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F F A F A M Í L I A P A T R I A R C A L E S U A S F U N Ç Õ E S E C O N Ô M I C A S F L O R E S T A N F E R N A N D E S REVISTA USP, SÃO PAULO (29 ): 74-8 1, M A R Ç O / M A I O 1 9 9 6 74 F L O R E S T A N F E R N A N D E S I INTRODUÇÃO A discussão socioló- gica do tema proposto envolve natural- mente algumas dificuldades de ordem te- órica. De fato, apesar de seu emprego cor- rente na sociologia, os conceitos de “fun- ção econômica” e de “família patriarcal” não são conceitos logicamente “claros”. Com freqüência, o recurso ao conceito de “função econômica”, no contexto de pensamento implícito na formulação do ponto sorteado (“a família patriarcal e suas funções econô- micas”), se associa à idéia de que a família patriarcal representa uma espécie de estrutu- ra social básica do sistema econômico ou ainda à pretensão de comprovar que o exer- cício de atividades econômicas fundamen- tais está subordinado à atuação de pressões e controles sociais concentrados nas mãos de um senhor e nas dos seus apaniguados e su- bordinados, graças ao funcionamento de “um sistema patriarcal” de atribuição do status e papéis sociais. Doutro lado, a própria noção de “família patriarcal” não é precisa quanto às conotações propriamente sociológicas. O símile mais geral para sua definição é o que se oferece através da antiga forma social assumi- da pela organização do poder senhorial nas tri- bos hebraicas. Nesse caso, um patriarca exer- cia seu poder de mando (em vários sentidos: econômico, militar, religioso e político), em nome da tradição e de sua condição de des- cendente e sucessor de um ancestral mítico

ARTIGO_FLORESTAN. a Família Patriarcal e Suas Funções Econômicas

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INTRODUÇÃO – A discussão socioló-não são conceitos logicamente “claros”. Comfreqüência, o recurso ao conceito de “funçãoeconômica”, no contexto de pensamentoimplícito na formulação do ponto sorteado(“a família patriarcal e suas funções econô-micas”), se associa à idéia de que a famíliapatriarcal representa uma espécie de estrutura social básica do sistema econômico ouainda à pretensão de comprovar que o exercício de atividades econômicas fundamentais está subordinado à atuação de pressões econtroles sociais concentrados nas mãos deum senhor e nas dos seus apaniguados e subordinados, graças ao funcionamento de “umsistema patriarcal” de atribuição do status epapéis sociais. Doutro lado, a própria noçãode “família patriarcal” não é precisa quanto àsconotações propriamente sociológicas. Osímile mais geral para sua definição é o que seoferece através da antiga forma social assumida pela organização do poder senhorial nas tribos hebraicas. Nesse caso, um patriarca exercia seu poder de mando (em vários sentidos:econômico, militar, religioso e político), emnome da tradição e de sua condição de descendente e sucessor de um ancestral mítico

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  • FF

    A F A M L I A P A T R I A R C A L ES U A S F U N E S E C O N M I C A S

    F L O R E S T A N F E R N A N D E S

    R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 7 4 - 8 1, M A R O / M A I O 1 9 9 674

    F L O R E S T A N F E R N A N D E S

    IINTRODUO A discusso sociol-

    gica do tema proposto envolve natural-

    mente algumas dificuldades de ordem te-

    rica. De fato, apesar de seu emprego cor-

    rente na sociologia, os conceitos de fun-

    o econmica e de famlia patriarcal

    no so conceitos logicamente claros. Com

    freqncia, o recurso ao conceito de funo

    econmica, no contexto de pensamento

    implcito na formulao do ponto sorteado

    (a famlia patriarcal e suas funes econ-

    micas), se associa idia de que a famlia

    patriarcal representa uma espcie de estrutu-

    ra social bsica do sistema econmico ou

    ainda pretenso de comprovar que o exer-

    ccio de atividades econmicas fundamen-

    tais est subordinado atuao de presses e

    controles sociais concentrados nas mos de

    um senhor e nas dos seus apaniguados e su-

    bordinados, graas ao funcionamento de um

    sistema patriarcal de atribuio do status e

    papis sociais. Doutro lado, a prpria noo

    de famlia patriarcal no precisa quanto s

    conotaes propriamente sociolgicas. O

    smile mais geral para sua definio o que se

    oferece atravs da antiga forma social assumi-

    da pela organizao do poder senhorial nas tri-

    bos hebraicas. Nesse caso, um patriarca exer-

    cia seu poder de mando (em vrios sentidos:

