Artigo - Sartre, Marx e o Marxismo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Sartre

Citation preview

  • Sartre, Marx e o Marxismo

    Jorge GrespanUniversidade de So Paulo

    re s u m o O artigo destaca o int e resse ainda atual da crtica sartre a na ao ma r x i s mo de seu

    tempo na Crtica da razo dialtica. Destaca, no entanto, que o alvo desse interesse reside

    me nos no ind i v duo, como quer o hu ma n i s mo sartre a no, do que no evento ind i v idual, na

    singularidade histrica.

    palavras-chave Marxismo; histria; dialtica; ao; humanismo.

    No ultrapassado1 me parece tambm o diagnstico feito h 50 anospor Sart re em relao ao marxismo e seu tempo, que ainda o nosso.Exatamente nesses termos ele avaliava o valor e a permanncia da teoriade Marx, como a terceira grande matriz filosfica da modern i d a d e,depois da cartesiana e da kantiano-hegeliana. S e, como ele afirm a , u m afilosofia mais do que um mtodo de investigao, uma totalizaodo Saber, (...) Idia re g u l a d o r a , a rma ofensiva e comunidade delinguagem (SARTRE, 1986, pp. 10 e 12), ela pertence de modo privile-giado ao tempo que a engendro u . O que pode superar uma filosofia apenas o movimento real desse mundo cujo h o ri z o n t e ela constitui eq u e, no caso, ainda no mudou substancialmente desde os temposdefinidos por Marx pela alienao do homem. Os pensadores que ac o n t i nuam e tambm os que a criticam pertencem ainda a esse mesmot e m p o, e so por isso chamados por Sart re de i d e l og o s e no tantof u n d a d o res de filosofia nova . no contexto desse debate i d e o l gi c o que ele apresenta as suas prprias posies em relao ao marxismo,

    159

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

    Recebido em 12 de maio de 2006.Aceito em 23 de junho de 2006.

  • correes de rota cruciais em relao aos desvios e simplificaes opera-dos no sculo XX.

    Neste sentido, ainda nos interessa a crtica de Sart re ao marxismo doseu tempo, pela permanncia neste dos cacoetes que sempre ameaam denovas e antigas deformaes.Talvez tenha mudado o motivo da preocu-pao sartreana: reencontrar o indivduo, na dcada de 50, tinha muito aver com a chamada desestalinizao e com a conseqente nfase nu m aleitura humanista de Marx; hoje talvez no fosse tanto o indivduo, mas oevento indiv i d u a l , a singularidade histri c a , tambm to defendida porS a rt re contra aquele reducionismo que a considerava como o elementoacidental a ser depurado em toda explicao histri c a , em favor dosgrandes esquemas que remetiam para os quadros gerais,para os unive rs a i s .Com o pretexto de fazer histri a , esse marxismo fa ria muito mais umas o c i o l ogia do passado. Mas o especfico do trabalho do historiador seri ajustamente recuperar a singularidade do eve n t o, de suas motivaes econdies, como algo irredutvel ao universal do saber, para, a partir da,situar esta singularidade atravs de uma operao de totalizao.

    Examinemos mais de perto estas expresses da linguagem existencialdo autor s i t u a o , t o t a l i z a o e a inteno da sua polmica, e mp ri m e i ro lugar com os marxistas, e depois, em parte e no assumida-mente, com o prprio Marx.

    O defeito geral das anlises marxistas, at em algumas mais sofisticadas,como a da Revoluo Francesa de 1789 por Daniel Guri n , a p a re c e ria jde incio como sendo a imediatidade da reduo das aes polticas ai n t e resses econmicos. S a rt re afirma que Girondinos e Montagnard s , p o re xe m p l o, no podem ser considerados i n s t rumentos passivo s da sua classesocial os arm a d o res e merc a d o res de Bordus no caso dos pri m e i ro s , apequena bu r g u e s i a , no dos segundos , pois a poltica para eles era u ma b s o l u t o, um irre d u t ve l ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p p. 44 e 42). I m p o rta evitar asubsuno brutal dos fatos e dos indivduos histricos a l e i s de mov i-mento consagr a d a s , e estabelecidas em seguida como vlidas a pri o ri . E s t asubsuno reve l a ria um af por conferir ao marxismo o status de cinciad e d u t iva , que merece de Sart re uma crtica ava s s a l a d o r a : tal marxismoacaba re s valando para o seu oposto, que ele imagina superar, o Idealismo.

