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1
VERDADEIROS MEDOS E FALSAS CONFIANÇAS: PERCEPÇÃO DE
RISCO NUMA ÁREA DE ELEVADA PERIGOSIDADE NATURAL
Eduardo BRITO HENRIQUES Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa
Margarida QUEIRÓS Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa
Resumo
A publicação do célebre Risk Society. Towards a New Modernity de Ulrich Beck há já
uma dezena e meia de anos atrás chamou a atenção para o facto de as sociedades da
modernidade tardia se caracterizarem, comparativamente às sociedade da “primeira
modernidade” e mais ainda às sociedades tradicionais, por uma muito maior exposição aos
riscos, e sobretudo a riscos muito mais diversos, não apenas já naturais, mas também
tecnológicos, resultantes do próprio progresso. Argumentava-se ainda nessa obra que tudo
isto tivera como consequência a geração de uma nova visão da própria vulnerabilidade
humana e uma alteração profunda na percepção dos riscos.
O aumento do interesse pelo estudo dos riscos, muito visível na Geografia, mas que se
estende a outras áreas disciplinares, decorre, em larga medida, deste novo contexto societal e
ideológico. Porém, tudo isso se tem traduzido até agora muito mais num esforço com vista à
determinação objectiva dos riscos (quantificação da perigosidade e da exposição humana a
esses perigos) do que propriamente ao estudo de como eles são avaliados e integrados na
prática de vida das populações. E, todavia, um bom conhecimento destas percepções seria
fundamental para que se pudessem implementar acções preventivas e mitigadoras destinadas a
aumentar os níveis de segurança das populações.
É para esse objectivo que contribui o presente texto. A sua finalidade é, a partir de um
inquérito realizado junto de cerca de 500 residentes, dar a conhecer o modo como a população
do Algarve, que reconhecidamente constitui simultaneamente uma área de intensa procura
turística e de elevada perigosidade sísmica, concebe esse perigo e como o hierarquiza no
quadro dos muitos outros que a sociedade de risco nascida da modernidade tardia comporta.
2
Palavras-chave: riscos, vulnerabilidades, sociedade de risco, percepção de risco, população
residente, Algarve.
Abstract
The Ulrich Beck’s Risk Society, Towards a New Modernity (first published in German
in 1986 and translated into English in 1992) is one of the most influential books on social
analysis in the late twenties as the author demonstrate a theory about a distinctive form of
society ("risk society'') that includes a specific perspective on the way in which we experience
risks to health and the environment today. Modern society is exposed to a particular type of
risk (manufactured risks) that is the result of the modernization process itself. Because
manufactured risks are the product of human activity, there is the potential to assess the level
of risk that is being produced. Social relations have changed with the introduction of
manufactured risks and reflexive modernization: modern society has become a risk society in
the sense that it is increasingly occupied with debating, preventing and managing risks that it
has produced.
Geography, as other social sciences, is concerned about risks in society mainly as a
result of this new narrative of risk. Nevertheless the focus has been much more about findings
concerning the objective population exposition on risks (e.g. calculating probable risks) than
about how the risks are assessed and integrated in the populations’ daily life. An objective
knowledge of these perceptions would be basic to implement preventive action, mitigate risks
and raise the populations’ levels of security.
The present paper focus on this goal from a research instrument, a questionnaire,
consisting of a series of questions and other prompts for the purpose of gathering information
from about 500 inhabitants, in this case about risk perception. The geographical search area is
Algarve, Portugal, as it is known as a contemporary touristic sun and sea destination but also
a powerful seismic hazard area.
Key-words: risk, vulnerability, risk society, risk perception, population, Algarve.
3
1. Introdução
1.1 Tema e objectivo
As duas últimas décadas representaram um período de viragem no modo como
cientistas e autoridades passaram internacionalmente a entender as catástrofes. A ideia da
catástrofe como uma inevitabilidade a que apenas se pode responder por intermédio do
planeamento de emergência pertence ao passado. Hoje a essa visão semi-fatalista e reactiva
contrapõe-se uma outra perspectiva baseada no direito à segurança ambiental, o que pressupõe
toda uma nova agenda científica e política destinada a reduzir os riscos a que as populações
estão sujeitas.
