentes canais, embora mais plenamente na pessoa de Jesus Cristo. A inteno explci-ta de Deus que, atravs dessa revelao, os seres humanos possam conhec-Lo e es-tabelecer com Ele uma relao salvadora, que trar como resultado eterna comunho com Ele (Jo 17:3).

    B. Terminologia Bblica

    1. O Antigo Testamento As tradues inglesas da Bblia usam as

    palavras "revelar" e "revelao", mas no como era de se esperar. Na RSV, o verbo "revelar" ocorre 65 vezes, 28 das quais se encontram no AT como a traduo do verbo hebraico ou aramaico galah (exceto em Gn 41:25, onde traduzido do verbo hebraico nagad). O verbo galah, assim como o latino revelare, expressa a ideia de descobrir alguma coisa coberta ou escondida. Ocorre frequentemente apenas com uma acepo secular (Rute descobre os ps de Boaz, Rt 3:4), assim como em refern-cia a revelaes divinas (Deus revela o sonho a Nabucodonosor, em Dn 2:19). O substanti-vo "revelao" ocorre duas vezes na RSV, no AT, como traduo das formas verbais yarah e galah (Hc 2:19; 2Sm 7:27).

    O AT utiliza outras palavras e locues para descrever as revelaes divinas-. Algumas expresses pem em evidncia seu aspecto auditivo: "Palavra do Senhor que veio a Jeremias" (Jr 47:1); "Disse o Senhor a Moiss" (Lv 19:1); ou a expresso muitas vezes repetida "Assim diz o Senhor"

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    (Am 1:3). Tais expresses ocorrem cente-nas de vezes e enfatizam o aspecto auditi-vo da revelao.

    O elemento visual tambm essencial no processo divino de autor revelao. Verbos como ra'ah (ver, ser visto, aparecer, fazer apa-recer, mostrar) e hcizaw (ver, ver em viso ou sonho, contemplar), e os substantivos roeh (vi-dente), mareh (viso, apario), hozeh (viden-te), hcizon (viso) tambm so usados. Outras palavras de sentido cognitivo mais geral empre-gadas so hcixvcih (fazer conhecido, informar), yadci (conhecer, fazer conhecido, publicar) e nagad (fazer conhecido, relatar, contar). Essa lista no pretende ser exaustiva, mas mostra a diversidade de palavras usadas para descre-ver as diferentes maneiras pelas quais Deus Se comunica com os seres humanos.

    Um estudo de todas as expresses reve-latrias da Bblia deixa transparecer a con-vico que os escritores bblicos tinham de ser recipientes e mensageiros da revelao divina. No AT essa conscincia se manifes-ta especialmente nos escritos dos profetas, embora seja tambm encontrada em outros lugares. O rei Davi, que referido como o "ungido do Deus de Jac", "o mavioso salmis-ta de Israel", expressa esta convico: "O Es-prito do Senhor fala por meu intermdio, e a Sua palavra est na minha lngua" (2Sm 23:1, 2). A sabedoria de Salomo veio como um dom prometido por revelao divina, cons-tituindo ela mesma uma manifestao da sa-bedoria de Deus (lRs 3:5-14).

    Os termos indicativos da revelao de Deus tambm so usados com relao a acontecimentos especficos atribudos ao ou interveno divina. A No Deus anun-ciou: "Estou para derramar guas em dilvio sobre a terra" (Gn 6:17) e o instruiu a cons-truir uma arca, para que ele e sua famlia fossem salvos. O Senhor deu a Moiss e a Aro poder para realizar sinais, a fim de que os israelitas cressem que o Senhor aparece-ra a Moiss e o instrura a lider-los na sada

    do Egito (x 4:1-9, 27-31). Em outra ocasio Deus empregou uma violenta tempestade e a barriga de um grande peixe a fim de levar um profeta desertor a cumprir a tarefa que Ele lhe designara (Jn 1:4-3:3). Essas aes ou intervenes divinas geralmente eram precedidas ou acompanhadas de revelaes explicativas. Ams declara: "Certamente, o Senhor Deus no far coisa alguma, sem pri-meiro revelar o Seu segredo aos Seus servos, os profetas" (Am 3:7). De acordo com o AT, as palavras e as aes atuam juntas no trato de Deus com os seres humanos.

    As frequentes referncias do AT a profe-tas, vises, sonhos, sinais e maravilhas evi-denciam o persistente desejo de Deus em revelar-Se atravs dos canais de Sua escolha. As manifestaes pessoais de Deus a Abrao, Isaque, Jac e Moiss - as chamadas teofa-nias ou aparies da divindade - e Sua pre-sena durante o xodo visavam a mostrar Seu afetuoso propsito de estabelecer com Abrao e seus descendentes uma relao pactuai es-pecial, para, atravs de Israel, tornar conhe-cidos a todos os povos Sua Pessoa, vontade, salvao e Seu carter benevolente (Gn 12:1-3; 22:15-18; 26:1-5; 28:10-15; x 19:1-6).

    A carta aos Hebreus sintetiza todo o pro-cesso de revelao divina do AT nestas pala-vras: "Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetasf...]" (Hb 1:1). Essa declarao refor-a a primazia da comunicao divina atravs dos profetas. Porm, a revelao divina no se restringe ao testemunho proftico.

    A palavra comum no AT para profeta iicibi', que ocorre mais de 300 vezes. Sua derivao incerta, mas quase todos sabem que possui um sentido passivo, "aquele que chamado"; e um sentido ativo, "inter-locutor, orador". A primeira acepo reala a origem divina do ministrio proftico, ao passo que a segunda focaliza a tarefa do profeta como porta-voz de Deus ou como boca de Deus. O segundo s ignif icado i lustrado na

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  • REVELAO E INSPIRAO

    designao de Aro como porta-voz, que fala em nome de Moiss perante Israel e perante fara. Disse Deus a Moiss: "V que te constitu como Deus sobre fara, e Aro, teu irmo, ser teu profeta. Tu falars tudo o que Eu te ordenar; e Aro, teu irmo, falar a fara, para que deixe ir da sua terra os filhos de Israel" (x 7:1, 2; cf.'4:10-16).

    Outros termos eram empregados para se referir aos profetas. Quando Saul procurava as jumentas de seu pai, seu servo sugeriu que consultassem "um homem de Deus" na cida-de vizinha. Esse homem de Deus tambm chamado de "vidente" (roeli), com a observa-o de que essa palavra equivale a "profeta" (ISm 9:9). Esse mesmo paralelismo apare-ce em outros lugares com a palavra hozeh (vidente), em 2Sm 24:11; 2Rs 17:13; Is 29:10. Para todos os propsitos prticos, essas duas palavras hebraicas e nab so sinnimas.

    Os profetas no somente proclamavam a palavra do Senhor com a boca, mas tambm escreviam muitas das coisas que lhes haviam sido reveladas, fosse por ordem divina, fos-se pela induo do Esprito Santo. O primei-ro profeta escritor de que se tem notcia foi Moiss, que escreveu o que se tornou conhe-cido como Torah, ou a Lei (Js 8:31; Lc 24:44). Os profetas posteriores tambm foram mo-vidos pelo Esprito a expressar-se por escri-to. O Senhor disse a Jeremias: "Toma um rolo, um livro, e escreve nele todas as pala-vras que te falei" (Jr 36:2). Daniel se referiu a esse rolo como a palavra "que falara o Se-nhor ao profeta Jeremias" (Dn 9:2).

    A palavra do Senhor registrada por Moiss e pelos profetas se tornou o mais importante meio pelo qual Deus revelou a Si mesmo e Seus propsitos a Israel e s ou-tras naes. Era desgnio divino que esses escritos fossem lidos e ouvidos pelas futu-ras geraes, para que as pessoas pudessem conhecer a Deus como seu Salvador e Rei. Ao obedecer-Lhe a palavra, os leitores se-riam abenoados (Dt 4:5-8; Js 1:8; SI 1:1-3).

    Foram tambm advertidos das terrveis con-sequncias de voltar as costas para Deus (Dt 31:26-29; Is 30:8-14).

    Longo tempo depois de a voz dinmica dos profetas haver silenciado, a viva voz de Deus ainda fala atravs dos livros. No resta dvida de que a esses escritos podem se apli-car as palavras escritas na antiguidade: "As coisas encobertas pertencem ao Senhor, nos-so Deus, porm as reveladas nos pertencem, a ns e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" (Dt 29:29; ver tambm Dons Espirituais IV).

    2. O Novo Testamento O NT tambm utiliza diversas palavras

    para comunicar a ideia de revelao divi-na. O verbo apokalypt (revelar) e o subs-tantivo apokalypsis so os mais frequentes. Esses termos, geralmente empregados em contexto religioso, referem-se a revelaes que tm que ver com a justia e a ira de Deus (Rm 1:17, 18), a segunda vinda de Je-sus (ICo 1:7; IPe 1:13), a vinda do anticristo (2Ts 2:3), o conhecimento dos pensamentos humanos (Lc 12:2) ou a Revelao de Jesus a Joo (Ap 1:1). A palavra phanero (descobrir, revelar) tambm usada (Rm 16:26). Outras palavras utilizadas no contexto da revelao divina so gnriz (fazer conhecido, Ef 1:9), deiknymi (indicar, Jo 5:20), epiphain (apa-recer, mostrar-se, Lc 1:79) e chrmatiz (co-municar uma revelao, Mt 2:12, 22).