    Com isso, parece apenas que Sartre pode ser alinhado como mais umdos crticos do teorema marxista b a s e / s u p e re s t ru t u r a , to debatido em

    160

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • boa parte do sculo XX. Mas uma re s s a l va fundamental deve ser feitaa q u i . Ele mesmo afirma que sua crtica vale apenas para os motivos dag u e rra movida pelos Girondinos em 1792, e no tanto para os polticosde 1793, que teri a m , s i m , feito a guerra agora em nome dos intere s s e sdiretos de sua classe. Ou seja, nem sempre ele acredita errneo levar emconta o econmico, pois s vezes esse se apresenta imediatamente comom o t ivo das aes polticas2. Por isso, S a rt re tambm condena que seprocure, inversamente ao idealismo de certos marxistas,determinar deuma vez por todas a natureza e a fora das resistncias opostas pelos fen-menos da supere s t rutura s tentativas de reduo bru t a l : isso seria oporum idealismo a outro ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 4 2 ) . Ou seja, tanto no caso emque se pressupe a pri o ridade da base sobre a supere s t ru t u r a , q u a n t onaquele em que, ao contrri o, s e ria pressuposta uma pri o ridade da super-e s t rutura em relao base econmica, teramos um i d e a l i s m o . O erro,portanto, seria considerar em todos os casos, antes de examinar sua pecu-l i a ridade histri c a , que as foras de um certo tipo ou nvel da re a l i d a d esocial sejam determinadas por outras.A crtica de Sart re no visa re l a ob a s e - s u p e re s t rutura em si mesma, e sim falta de ateno histrica dosque julgam poder afirmar pressupostos tericos quaisquer, sem conside-rar suficientemente a realidade.

    Mais ainda, os apelos sart reanos para a p rofundar os homens re a i s ,para passar pela mediao dos homens concre t o s ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 4 2e 43), para considerar de fato a histri a , no se fazem apenas em nome deum realismo metodolgi c o, de uma crtica ao apri o ri s m o. Eles apre s e n-tam uma justificativa da re l evncia do existencialismo para o marxismo,que incorporaria a este ltimo a reflexo sobre a irredutibilidade de umc e rto real ao pensamento, s o b re a incomensurabilidade do real e dosaber (SARTRE, 1986, p. 16 e 17), isto , a reflexo de que a vida con-c reta sempre tem um carter de resduo diante da vida apreendida pelai d i a . S a rt re enfatiza que, neste sentido, a crtica de Marx a Hegel segueum caminho semelhante ao de Kierkegaard, s que do ponto de vista daHistria real (SARTRE, 1986, p. 17), dos homens reais porque histri-cos, produtores de sua prpria vida.

    A qualidade desta crtica de Marx teria at anulado a import n c i ah i s t rica do existencialismo de tipo kierke g a a rd i a n o, se o prprio marxis-mo no tivesse se transformado naquele novo idealismo, ao propor as

    161

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • idias de Marx como ve rdades inquestionveis por qualquer pesquisae m p ri c a . no contexto de tal apri o rismo que Sart re afirma a tare faatual do existencialismo: ele pde renascer e se manter porque re a f i r-m ava a realidade dos homens; ou ainda,o objeto do existencialismo pela carncia dos marxistas o homem singular (...) ( S A RT R E , 1 9 8 6 ,p. 31 e 121).