O estudo dos riscos representa até certo ponto a recuperação de uma preocupação
humanista, ao recolocar o ser humano no centro da atenção científica e ao procurar que a
integridade física e o bem-estar das pessoas apareçam como a finalidade última da reflexão. O
estudo dos riscos não pode por isso ser circunscrito apenas à determinação dos factores
desencadeantes de acidentes e à descrição dos processos pelos quais se dão. O perigo existe
sempre e apenas por referência a um alvo no qual se possa eventualmente fazer sentir. Daí que
a actual teoria dos riscos enfatize não apenas a necessidade de conhecermos bem o
funcionamento dos sistemas naturais, sociais e tecnológicos por forma a podermos prever a
ocorrência de acidentes e antecipar o seu curso, mas também as características das populações
que estão em risco, designadamente o seu grau de exposição aos perigos, vulnerabilidade e
resiliência (Alexander, 2000; Dayton-Johnson, 2004).
O conceito de vulnerabilidade nem sempre tem sido definido de forma exactamente
semelhante. Abundam na literatura as definições de vulnerabilidade, mesmo quando usado
neste campo de aplicação mais estrito que é o estudo dos riscos (cf. Thywissen, 2006).
Genericamente, porém, é mais ou menos consensual que a vulnerabilidade diz respeito à
capacidade que as pessoas e os grupos têm de anteciparem, lidarem com, resistirem e
recuperarem dos acidentes. Este entendimento da vulnerabilidade implica portanto que no
estudo dos riscos se “desloque o foco das dinâmicas biofísicas dos eventos para a produção
social, económica e política do ambiente”, uma vez que é também em função da forma como
se organizam as sociedades e dos recursos de que as pessoas dispõem para fazer face às
adversidades, que se devem as maiores ou menores consequências dos acidentes (Hogan &
Marandola Jr., 2005: 463).
Na avaliação da vulnerabilidade pode-se assumir uma abordagem mais sociocêntrica, ou
mais psicocêntrica. Ambas são necessárias. As abordagens que se centram mais na dimensão
societal são sobretudo importantes para avaliar a capacidade das populações resistirem ao
4
impacto dos acidentes e recuperarem deles. As abordagens que se focam essencialmente na
percepção do perigo e nas representações mentais dos riscos, por seu turno, ajudam a perceber
a capacidade que as populações têm de anteciparem e de lidarem com os riscos, e isso importa
pois é em larga medida com base nestas questões de carácter intersubjectivo que as pessoas
tomam decisões susceptíveis de as colocarem numa situação de maior ou menor exposição
aos perigos. Assim, no contexto da "modernidade reflexiva" (Beck, 1992; 2000), onde
consideramos que a partir de novos argumentos gerados pelos impactos da perspectiva do
risco, novos padrões cognitivos se desenham para nortear tomadas de decisões, abrangendo
desde as mais amplas às mais quotidianas.
No estudo que de seguida se apresenta foi à análise desta última dimensão que
consagrámos a nossa atenção. O objectivo consistiu em estudar a percepção e o grau de
internalização da noção de risco pela população residente no Algarve. Partindo do princípio
de que a consciência de perigo pode ajudar a elevar os níveis de segurança das populações, ao
justificar a correcção de possíveis práticas desadequadas e a tomada de medidas de
acautelamento e de prevenção de eventos potencialmente danosos, procurámos averiguar até
que ponto essa ideia de risco está ou não incorporada pela população residente no Algarve, e
como varia essa percepção em função dos vários tipos de riscos. O Algarve é, na verdade,
uma das regiões portuguesas que maior dinamismo demográfico registou nos últimos
decénios, como resultado de um forte desenvolvimento do turismo e do imobiliário. Entre
1991 e 2001, a população residente no Algarve aumentou 15,8%, contra uma variação média
de 5% no conjunto do país, e as estimativas do INE para meados do presente decénio indicam
o prosseguimento desta tendência de crescimento, ao sugerirem que de 2001 para 2006 a
população terá aumentado de novo em 6,2%, ou seja, em mais 26 310 novos residentes. Muito
deste crescimento deve-se aos saldos migratórios positivos que a região tem mantido com o
resto do país, e mesmo até a um reforço da sua atractividade no plano internacional como
destino de migrações laborais e de reforma. O Algarve, não obstante, é também das parcelas
do território português que maior perigosidade natural apresenta, sobretudo sísmica, pelo que
se explica plenamente que se procure avaliar a percepção de risco pela população nesta região
(cf. Zêzere et al, 2006): tomando como referência Portugal Continental, “A distribuição
espacial das intensidades sísmicas máximas, com base tanto na sismicidade histórica como na
sismicidade instrumental, mostra que os valores mais elevados são atingidos no Sudoeste de
Portugal, nomeadamente no Algarve e na Região de Lisboa e Vale do Tejo (ibid.: 5). O
Algarve é, além disso, a crer na experiência histórica, a região de Portugal Continental com
maior susceptibilidade de tsunamis, cuja génese nesta área da Península Ibérica está associada
5
à ocorrência de sismos violentos com epicentro no mar, além de possuir algumas das áreas
mais susceptíveis à erosão marinha e à ocorrência de cheias rápidas (ibid.: 14).