    Embora importantes expresses vete-rotestamentrias como "a palavra do Senhor veio" ou "assim diz o Senhor" no apaream no NT, a segunda parte das Escrituras no ignora os diversos tipos de revelao divina aos seres humanos. Deus Se comunicou com Jos atravs de sonhos (Mt 1:20; 2:12, 13, 19, 22). O sacerdote Zacarias (Lc 1:22), Ananias de Damasco (At 9:10), o centurio Cornlio (At 10:3) e o apstolo Pedro (At 11:5) receberam vises. Paulo podi*a falar do perigo de se ensoberbecer "com a

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    grandeza das revelaes" (2Co 12:7), j que ele, evidentemente, as havia recebido em muitas ocasies durante seu ministrio (At 16:9, 10; 18:9, 10; 26:19; 27:23, 24; 2Co 12:1-4; G1 2:1, 2).

    A terminologia revelacional do NT tem como foco Jesus Cristo. Joo Batista testifi-cou: "a fim de que Ele fosse manifestado a Israel, vim, por isso, batizando com gua" (Jo 1:31). O apstolo Joo apresenta Jesus como "o Verbo", o Filho unignito do Pai, que "Se fez carne" e "quem O revelou" (Jo 1:1, 14, 18). Mateus nos diz que "ningum conhece o Pai, seno o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar" (Mt 11:27). A revelao de Deus em teofanias, vises, sonhos e declaraes pro-fticas encontra seu pice e cumprimento na encarnao do Filho. Por essa razo, a epstola aos Hebreus comea com um ma-jestoso resumo: "Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes ltimos dias, nos falou pelo Filho. [...] Ele, que o res-plendor da glria e a expresso exata do Seu ser" (Hb 1:1-3). Cristo Deus revelado em forma humana; por isso que Ele foi capaz de dizer o que no ficaria bem em nenhum outro lbio humano: "Quem Me v a Mim v o Pai" (Jo 14:9).

    Paulo tambm utiliza um amplo leque de termos revelacionais e, mais do que qual-quer outro, ele apresenta Cristo como a mais plena revelao de Deus. O apstolo deixa

    claro que no havia recebido de homens o evangelho que pregava, mas "mediante reve-lao de Jesus Cristo" (G1 1:12). O crucifi-cado e ressurreto Senhor lhe apareceu na < estrada de Damasco enquanto perseguia os cristos (At 9:1-9). Paulo conheceu o mis-trio de Cristo por revelao. Esse mist-rio "no foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como, agora, foi revelado aos Seus santos apstolos e profetas, no Esprito" (Ef 3:5). O papel do Esprito Santo cru-cial para a revelao de Jesus Cristo. Nisso Paulo est de pleno acordo com o restante do NT (Jo 14:26; 15:26; 16:13, 14; IPe 1:10-12).

    Ainda que proclame o evangelho da en-carnao, morte e ressurreio de Cristo como um mistrio, Paulo no deixa de asso-ciar ao AT tanto a revelao como sua pro-clamao (Rm 1:1-3; 16:25, 26; lCo 15:3, 4; 2Tm 3:14, 15). Isso se acha novamente em plena harmonia com a prpria compreenso e emprego das Escrituras por parte de Jesus, tanto antes quanto depois de Sua ressurrei-o (Lc 22:37; 24:25-27, 44-47; Jo 5:39-47).

    As Escrituras desempenham papel es-sencial na automanifestao divina: Cristo Se revela na Escritura e atravs da Escritu-ra. A voz dinmica dos apstolos pode ter emudecido como sucedeu aos antigos pro-fetas, mas o Esprito Santo continua a fa-lar atravs de seus escritos e a desvendar o mistrio de Jesus Cristo a todas as naes e geraes at que Ele venha.

    II. Revelao Geral

    A. Introduo e Definio Embora, na maioria das vezes, se empre-

    gue a linguagem revelacional com relao a pessoas, a Bblia tambm se serve dessa linguagem com referncia a fenmenos do mundo natural. Frases como "os cus procla-mam a glria de Deus" (SI 19:1) mostram que Deus Se revela atravs das obras criadas. Diferentes termos tm sido usados para de-

    signar esse conceito; porm, o mais comum deles talvez seja "revelao geral".

    A Bblia no somente fala sobre uma reve-lao por meio da natureza (SI 19:1-4; Rm 1:19-23), como tambm chama a ateno para uma percepo interna de Deus na conscin-cia humana. O autor de Eclesiastes afirma que Deus "ps a eternidade no corao do homem" (Ec 3:11), enquanto o apstolo Paulo

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  • REVELAO E INSPIRAO

    fala de gentios que "mostram a norma da lei gravada no seu corao, testemunhando-lhes tambm a conscincia" (Rm 2:15). A respon-sabilidade moral, ou seja, a percepo uni-versal do bem e do mal, do certo e do errado, tem sido vista como uma manifestao de Deus na conscincia humana.

    Podemos definir revelao geral como a revelao divina de carter universal, aces-svel a todos os seres humanos em todos os lugares, pela qual eles entendem que Deus Criador, Mantenedor e Senhor de todo o Universo. No que diz respeito humanidade, essa revelao geral tanto externa quanto interna. E tambm inescapvel. No impor-ta aonde possamos ir, somos sempre con-frontados com as obras das mos de Deus e, em ltima anlise, com a presena de Deus, pois, conforme Paulo proclamou aos filso-fos atenienses: "NEle vivemos, e nos move-mos, e existimos" (At 17:28).

    Diversas questes tm sido levantadas a respeito da revelao geral. Uma, que cru-cial, se a revelao geral fornece os ele-mentos necessrios para um conhecimento racional de Deus, uma teologia natural. Oue conceito de Deus se deduz a partir da uni-versal presena do mal, do sofrimento, da de-teriorao, da destruio e da morte? Outra questo vital, especialmente no contexto de um crescente e articulado pluralismo religio-so, se a revelao geral prov um conheci-mento salvfico de Deus. Podem seguidores de qualquer religio ou viso de mundo che-gar ao conhecimento de Deus, fora da tradio judaico-crist? Se for assim, so necessrias as misses? Revelou-Se Deus universalmen-te, assim que cada religio conduz ao conhe-cimento divino necessrio salvao?

    Para tratar dessas questes, preciso reco-nhecer a situao na qual se encontra a fam-lia humana. De acordo com a Bblia, no fim da criao, "viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom" (Gn 1:31). Esse "muito bom" inclua o primeiro casal humano, a quem Deus

    havia criado Sua prpria imagem e seme-lhana. Neles no havia imperfeio - espi-ritual, moral, mental ou fsica. Nas palavras de Eclesiastes 7:29: "Deus fez o homem reto." Essa perfeio, infelizmente, no demorou muito. Conforme Gnesis 3, Ado e Eva duvi-daram e desobedeceram. Terrveis foram as consequncias. A vergonha e o medo tomaram o lugar do amor e do respeito. Esmagado pelo senso de culpa, o casal se escondeu, evitando a companhia do Criador. Desde ento, o mal, o sofrimento e a morte entre os seres huma-nos so a dura realidade, a qual no se pode negar e da qual no se pode fugir. O mundo no mais "muito bom". Para Paulo, "toda a criao, a um s tempo, geme" (Rm 8:22). Os seres humanos esto "sujeitos escravido por toda a vida" (Hb 2:15). Alienadas de Deus, as pessoas sentem dificuldade em receber e inter-pretar a revelao divina. Acham mais difcil ainda reagir com amor e f a essa revelao. (Ver Pecado III.B.1-3; Homem II.A, B.)

    B. Modalidades da Revelao Geral Falando de maneira geral, possvel dis-

    tinguir trs principais modalidades de reve-lao geral: a natureza, os seres humanos e a histria. Embora as Escrituras autorizem essa distino, os cristos discordam sobre o grau de revelao que cada um desses mo-dos pode comunicar.

    1. Natureza Os escritores bblicos frequentemente se

    referem aos fenmenos da natureza como uma revelao de Deus e de Seus atributos. Todos os aspectos do Universo em que vi-vemos so manifestaes da glria e da sa-bedoria divina. Diversos salmos se referem a Deus como o Criador do Cu e da Terra, mantenedor constante de todas as Suas obras e provedor das necessidades de todas as cria-turas vivas, inclusive de Seus filhos humanos (SI 8:1-4; 19:1-6; 33:1-9; 104:1-35; 136:1-9), Esses salmos de louvor para a comunidade

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    da f mostram que as obras da criao cons-tituem-se numa revelao da majestade de Deus e de Seu amoroso cuidado. Muitas ou-tras pores do AT, especialmente em J e Isaas, transmitem a mesma mensagem. As perguntas desafiadoras de Isaas 40:12-31 apontam para um Criador, e Senhor onipo-tente, no obstante bondoso.

    Jesus frequentemente dirigia a ateno de Seus ouvintes para as coisas da nature-za, a fim de ilustrar verdades espirituais. As aves do cu e os lrios do campo demons-tram o cuidado de Deus por Suas criaes mais humildes, e Jesus indaga: "No valeis vs muito mais do que as aves?" (Mt 6:26). Deus faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos (Mt 5:44, 45). Outras lies da natureza incluem a r-vore boa que produz bons frutos e a rvore m que produz frutos maus - os falsos pro-fetas (Mt 7:15-20). Em harmonia com G-nesis 3, Jesus ensina que a natureza revela o conhecimento do bem e do mal.

