Artigo - Rogério Sousa Silva 1

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Rogério Sousa

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  • Titulo: Antnio Conselheiro e Canudos: a construo das imagens

    Autor: Rogrio Souza Silva

    Antnio Conselheiro e a cidade de Canudos so frutos de um conjunto de imagens historiogrficas que, por sua vez, so originrias de uma construo documental e bibliogrfica. Muitas dessas imagens surgem como reflexos dos preconceitos dos autores que estiveram naquela regio em 1897 e outros que, na mesma poca, olharam de longe e tambm produziram textos relevantes sobre o tema. Esses preconceitos em relao s imagens do beato e de sua cidade variaram de poca para poca. Os de Euclides da Cunha, em seus artigos Vendia I e II, em O Dirio de uma expedio e nOs Sertes, trouxeram alguns entraves para o entendimento das questes surgidas sobre aqueles acontecimentos. Ao mesmo tempo, a obra de Euclides mantm vivo o interesse pelo tema. Suas idias no se vinculam apenas ao seu etnocentrismo. H, ao mesmo tempo, uma mitificao da imagem do sertanejo:

    Canudos no se rendeu. Exemplo nico na histria, resistiu at o esgotamento completo. Expugnada palmo a palmo, na preciso integral do termo, caiu no dia cinco ao entardecer, quando caam os seus ltimos defensores (...). Eram quatro apenas. Um velho, dois homens feitos e uma criana, na frente dos quais surgiam raivosamente cinco mil soldados.1

    Esse aspecto de idealizao do sertanejo foi absorvido tanto pela historiografia, de tendncia marxista, que se debruou sobre o tema, como pela anlise de depoimentos orais feitas por Jos Calasans, dentro de uma tendncia regionalista na escrita do Belo Monte. Na verdade, o que Euclides fez foi criar uma imagem literria de Antnio Conselheiro, no expressando, em nenhum momento de sua obra, um compromisso com uma viso de verdade histrica, tpica do sculo XIX2. Contudo, baseava-se na

    Mestre em Histria e Cultura pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - FHDSS), professor de

    Histria da Amrica na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Autor do livro: Antnio Conselheiro: a fronteira entre a civilizao e a barbrie. So Paulo, Annablume, 2001 (Coleo Estudos Universitrios, n 153). E-mail: [email protected] 1 CUNHA, Euclides. Os Sertes: a campanha de Canudos. 21 ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1950.

    p. 611. 2 White, H. Meta-Histria: a imaginao no sculo XIX. So Paulo: Edusp, 1992.

    Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flvia Florentino Varella (org.). Caderno de resumos & Anais do 2. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia. A dinmica do historicismo: tradies historiogrficas modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9)

  • mentalidade de sua poca ao erigir seu livro. Nisso, o beato catalisaria todos os males da sociedade brasileira da poca. Portanto, sua obra pode possuir um carter histrico. Dentro de suas vrias vises, Os Sertes propem um projeto de EstadoNao, como tambm, de modernidade e progresso:

    O jaguno destemeroso, o tabaru ingnuo, e o caipira simplrio sero em breve tipos relegados s tradies evanescentes ou extintas3.

    Segundo o autor, os acontecimentos relacionados a Canudos deram-se pelos fatores relacionados fraqueza racial do mestio sertanejo:

    A civilizao avanar pelos sertes, impelida por essa implacvel fora motriz da histria (...) no esmagamento das raas fracas, pelas raas fortes.4

    E aos males do meio ambiente:

    O martrio do homem ali reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a prpria economia da vida. Nasce do martrio secular da terra.5

    Na construo da obra, Antnio Conselheiro surge como uma espcie de anti-heri (ou grande homem pelo avesso, como preferia o autor), que se ope civilizao e modernidade, constituindo a ponta-de-lana de uma reao que poderia condenar o Brasil ao atraso:

    ... E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hbito azul de brim americano; abordoado ao clssico basto, em que se apia o passo

    tardo dos peregrinos...6.