    Sartre no pretende com isso, porm, modificar os princpios marxis-t a s , e nem mesmo complement-los. Ele adve rt e : C o nv i ria estudar osc a r a c t e res concretos sobre a base do movimento econmico, mas semdesconhecer (mconnaitre) sua especificidade. Assim somente quepodemos visar t o t a l i z a o. Isso no quer dizer que a condio materi a l(...) seja insuficientemente d e t e rm i n a n t e em relao atitude conside-rada. Ou, se se preferir, no h necessidade de acrescentar nenhum outrofa t o r, desde que se estude em todos os nveis a ao re c p roca dos fa t o sque ela engendra atravs do projeto humano ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 9 7 ) .No se trata, p o rt a n t o, de introduzir outros fa t o re s e x p l i c a t ivos do indi-vduo ou do caso concreto, mas de reconstituir os nveis pelos quais op a rticular vive o unive rsal (social e histrico) de modo especfico.O u t ro selementos explicativos alm do econmico no so fa t o re s , isto , i n d e-pendentes entre si e talvez s exteri o rmente art i c u l a d o s ; eles deve mformar a totalizao constantemente reiterada.

    Como Sartre define, afinal, esta categoria? Atotalizao um movi-mento sinttico, um mtodo que admite a multiplicidade hierrquicade significaes ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 1 0 1 )3. No have ria uma nicasignificao nos eventos histri c o s , e sim uma mu l t i p l i c i d a d e , isso claro. S que a referncia a uma hierarquia pode nos induzir ao erro devoltar aos esquemas dedutivo s . Ao contrrio disso, para Sart re ela noa u t o riza a reduzir as s i g n i f i c a e s umas s outras, como fazem os marxis-tas: como a significao mais geral serve de quadro para a mais concreta,(...) impossvel deduzi-la ou dissolv-la ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 9 5 ) ; arelao entre as significaes nos diferentes n ve i s de generalidade,ento, que as mais gerais compem apenas um quadro mais amplo,e no que precedam logicamente as mais concretas. Por isso, impos-s vel separar estas (...) significaes ou reduzi-las uma a outra: elas sofaces inseparveis de um mesmo objeto ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 1 0 1 ) . E mp ri m e i ro lugar, a impossibilidade de re d u z i r umas s outras indica que

    162

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • elas so irre d u t ve i s , no sentido mesmo daquela i rredutibilidade de umc e rto real ao pensamento mencionada antes como caracterstica da crti-ca de Kierkegaard a Hegel: a significao mais concreta apresenta sempreum resduo inapreensvel pela significao mais geral.

    Por isso, em segundo lugar, a i n s e p a r a b i l i d a d e dos nveis de signifi-cao obriga o pesquisador a apresent-los simultaneamente; mais ainda,a reconstituir a sua imbricao revelando o modo especfico pelo qual,como tambm j vimos antes, o particular vive o unive rs a l . Este pontotem importncia estratgica, merecendo anlise mais detalhada.

    S a rt re pretende compreender as situaes concretas em que os fen-menos particulares no so aparncias ilusrias ou secundrias, mas so asformas nicas de manifestao do universal, o modo nico de ele existir.Um personagem histrico v ive o unive rsal como part i c u l a r ( S A RT R E ,1986, p. 57), como um papel desempenhado por um ator, conforme orevelador exemplo apresentado em Questes de Mtodo, para explicar arelao entre a prxis imaginada e a re a l . O ator seria ao mesmo tempoele mesmo e o papel que desempenha, e no apenas ele mesmo e sa p a rentemente o pers o n a g e m , num tipo de essencialismo ao gosto detantos marxistas. Em vez de dizer que se no tivesse aparecido Napoleo,por exe m p l o, o u t ro teria feito o que ele fez, pois o importante seria op rocesso social que o engendro u , S a rt re prope a dialtica, o jogo dasmediaes demonstrando que Napoleo era necessri o, que o desen-volvimento da Revoluo forjou ao mesmo tempo a necessidade daditadura e a personalidade inteira daquele que a devia exe rcer (...) emuma palav r a , que no se trata de um unive rsal abstrato, de uma situaoto mal definida que dive rsos Bonapartes teriam sido p o s s ve i s, mas deuma totalizao concreta onde esta burguesia real, feita de homens reais ev ive n t e s , d evia liquidar e s t a R evoluo e onde e s t a R evoluo criou seuprprio liquidador na pessoa de Bonaparte (SARTRE, 1986, p. 78-79).