    econmico, militar, religioso e poltico), em

    nome da tradio e de sua condio de des-

    cendente e sucessor de um ancestral mtico

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 7 4 - 8 1, M A R O / M A I O 1 9 9 6 75

    Florestan recebe

    o prmio Fbio

    Prado, 1948,

    em foto com

    Fernando de

    Azevedo; abaixo,

    Campanha em

    Defesa da Escola

    Pblica, no Rio

    Grande do Sul

    Prova escrita sobre tema sor-teado no concurso de livre-docncia cadeira de Socio-logia I da Faculdade de Filoso-fia, Cincias e Letras da Uni-versidade de So Paulo, reali-zada no dia 19 de outubro de1953. Foi sorteado o ponto no

    17. Compuseram a banca exa-minadora os professoresFernando de Azevedo, RogerBastide, Herbert Baldus, M-rio Wagner Vieira da Cunha eOctavio da Costa Eduardo. Gil-berto Freyre, escolhido paracompor a banca, enviou Fa-culdade a seguinte carta:Apipucos, Recife, 21 de Se-tembro de 1953. / Exmo. Sr.Prof. Dr. E. Simes de Paula,M. D. Diretor da Faculdade deFilosofia, So Paulo / Acabode receber a carta em que V.Excia. me comunica haver sidoescolhido meu nome para in-tegrar a comisso examinado-ra do concurso para livre-docncia da I Cadeira deSociologia dessa Faculdade,ao qual se inscreveu o Dr.Florestan Fernandes, ilustre ci-entista social que muito admi-ro./ Infelizmente no me pos-svel tomar no momento com-promissos de examinador, aolado, alis, de eminentes pro-fessores, que igualmente ad-miro e estimo. O que muito la-mento./ Creia V. Excia. na mi-nha considerao e apreopessoais e na minha constan-te simpatia pela Universidadede So Paulo e pela Faculda-de que V. Excia. dirige./ Gil-berto Freyre (Arquivo da Fa-culdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas da Univer-sidade de So Paulo). (Notade Jos de Souza Martins.)

  • 76 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 2 9 ) : 7 4 - 8 1, M A R O / M A I O 1 9 9 6

    comum. A tribo poderia no possuir uma po-sio ecolgica definida e persistente, mas pos-sua uma organizao interna estvel, graas qual se garantia a unidade permanente dediversos grupos, atravs da ordem de suces-so e da comunho religiosa, que servia defundamento comunidade de interesses pol-ticos, econmicos e militares, e que assegura-va a continuidade das parentelas no espao eno tempo. Contudo, esse smile, que serviupara a cunhagem sociolgica do conceito, nofoi observado posteriormente. Aonde se apre-sentaram modalidades de exerccio da domi-nao senhorial comearam a ver os socilo-gos manifestaes tpicas da famlia patriar-cal. Graas a isso o conceito de famlia patri-arcal foi aplicado ao estudo de povos primi-tivos (por Thurnwald, por exemplo); ao estu-do do sistema feudal na China antiga (porGranet, por exemplo); ao estudo do sistemafeudal nas sociedades ocidentais (por Pirennee por Brentano, por exemplo); e no estudo daorganizao da famlia, que resultou da ex-panso da Europa ocidental, atravs da colo-nizao europia do continente americano.