    Em seu dirio, o autor j expressava essa viso sobre o peregrino de Canudos: ...creio que a organizao de nossa nacionalidade, em virtude da

    energia civilizatria acrescida, repele, pela primeira vez, espontaneamente, velhos vcios orgnicos e hereditrios tolerados pela poltica expectante do Imprio. Porque, realmente, este incidente de Canudos apenas sintomtico; erramos se considerarmos resumido numa aldeia perdida nos sertes. Antnio Conselheiro, espcie bizarra de grande homem pelo avesso, tem o grande valor de sintetizar admiravelmente todos os elementos negativos, todos os agentes de reduo do nosso povo.7

    3 Cunha, E. Os Sertes. Op. cit., p. IX.

    4 Idem. p. X.

    5 Idem. p. 61.

    6 Idem, p. 162.

    7 Cunha, E. Dirio de uma expedio. Apud: Andrade, O S, . (org.) Canudos e Inditos, 1967, p.69

  • Nestas citaes, ficam claras as relaes que o autor procurou construir entre o

    arcaico, o atraso e o irracionalismo e a imagem de Antnio Conselheiro. O beato, na tica euclidiana, a materializao das sombras, das monstruosidades e das permanncias do passado colonial e imperial. O desejo de ruptura com o passado, que Euclides da Cunha expressa com grande fora, est diretamente relacionado ao programa poltico da Repblica. Ao contrrio do processo de independncia, no qual as elites, como uma maneira de auto-afirmao, procuraram no passado indgena uma identificao, o passado republicano localiza-se em 17898. Para uma elite com tais anseios, a figura de Conselheiro surge como algo incmodo. Euclides consegue catalisar todos os medos da Repblica na figura de Antnio Conselheiro. Isso era eficiente ao nvel da propaganda poltica e o beato, gradualmente, tornava-se um dos referenciais da viso do serto na literatura. Essa viso, que expressa nos jornais, tornou-se consequentemente histrica.

    J que Os Sertes surgem, tendo como uma de suas caractersticas um projeto nacional, e a figura de Conselheiro identificada como a de um anti-heri, Euclides mantm traos da escola romntica. A preocupao dessa escola literria com a formao nacional deu a Antnio Conselheiro uma dimenso gigantesca que, em certa medida, pode ter escapado at sua prpria conscincia. Tal dado transformou-o, dcadas depois, em um smbolo dos anseios populares, resistncia aos impostos e luta pela terra. A imagem de arcaico propagandeada na poca, posteriormente, dentro da historiografia, fez dele um mito, para aqueles que vm a modernidade e a razo com maus olhos 9.

    8 Uma prova disso que um dos maiores jornais brasileiros da poca abriu assim o primeiro dia da

    Repblica: 15 de novembro de 1889 Glorioso Centenrio da Grande Revoluo Proclamao da Repblica do Brasil. So Paulo, Centro Cultural So Paulo. A Provncia de So Paulo. 16 de nov. 1889 p. 01. Rolo n 248. 9 Refiro-me a uma tendncia dos escritos de Canudos que procura mostrar o lder daquela comunidade tendo

    como um de seus adversrios o racionalismo que a Repblica tentava impor ao pas. Essa anlise foi muito visitada nos anos 80 desse sculo e ainda deixa alguns resqucios. Tais autores, na poca da redemocratizao do Brasil, procuravam fazer um paralelo entre os dois perodos. Toda forma de racionalismo era relacionada ao autoritarismo do establishment. Srgio Paulo Rouanet nota esse fenmeno em vrias esferas de nossa sociedade naquele perodo: Durante vinte anos de regime autoritrio, a razo parecia encarnar-se exclusivamente em duas lgicas, ambas radicadas na esfera sistmica a razo de Estado e a razo econmica. Os tecnocratas falavam em nome de uma razo sistmica global, macia, que no deixava espaos para uma racionalidade alternativa. Se o modelo poltico e econmico implantado no Brasil representava a razo, no era possvel contest-lo seno contestando a prpria razo. Quando a democracia desbloqueou a sociedade civil, criaram-se condies objetivas para a retomada de um processo comunicativo livre, mas faltavam , em parte, condies subjetivas a vontade de conduzir racionalmente a argumentao pois a razo tinha se identificado com o inimigo