    Neste texto, a totalizao qualificada de c o n c re t a , retomando emparte o sentido hegeliano do con-creto recuperado por Marx, como asntese das mltiplas determ i n a e s ( M A R X , 1 9 8 3 , p. 3 5 ) , como o c o n - c re s c e re crescer junto numa determinao re c p roca e dinmica.Esta dialtica c o n c re t a p o rque enfatiza a necessidade das m e d i a e s ,em um jogo do particular e do unive rsal no qual o particular no simplesmente descartado como um acessrio casual, apenas p o s s ve l ,

    163

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • como teriam sido os d ive rsos Bonapart e s .Ao reducionismo dos marxis-t a s , seus contemporneos, S a rt re ope a prpria dialtica, c o rre t a m e n t erecuperada pelo conceito de m e d i a o , cunhado por Hegel para definirseu mtodo.

    E s t a ria ele assim convocando um re t o rno a Hegel? De certa form a .Pois ele se refere a esta filosofia como a mais ampla totalizao filosfi-ca (SARTRE, 1986, p. 13), ressaltando nela o movimento de dissoluocontnua do Ser em si mesmo, a alienao e o retorno a si do homem: aciso e a contradio que fazem nossa infelicidade so momentos que sepem para ser ultrapassados (...) o puro vivido de uma experincia tr-gi c a , de um sofrimento que conduz morte absorvido pelo sistemacomo (...) uma passagem que conduz ao absoluto, o nico concre t ove rd a d e i ro ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 1 4 ) . Quanto j mencionada crtica deKierkegaard a Hegel, interessante notar que Sartre concorda com ela sat certo ponto: ao se colocar no quadro da poca, K i e r ke g a a rd temrazo contra Hegel tanto quanto Hegel tem razo contra Kierke g a a rd .Hegel tem razo: em vez de se obstinar como o idelogo dinamarq u sem paradoxos rgidos e pobres que remetem finalmente a uma subjetivi-dade va z i a , o concreto ve rd a d e i ro que o filsofo de Iena visa por seusc o n c e i t o s , e a mediao se apresenta sempre como enri q u e c i m e n t o.Kierkegaard tem razo: a dor, a necessidade, a paixo, a pena dos homensso realidades brutas que no podem ser ultrapassadas nem modificadaspelo Saber (SARTRE, 1986, p. 16). Se a realidade profunda do homemem sua vida trgica de fato irre d u t vel ao Saber, isso no invalida oesforo da dialtica em enriquecer e dar contedo subjetividade, quede outra forma seria va z i a . Ao retomar Hegel, S a rt re busca s i t u a r (mais exatamente do que explicar) o singular do indivduo e de sua ao,e com isso denunciar as pseudodialticas que se re s t ringem ao unive rs a lou essencial, sem conseguir ou querer passar da de volta ao particular ouexistente. Essa a funo das mediaes.

    Aqui se esclarece mais o sentido do conceito de vida, que tem a verj em Hegel no s com o real vivido, mas com o movimento de trans-f o rm a o, de dev i r, do prprio real Sart re fala de totalidades viva s (viventes vivantes), pelo qual a dialtica apreenderia o movimento realde uma unidade no processo (en train) de se fa z e r, e no o estudo (...)de uma unidade j feita ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 6 6 ) . Esta v i d a afinal a

    164

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • h i s t ri a , a dinmica do c o n - c re t o em que se imbricam os nveis designificao do vivido particular e do sentido universal. preciso, ento, reconstituir o movimento sinttico de uma ve rdade que veio a ser(SARTRE, 1986, p. 24).