    Os fenmenos da natureza, porm, nos do um quadro ambivalente do bem e do mal. Alm disso, como consequncia do pecado, a natureza s vezes age como instrumento do castigo divino. A maior "catstrofe natural" que se abateu sobre este mundo foi a inun-dao mundial no tempo de No. De acordo com Gnesis 6-8, o dilvio foi a resposta de Deus para a afrontosa maldade dos an-tediluvianos. A Bblia frequentemente apre-senta as foras destrutivas no mundo natural como manifestaes da ira divina sobre o pe-cado (as dez pragas do Egito, Ex 7:1-12:32; a seca devastadora no tempo de Acabe e Jezabel, lRs 17:1; ou a tempestade que amea-ava o barco no qual Jonas tentava fugir, Jn 1:1-16). Todas so apresentadas como res-postas divinas rebelio, apostasia e desobe-dincia humana. E, embora as Escrituras nos mostrem, em J 1 e 2, que os desastres na-turais podem ser resultado de atividade sa-tnica, em ltima anlise sempre se atribui

    a Deus o seu controle bsico. Acerca dos in-fortnios que sucederam a J, disse Deus a Satans: "[Tu me incitaste] contra ele, para o consumir sem causa" (J 2:3).

    Paulo considera a natureza uma modali-dade da revelao divina. Deus, disse ele, "claramente percebido nas coisas que foram criadas" (Rm 1:20, RSV). De acordo com a Bblia, a natureza mostra a glria, a sabedoria e o cuidado divinos. Por outro lado, na deca-dncia, doena, desastre e morte to preva-lecentes neste mundo de pecado, a natureza tambm expe as consequncias da queda. Manifesta diariamente o cuidado de Deus, mas tambm apresenta claramente os casti-gos divinos sobre o pecado humano. E pre- M ciso ter em mente ambos os aspectos para entender a questo da teologia natural.

    2. Seres Humanos Os seres humanos constituem outra mo-

    dalidade de revelao geral. Mesmo em sua condio decada, eles carregam as marcas de sua origem divina (Gn 1:26, 27). Ao con-templar as obras poderosas de Deus, Davi indaga: "Que o homem, que dele Te lem-bres?" Ele mesmo responde sua pergunta afirmando que "de glria e de honra" Deus o coroou (SI 8:4, 5).

    As Escrituras sugerem fortemente que os seres humanos possuem um conhecimento intuitivo de Deus. Desde o primeiro versculo Sua existncia assumida: "No princpio, criou Deus os cus e a Terra" (Gn 1:1). Em Atenas, o apstolo Paulo afirmou que Deus "no est longe de cada um de ns" e corroborou essa afirmao citando o poeta cretense Epimni-des (sculo 6" antes de Cristo): "[...] nEle vi-vemos, e nos movemos, e existimos" (At 17:27, 28). Entretanto, apesar dessa conscincia in-tuitiva, para aqueles sbios "o Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe" era um "Deus desconhecido" (v. 23, 24).

    A Bblia tambm menciona a voz da cons-cincia como uma manifestao de Deus.

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  • REVELAO E INSPIRAO

    A principal tarefa da conscincia nos esti-mular a fazer o que correto e evitar o que errado. Ela tambm pronuncia juzo. Essa fa-culdade um fenmeno universal, ainda que sua operao se diferencie de pessoa para pessoa. Segundo o NT, a voz da conscin-cia pode ser corrompida e at cauterizada (lTm 4:2; Tt 1:15).

    A razo humana tem sido apresentada como um meio de alcanar o verdadeiro co-nhecimento de Deus. Alguns, principalmen-te dentre racionalistas e destas, chegaram inclusive ao extremo de alegar que somen-te a luz da razo era suficiente para conhe-cer Deus e Sua vontade, sendo a revelao sobrenatural inteiramente dispensvel. A ra-zo desempenha papel decisivo na recepo e compreenso da revelao e na apreenso da verdade divina, mas no na sua produo. Esse fato foi expresso h muito tempo na per-gunta que Zofar fez a J: "Porventura, desven-dars os arcanos de Deus ou penetrars at perfeio do Todo-Poderoso? Como as alturas dos cus a sua sabedoria; "que poders fa-zer?" (J 11:7, 8). Paulo observou que por meio da razo e sabedoria humanas o mundo no conheceu Deus (ICo 1:21). A Bblia no apre-senta a razo humana autnoma como uma fonte do verdadeiro conhecimento de Deus.

    3. Histria Muitos tambm incluem a histria como

    uma modalidade de revelao geral. As Es-crituras apresentam Deus como o Senhor tanto da natureza quanto da histria. Nas palavras do profeta Daniel, " Ele quem muda o tempo e as estaes, remove reis e estabelece reis" (Dn 2:21). Os relatos pro-fticos e histricos da Bblia sempre retra-tam Deus como dirigindo os negcios das naes e julgando-as e a seus governantes (Gn 6:6, 7; 11:7-9; 18:16-19:25; Jr 18:7-11; Am 1:3-2:16). Paulo declarou aos sbios no Arepago que Deus "de um s fez toda a raa humana para habitar sobre toda a face

    da Terra, havendo fixado os tempos previa-mente estabelecidos e os limites da sua ha-bitao" (At 17:26).

    Contudo, sem o devido esclarecimento divino que interprete o fluxo sempre mu-tvel da histria, fica difcil para seres de existncia curta como ns perceber a mo divina no confuso panorama dos eventos histricos. Somente luz das Escrituras so-mos capazes de reconstituir os vestgios do propsito de Deus na salvao dos pecado-res, primeiramente na histria de Israel, de-pois na vida, morte e ressurreio de Jesus Cristo; bem como na proclamao do evan-gelho por meio da igreja apostlica (Mt 24:1-14; At 7:1-53; 10:34-43; 13:16-41; 17:22-31; Ef 1:3-3:13). E a Bblia que d significado e propsito a toda a histria humana, mas esse significado e propsito no podem ser descobertos parte das Escrituras. Embora a histria seja uma modalidade de revelao divina, essa revelao s se torna possvel quando o prprio Deus fornece uma inter-pretao divina de seus acontecimentos.

    A evidncia apresentada acima no exame da natureza, dos seres humanos e da hist-ria sugere fortemente que cada uma dessas modalidades constitui um canal de revela-o divina. Mas essa revelao sozinha no fonte adequada para uma teologia natural. No fornece o conhecimento capaz de tra-zer segurana, paz e reconciliao com Deus. (Ver Deus I.B.)

    C. A Teologia Natural e a Salvao dos Gentios

    Durante sculos, estudantes das Escrituras tm debatido se possvel obter o verdadeiro conhecimento de Deus a partir do mundo natural e por meio do raciocnio lgico. Pela reflexo racional, os antigos fil-sofos gregos chegaram concluso de que havia uma razo universal (gr. logos), que eles chamaram de Deus (gr. theos). Essa reflexo filosfica sobre Deus recebeu o

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    nome cie "teologia" (gr. theologici), o conhe-cimento racional sobre Deus. Tambm foi chamada de teologia natural para distingui-la da teologia mtica, o conhecimento dos deu-ses. Embora essa mitologia natural levasse os filsofos gregos a adotar uma atitude cr-tica para com sua antiga mitologia, no os fez abandonar o politesmo para adorar um nico e verdadeiro Deus.

    O apstolo Paulo nunca utiliza a pala-vra "teologia". Apesar disso, seus escritos do evidncia no s de que ele conhecia pessoalmente a teologia natural dos gregos, mas tambm de que estava convencido da in-suficincia dela em levar pessoas ao conheci-mento salvfico de Deus. O apstolo afirma que "os gregos buscam sabedoria", mas insis-te na ineficcia dessa sabedoria, pois "o mun-do no O conheceu [a Deus] por sua prpria sabedoria" (lCo 1:22, 21).

    Paulo acreditava que a criao reve-la Deus, mas tambm que o conhecimento de Deus que ela manifesta no consegue ser apreendido por mentes humanas obscureci-das pela descrena, dvida, culpa e ignorn-cia (Rm 1:19-21). A sabedoria obtida a partir das obras de Deus pelos no iluminados com a luz do Esprito de Deus leva-os invariavel-mente idolatria, ao invs de adorao do Deus verdadeiro. O apstolo chama a ateno para o fato de que os seres humanos "muda-ram a verdade de Deus em mentira, adoran-do e servindo a criatura em lugar do Criador" (v. 25). O resultado final foi a idolatria degra-dante, a imoralidade repulsiva e a hedionda criminalidade (v. 22-32; cf. Ef 4:17-19).

    Outra questo muito debatida se os pa-gos podem ser salvos apenas por meio da re-

    velao de Deus na natureza, na conscincia e na histria. A evidncia bblica sugere que s se pode obter um conhecimento verdadeiro de Deus a partir da criao e da providncia quando, sensibilizadas pela misericordiosa obra do Esprito Santo, a mente humana trans-formada e a percepo espiritual, despertada. As Escrituras estabelecem uma estreita rela-o entre a ao transformadora do Esprito e a proclamao da Palavra de Deus, o evange-lho da salvao por intermdio de Jesus Cristo (At 2:38, 39; 10:42-44; 11:15-18; G1 3:1-5; IPe 1:10-12). S possvel alcanar salvao atra-vs de Cristo, como Ele mesmo testemunhou: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; nin-gum vem ao Pai seno por Mim" (Jo 14:6). Foi por essa razo que Jesus ordenou aos discpu-los: "Ide por todo o mundo e pregai o evange-lho a toda criatura. Quem crer e for batizado ser salvo; quem, porm, no crer ser conde-nado" (Mc 16:15, 16; cf. Mt 28:18-20; Rm 10:9-17; lTm 2:3-7).