  • Na verdade, a imagem literria de Conselheiro, criada por Euclides da Cunha, encobriu o beato com uma viso de sculo dezenove. Era inadmissvel, na viso euclidiana, que Conselheiro pudesse ter um carter moderno ou mesmo civilizador. Frutos dos preconceitos de poca. At Manuel Bencio, que visto pela historiografia sobre Canudos como um intelectual mais progressista, diz:

    A comoo de Canudos, eliminao, pelas vias devolutivas, que de ordinrio aparece sob forma religiosa nas raas atrasadas, e econmica nas adiantadas, foi um sintoma de molstia social que grassa no centro do Brasil, porque a testada j est conquistada por outras gentes e outras idias"10

    O etapismo histrico e a hierarquia tnica tambm fazem parte do pensamento de Manuel Bencio. Apesar disso, no se pode esquecer o papel desempenhando pelo jornalista como correspondente do Jornal do Comrcio. Os seus artigos, escritos de forma contundente contra os militares, quase lhe custou a vida.

    Dos trabalhos literrios da poca, o de Afonso Arinos o que mostra uma viso no to preconceituosa. Apesar de no ter estado no cenrio dos acontecimentos, Arinos sofreu com o terremoto causado pela guerra que, de to forte, refletiu-se nas regies mais distantes do pas. Um exemplo disso foram os empastelamentos dos jornais de tendncias monarquistas nas cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, aps a surpreendente derrota da 3 expedio comandada por Moreira Csar. No caso da capital paulista, o jornal no qual Afonso Arinos era redator-chefe foi uma das vtimas desses ataques:

    Em frente a redao do Comrcio de So Paulo estava postado um piquete de cavalaria. Um moo, que no pudemos reconhecer, voltou-se para a multido e convidou-a a empastelar o Comrcio. Foi como uma ordem, e a investida operou-se, ento, resolutamente.11

    Devido sua tendncia poltica, o Comrcio possua uma postura que contestava algumas aes da Repblica. O ataque redao desse jornal foi fruto da ligao que o governo e a imprensa que lhe apoiava procuravam fazer entre Canudos e os

    deposto. Contaminados pelo irracionalismo, os argumentos se dissociaram da anlise objetiva da realidade e passaram a fluir de reaes emocionais e da reflexo irrefletida de antigos prottipos Rouanet, S. P. As razes do Iluminismo . So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.16-7. 10

    Bencio, M. O rei dos jagunos: crnica histrica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. Rio de Janeiro : Tipografia do Jornal do Comrcio, 1899, p. 200. 11

    So Paulo. Arquivo do Estado. O Estado de So Paulo 08.mar.1897., p. 01.Rolo C 2 (25) n 6622 6801, o1.01.025, 1897 01 janeiro 30 junho.

  • monarquistas. Existe, porm, uma significativa diferena na forma como aquele jornal mostrava a figura de Antnio Conselheiro:

    Verdade seja que esse Antnio Conselheiro foi causa de profundas transformaes neste Brasil.12

    No ano de 1898, Afonso Arinos publica, em forma de folhetins, no Comrcio de So Paulo, o seu romance Os Jagunos, aparecendo como livro no mesmo ano. Esta obra no iria alcanar a mesma relevncia de Os Sertes. Foi lanada quando ainda se comemorava a vitria da Repblica, tendo como agravante o fato de mostrar-se totalmente a favor dos canudenses:

    Tinham a valentia provada em mais de uma ocasio difcil, no meio de lutas tremendas e a descoberto: nada mais. E quem no for valente como eles no canta, nem entoa, no meio desses sertes brasileiros (...).13

    Contudo, essas diferenas no tornam Arinos imune aos preconceitos, pois o cotidiano de violncias, que um trao tpico que o civilizado cria sobre o brbaro, fez-se presente no romance criado pelo autor. Outra diferena importante em relao a obra de Euclides da Cunha que Os Jagunos , no seu todo, um romance.