    O interessante que o existencialismo, portanto, que teria a funode recuperar a prpria dialtica, s o t e rrada pelo monismo dos marxistas,no qual os dois lados acaso e universalidade so absolutamente sepa-r a d o s , sem relao um com o outro e, a s s i m , a b s t r a t o s . o existencia-lismo que perm i t i ria perceber que a s s i m , o marxismo vivo (vivente) h e u r s t i c o ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 2 9 ) , ou seja, capaz de descobrir algo, d eencontrar a s i t u a o p a rticular no quadro geral. Isso o que Sart rechama de mtodo progre s s ivo - re gre s s ivo , que l eva em conta aomesmo tempo a circ u l a ridade das condies materiais e o condiciona-mento mtuo das relaes humanas estabelecidas sobre esta base(SARTRE, 1986, p. 72).

    At aqui, c o n t u d o, vai o acordo com Hegel. Pois Kierke g a a rd tambmtem razo, quando afirma o fenmeno humano como algo i rre d u t -ve l ao Saber, quando recusa a possibilidade de que as realidades bru t a s(possam) ser ultrapassadas (ou) modificadas pelo Saber, c o n f o rme acitao anteri o r. L e m b remos que o ultrapassado (d p a s s ) aqui re m e t ed i retamente ao famoso conceito da Au f h e bu n g hegeliana processo des i multnea conservao e negao. O part i c u l a r, e n t o, no pode sersimplesmente ultrapassado pelo universal, como ocorreria na dialtica deH e g e l , constituindo tambm esta sua i rre d u t i b i l i d a d e o conceito sart re a -no de vida.

    Distingue-se claramente nisso o sentido que Sart re confere dialtica.Ele quer uma dialtica flexvel e paciente (...) que recuse considerar ap ri o ri que todos os conflitos vividos opem contraditrios ou mesmocontrrios: para ns, os interesses que esto em jogo podem no encontrarn e c e s s a riamente uma mediao que os re c o n c i l i e ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p.1 1 6 ) . Ou seja, h conflitos em que os opostos no so contraditri o s , oque depende do caso a ser considerado (a posteri o ri) , depende de have ruma mediao que os re c o n c i l i e no sentido de estabelecer umau n i d a d e, uma relao que os oponha como contraditri o s . O conceitosartreano de mediao de matriz hegeliana, mas o de reconciliaon o. Bem como no o a idia de uma n o - n e c e s s i d a d e de que os

    165

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • i n t e resses reais encontrem mediaes, pois em Hegel toda a difere n anecessariamente se configura como oposio em si contraditria.

    Tratando dos interesses re a i s , S a rt re continu a : Na maior parte dot e m p o, uns excluem os outro s , mas o fato de que eles no podem sersatisfeitos ao mesmo tempo no prova necessariamente que sua realidadese reduz a uma pura contradio (...) ou seja, a excluso recproca noos limita a dois nicos opostos, numa unidade contraditri a . O textoe s c l a re c e, na seqncia: C l a ro, o capitalista possui os instrumentos detrabalho e o trabalhador no os possui: eis uma contradio pura. (...mas)o roubado no o contrrio de quem ro u b a , nem o explorado oc o n t r rio (ou contraditrio) do explorador: explorador e explorado sohomens em luta num sistema em que a raridade constitui o carter prin-cipal. (SARTRE, 1986, p. 116).A relao entre explorado e exploradorno necessariamente uma relao contraditri a , ou entre contrri o s ,pois ambos podem estar num ambiente de raridade, de modo que sualuta se dissolve em outros elementos do sistema. S o ser se sua relaoencontrar a mediao que os reconcilie, isto , oponha; esta a relaooposta de ambos os contrrios, e de um pelo outro, aos instrumentos detrabalho, que uns monopolizam para deles privar aos outros.

    Em suma e assim que Sart re interp reta a crtica materialista deMarx ao idealismo de Hegel , tambm a dialtica no pode ser ummtodo aplicado a priori aos fenmenos histricos. Nem todos os confli-tos re a i s , e n t re homens em luta, de fato os ope no sentido estrito deuma contradio, p ropiciando uma leitura dialtica. Numa concepoidealista, a dialtica funcionaria como uma camisa de fora retirando doshomens reais a sua liberd a d e.Alm da dialtica, p o rt a n t o, o que o exis-tencialismo restitui ao marxismo seria o prprio materialismo.