1.2 Método de pesquisa e amostra
Para o desenvolvimento deste estudo procedemos à realização de uma pesquisa
extensiva, com administração face-a-face de um inquérito à população residente no Algarve.
O inquérito foi realizado entre 22 e 30 de Janeiro de 2008 e abrangeu uma amostra de 512
pessoas, cobrindo a totalidade dos concelhos da região (pelo menos 20 inquéritos em cada um
deles).
Não se utilizou nenhum método probabilístico sistemático na recolha dos elementos da
amostra. A amostragem baseou-se na interpelação ao acaso na rua, o que, não obstante o
número muito aceitável de inquéritos realizado (que colocaria a amostra em níveis de
confiança de 99,9%, para limites de erro de ± 2,5), impõe que se tenha algum cuidado na
extrapolação dos resultados para o universo em estudo.
Ainda a respeito das características da amostra, deve dizer-se que ela apresenta um
pequeno enviesamento por sobrerrepresentação dos elementos de sexo feminino. As
mulheres, que no conjunto da população algarvia representavam 50,5% em 2001, estão
presentes na amostra recolhida numa proporção de 54,3%. O método usado na selecção dos
elementos da amostra também explica que haja uma representação ligeiramente exagerada da
população em idade activa, pelo menos tendo por termo de comparação os dados dos últimos
censos, enviesamento esse que parece dever-se sobretudo a uma subrepresentação da
população jovem: em 2001, a população idosa correspondia no conjunto da região a 18,7%
dos residentes e os jovens (população com menos de 15 anos) a 13,1%; na amostra recolhida
em 2007, os idosos correspondem a apenas 15,4% e a população com menos de 20 anos
corresponde a uns escassos 5,7%.
2. Sentimento de segurança e percepção de risco na população algarvia: análise dos
resultados do inquérito
2.1. A ideia de risco e o sentimento de segurança
Para avaliarmos os níveis de segurança percebida da população em estudo iniciámos o
inquérito com uma questão genérica em que pedíamos aos inquiridos que qualificassem como
se sentem no dia-a-dia tendo em consideração os diversos riscos que correm. O objectivo era
perceber até que ponto a população algarvia tinha incorporada uma ideia de risco difuso.
Eram dadas aos inquiridos seis hipóteses de resposta, correspondendo a diferentes níveis
6
ordinais numa hierarquia do sentimento de risco, desde o “extremamente seguro” (6) ao
“extremamente inseguro” (1).
Figura 1 – Sentimento de segurança experimentado no dia-a-dia numa amostra de população residente no
Algarve
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
Extremamenteinseguro
Bastante a muitoinseguro
Relativamenteinseguro
Relativamenteseguro
Bastante a muitoseguro
Extremamenteseguro
%
Fonte: Recolha e elaboração própria (inquérito realizado em 2007)
Os resultados obtidos nesta questão, para a qual foram apuradas 512 respostas válidas,
parecem sugerir que não existe uma percepção alargada de perigo entre a população inquirida
(Figura 1). É um facto que os casos de sentimentos de grande conforto psicológico,
associados a uma ideia de extrema ou elevada segurança, são minoritários, não chegando a
abarcar um terço da população que fez parte da amostra. Não obstante, se olharmos para as
respostas agrupando os inquiridos em dois conjuntos, um compreendendo todos os que
sentem entre o “relativamente inseguro” e o “extremamente inseguro”, e um outro abarcando
os que se situam entre o “relativamente seguro” e o “extremamente seguro”, verificamos que
este segundo grupo concentra 72,4% das pessoas inquiridas. As frequências obtidas
distribuem-se entre as várias modalidades de resposta segundo uma curva unimodal de
assimetria negativa, centrada na categoria correspondente aos valores de segurança médios,
pelo que, em termos gerais, se pode dizer que há um sentimento de segurança mais ou menos
difuso entre a população, apenas não partilhado por um grupo que não chega a ser composto
por um terço dos inquiridos.