    No h dvida de que "a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem" (Jo 1:9) pode penetrar at mesmo onde a Bblia no conhecida. Ao falar dos "gentios, que no tm lei", Paulo reconhece que eles "procedem, por natureza, de conformidade com a lei", pois "mostram a norma da lei gravada no seu cora-o" (Rm 2:14, 15). Essas afirmaes indicam que o Esprito Santo pode operar transforma-o mesmo onde a palavra do evangelho no foi pregada pela voz humana, mas em nenhum momento sugerem que haja salvao parte de Jesus Cristo. Isso tambm no significa que as religies no crists sejam caminhos alternati-vos para um conhecimento de Deus que leve salvao. (Ver Deus VII.C.5.)

    III. Revelao Especial

    A. Introduo e Definio Virar as costas para Deus sempre acarreta

    trgicas consequncias. Os seres humanos, alienados de Deus pelo pecado, pela culpa,

    vergonha e medo, distorceram e suprimiram o conhecimento de Deus conforme mani-festo na natureza e na conscincia humana. A Terra inteira - principalmente os seres vivos,

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  • REVELAO E INSPIRAO

    incluindo animais e seres humanos - ficou sujeita decadncia, doena e finalmente morte. Nessa condio, a humanidade preci-sava desesperadamente de uma nova revelao de Deus, uma revelao que no s restau-rasse o relacionamento rompido entre Deus e o ser humano, mas tambm pusesse todo o Universo novamente em harmonia com Deus. Os cristos entendem que Deus comunicou tal revelao, para nos desvendar "o mistrio da Sua vontade, segundo o Seu beneplcito que propusera em Cristo" (Ef 1:9, 10).

    Essa revelao recebe muitas vezes o nome de revelao especial, em contraste com a revelao geral. Enquanto a revelao geral universal, acessvel a todos os seres humanos em todos os lugares, a revelao es-pecial dirigida a todos os seres humanos, embora no seja imediatamente acessvel a todos. Conquanto pela revelao geral Deus Se faa conhecido como Criador, Mantene-dor e Senhor do Universo, na revelao espe-cial Ele Se apresenta de uma forma pessoal para remir a humanidade do pecado e recon-ciliar o mundo consigo.

    O centro da revelao especial a pes-soa de Jesus Cristo, Deus em carne (lTm 3:16; Jo 1:14, 18). Ao manifestar-Se em forma humana na Terra, o Filho de Deus Se subme-teu s limitaes da natureza humana: Ele foi "nascido de mulher, nascido sob a lei" (G1 4:4). Ele Se fez carne, tornou-Se Jesus, o carpin-teiro de Nazar, um judeu que viveu durante aproximadamente 33 anos na Palestina, que morreu numa cruz fora de Jerusalm, sob o governo de Pncio Pilatos, e que ressur-giu do tmulo e ascendeu para o Pai. Jamais foi plano de Deus que essa revelao consti-tusse para a humanidade um acontecimento to inesperado quanto um raio que cai de um cu sem nuvens. Pelo contrrio, desde o momento em que nossos primeiros antepas-sados caram em pecado, Deus comeou a revelar seu propsito de nos salvar por meio da semente prometida ou do descendente da

    mulher. Durante milhares de anos, Ele Se revelou atravs dos canais de Sua escolha, principalmente por meio dos patriarcas e pro-fetas, a fim de preparar a famlia humana para a revelao suprema, a encarnao do Filho de Deus. Toda a histria das revelaes pre-paratrias pertence ao campo da revelao especial. (Ver Cristo I-III.)

    Deus concedeu no somente revelaes antecipatrias, mas tambm testemunhos comprobatrios. Dentre Seus discpulos, Je-sus escolheu 12 apstolos para darem teste-munho de Sua vida, morte e ressurreio, e para serem testemunhas oculares da supre-ma revelao de Deus (At 1:21, 22; ljo 1:1-3). Tendo em vista a forma singular como os escritores bblicos foram chamados para se-rem arautos da revelao divina e da autori-dade singular com que foram dotados, Paulo bem podia dizer que a igreja foi edificada "so-bre o fundamento dos apstolos e profetas, sendo Ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra an-gular" (Ef 2:20).

    Esse dinmico e complexo processo da revelao divina, tanto na histria de Israel quanto na vida, morte e ressurreio de Je-sus Cristo e no testemunho apostlico da-quele acontecimento, de nada serviria para as geraes posteriores se no lhes tivesse sido preservado e transmitido de uma ma-neira fidedigna, autorizada e persuasiva. Sob impulso e guia do Esprito Santo, os profetas e apstolos no somente proclamaram, mas tambm consignaram por escrito aquilo que Deus lhes revelou. Sob a mo orientadora da divina providncia, os escritos deles foram fi-nalmente reunidos para formar o AT e o NT.

    Na qualidade de registro da revelao especial, as Escrituras se tornaram fator essencial no processo da revelao divina. Embora uma equiparao entre revelao especial e Escrituras no faa justia com-plexidade do processo revelatrio, as Escritu-ras realmente desempenham papel decisivo nesse processo. De acordo com os autores s

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    bblicos, as Escrituras vieram at ns como a Palavra de Deus. Essa era a convico dos profetas, dos apstolos e do prprio Senhor Jesus (ver Dn 9:2; Mt 4:4; Mc 7:13; Hb 4:12). Sob a iluminao do Esprito Santo, as Es-crituras nos transmitem o conhecimento do nico Deus verdadeiro conforme revelado em Jesus Cristo.

    Revelao especial todo o processo pelo qual Deus revelou a Si mesmo e Seu prop-sito redentor para com a raa humana por intermdio de Israel, dos profetas e dos aps-tolos, mas supremamente em Jesus Cristo. Revelao especial so tambm os meios pe-los quais Ele continua Se revelando pelas Escrituras, sob o poder iluminador e con-vencedor do Esprito Santo e pela proclama-o da igreja a todas as naes da Terra. No corao desse processo encontra-se o gran-de ato redentor da encarnao do Filho de Deus, que, por Sua vida, morte, ressurreio e intercesso, redime do pecado todo aquele que nEle cr, restaurando o verdadeiro co-nhecimento de Deus.

    Em seu sentido mais profundo, o pro-cesso de revelao e o de redeno so uma coisa s, pois ambos se centralizam na pes-soa de Jesus Cristo. E ambos alcanaro seu xito definitivo quando Cristo voltar para re-velar-Se na plenitude de Sua glria, conferir a imortalidade a Seu povo e lev-lo pre-sena do Pai. Ainda assim, os mistrios da revelao redentora continuaro estimulan-do nos redimidos a mais profunda gratido e o estudo mais aplicado. Como diz Pau-lo: "Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; ento, veremos face a face. Agora, conheo em parte; ento, conhecerei como tambm sou conhecido" (lCo 13:12).

    B. Caractersticas da Revelao Especial

    A revelao especial se distingue por trs caractersticas especficas: (1) A revelao especial seletiva: Deus Se comunica com

    seres humanos especficos de forma pessoal com tudo o que envolve uma comunicao dessa natureza. (2) A revelao especial re-dentiva: o foco primrio da revelao especial o pecador, a quem Deus deseja salvar e res-taurar. (3) A revelao especial acomodati-va: marcada por acomodao ou adaptao divina ao nvel da humanidade. Essa caracte-rstica se acha inseparavelmente entrelaada com as anteriores e culmina na encarnao do Filho de Deus.

    1. Revelao Especial como Se leo Ao revelar-Se humanidade, Deus esco-

    lheu pessoas especficas a quem e por quem tornaria conhecido Seu carter e vontade. Escolheu Abrao e fez com ele uma alian-a, prometendo-lhe descendentes e bnos (Gn 12:1-3; 22:15-18). A promessa pactuai comeou a se cumprir com o nascimento de Isaque. Para esse e para Jac, seu filho, o Senhor repetiu e ratificou a promessa ini-cial (Gn 26:1-5; 28:12-15).

    Deus apareceu a esses patriarcas nas chamadas teofanias. As narrativas do G-nesis nos dizem: "Apareceu o Senhor a Abro" (Gn 12:7; 17:1) e a seus descenden-tes (Gn 26:2; 35:9). Deus tambm Se revelou a eles em sonhos e vises (ver Gn 15:1; 28:12; 31:10, 11; 46:2). Numa teofania muito espe-cial, Jac, o pai das 12 tribos, lutou com Deus e recebeu a bno divina (Gn 32:24-28).

    Durante sucessivas geraes, Israel con-tinuou, por escolha divina, a ser recipiente e canal da revelao de Deus. Um dos pon-tos culminantes dessa autorrevelao ocor-reu no xodo, quando Deus Se revelou por meio de atos poderosos de redeno, e pro-clamou Sua glria e carter como um Deus compassivo e perdoador. As revelaes de Yahweh como o Redentor misericordioso e o legislador supremo (Ex 3, 20, 24) ficaram profundamente gravadas na conscincia de Israel, lanando um firme alicerce para to-das as revelaes subsequentes.