    E materialismo entendido como a i rre d u t i b i l i d a d e de todo real aoSaber absoluto, o enquadramento de qualquer conflito na matriz dac o n t r a d i o, a deduo das significaes mais concre t a s a partir dasmais gerais, a desapario do evento ou do indivduo singular no bojode estruturas sociais todo-determ i n a n t e s . S a rt re lembra que o homema l i e n a d o, m i s t i f i c a d o, reificado etc. , no menos homem. E quando Marxfala da reificao, ele no quer mostrar que ns somos transformados emc o i s a s , mas que somos homens condenados a viver humanamente acondio de coisas materiais (SARTRE, 1986, p. 97, nota). Neste ponto

    166

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • a p a rece a importantssima questo do f e t i c h i s m o , t e rmo que tambmS a rt re utiliza positivamente na sua crtica ao idealismo. Examinemos comalgum detalhe tambm este ponto.

    Entre as mediaes reais assinaladas por Sartre est o grupo social,c a r a c t e rizado justamente por sua autonomia re l a t iva e poder de media-o (SARTRE, 1986, p. 64) entre um nvel mais geral de sociabilidade( d iviso do trabalho, foras pro d u t ivas e relaes de produo) e o indiv -d u o, s i t u a n d o - o na fa m l i a , na categoria pro f i s s i o n a l , no clube etc. M a sos marxistas desconheceriam esta mediao em toda a sua dimensodialtica , no percebendo que no h seno homens e relaes reaisentre os homens (SARTRE, 1986, p. 72). O prprio Marx no estmuito distante ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 73) desta idia, mas teria se afa s t a d odela um pouco, ao enfatizar s vezes exageradamente o carter re i f i c a d o rdo fetichismo. Isso, porm, no permite concluir por uma insuficinciad e f i n i t iva do mtodo marxista,mas simplesmente por seu desenvo l v i m e n-to insuficiente (SARTRE, 1986, p. 70). Afinal, a teoria do fetichismo,esboada por Marx, jamais foi desenvo l v i d a , e, de qualquer form a , ela nop o d e ria se estender a todas as realidades sociais ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 7 3 ) .

    E m p reendendo ento este d e s e nvo l v i m e n t o do conceito, S a rt rereconhece a fora do m e rc a d o, inicialmente simples complexo derelaes humanas, tendendo a tornar-se mais real que os ve n d e d o res eque seus clientes, mas re p rova o fato de que o marxismo considera om e rcado como uma coisa, e que suas inexorveis leis contri buem parareificar as relaes entre os homens ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 7 3 ) . O pro bl e-ma que, segundo ele, Marx faz repentinamente (...) um passa-moleque (tour de passe-passe) dialtico (e) nos mostra esta abstraom o n s t ruosa como o ve rd a d e i ro concreto (trata-se, claro, de umasociedade alienada), enquanto os indivduos (por exe m p l o, o operri osubmetido s leis frreas do mercado de trabalho) caem por seu turno naa b s t r a o .A sua crtica fica ento mais cida: a c reditamos ter re t o rn a-do ao idealismo hegeliano. Pois a d e p e n d n c i a do operrio que vende suafora de trabalho no pode de forma alguma significar que o trabalhadorcaiu na existncia abstrata. Ao contrri o, a realidade do merc a d o, p o rmais inexorveis que sejam suas leis, e at em sua aparncia concre t a ,repousa sobre a realidade de indivduos alienados e sobre sua separao( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 7 3 - 7 4 ) .

    167

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • Do ponto de vista de Marx, esta objeo mere c e ria tambm algunsre p a ros import a n t e s .A fora que separa os indivduos se autonomiza delese os separa de modo distinto do qual eles so separados em outras formassociais, isto , o faz como fora externa, coisificada, natural.Alm disso, olado da separao dialeticamente dependente do da unio: considerar sa separao seria algo unilateral.