Quisemos saber se há algum perfil sociográfico especialmente associado a essa minoria
de habitantes que experimentam sentimentos de insegurança mais agudos. Pretendíamos
7
concretamente saber se é possível estabelecer alguma relação entre o sentimento de segurança
experimentado e as características da população. Uma hipótese que se podia levantar era a de
variáveis como o sexo e a idade poderem estar na origem de percepções diferentes de risco,
por colocarem as pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade. Por outro lado,
imaginámos que o capital cultural, medido através das habilitações literárias, pudesse
eventualmente contribuir também para uma maior ou menor consciencialização dos perigos a
que as pessoas estão sujeitas e, logo, para percepções variáveis destas quanto aos riscos que
correm quotidianamente. Essas hipóteses tinham aliás o respaldo de alguns estudos
internacionais onde parecem ter sido detectadas relações deste tipo, embora sem uma
confirmação que permitisse falar de consenso (cf. Sjöberg et alli, 2004). Os dados recolhidos,
porém, não permitiram comprovar estas hipóteses, antes pelo contrário. O grau de associação
entre o sexo e os níveis de confiança sentidos pela população no seu quotidiano, medido
através do teste V de Cramer, deu valores muito baixos, próximos do zero, ao mesmo tempo
que a interpretação do coeficiente λ demonstra que não é possível prever a existência de um
maior ou menor sentimento de segurança em função do sexo (Quadro 1).
Quadro 1 – Grau de associação entre o sentimento de segurança experimentado no dia-a-dia, o sexo, a
idade e as habilitações literárias numa amostra de população residente no Algarve
Sentimento de segurança vs: Sexo Idade Habilitações literárias
Graus de liberdade 5 30 25 Qui-quadrado 14,509 39,552 25,352 Teste V de Cramer 0,169 0,125 0,100 Coeficiente λ 0,029 0,034 0,026
Fonte: Recolha e elaboração própria (inquérito realizado em 2007)
A idade não manifestou ser uma variável mais relevante para as diferenças na avaliação
dos riscos que as pessoas correm no dia-a-dia. O teste V de Cramer foi neste caso ainda mais
baixo do que o obtido no cruzamento entre os níveis de segurança percebida e o sexo,
verificando-se que a possibilidade de prever um maior ou menor sentimento de segurança em
função da idade é praticamente nula (λ = 0,034). Mas mais baixo ainda foi, finalmente, o grau
de associação que se pôde obter com as habilitações literárias.
A ausência de uma relação entre os níveis de segurança sentidos ou percebidos
quotidianamente pelas pessoas e as suas características sociográficas parecem sugerir que a
percepção de risco se constrói a partir de elementos muito mais complexos, que têm a ver
com as idiossincrasias ou particularidades das pessoas, as suas biografias, as experiências
8
mais ou menos traumáticas por que passaram, o próprio estado de espírito do momento, etc.
Está portanto longe de ser algo que se possa deduzir de forma mais ou menos mecânica a
partir das características demográficas ou da posição social da pessoa. Esta ausência de
relação, porém, poderá também ser vista como um argumento em favor das explicações da
percepção do risco mais baseadas no paradigma culturalista que no paradigma psicométrico
(cf. Queirós et alli, 2007); parece ter a ver mais com as “visões do mundo” que as pessoas
partilham do que com qualquer outra coisa (cf. Sjöberg, 1998; Oltedal et alli, 2004). Na
verdade, a relativa homogeneidade nas respostas parece ir em favor da ideia de que a
percepção é uma construção social que deve bastante ao ambiente institucional e à cultura
local que envolve os agentes e que constitui o meio em que estes se movem.