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  • REVELAO E INSPIRAO

    O Senhor continuou a Se revelar nao escolhida de modo especial, principalmen-te por homens e mulheres a quem conferiu o dom de profecia. Entre esses estavam Sa-muel (ISm 3:21), Isaas (Is 6), Hulda (2Rs 22:14-16) e muitos outros. Era o prprio Deus quem convocava algum para o ofcio pro-ftico; nunca ningum 'foi dotado com esse dom em resultado de iniciativa ou esforo humano. Como afirma Pedro: "Nunca ja-mais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Esprito San-to" (2Pe 1:21).

    O relacionamento e o trato providencial de Deus com a nao escolhida foram sem iguais. A nenhuma outra nao da Terra o Senhor Se revelou como o fez a Israel. Um dos salmistas afirmou que Deus "no fez as-sim a nenhuma outra nao; todas ignoram os Seus preceitos" (SI 147:20). Sculos de-pois, Paulo diria que a vantagem dos judeus era "muita, sob todos os aspectos", pois a eles haviam sido "confiados os orculos de Deus" (Rm 3:1, 2). Incomparveis foram os resul-tados da revelao especial de Deus a Isra-el. Somente eles adoravam um Deus nico e verdadeiro. Nenhuma outra nao possua uma lei como os dez mandamentos. O sba-do como dia semanal de repouso comemo-rativo da criao era exclusividade de Israel. E nenhuma nao podia reivindicar possuir um conjunto de textos sagrados produzidos por escritores inspirados durante um perodo de mais de mil anos. Uma caracterstica pre-eminente da revelao especial de Yahweh a Israel foi a promessa, muitas vezes repetida, de um Filho real, o filho de Davi, que traria redeno e paz eterna no s para Israel, mas at aos confins da Terra (Gn 49:8-10; 2Sm 7:8-16; SI 2:1-11; Is 9:6, 7; 11:1-10; 49:1-6; Jr 23:5, 6; Mq 5:2-4; Zc 9:9, 10).

    Embora as revelaes feitas por Yahweh a Israel e Seu providencial cuidado com a nao escolhida fossem incomparveis, o

    Senhor deixou bem claro, desde o incio, que a revelao dada a Israel era para benefcio de todas as naes da Terra. Deus havia dito a Abrao que nele e em seus descendentes seriam benditas todas as famlias da Terra (Gn 12:3; 22:18). No monte Sinai, relem-brando aos israelitas como Ele os libertara do Egito, disse-lhes o Senhor: "Se diligen-temente ouvirdes a Minha voz e guardar-des a Minha aliana, ento, sereis a Minha propriedade peculiar dentre todos os povos" (Ex 19:5). Essa revelao certamente foi se-letiva. Mas, imediatamente, o Senhor acres-centou: "porque toda a Terra Minha; vs Me sereis reino de sacerdotes e nao san-ta" (v. 5, 6). Deus escolheu Israel para reve-lar Sua pessoa e Seus propsitos redentores a toda a Terra, para que fossem Suas teste-munhas entre as naes (Is 43:9-12).

    2. Revelao Especial como Redeno O propsito supremo de todas as formas

    ou modalidades de revelao especial pro-ver redeno aos seres humanos pecadores. As revelaes dadas a Moiss e aos profe-tas e, por intermdio deles, a Israel desti-navam-se a transmitir o conhecimento do "Senhor, Deus compassivo, clemente e long-nimo e grande em misericrdia e fidelidade; que guarda a misericrdia em mil geraes, que perdoa a iniquidade, a transgresso e o pecado" (x 34:6, 7).

    A redeno se centraliza em Jesus Cristo; logo, a revelao especial tambm. Contudo, as revelaes comunicadas no passado eram parciais e progressivas; elas vinham "muitas vezes e de muitas maneiras", at que Deus finalmente Se revelou no Filho, que refle-tia plenamente "a glria de Deus" e ostenta-va "a expresso exata do Seu Ser" (Hb 1:1, 4). No surpreende, portanto, que a respeito dessa salvao os prprios profetas tenham indagado e inquirido, "investigando, atenta-mente, qual a ocasio ou quais as circuns-tncias oportunas, indicadas pelo Esprito de

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    Cristo, que neles estava, ao dar de antemo testemunho sobre os sofrimentos referen-tes a Cristo e sobre as glrias que os segui-riam" (IPe 1:10, 11). Jesus afirmou que Seus discpulos eram privilegiados: "Pois em ver-dade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e no viram; e ou-vir o que ouvis e no ouviram" (Mt 13:17). Com base nessas e em muitas outras passa-gens, fica evidente que a revelao especial progressiva, assim como a compreenso dessa revelao por parte do crente (Pv 4:18; Jo 16:12, 13; ICo 13:9-12).

    Pelo fato de a revelao especial ser re-dentiva, a Bblia como registro escrito da revelao especial em toda a sua diversidade encontra seu ponto focal comum em Cristo e na salvao que Ele oferece. O idoso apsto-lo Paulo chamou a ateno de Timteo para as Sagradas Escrituras como o meio provi-do por Deus a fim de instru-lo "para a sal-vao pela f em Cristo Jesus" (2Tm 3:15). Esse conhecimento salvador especfico, embora universal em seu intento. Desde que "todos os tesouros da sabedoria e do conhe-cimento esto ocultos" em Cristo (Cl 2:3), Ele capaz de atrair todos para Si mesmo e para o Pai.

    3. Revelao Especial como Acomodao Nenhuma revelao cumpriria o obje-

    tivo proposto por Deus se permanecesse para alm da possibilidade de ser rece-bida e compreendida pelos seres humanos. Por isso, para nos alcanar em nossa con-dio decada, Deus acomoda Sua revela-o capacidade humana. O Senhor desce ao nosso nvel de compreenso e Se revela usando linguagem humana , empregando figuras e smbolos conhecidos da huma-nidade, para que possamos conhec-Lo e compreender Seu carter e Sua maneira de tratar conosco. Encontramos essa acomo-dao, ou condescendncia, em todo o Seu

    relacionamento com a raa humana, embora ela encontre seu clmax na encarnao do Filho de Deus, que Se tornou o ser humano Jesus de Nazar.

    O prprio fato de Deus selecionar se-res cados para comunicar a revelao divi-na a outros seres humanos, em linguagem humana, com todas as suas fraquezas e imperfeies, , em si mesmo, um ato de condescendncia. Embora reconheamos a acomodao divina nas Escrituras, devemos nos precaver contra o perigo de levar o con-ceito de acomodao to longe, a ponto de negar ou distorcer o verdadeiro significado das Escrituras.

    Das muitas e diferentes formas ou ma-nifestaes de acomodao divina, pode-mos fornecer apenas algumas amostras. Uma forma notvel o emprego de lingua-gem antropomrfica com relao pessoa de Deus e Sua atitude para com os seres hu-manos. Deus representado na Bblia com forma corprea: Ele tem rosto (Ex 33:20), olhos (SI 11:4), ouvidos (SI 18:6), nariz e boca (v. 8), braos e mos (Is 62:8) e ps (Ex 24:10).

    As Escrituras tambm atribuem a Deus atitudes e sentimentos humanos. Ele Se lem-bra (x 2:24), odeia (SI 5:5; Is 61:8), Se abor-rece (SI 106:40), ri (SI 2:4), fica indignado (lRs 11:9) e Se agrada (Mt 3:17; Cl 3:20). Se essas expresses forem compreendidas em um sentido bem literal, podemos ter uma imagem distorcida de Deus. A prpria Bblia adverte contra a m interpretao das expres-ses humanas com relao a Deus. Embora 1 Samuel 15:11 descreva Deus como dizen-do: "Arrependo-Me de haver constitudo Saul rei", o mesmo captulo afirma que Deus "no homem, para que Se arrependa" (v. 29). Ve-mos, em Gnesis 15, Deus transigindo em fazer uma aliana com Abrao, como era cos-tume na poca. Em muitas outras passagens, Ele Se expressa em linguagem humana para ser compreendido.

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  • REVELAAO E INSPIRAO

    IV. Inspirao da Bblia

    A. Introduo: O Problema da Definio

    Os cristos se referem comumente B-blia como livro inspirado, livro santo, livro divino ou simplesmente Escrituras. Jesus apelou muitas vezes para as Escrituras ou as citou, e no h dvida de que, para Ele, as Escrituras hebraicas possuam autoridade di-vina (Mt 4:4; Jo 10:35). O apstolo Paulo tam-bm aceitava a origem divina das Escrituras (2Tm 3:16). Referia-se a elas como "sagradas Escrituras" (Rm 1:2), "orculos de Deus" (Rm 3:2) e "sagradas letras" (2Tm 3:15).

    A crena de que as Escrituras hebraicas vieram a existir como resultado da inspirao divina tem sido ampla e persistente entre ju-deus e cristos. No existe, porm, consenso quanto ao que exatamente significa "inspi-rao". As concepes sobre inspirao b-blica vo desde o ditado verbal pelo Esprito Santo at a mera inspirao humana. Outros entendem que o conceito de inspirao deva ser totalmente descartado.

    Diversos fatores contriburam para essa diversidade de opinies a respeito da inspi-rao bblica. Embora o conceito seja bbli-co, a palavra "inspirao" no . Alm disso, os que estudam a questo da inspirao nem sempre partem dos mesmos pressupostos. Para agravar a situao, nenhum autor bbli-

    > co apresenta uma discusso detalhada sobre o tema. Em virtude desses fatores, faz-se ne-cessrio um minucioso estudo da evidncia bblica para a inspirao.