    Mas Sart re responde que o Fetichismo no decorre de uma coisifi-c a o, e sim de um conflito e conseqente d p a s s e m e n t da ao de umindivduo ou de um grupo pela de outro, criando um resultado que nemo pri m e i ro nem o segundo visava m . Ele diz:mas se a histria me escapa,isto no decorre do fato de eu no a fa z e r: d e c o rre de que o outrotambm a fa z ; ou ainda, o sentido objetivo do que eles fazem vai seimpor a eles como uma existncia re a l , na medida mesma em que aresistncia do outro no lhes permite apreender sua atividade como purae simples objetivao deles mesmos ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 82 e 118). O useja, dos antagonismos surge uma resultante que escapa a cada particular,constituindo o universal como uma existncia real, um sentido obje-t ivo . Mas a ao humana sempre est em pri m e i ro plano. Por isso elec o n t i nua no ve rdade que a histria nos aparea completamente comouma fora estrangeira. Ela se faz cada dia pelas nossas mos, mais do quea c reditamos faz-la (...) e contudo ela menos opaca do que nu n c a : oproletariado descobriu e liberou o seu segredo; o movimento do capital consciente de si mesmo, tanto pelo conhecimento que os capitalistastomam dele como pelo estudo que dele fazem os tericos do movimen-to operrio (SARTRE, 1986, p. 84).

    A este otimismo quanto liberdade humana, pode-se objetar a fa m o s afrase de Marx: no o sabem, mas o fa z e m ; ou seja, indiferente adescoberta ou a conscincia dos agentes para a sua necessidade de conti-nuar executando as operaes econmicas capitalistas fetichizadas.

    No entanto, o interessante perceber na interp retao sart reana dofetichismo a sua leitura especfica de Marx. Em pri m e i ro lugar, adefinio de a b s t r a t o e c o n c re t o , justa no que se re f e re ao modo deexposio dialtico, no re c o rre aqui ao conceito de trabalho abstrato, p o rno descrever o processo real/social de abstrao realizado pelas tro c a sreiteradas no merc a d o. Em segundo lugar, se as coisas fetichizadas n opodem ser abstraes, pois Sart re critica o tempo inteiro os marxistas que

    168

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • esquecem das mediaes que do carne s categorias universais abstratas(e quase sempre a a b s t r a o tem para ele este mau sentido), ento elasso o que ele chama de c o l e t ivo s , como o merc a d o, e tambm a fa m l i a ,a cidade, o clube de leitura. Isto , so grupos compostos de homens epor suas relaes, pois nada mais existe. E assim Sartre dilui o fetiche nos c o l e t ivo s que sempre existiram,ou seja, p e rde em parte a especificidadedo capitalismo, embora o tempo inteiro lembre que se trata de umasociedade alienada, claro.

    Examinando sua definio de fetiche, como aparece no texto acima,p e rcebemos que para Sart re ele resulta da alienao. E este conceito, p o rsua vez, definido como uma realidade histrica e perfeitamente irre-d u t vel a uma idia ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 1 8 ) , no mesmo esprito da crti-ca de Kierkegaard a Hegel. Se levarmos em conta o conceito de a b s t r a o tal como aparece no trabalho abstrato, p o r m , o fetiche serevela como mais do que um coletivo de indivduos alienados: aabstrao um processo real do capitalismo que qualifica a mera alienao.

    Tambm podemos examinar neste sentido o ponto fundamental daa p roximao sart reana do marxismo ao existencialismo: a prxis. O shomens fazem sua histria e so simultaneamente feitos por ela. Ohomem p roduto de seu pro d u t o, e ao mesmo tempo um agenteh i s t rico no pode, de forma alguma, passar por um pro d u t o ( S A RT R E , 1 9 8 6 , p. 8 2 ) . Em parte isso ve rd a d e, na medida apenas emque o homem pode resgatar sua humanidade na prxis transformadora dare a l i d a d e ; mas no ve rdade sempre, j que, na inve rso fetichista, ohomem est posto numa condio coisificada. Mas Sart re continu a , O shomens fazem sua histria sobre a base de condies reais anteriores (...)mas so eles que a fazem e no as condies anteriores: de outro modo,eles seriam simples veculos de foras inu m a n a s ; de fa t o, as condiesno vo sozinhas ao mercado, como diz Marx, mas foram os homensa ir, impem-se a eles, mesmo que eles o saibam e queiram delas escapar.Neste caso, o cotidiano quase sempiterno, eles agem movidos por forasinumanas, sim.