2.2. Tipos de acidente e percepção de perigo
Quisemos averiguar até que ponto a percepção de risco era variável em função do tipo
de risco, e que acontecimentos potencialmente perigosos constituíam para a população
algarvia maior motivo de preocupação. Para tal, o questionário continha uma pergunta em que
se pedia aos inquiridos que avaliassem o grau de preocupação que lhe suscitava cada um dos
elementos constantes de uma lista de 23 potenciais perigos (naturais, tecnológicos e sociais),
medindo-se essa preocupação numa escala ordinal de 6 níveis (de 1 – “não me preocupa
nada” – a 6 – “preocupa-me imensamente”).
O Quadro 2 sintetiza os resultados a que se chegou. Percebe-se da sua análise que a
preocupação que suscitam os diversos perigos é bastante variável. É um facto que quando
questionados sobre o grau de preocupação que os problemas em concreto originam neles, os
inquiridos raramente responderam com níveis baixos. Todos os perigos referidos obtiveram
por isso níveis de preocupação médios superiores a 3. Ainda assim, embora num quadro de
preocupação mais ou menos assumida por qualquer dos perigos citados, há diferenças muito
sensíveis entre eles. Num extremos estão os aluimentos de terra (movimentos de vertente) e as
rupturas ou rebentamentos de barragem, que foram os únicos perigos citados a respeito dos
quais mais de 50% da população inquirida afirmou preocupar-se “pouco”, “muito pouco” ou
“nada”. No outro extremo encontram-se os incêndios, a criminalidade, os acidentes
rodoviários, a poluição da água e a poluição atmosférica, que provocam pelo menos
“bastante” preocupação entre 80% dos inquiridos.
9
Quadro 2 – Grau de preocupação suscitado por perigos vários numa amostra da população residente no Algarve (n= 512)
Frequências (%) de respostas nas categorias
1 2 3 4 5 6
Não me preocupa
muito pouco pouco bastante muito Preocupa-me
imensamente
Grau de preocupação
(média)
Aluimentos de terra 12,3 16,4 23,2 24,2 15,0 8,9 3,4 Ruptura de barragens 14,1 15,3 21,4 17,7 16,3 15,3 3,5 Ciclones 11,5 12,9 21,7 21,7 16,2 16,0 3,7 Acidentes industriais 8,1 15,6 23,0 21,5 15,6 16,3 3,7 Tsunamis 14,4 14,4 17,8 16,8 13,0 23,6 3,7 Acidentes domésticos 6,0 13,6 24,6 26,1 15,3 14,4 3,7 Acidentes nucleares 13,3 15,3 17,9 14,3 11,6 27,6 3,8 Erosão da costa 6,8 10,2 19,7 31,3 18,2 13,8 3,9 Afogamento 8,4 13,4 16,2 23,2 15,5 23,4 3,9 Guerras 12,0 14,7 14,9 12,7 12,0 33,7 4,0 Cheias 6,4 9,3 18,9 24,3 20,5 20,5 4,0 Pesticidas/transgénicos 5,3 6,3 23,2 25,6 16,2 23,4 4,1 Sismos 5,5 7,6 18,5 25,9 18,5 24,0 4,2 Resíduos perigosos 4,8 7,4 15,1 29,5 20,6 22,5 4,2 Terrorismo 8,6 12,2 13,4 14,4 16,3 35,2 4,2 Doenças (pandemias) 3,6 15,1 14,8 15,8 16,5 34,2 4,3 Seca 2,1 4,3 14,6 32,0 22,0 25,1 4,4 Aquecimento global 3,1 3,3 15,3 26,3 20,5 31,5 4,5 Poluição atmosférica 2,9 3,8 10,7 29,6 21,2 31,7 4,6 Poluição da água 2,4 4,5 10,0 26,3 22,7 34,1 4,6 Acidentes rodoviários 1,9 5,0 10,7 24,3 24,0 34,0 4,7 Criminalidade 2,4 4,3 11,4 20,7 21,7 39,5 4,7 Incêndios 2,4 3,1 8,8 21,7 24,1 39,9 4,8
Fonte: Recolha e elaboração própria (inquérito realizado em 2007)
Para percebermos melhor a “estrutura dos medos” da população e as suas atitudes em
face dos vários riscos aplicámos uma taxionomia numérica aos padrões de resposta obtidos
para cada um dos perigos enunciados. O dendograma da Figura 2 mostra os resultados obtidos
na aplicação dessa metodologia, onde utilizámos a distância euclidiana como medida de
semelhança e a classificação hierárquica ascendente como medida de agrupamento. No nível
de corte A, que corresponde às maiores diferenças, percebe-se que os principais contrastes se
estabelecem entre, por um lado, os perigos naturais, percebidos como mais inevitáveis e
incontroláveis (isto é, mais independentes da vontade ou da acção humana), e, por outro lado,
todos os outros. Incluem-se nesse primeiro grupo os sismos, tsunamis, cheias, ciclones, a
erosão marinha, os aluimentos de terra e o rebentamento de barragens; este último, que na
verdade constitui um acidente tecnológico e deveria por isso aparecer mais ligado aos
acidentes industriais, integra-se neste grupo por ser percebido como um acidente de origem
não humana, até pelas suas estreitas relações com os eventos sísmicos.