    B. Uma Concepo Bblica de Inspirao

    1. Inspirao: Palavra ou Conceito? As palavras "inspirao" e "inspirado"

    no aparecem assim nas lnguas originais da Bblia. Elas derivam do latim e aparece-ram na traduo da Vulgata para 2 Timteo

    3:16 e 2 Pedro 1:21. Seu significado bsico "soprar em".

    Paulo afirma, em 2 Timteo 3:16, que toda a Escritura theopnenstos, ou seja, "soprada por Deus". Benjamin Warfield conclui que "a Escritura dita theopneustos, indicando que foi "soprada por Deus, sendo produto da inspirao divina". Consequentemente, "as Escrituras devem sua origem a uma ativi-dade de Deus Esprito Santo, sendo no mais elevado e mais verdadeiro sentido criao desse mesmo Esprito" (296).

    Pedro ressalta que homens "falaram da parte de Deus", pheromenoi (movidos, sopra-dos ou impulsionados) "pelo Esprito Santo" (2Pe 1:21). Depois da Vulgata, algumas tra-dues tm usado a palavra "inspirados" nesse verso, mas a maioria emprega mesmo a locuo "movidos pelo Esprito Santo". Como quer que seja, o sentido do texto de que a pro-fecia bblica teve sua origem no Esprito Santo.

    vista disso, embora a palavra "inspira-o" no seja uma traduo precisa de ne-nhuma palavra grega usada na Bblia para descrever o processo pelo qual a Escritu-ra chegou mente humana, o termo pode ser apropriado para representar o processo pelo qual o Esprito Santo trabalha em se-res humanos selecionados no sentido de mo-v-los a proclamar as mensagens recebidas de Deus. Alguns falaram a palavra; outros a escreveram. A forma escrita constitui as Escrituras inspiradas por Deus (2Tm 3:16). O termo "inspirao" se refere obra do Esprito Santo sobre esses mensageiros ou profetas, seja para falarem, seja para escre-verem. Visto que essas pessoas foram "inspi-radas" ou "movidas pelo Esprito Santo" (2Pe 1:21), suas falas e seus escritos tambm po-dem ser considerados inspirados (2Tm 3:16).

    Embora a palavra "inspirao" focalize primariamente a atividade do Esprito Santo, um cuidadoso estudo dos dados bblicos

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    cleixa claro que tanto o sujeito humano quan-to o divino se acham envolvidos no processo de produo textual das Escrituras.

    2. A Forma H u m a n a da Escritura A primeira vista, a Bblia um livro hu-

    mano, ou melhor, uma coleo de livros humanos. Muitos deles tm um nome hu-mano ligado a si. Todos carregam em si as marcas da autoria humana. Essa autoria declarada muitas vezes nas palavras de abertura dos livros: "palavras de Jeremias" (Jr 1:1), "provrbios de Salomo" (Pv 1:1), "o ancio ao amado Gaio" (3Jo 1), "Paulo [...] igreja de Deus que est em Corin-to" ( lCo 1:1, 2). Atribuem-se a Moiss os primeiros cinco livros do AT, e muitos dos Salmos a Davi e Asafe. Cada livro prof-tico leva no ttulo o nome de um profeta; os Evangelhos, o nome de um apstolo ou de uma pessoa intimamente associada aos apstolos. Treze cartas mencionam expli-citamente Paulo como autor. J o livro de Apocalipse foi escrito por Joo, tradicional-mente identificado como o apstolo Joo.

    Os autores frequentemente se referem a si mesmos com pronomes pessoais; tam-bm registram suas prprias experincias (Ed 8:15-30; Ne 1:1-11; Is 6:1-8; Jr 1:1-19; Dn 7:1-28; G1 1:12-2:10; Ap 1:9-19). Caracte-rsticas peculiares de estilo e linguagem de-nunciam a individualidade de cada escritor.

    Numerosas referncias histricas e for-mas literrias vinculam os escritos bblicos poca e ao contexto cultural em que foram produzidos. Muitas leis de Moiss apresen-tam extraordinrios paralelos com outras leis antigas, como, por exemplo, o Cdigo de Ha-murbi. Os costumes patriarcais e as condi-es sociais de Gnesis refletem de forma notvel as condies na Mesopotmia e no Egito do 2o milnio antes de Cristo. E pos-svel traar importantes paralelos entre al-guns salmos e a literatura religiosa cananita, bem como entre alguns provrbios bblicos e

    os provrbios egpcios da poca. Essas e ou- < tras semelhanas entre a literatura bblica e a secular conferem Bblia um rosto genui-namente humano.

    Alguns livros da Bblia pertencem aos clssicos da literatura mundial, visto se-rem expresso das emoes humanas mais profundas. J e Rute retratam dramticas histrias humanas; amor apaixonado e deli-cado nos Cnticos de Salomo; emocionan-te suspense em Ester e profunda aflio em Lamentaes. E impossvel permanecer in-sensvel ao apelo de Paulo por um escravo desobediente na epstola a Filemom.

    Os livros histricos da Bblia fornecem evidncia de pesquisa histrica (Lc 1:1-4). O apstolo Paulo cita autores pagos (At 17:28; lCo 15:32, 33; Tt 1:12). Judas cita o livro pseudepgrafo de Enoque (Jd 14, 15).

    No se pode negar o carter humano da Escritura. Autores humanos - usando linguagem humana, citando fontes huma-nas, atuando em contextos humanos espe-cficos, descrevendo emoes humanas - acham-se sujeitos a todas as fraquezas e falhas da humanidade. Profetas e apsto-los no estavam isentos de pecado. Sentiam dvida, medo, s vezes sucumbiam tenta-o (x 4:10-14; Nm 20:10-12; 2Sm 11:1-27; lRs 19:1-3; Lc 22:54-62). Tambm no esta-vam livres de orgulho e preconceito, como deduzimos do episdio de Jonas e das nar-rativas evanglicas (Mt 20:20-28).

    E possvel que algum pergunte como foi que aproximadamente quarenta escrito-res, com diferentes antecedentes histricos e culturais, diferindo amplamente em sta-tus e ocupao, bem como em capacidades intelectuais e espirituais, produziram uma coleo de livros que manifesta unidade to notvel e que, do princpio ao fim, revelam um nico Deus, criador do Cu e da Terra, cujo amor a todos envolve. Talvez pergunte tambm como esses escritores conseguiram retratar uma pessoa como Jesus de Nazar,

  • REVELAO E INSPIRAO

    to verdadeiramente humana e ao mesmo tempo to completamente isenta de todas as fraquezas e imperfeies presentes nos prprios escritores bblicos. A resposta para essas perguntas, conforme a crena de cris-tos atravs dos sculos, reside no fato de as Escrituras no terem somente um carter humano, mas tambm uma origem divina.

    3. O Carter Div inamente Inspirado da Escritura To evidente quanto a ideia do carter

    humano da Escritura a convico de seus autores humanos de que aquilo que escre-veram procedia de Deus. Nas palavras de 2 Timteo 3:16, esses escritos foram inspi-rados por Deus. Tais autores expressam essa convico de muitas formas diferentes.

    So inmeros os lugares nas Escritu-ras onde se encontram frases isoladas, pa-rgrafos e at mesmo captulos inteiros cujo teor atribudo diretamente a Deus. J em seu primeiro captulo, a Bblia apresenta o Senhor como um Deus que Se comunica. Os diferentes atos criativos so introduzi-dos e iniciados pela expresso: "Disse Deus" (Gn 1:3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26). To logo criou os primeiros seres humanos, Deus falou com eles (v. 28, 29). Por todo o G-nesis encontramos Deus falando com se-res humanos, em geral com aqueles que criam nEle, mas, s vezes, tambm com quem no O reconhecia (Gn 4:6-16). Des-de xodo 3:4, onde Deus chama Moiss, at o fim do Pentateuco, encontramos sem-pre a recorrente frase: "Ento disse o Senhor a Moiss", ou palavras com o mesmo senti-do (x 20:22; 25:1; 34:1, 6; Lv 1:1; Nm 1:1; Dt 32:48).

    Moiss predisse que o Senhor Se comu-nicaria em tempos futuros com Seu povo escolhido por meio de profetas (Dt 13:1-5; 18:15-19). Em cumprimento dessas promes-sas, como a do verso 18, surgiram muitos profetas atravs dos sculos. Eles falaram e

    escreveram as palavras que Deus lhes ps na boca, no corao e na mente. Ezequiel recebeu esta ordem: "Filho do homem, mete no corao todas as Minhas pala-vras que te hei de falar e ouve-as com os teus ouvidos. Eia, pois, vai a [...] teu povo, e, quer ouam quer deixem de ouvir, fala com eles, e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus" (Ez 3:10, 11). A Jeremias declarou o Senhor: "Antes que Eu te formasse no ven-tre materno, Eu te conheci, e, antes que sasses da madre, te consagrei, e te cons-titu profeta s naes" (Jr 1:5). "Eis que ponho na tua boca as Minhas palavras"

  • TRATADO DE TEOLOGIA

    as suas palavras deixou cair em terra". "Con-tinuou o Senhor a aparecer em Sil, enquan-to por Sua palavra o Senhor Se manifestava ali a Samuel. Veio a palavra de Samuel a todo o Israel" (ISm 3:19, 21; 4:1). Davi testificou de si mesmo: "O Esprito do Senhor fala por meu intermdio, e a Sua palavra est na mi-nha lngua" (2Sm 23:2). Salomo, o "prega-dor, filho de Davi, rei de Jerusalm" (Ec 1:1), "ensinou ao povo o conhecimento; e, atentan-do e esquadrinhando, comps muitos provr-bios" (Ec 12:9). Essa a faceta humana dos escritos salomnicos. Contudo, ele mesmo se apressa em acrescentar que "as palavras dos sbios" foram "dadas pelo nico Pastor" (v. 11), o Senhor Deus de Israel.