    Esta diluio do conceito forte de f e t i c h e , ao abrir o campo depossibilidades para a ao humana, por outro lado, ilumina um aspectodeixado sombra por ve rses mais recentes do marxismo, a saber, acapacidade de transformao das chamadas condies objetiva s . A o

    169

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • invs de soterrado ou sufocado pelo peso de um fetiche todo-poderoso,o u , ao contrri o, de simplesmente liv re para impor sua vo n t a d e, o homemaparece configurado fenomenologicamente, isto , lanado em sua situa-o, determinado pela determinao do seu mundo e vice-versa. Depoisde voltar questo do papel do indivduo na realizao das foras sociais,agora citando e criticando o texto do velho Plekhanov, S a rt re afirm a : S que a questo no essa: trata-se de determinar em que nve l nos colo-camos para definir a realidade (SARTRE, 1986, p. 119).

    Sem dvida, um aporte interessante para as teorias polticas que,inspiradas no marxismo, no conseguem se desenredar da altern a t ivaao subjetiva ve r s u s condies objetiva s . Mas de certa maneira Sart retambm se enreda nesta dificuldade, ao diluir o fetiche, isto , a scondies objetiva s , para repor a nfase sobre as possibilidades da aoh u m a n a . Pois com seu conceito de h u m a n o e de a o , ele bu s c aexplicitamente o re t o rno tradio humanista. A ao pensada comoe f i c c i a , pelos seus resultados prticos, como realizao particular dou n ive rs a l ; o homem pensado como a luta contra a alienao presente emtoda a relao social, em todo o acontecimento: a s s i m , a subjetiv i d a d eretoma uma espessura diante do mundo que ameaa justamente o maisi n t e ressante de sua crtica ao marxismo, como vimos, a pers p e c t ivaf e n o m e n o l gica da s i t u a o .

    A crtica de Sart re, p o rt a n t o, mantm sua import n c i a , a p o n t a n d opara a superao radical da aporia das teorias da ao inspiradas porM a r x . Mas ela mesma no parece cumprir plenamente seu progr a m a ,recaindo em um conceito de h o m e m que fica aqum de sua exign-c i a . Resta fazer este ltimo re p a ro. Mas ficam abert a s , a partir da, a spossibilidades para tanto.

    1 nestes termos que Sart re se re f e re filosofia de Marx em Questes de Mtodo, de 1960(SARTRE, 1986, p. 12) e depois:Ele permanece a filosofia de nosso tempo: ele no ultra-p a s s ve l , p o rque as circunstncias que o engendraram ainda no foram ultrapassadas(SARTRE, 1986, p. 32, n. 1).

    2 preciso simplesmente rejeitar o a p ri o ri s m o: s o exame sem preconceitos do objetohistrico poder, em cada caso, determinar se a ao ou a obra refletem os mveis superestru-turais de grupos ou indivduos formados por certos condicionamentos de base ou se no se

    170

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • pode explic-los seno se referindo imediatamente s contradies econmicas e aos conflitosde interesse material (SARTRE, 1986, pp. 42-43).

    3 As significaes superpostas so isoladas e desmembradas pela anlise. O movimento que asrene na vida , ao contrrio, sinttico. (SARTRE, 1986, p. 101 e 95).

    Referncias bibliogrficasMARX, K. 1983. Grundrisse der Kritik der politischen konomie. MEW42. Berlin: Dietz Verlag

    SARTRE, J.-P. 1986. Questions de Mthode. Paris: Gallimard.

    171

    do i sp o nt o s, C u ri t i b a , So Carlos, vol. 3, n. 2, p.159-171, outubro, 2006.

  • 172

    :