10
Figura 2 – Grau de preocupação suscitado por perigos vários numa amostra da população residente no
Algarve: proximidade nos padrões de resposta
Fonte: Recolha e elaboração própria (inquérito realizado em 2007)
Descendo o corte para o nível B, o dendograma passa a evidenciar sete agrupamentos de
perigos. O grupo dos perigos naturais desagrega-se a este nível em três subgrupos, a que
correspondem graus de preocupação diferenciados e, sobretudo, diferenças nos padrões de
resposta entre as pessoas inquiridas. Aparece então um primeiro conjunto formado pelos
acidentes naturais que em princípio se julgarão potencialmente mais danosos (em extensão),
ou mais incontroláveis, como os sismos, tsunamis, cheias e ciclones. Comparativamente aos
outros riscos naturais, suscitam níveis de preocupação em média mais elevados. Apresentam
no entanto alguma disparidade de reacções na população, como se percebe pelo facto dos
coeficientes de variação das respostas serem para os acidentes que formam este grupo
superiores aos dos outros riscos naturais (na ordem dos 40%): há pessoas que parecem
revelar-se sensíveis a este tipo de perigos, outras manifestam uma clara despreocupação. Os
aluimentos de terras e a erosão marinha juntam-se num segundo conjunto a que correspondem
11
níveis de preocupação mais baixos, provavelmente por estarem associados a acidentes
localizados, e por fim aparecem autonomizadas num grupo à parte as rupturas de barragens, a
respeito das quais se obteve um número de não respostas mais elevado, e que parecem não
configurar por tudo isso uma preocupação evidente entre a população.
Ainda ao nível do corte B, nos perigos que se podem classificar como tecnológicos,
sociais ou ambientais, individualizam-se quatro conjuntos. A origem da responsabilidade é a
variável que parece explicar que a eles se associem atitudes diferenciadas por parte da
população. Aparentemente, não é o grau de danos que o evento pode suscitar, nem a
interferência mais ou menos directa que pode ter na saúde ou no bem-estar pessoal do
inquirido, mas a maior ou menor dificuldade em controlar a sua ocorrência, que determina a
maior ou menor apreensão por ele suscitada. Quanto mais difusa, no sentido de mais dispersa
e colectiva é a presumível causa do perigo, maiores tendem a ser os níveis de preocupação
que ele sugere. Por outro lado, os dados parecem indicar que há pessoas que tendem a
valorizar os perigos que resultam mais do exercício do seu quotidiano, e outras que
manifestam níveis de preocupação mais elevados com os perigos que decorrem de
responsabilidade de outros, pois enquanto os acidentes domésticos e os afogamentos se
associam entre si num grupo, os acidentes industriais e nucleares se agrupam num outro.
Entre os perigos de origem difusa, é possível distinguir os que têm um âmbito mais
social, ou seja, que decorrem directamente das relações que se estabelecem entre as pessoas, e
os de natureza ambiental, que nas representações mentais dos riscos também aparecem com
uma génese ou responsabilidade humana, mas que se exprimem e são propagados através dos
sistemas naturais. Ambos apresentam níveis de preocupação que estão entre os mais elevados
de todos; são, uns e outros, os que mais parecem inquietar as pessoas. Há no entanto
diferenças na forma como se exprimem na população. Os perigos sociais – a criminalidade, o
terrorismo, as guerras e as pandemias – têm respostas mais díspares; a preocupação que
geram na população não é consensual. Os perigos ambientais, pelo contrário, além de
aparentarem ser aqueles para que as populações estão mais sensibilizados, são também
aqueles a respeito dos quais a preocupação é mais consensual, como se comprova pelo facto
dos coeficientes de variação obtidos nas respostas a respeito do grau de preocupação com
estes perigos serem de todos os mais baixos (entre 20 e 30%). Interessante é ainda constatar o
facto dos acidentes rodoviários aparecerem associados na estrutura das respostas aos riscos
ambientais, e não aos riscos de responsabilidade facilmente definível como são os restantes
acidentes.