    Embora escritos por autores humanos, lei, histria, profecia, salmos e provrbios fo-ram todos atribudos a Deus. Foi Ele quem chamou seres humanos para ser Seus men-sageiros; foi Ele quem Se revelou a eles e os instruiu por meio de Seu Esprito, dotando-os de sabedoria, guiando-os em sua pesqui-sa e impulsionando-os a falar e a escrever. E verdade que o ato de atribuir a Deus a au-toria dos escritos do AT mais destacado em algumas partes do que em outras, sendo principalmente limitado nos livros histri-cos. No obstante, o NT deixa explcito que todo o AT era de origem divina.

    Os quatro evangelhos revelam que Jesus apelava constantemente para as Escrituras do AT como investidas de autoridade mxi-ma. Por trs desses apelos estava a convico fundamental de que as Escrituras t inham origem divina. Quando tentado pelo diabo a aliviar Sua fome, Jesus resistiu citando Deu-teronmio 8:3: "No s de po viver o ho-mem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mt 4:4). Por trs vezes Ele refutou as tentaes de Satans com a r-plica "est escrito", dando a entender clara-mente que toda Escritura procede de Deus.

    Em outra ocasio, Jesus introduziu a ci-tao do Salmo 110:1 com as palavras:

    "O prprio Davi falou, pelo Esprito Santo" (Mc 12:36). O Mestre tambm citou as pala-vras de Gnesis 2:24 como se proferidas pelo prprio Deus, apesar de, no original, parece-rem um comentrio interpolado por Moiss (Mt 19:4, 5). Toda vez que Jesus iniciava ci-taes do AT com expresses tais como "est escrito" (Mt 21:13), "nunca lestes" (v. 16) ou "importa- que se cumpra em Mim o que est escrito" (Lc 22:37), atribua inspirao e auto-ridade divina s Escrituras. (Ver Cristo I.B.l.b.)

    Num confronto com os escribas e fari-seus, nosso Senhor fez uma ntida distin-o entre a tradio humana e "a palavra de Deus" (Mt 15:6), uma locuo usada por Je-sus para Se referir ao AT (ver Jo 10:35; 17:17). Ao Se referir quilo que pregava como a pa-lavra de Deus (Lc 8:21; 11:28), agiu assim cnscio de que proferia as palavras que o Pai Lhe havia dado (Jo 14:24; 17:8). Tambm estava consciente de que o Esprito Santo traria essas palavras memria dos disc-

  • REVELAAO E INSPIRAAO

    parte de Deus, movidos pelo Esprito San-to" (2Pe 1:21). Paulo, fazendo evidente re-ferncia s "sagradas letras" com as quais Timteo estava familiarizado desde a meni-nice, declarou: "Toda a Escritura inspirada por Deus" (2Tm 3:16). Para o Senhor Jesus e para os apstolos, toda a Escritura (naqueles dias, uma referncia ao AT) originou-se com Deus, e era realmente inspirada por Deus.

    O NT sugere que os escritos apostlicos foram aceitos como parte das Escrituras Sagradas, juntamente com o AT. Como era previsvel, tais indicaes se encontram principalmente nos livros do NT que foram escritos por ltimo (Lc 10:7; cf. lTm 5:18). Em 1 Timteo 5:18, Paulo justape uma declarao de Jesus "O trabalhador digno do seu salrio" (Lc 10:7) - com uma citao do AT (Dt 25:4) e introduz ambas as citaes com a locuo "Pois a Escritura declara". A frase introdutria sugere que o apstolo estava familiarizado com o evange-lho de Lucas e o reconhecia como Escritura. De igual modo, Pedro parece reconhecer as cartas de Paulo como Escritura, "segundo a sabedoria que lhe foi dada" (2Pe 3:15, 16).

    Paulo, Pedro e Joo empregam expres-ses reveladoras da conscincia que tinham de serem movidos, como os profetas do pas-sado, pelo Esprito Santo (Ef 3:4, 5; IPe 1:12; Ap 1:10, 11). Estavam cientes de falarem e escreverem com autoridade divina.

    A declarao de 2 Timteo 3:16, de que toda Escritura divinamente inspirada, no deve ser aplicada somente aos livros do AT, mas tambm aos do NT. O fato de terem os escritos neotestamentrios sido reconhecidos como Escritura inspirada por autores cristos j no 2o sculo fornece justificativa adicional para tal aplicao.

    C. Modo, Locus e Extenso da Inspirao

    Considerando os aspectos humanos e di-vinos das Escrituras, algum pode pergun-

    tar como esses aspectos se inter-relacionam. Infelizmente, os escritores bblicos no abor-dam a questo de maneira direta. Encontra-mos, porm, dispersas pelos livros da Bblia, indicaes e sugestes concernentes ao pro-cesso de inspirao e a seus resultados. Com base nesses dados bblicos, tentaremos ex-trair algumas concluses. Discutiremos o as-sunto aqui no que diz respeito ao modo, locus e extenso da inspirao.

    1. O Modo da Inspirao Os autores bblicos concordam a respei-

    to do papel decisivo do Esprito Santo em impulsion-los a escrever. A iniciativa in-teiramente do Esprito: E Ele quem chama, concede revelaes, move ou inspira. Pedro declara isso sucintamente: "Porque nunca ja-mais qualquer profecia foi dada por vontade humana" (2Pe 1:21). At mesmo o relutan-te profeta Balao s podia anunciar aquilo que o Senhor lhe ordenasse (Nm 24:2-9, 13).

    Embora reconhecendo que a inspirao um fato, devemos examinar o modo como ela ocorre. Isso exige que estudemos o pro-cesso pelo qual os autores bblicos recebiam as revelaes e as registravam.

    Era por meio de sonhos e vises que Deus Se revelava comumente aos profetas (Nm 12:6). Depois, eles consignavam por escrito o que haviam visto e ouvido, imedia-tamente ou posteriormente. A pergunta : na hora de escrever, os profetas agiam sozi-nhos ou estavam sempre sob a orientao de Deus? A pergunta deve ser respondida indiretamente, pois os prprios profetas tm pouco a dizer sobre a questo.

    A experincia de Jeremias nos ajuda a res-ponder essa pergunta. O Senhor instruiu o profeta: "Toma um rolo, um livro, e escreve nele todas as palavras que Te falei contra Israel, contra Jud e contra todas as naes" (Jr 36:2). E difcil acreditar que, sem a ajuda do Esprito de Deus, Jeremias tivesse con-seguido se lembrar e registrar o que Deus

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    lhe havia revelado durante um perodo de muitos anos. A narrativa prossegue: "Ento, Jeremias chamou a Baruque, que escreveu no rolo segundo o que ditou Jeremias, todas as palavras que a este o Senhor havia reve-lado" (v. 4). Depois leu Baruque "naquele livro as palavras de Jeremias na casa do Senhor" (v. 10), mas essas palavras eram "as palavras do Senhor" (v. 8, 11).

    Essa equiparao das palavras do pro-feta com as palavras do Senhor fortemente sugere que o profeta foi inspirado, isto , foi movido e dirigido pelo Esprito de Deus ao consignar as palavras divinas por escrito. Do mesmo modo, quando o profeta Miqueias, fazendo contraste entre sua mensagem e a dos falsos profetas, exclamou: "Eu, porm, estou cheio do poder do Esprito do Senhor [...] para declarar a Jac a sua transgresso e a Israel, o seu pecado" (Mq 3:8), ele inclua tanto as palavras escritas como as faladas.

    Quando o rei Jeoaquim desafiadoramen-te queimou o rolo, "tomou, pois, Jeremias ou-tro rolo e o deu a Baruque [...], o escrivo, o qual escreveu nele, ditado por Jeremias, to-das as palavras do livro que Jeoaquim, rei de Jud, queimara; e ainda se lhes acrescenta-ram muitas palavras semelhantes" (Jr 36:32). Essa foi a segunda edio ampliada do livro de Jeremias.

    A experincia de Jeremias demonstra que os profetas no escreviam seus livros na condio de meros copistas. Embora fos-sem movidos e guiados pelo Esprito enquan-to escreviam, envolviam-se de corpo e alma na tarefa. Pode-se dizer o mesmo dos escri-tores bblicos no referidos especificamente como profetas. Salomo, o autor de muitos provrbios e cnticos, diz-nos que "ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando e es-quadrinhando, comps muitos provrbios". Ele tambm "procurou [...] achar palavras agradveis, e escreveu com retido palavras de verdade" (Ec 12:9, 10, ARC). Lucas, autor de Atos e do evangelho que leva seu nome,

    conta-nos que lhe pareceu bem, "depois de acurada investigao de tudo desde sua ori-gem", escrever uma "exposio em ordem" (Lc 1:3). Como se v, a pesquisa histrica cuidadosa e a avaliao literria foram impor-tantes para a composio dos livros escritos por Salomo e Lucas. H boas razes para se acreditar que outros escritores tenham ado- tado processo semelhante na composio de outros livros da Bblia, mesmo que no te-nham afirmado isso explicitamente.