    Um trabalho de mais uma testemunha ocular daqueles acontecimentos Descrio de uma viagem a Canudos, escrito pelo estudante de medicina Alvim Martins Horcades. Inicialmente, surge como um conjunto de artigos publicados no ano de 1899 no Jornal de Notcias. O autor, a princpio, demonstra uma preocupao com o papel desempenhado pelos mdicos baianos:

    O que mais influenciou meu nimo para a publicao dessa singela narrativa foi, no s cientificar os brasileiros que a Faculdade de Medicina da Bahia conserva alinhada no seu corao o incentivo vivido e pujante dos seus progenitores, como tambm proporcionar queles que no tiveram ainda completo conhecimento dos fatos particulares e interessantes que se deram em uma campanha da civilizao contra a barbria (...)14

    A f inabalvel nas distncias entre a civilizao e a barbrie permeia todas as passagens do livro de Horcades, at os fins da quarta expedio. Porm, quando se inicia o massacre empreendido pelo exrcito, as concepes do autor se abalam s portas do Belo Monte, ao demonstrar um horror absoluto em relao degola:

    12 So Paulo. Biblioteca Mrio de Andrade. O Comrcio de So Paulo, So Paulo. 15.ago.1897, p. 01.

    13 Arinos, A. Os Jagunos. So Paulo: Aguiar, 1969, p. 209.

    14 Horcades, M. Descrio de uma viagem a Canudos. Bahia: Tipografia Tourinho, 1899, p. IV.

  • Ser heri no simplesmente vencer, mas vencer com justia, respeitando o direito.

    No foram heris os degoladores de Belm, mas foi Cristo sobre a cruz; no foram heris os que ascenderam as fogueiras da Inquisio, mas os que morreram pela verdade; heris so todos os que tm sofrido pela cincia, pela justia, pela humanidade: so finalmente os vencedores que no deslustram com o extermnio atroz dos submetidos15

    Os horrores da guerra geraram um novo olhar de Horcades sobre a Repblica:

    Nos tempos de idolatrias revolucionrias, em que a Repblica parece viver da inspirao de um tmulo, em que o sentimento democrtico procura aquecer-se lousa fria de um sepulcro, como se a existncia de uma no dependesse da vida de um homem (...)16

    Ao contrrio dos autores citados anteriormente, Martins Horcades no possui, inicialmente, um compromisso com a literatura17. No entanto, seu trabalho colaborou para a criao de mais fantasmagorias em torno do beato:

    (...) Antnio Conselheiro, o bandido-chefe da horda canudense.18

    Alvim Martins Horcades procura, a todo o momento, mostrar-se absolutamente ligado a uma verdade histrica, referente aos fatos descritos no livro:

    Para provar que no baldada esta minha convico, transcrevo aqui a carta que em 04 de julho do corrente ano me endereou um distinto amigo, valente e ilustre oficial do exrcito, que comigo l serviu, depois de ter lido a coleo de provas de meu trabalho, que ento estava somente impresso at a pgina 110. Fortalece-me e desvanece-me sobremodo a maneira por que se expande ele nessa missiva, vendo eu nas suas delicadas palavras mais uma prova de gentileza, que afetuosamente aqui agradeo. No publico seu nome por extenso por que no quero trazer-lhe incmodo com isso, desde que, militar com sua ordem e cincia:

    Meu caro Horcades:

    Acabei de ler e envio pelo portador o teu belo, vivo e emocionante trabalho, que no como disseste um plida descrio de que viste e observaste, mas um fulgurante e bem traado esboo da guerra de Canudos.

    15 Idem, p.161.

    16 Idem, p.159.

    17 O autor, no prefcio de sua obra, demonstra uma grande preocupao em definir o perfil de seu

    trabalho: Devo ser o primeiro a notar que meu trabalho no possui nenhum valor literrio, mas ao mesmo tempo empenho-me em saciar o muito valor que encerra no fundo Idem, p. V. Ao refletir sobre as possveis crticas ele diz: Que aceitem todos os brasileiros esse obscuro trabalho, resultante do esforo mental do mais humilde de seus concidados Idem, p. VI. 18

    Idem, p.98.