12
A análise da informação recolhida leva-nos a concluir, em suma, que há muito por fazer
ainda na sensibilização da população residente no Algarve para os riscos naturais. Não há
claramente uma percepção adequada da perigosidade que pode envolver a erosão marinha ou
os movimentos de vertente, tal como não parece haver uma noção apropriada a respeito do
grau de exposição que existe a perigos como a de um sismo ou de uma cheia. A insuficiente
internalização de uma ideia de risco associada a estes acidentes é algo que impede que se
evolua para uma cultura de maior exigência das populações em matéria de ordenamento do
território; e é algo, de resto, que se pode opor também ao desenvolvimento de uma atitude de
efectiva prevenção do risco, impedindo que se reduzam por essa via as vulnerabilidades da
população.
O que acabámos formular tem corroboração nas respostas que obtivemos quando
perguntámos à população que probabilidade haveria de ocorrer cada um dos referidos
acidentes naturais nos horizontes de um, dez e cinquenta anos. A dificuldade que os
inquiridos manifestaram na resposta a esta questão, traduzida em elevadas taxas de não
resposta e numa forte incidência de respostas nas modalidades de categoria intermédia, que
são sempre um escape para a indecisão, constituem em si mesmos indicadores da ausência de
uma ideia clara acerca do risco que se corre.
De entre os eventuais perigos referidos, os sismos foram os que os inquiridos
considerarem mais prováveis de ocorrer (Figura 3): 27,5% dos inquiridos admitiam que a
hipótese de ocorrer um sismo num horizonte de um ano era muitíssimo elevada, de 80% ou
mais; 31,8% das pessoas achava que era essa a probabilidade num horizonte de dez anos, e
38,7% num horizonte de 50 anos. Sugere isto, portanto, que haverá uma parte da população
fortemente consciente da perigosidade sísmica do Algarve (no fundo, os que consideram
como quase certo que um sismo possa ocorrer no horizonte curto de um ano), mas para a
maioria dos inquiridos esse parece ser apesar de tudo um risco mais ou menos remoto: note-se
que só 38,7% das pessoas considerava muito provável (80% de probabilidade ou mais) que
um sismo pudesse ocorrer nos próximos 50 anos, e 48,7% se considerássemos uma
probabilidade superior a 60%.
Para o risco de cheias e de erosão da costa, a sensibilidade da população é ainda menor.
No caso das cheias, 17% dos inquiridos consideravam muito improvável que uma cheia
pudesse ocorrer no ano subsequente (probabilidade inferior a 20%), contra 15,8% que
considerava muito provável que isso sucedesse (probabilidade de 80% ou mais); mesmo num
horizonte de 50 anos, só 23,8% dos inquiridos admitia que a probabilidade de ocorrer um
acidente deste género fosse superior a 80%. Especialmente grave, contudo, é a desinformação
13
que parece haver em relação à erosão marinha, claramente subestimada pela população
residente no Algarve: só 18% dos inquiridos parece compreender que se trata de um
fenómeno em curso, uma vez que foi essa a percentagem de pessoas que consideraram muito
provável que isso sucedesse no decurso do ano subsequente, e mesmo para um horizonte de
50 anos, só 28,3% dos inquiridos.