    No est inteiramente claro se os men-sageiros humanos estavam sempre conscien-tes da influncia do Esprito Santo enquanto falavam ou escreviam. Encontramos, porm, com frequncia, indicaes dessa conscincia com relao aos nomes dos profetas e apsto-los. Um estudo cuidadoso dos dados bblicos sugere que tanto as pessoas inspiradas como seus ouvintes e leitores reconheciam nas comunicaes essa especial influncia do divino Esprito (Moiss, Nm 12:7, 8; Josu, Dt 34:9; Samuel, ISm 3:19; Davi, 2Sm 23:2; Ezequiel, Ez 2:2; Daniel, Dn 9:22; 10:9-11; Miqueias, Mq 3:8; Pedro, At 11:12; Paulo, lCo 7:40; Joo, Ap 1:10).

    As observaes de Paulo em 1 Corntios 7 levaram alguns a concluir que o apstolo faz diferena entre as coisas que ele disse sob inspirao e outras que no passam de opinio pessoal. Diz ele no verso 10: "Aos casados, ordeno, no eu, mas o Senhor". Contudo, no verso 25, afirma: "Com res-peito s virgens, no tenho mandamento do Senhor; porm dou minha opinio, como tendo recebido do Senhor a misericrdia de ser fiel." Esses textos, na verdade, no tratam da questo da inspirao. O contraste tra-ado por Paulo nos versos 10 e 12 que num caso ele pode se referir a uma ordem expl-cita do Senhor (Mt 5:32; 19:1-6), enquanto

  • REVELAO E INSPIRAO

    enfaticamente: "Penso que tambm eu tenho o Esprito de Deus" (ICo 7:40). A Bblia tal-vez no explique detalhadamente o processo pelo qual o Esprito Santo moveu e guiou os escritores dos diferentes livros da Escritura, mas um fato claro: esses escritores agi-ram plenamente como seres humanos, com o envolvimento de sua personalidade total.

    2. O Locus da Inspirao O locus da inspirao diz respeito per-

    gunta: Ouem ou o que inspirado? O locus especfico no qual atuou a inspirao foram os indivduos escolhidos por Deus como pro-fetas e apstolos, ou foram as mensagens que eles apresentaram na forma oral ou escrita (as Escrituras), ou foi ainda a comunidade de f na qual as Escrituras se originaram? As duas primeiras opes foram, durante mui-to tempo, motivo de debate; a terceira op-o passou a ser mais conhecida somente em anos recentes.

    A evidncia bblica apresentada anterior-mente neste artigo aponta para indivduos especficos, escolhidos por Deus, como o locus primrio da operao do Esprito Santo. Diz a Bblia: "homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Esprito Santo" (2Pe 1:21); "O Esprito do Senhor fala por meu intermdio, e a Sua palavra est na minha ln-gua (2Sm 23:2); "Eu, porm, estou cheio do poder do Esprito do Senhor" (Mq 3:8).

    Se devemos atribuir a inspirao aos escritores bblicos ou aos textos por eles escritos em grande parte um dilema des-necessrio. E claro que o locus primrio da inspirao est nas pessoas. O Esprito Santo moveu pessoas a falar ou a escrever; contudo, o que elas falaram ou escreveram foi a inspirada palavra de Deus. Nas pala-vras de Paulo a Timteo: "Toda a Escritura inspirada por Deus" (2Tm 3:16). Pedro reconheceu as cartas de Paulo como parte das Escrituras, escritas de acordo com "a sabedoria que Deus lhe deu" (2Pe 3:15,

    NIV). Ao escrever suas epstolas, Paulo foi inspirado ou movido pelo Esprito Santo, e as cartas que ele produziu se tornaram parte das Escrituras divinamente inspira-das. A inspirao exerceu influncia sobre Paulo, e, sob essa influncia, ele escreveu cartas inspiradas. O locus primrio da ins-pirao o apstolo; o resultado daquela inspirao a Escritura Sagrada.

    A terceira opo para o locus da inspira-o - a comunidade da f na qual a Escritura teve sua origem - dificilmente merece ser mencionada como alternativa vivel. O conceito se baseia, em grande medida, em um mtodo especfico de estudo da Bblia. Por meio de um estudo crtico-histrico-lite-rrio da Bblia, os eruditos chegaram con-cluso de que muitos livros bblicos so o produto final de um longo processo, no qual estiveram envolvidos escritores, editores e redatores desconhecidos. Com base nesse fenmeno, nega-se a concepo de que os livros da Bblia tiveram autores especficos. Em vez de esses autores terem sido inspira-dos, a comunidade na qual os escritos atin-giram sua forma final que foi inspirada a reconhecer a validade e autoridade da men-sagem bblica. (Ver Interpretao IV.F,G.)

    Embora haja evidncia de editorao, po-de-se atribuir a maior parte dela aos prprios autores inspirados, aos seus assistentes ime-diatos, ou provavelmente at mesmo a escrito-res inspirados posteriores. Josu, por exemplo, talvez tenha - sob inspirao divina - editado os livros de Moiss e feito acrscimos a eles, como os ltimos versos de Deuteronmio. Seja como for, considerando a falta de evidncia que situe o locus da inspirao em uma comu-nidade em vez de em um autor bblico, cum-pre permanecer com as declaraes bblicas. O locus da inspirao est no autor inspirado.

    3. A Extenso da Inspirao A "extenso da inspirao" tem que

    ver com a questo de quanto da Bblia

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  • TRATADO DE TEOLOGIA

    inspirado. So as prprias palavras da Bblia inspiradas? Ou o so apenas os pensamen-tos por detrs das palavras? Existem partes da Bblia mais inspiradas do que outras? So algumas partes inteiramente destitudas de inspirao? a Bblia inspirada em sua to-talidade ou apenas parcialmente?

    Ao discutirmos sobre revelao especial e inspirao (III.B e IV.B), ficou evidente que o processo revelao-inspirao encerra muitos aspectos e que a informao disponvel no responde a todas as nossas perguntas. Resta, contudo, pouca dvida de que tanto os pen-samentos quanto as palavras se acham en-volvidos nesse processo. Por meio de sonhos, vises ou impresses do Esprito Santo, pes-soas inspiradas receberam pensamentos em forma visual e verbal. Elas os comunicaram depois, de maneira fiel e verdadeira, confor-me haviam recebido. As vezes, elas parecem expressar suas mensagens usando as mesmas palavras que lhes foram dadas pelo Esprito.

    Independentemente da maneira como re-ceberam os pensamentos, os escritores b-blicos deixam claro que suas palavras so as palavras de Deus. Moiss cita Deus dizen-do que poria Suas palavras na boca dos pro-fetas (Dt 18:18; cf. Jr 1:9). Referindo-se s Escrituras, Jesus declarou, citando Deute-ronmio 8:3, que "no s de po viver o ho-mem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mt 4:4).

    As palavras escritas pelos autores bbli-cos realmente so palavras humanas. E por isso que eles podem introduzir seus livros usando expresses como estas: "as palavras de Jeremias" (Jr 1:1), ou "provrbios de Salo-mo" (Pv 1:1). Os pensamentos - e por vezes as palavras - foram transmitidos por Deus para serem expressos pelos autores humanos em palavras que fossem familiares a eles e a seus leitores imediatos.

    No h dvida de que as Escrituras so plenamente humanas e plenamente divi-nas. Qualquer ideia de que algumas partes

    da Bblia so meramente humanas, ao pas-so que outras so divinamente inspiradas, contradiz a forma pela qual os escritores b-blicos apresentam o assunto. O depoimento de Paulo, de que "toda a Escritura inspi-rada por Deus" (2Tm 3:16), no d margem para nenhum conceito de inspirao parcial. Tampouco existe na Escritura nada que su-gira graus de inspirao. E verdade que al-gumas pores podem ser mais importantes que outras (Jesus fala em Mateus 23:23 so-bre "o que h de mais importante na lei"), mas isso no significa que so mais inspira-das. Todo cristo faria bem em receber as palavras da Escritura da maneira como os crentes de Tessalnica acolheram as palavras de Paulo: "no como palavra de homens, e sim como, em verdade , a palavra de Deus" (lTs 2:13).

    D. Efeitos da Inspirao Que resultados produz a inspirao?

    Quais os efeitos da influncia especial exer-cida pelo Esprito Santo sobre os escritores inspirados? Comunica essa influncia aos escritos qualidades que tornam a Bblia di-ferente de qualquer outro livro do mundo? Atravs dos sculos, a maioria dos cristos tem respondido a essas perguntas afirma-tivamente, embora divirjam quanto s pro-priedades, atributos ou efeitos sem paralelo da inspirao. Algumas dessas divergncias e os conflitos delas resultantes sero discuti-dos no resumo histrico no fim deste artigo.

    O propsito principal aqui considerar as quatro caractersticas da Escritura: a Es-critura como a viva voz de Deus, a autorida-de da Escritura, a veracidade da Escritura e a suficincia da Escritura. Embora seja apro-priado examinar cada um desses efeitos da inspirao separadamente, os atributos b-blicos jamais devem ser vistos separados uns dos outros. Constituem os diferentes matizes de um espectro de cores formado pela bri-lhante luz da Palavra de Deus.

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