  • Li-o em um trago e lendo-o senti as mesmas emoes que me abalaram a alma quando presenciei os fatos que to primorosamente descreveste e no teu livro. Pena que eu no satisfizesse por inteiro a minha curiosidade, acompanhando at o fim o teu pressentido e nobre brado de indignao contra os brbaros degolamentos que envergonharam o auge da vitria de nossas armas e que maculariam o brilho de nossas espadas para o pblico, apesar de no terem elas se embebido no sangue dos prisioneiros.

    Adeus Abrao de teu amigo afetuoso.

    E...19

    Pouco a pouco, no trabalho desse jovem baiano, os habitantes de Canudos vo deixando de ser brbaros e, progressivamente, ganham o status de homens civilizados.

    Outro relato interessante desse perodo escrito pelo militar Dantas Barreto no livro ltima expedio a Canudos. O militar descreve a quarta expedio, as dificuldades enfrentadas pelo exrcito, alm ficar clara uma tentativa em entender aquela regio do pas. Dantas tambm mostra um misto de fascnio e desprezo em torno do peregrino:

    Um homem de certo superior, mas obscuro, tinha produzido esse abalo profundo no organismo nacional!20

    (...) o prprio crime lhe dera as propores legendrias dos grandes heris e dos grandes reformadores da humanidade.21

    (...) o clebre aventureiro acentuara bem a superioridade de sua inteligncia22

    Dantas utiliza uma ampla documentao militar em sua anlise. Diferente de Euclides, Arinos, Bencio e Horcades, Dantas Barreto no expressa, em nenhum momento, o sentimento tpico de mea culpa existente na escrita daqueles autores. Para ele, Canudos era uma questo militar:

    At os fins de 1896 poucos eram os que sabiam da existncia daquele obscuro recanto, onde se aglomeravam homens, mulheres e crianas de toda a parte dos sertes do norte e havia um indivduo, alis de vistas penetrantes, que tinha o poder de equilibrar a existncia dessa gente de todas as condies, ignorante certamente em sua grande totalidade, de modo a constituir ali um centro forte, independente e ameaador.23

    19 Idem, p.119-20.

    20 Barreto, D. ltima expedio de Canudos. Porto Alegre: Franco & Irmo, 1898, p. 06.

    21 Idem, p. 07.

    22 Idem, p.10.

    23 Idem, p.06.

  • Apesar disso, algumas manifestaes de crise na Repblica so claramente sentidas pelo autor. A Repblica, como uma portadora da razo, talvez, ao olhar Canudos, via-se diante de um espelho. Por esse motivo, quando se refere a Moreira Csar, o autor diz:

    Era um fantico pela Repblica.24

    Uma viso da poca, que procura mostrar as crises da Repblica atravs de Canudos, foi a do poltico baiano Csar Zama (ele, como Arinos, no esteve no cenrio da guerra). Tal foi a fora de suas denncias que o Libelo Republicano foi publicado com o pseudnimo de Wolsey. A jovem Repblica brasileira estava em colapso; Canudos era um dos tantos reflexos dessa crise. Sua decepo era absoluta:

    Prometiam ao povo o reinado pleno da democracia, e o espoliaram todos os direitos polticos. Garantiam e juravam que os vcios e os abusos da monarquia seriam extirpados da raiz, e que a Repblica seria justa e econmica, digna do respeito e amor nacionais, e deram-nos a Repblica mercantil do Encilhamento, a mais repugnante canalhocracia, que a razo humana pode conceber25

    Para Zama as elites brasileiras, alm de no conhecerem seu povo, estavam colocando a nao venda. Isso fica claro na transcrio que fez em seu livro de uma poesia, em tom satrico, publicada no jornal republicano de tendncia radical Tempo:

    Sem cerimnia senhores, O Brasil est em leilo Qualquer banqueiro ou baro Pode bem arremat-lo ...