Figura 3 – Probabilidades estimadas de ocorrência de alguns acidentes naturais segundo a opinião de uma
amostra da população residente no Algarve
Sismos Tsunamis
05
1015202530354045
[0-20[ [20-40[ [40-60[ [60-80[ [80-100] NS/NR
Classes de probabilidade (%)
%
1 ano
10 anos
50 anos
05
1015202530354045
[0-20[ [20-40[ [40-60[ [60-80[ [80-100] NS/NR
Classes de probabilidade (%)
%
1 ano
10 anos
50 anos
Ciclones Aluimentos de terras
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[0-20[ [20-40[ [40-60[ [60-80[ [80-100] NS/NR
Classes de probabilidade (%)
%
1 ano
10 anos
50 anos
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[0-20[ [20-40[ [40-60[ [60-80[ [80-100] NS/NR
Classes de probabilidade (%)
%
1 ano
10 anos
50 anos
Cheias Erosão marinha
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Classes de probabilidade (%)
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1 ano
10 anos
50 anos
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[0-20[ [20-40[ [40-60[ [60-80[ [80-100] NS/NR
Classes de probabilidade (%)
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1 ano
10 anos
50 anos
Fonte: Recolha e elaboração própria (inquérito realizado em 2007)
Aluimentos de terras, tsunamis e ciclones, por fim, são riscos que as pessoas residentes
no Algarve desprezam claramente, ou por não lhes atribuírem perigosidade (provavelmente o
caso dos aluimentos de terra), ou por os considerarem riscos muito remotos, a que a Região
do Algarve se não encontra muito exposta.
14
3. Conclusão
Vivemos num contexto global. As informações sobre riscos, mesmo que contraditórias
ou difusas, circulam com rapidez interferindo no dia-a-dia e nas nossas tomadas de decisão. A
complexidade e omnipresença instaladas na problemática do risco exigem um posicionamento
da sociedade no sentido de efectuar escolhas esclarecidas, evitando aquelas acções mais
motivadas pelo desejo e pela afectividade do que por processos cognitivos que, de facto,
deveriam balizar tais escolhas. Transformar o perigo difuso em risco definido constrói
possibilidades acrescidas para que os riscos possam ser discutidos e analisados quer como
suportes de mobilização social, como de escolha instruída individual. Será, pois, fundamental
como afirma Beck (2000), o estabelecimento da distinção entre o risco e a percepção do risco.
Tal procedimento presta-se à compreensão do risco enquanto orientação de certa
objectividade, enquanto a percepção de risco é plena de subjectividade, colocando em termos
relativos os sentimentos expressados, pois estes são compostos com as sensibilidades
individuais sobre os perigos do mundo.
O objectivo desta investigação consistiu em estudar a percepção e o grau de
internalização da noção de risco pela população residente no Algarve; procurámos averiguar
até que ponto a ideia de risco está ou não incorporada pela população residente, e como varia
essa percepção em função das tipologias de risco. Concluímos que as representações mentais
dos residentes no Algarve se desenham com melhor nitidez para os riscos naturais,
ambientais, sociais e tecnológicos com uma origem difusa e remota. Os acidentes localizados,
próximos e de ocorrência mais provável no quotidiano (cheias, aluimentos de terras e erosão
marinha) constituem uma preocupação menor. Depreende-se assim que, quando a população
sente uma maior dificuldade em controlar as ocorrências e são estas mais difusas e imputáveis
a outros, se regista um nível de preocupação mais elevado. A noção de “incontrolabilidade”
associada este tipo de riscos potencialmente danosos opõe-se à (falsa) noção de controlo sobre
ocorrências focalizadas e quotidianas. Significa que a sensibilidade dos residentes no Algarve
é elevada para as catástrofes, mais amplas e disseminadas nos seus impactos e com
consequências mais trágicas (por exemplo, associadas a ciclones e tsunamis), do que para os
episódios localizados (por exemplo, erosão de vertentes), colocando-se em situação de uma
maior exposição ao risco.
Há ainda muito por diligenciar na sensibilização da população residente no Algarve
para os riscos naturais. Não há claramente uma percepção adequada da perigosidade que pode
envolver a erosão marinha ou os movimentos de vertente, tal como não existe um
15
conhecimento adequado sobre o grau de exposição a perigos como o de um sismo ou de uma
cheia.
A insuficiente internalização do risco é algo que impede que se evolua para uma cultura
associada à “modernidade reflexiva”, de maior exigência das populações e dos actores
relevantes em matéria de segurança. A protecção civil é um direito do cidadão - que deve
conhecer a natureza e condicionantes do território onde reside e trabalha. A prevenção e
mitigação de riscos naturais e tecnológicos começa no ordenamento do território, mas revela-
se uma prática ainda incipiente no Algarve.
4. Bibliografia
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16
Sjöberg, L., Moen, B. & Rundmo, T. (2004): Explaining risk perception. An evaluation of the
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