    Tenho ordem de entreg-lo A quem dinheiro mais der ... Vejam l, quem quer? Quem quer Tempo no tenho a perder

    pensar e oferecer Fazendo lance grado ... Vendo terras e tudo, Porm com dinheiro vista

    Silncio, pois, que a lista Passo a ler sem mais detena

    24 Idem, p.14.

    25 Wolsey (Dr. Csar Zama). Libelo republicano: acompanhado de comentrios sobre a campanha de

    Canudos. Bahia: Tipografia e Encadernao do Dirio da Bahia, p. 08.

  • E se alguma diferena Nela houver, no faam caso

    Que desta terra o atraso, Ou sua prosperidade, Depende da habilidade De quem faz este prego

    Eis aqui a relao: Vinte Estados excelentes Com quinze milhes de gente De carter fraco e nobre

    Seja rico ou seja pobre, - Rios, florestas gigantes,

    - Minas de ouro brilhantes, Tudo vendo meus senhores!

    Capitalistas, doutores - O Necrotrio, a intendncia;

    E para que a pacincia No me falte finalmente,

    Em uma leitura to ingrata Declaro solenemente Que vendo o Brasil inteiro - Do Amazonas ao Prata ... !26

    Esse poltico baiano via a necessidade de valorizar a populao brasileira. H uma grande indignao do autor ao perceber o fenmeno da imigrao europia:

    Exterminar em um pas, que tem pago a peso de ouro a imigrao europia, uma populao de cinco mil e duzentas casas habitadas por brasileiros, que se entregavam indstria agrcola e pastoril:

    Sacrificar ingloriamente mais de cinco mil homens27

    Em relao aos seus contemporneos, Csar Zama apresentava uma postura

    claramente favorvel s chamadas classes perigosas. No entanto, ele revela limitaes em seu radicalismo, manifestando a relao de admirao e desprezo expressa por muitos dos autores que escreveram naquela poca sobre aquela hecatombe, pois, apesar dos canudenses serem vtimas das injustias de uma sociedade cruel, eles no passavam, em sua opinio de:

    (...) sertanejos ignorantes e rudes ...28

    26 Idem, p.09-10.

    27 Idem, p. 52.

    28 Idem, p. 37-8.

  • ***

    Os trabalhos de Manuel Bencio, Martins Horcades, Dantas Barreto, Afonso Arinos e Csar Zama so fascinantes e do uma ampla imagem daquele perodo. H vrios outros autores que testemunharam aquele conflito, apesar de ver nos que so citados neste texto como os que encarnam melhor os diferentes tipos de produo literria inicial sobre este tema29.

    Contudo, a historiografia sobre Canudos, principalmente a partir da segunda metade do sculo XX, esqueceu-se de adentrar na escrita desses autores, focalizando suas admiraes e crticas em torno de Euclides da Cunha e Os Sertes 30.

    Toda essa discusso que envolve a criao literria em torno da imagem de Antnio Conselheiro adentra em questes historiogrficas extremamente instigantes, relacionadas penetrao da fico na histria. H todo um conjunto ficcional criado em torno da imagem histrica do beato. As faces de Conselheiro, em dcadas de estudos, caminharam entre a vida de um santo e a de um revolucionrio. Prtica historiogrfica comum, pois uma personagem histrica ganha diferentes faces a cada gerao de pesquisadores. Entretanto, o que diferencia Antnio Conselheiro que sua imagem, descrita por Euclides, teve um impacto cultural, que refletiria durante longo tempo. No caminhar do sculo XX, esse postura comea ser lentamente transformada. Esse outro, ou brbaro, que at ento surgia como uma imagem que a elite letrada no queria para si, torna-se, gradualmente, algo que poderia ser culturalmente valorizado31. Curiosamente, essa valorizao deu-se via Europa32.

    29 H tambm autores como: Favila Nunes, Llis Piedade, Henrique Duque Estrada de Macedo Soares e

    Constantino Nery que lanaram suas obras entre 1898 e 1902. 30

    Essa herana, por parte da historiografia, relaciona-se ao valor literrio do livro de Euclides. Leopoldo Bernucci nota que: Apesar de obras como Os Jagunos de Afonso Arinos, ltima Expedio a Canudos de Dantas Barreto, Descrio de uma viagem a Canudos de Alvim Martins Horcades, Libelo Republicano de Csar Zama, O Rei dos Jagunos de Manuel Bencio terem sido as primeiras a tratar dos temas ligados a campanha de Canudos e ao movimento messinico de Antnio Conselheiro, antes mesmo dOs Sertes, foi esse livro que entrou triunfante para a histria de nossas letras A imitao dos sentidos. So Paulo: Edusp University of Colorado at Baulder, 1995, p.41. 31

    Ao ver as transformaes estticas, a partir do final da I Guerra, Sevcenco mostra que: Em meio a essa fabulosa incidncia de expresses artsticas internacionais e modernas, seria igualmente importante lembrar, em paralelo, o esforo sistemtico e concentrado pelo desenvolvimento de pesquisa sobre cultura popular sertaneja e iniciativas pela instaurao de uma arte que fosse imbuda de um padro de identidade concebido como autenticamente brasileiro. Sevcenco, N. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992,. p. 236-7.

    32 Sevcenco relata a importncia desses fatos: Figura decisiva na difuso desses novo esprito seria o

    escritor Afonso Arinos (...) que fixou residncia permanente em Paris desde o incio do sculo. A partir de l e em sucessivas visitas, Arinos se constituiria no vrtice do movimento de

  • Essas transformaes culminariam no movimento modernista, representando um resgate de uma face do Brasil que a gerao de Euclides da Cunha preferiu ocultar, desprezar, ou, quando muito, mold-la dentro de padres europeus. O que surge a partir da Semana de 1922 um fascnio em relao ao outro, fruto de um direcionamento intelectual que antes j encontrara respaldo junto aos europeus. Essa postura tinha por objetivo incorporar o outro, transformando-o na identidade da nao:

    No fundo do mato-virgem nasceu Macunama, heri da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite33

    O perfil de Macunama, apesar de desprovido de carter, surge como o de um heri, em contraposio figura do trgico anti-heri Antnio Conselheiro. A conseqncia dessa nova viso de si mesmo traz reflexos dentro da intelectualidade brasileira, pois outros caminhos poderiam levar modernidade. Portanto, criava-se a possibilidade de ser moderno sem negar as prprias origens34. A personagem histrica Antnio Conselheiro - e sua ao social - ganhou dimenso suficiente para abalar conceitos cientficos da poca. Por isso, os equvocos cometidos pelos autores, testemunhas oculares daqueles acontecimentos, ao escreverem sobre Canudos, podem ser entendidos como fruto do espanto da descoberta de um mundo pouco explorado (o serto), causando um forte impacto em suas mentes.

    redescoberta do Brasil popular, folclrico e colonial. Foi ele que , da sua perspectiva parisiense, descobriu a dimenso extica do passado, dos hbitos e costumes preservados na tradio popular e rural e da paisagem do pas. E isso tudo muito para surpresa e a contragosto de seus contemporneos, at ento fazendo todo o possvel para ocultar, esquecer ou banir essas caractersticas no seu empenho neurtico de se mostrarem europeus completos, puros, up-to-date, em francs fluente. Idem, p.238. 33

    Andrade, M. Macunama: o heri sem nenhum carter. So Paulo, Martins Editora,1965, p.05. 34

    Essa busca pelo popular, o tradicional, o local, o histrico no era tida como menos moderna, indicando, muito ao contrrio, uma nova atitude de desprezo pelo europerismo embevecido convencional e um empenho para forjar uma conscincia soberana, nutrida em razes prprias, ciente de sua originalidade vigente e confiante num destino de expresso superior. Sevcenko, N. Orfeu exttico na metrpole. Op. cit. p. 237.