    Em nosso entender, porm, no se deveconfundir a famlia patriarcal com as ativi-dades econmicas que se desenvolviam den-tro de seus quadros humanos e sociais. Se to-

    mssemos como ponto de referncia a dis-cusso do problema tendo em vista a situaodescrita por Pirenne e por Brentano, sera-mos levados a considerar a famlia patriar-cal como uma unidade econmica. Pois, defato, fora dela no existiam outros limites emeios ao desenvolvimento da vida econmi-ca em uma economia sem mercados, dotadade meios restritos de troca. Contudo, essamaneira de encarar o problema seriainsatisfatria, pressupondo uma confusolamentvel entre as condies materiais erurais da produo econmica com os efeitospor elas produzidos. Da pensarmos que seriamais conveniente definir de uma maneiraestrita as funes econmicas da famlia pa-triarcal. Para fins interpretativos, entendemospor funes econmicas da famlia patriar-cal as atividades sociais dos componentes dafamlia patriarcal, independentemente da si-tuao econmica relativa delas dentro dosistema social por ela constitudo, que contri-bussem para manter direta ou indiretamentea constituio e o funcionamento do sistemacorrespondente de vida econmica.

    Quanto ao conceito de famlia patriar-cal, evidencia-se atualmente a tendncia pararessaltar certos traos tpicos, pondo-se delado os aspectos peculiares e manifestaes

    Imagem antolgica

    Ginsio Riachuelo,

    Madureza, em 1936

    (Florestan o 5

    da esquerda

    para a direita,

    na fila do centro)

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    culturais do fenmeno, por mais relevantesque estes sejam quanto definio, descrioe interpretao da famlia patriarcal entre oshebreus, entre os romanos, entre certos povosprimitivos contemporneos, etc. Alis, esteprocedimento que oferece consistncia lgi-ca ao emprego indiscriminado do conceito nasociologia. Nesse caso, os traos essenciaisda famlia patriarcal so: a crena na existn-cia de laos consangneos, definidos atravsde um antepassado comum, mtico ou real; avigncia de critrios de transmisso heredit-ria da posio de chefe ou de senhor emlinha masculina, com preferncia aoprimognito da esposa legal ou de uma dasesposas legais; ao exerccio do poder senho-rial atravs de normas estabelecidas pela tra-dio, independentemente de sua origem oufundamento religioso; o princpio de unidadeeconmica e poltica dos componentes daunidade familial, sob a liderana do senhor;a comunho religiosa; e o princpio de solida-riedade no grupo de parentes, em todas asaes ou situaes em que estes ou seus apa-niguados ou subordinados se envolvessemcomo e enquanto membros ou representantesde uma unidade familial. Como se v, trata-se de uma caracterizao que alcana ummnimo de definio, como se diz atual-mente na sociologia. E esse mnimo lgico dedefinio obtido por meio da deslocao danfase cientfica dos aspectos estruturais va-riveis para aqueles que so por assim dizeraspectos estruturais constantes. Embora seadmita que existe uma relao entre a fam-lia patriarcal e a estrutura do meio social emque ela se insere, para alcanar alguma coe-rncia em sua definio foi preciso abando-nar a pretenso de defini-la em termos defatores estruturais caractersticos de algumasde suas manifestaes histrico-culturais.

    A ORIENTAO SOCIOLGICANA INVESTIGAO DAS FUNESECONMICAS DA FAMLIA PATRIARCAL

    Visto isso, poderamos passar a outro as-pecto sugerido pela formulao do tema. Aaplicao do ponto de vista sociolgico in-vestigao das funes econmicas da fam-lia patriarcal, ainda que se defina o que se

    entende sociologicamente pelos dois concei-tos, pode estar sujeita a interesses cientficosparticulares. No programa atual da cadeira deSociologia I, ele se inscreve claramente comoum tema de histria econmica. E de fato noforam os socilogos mas os economistas daescola histrica que puseram pela primeiravez em evidncia a significao sociolgicade uma anlise da vida econmica sob osquadros sociais da famlia patriarcal. Doutrolado, foram os historiadores que se dedicam investigao da Europa medieval que des-cobriram as ligaes mais profundas de umcerto tipo de organizao da vida domsticacom a organizao da vida econmica. Seaceitssemos essa orientao, seramos leva-dos a discutir o tema concretamente tomandocomo ponto de referncia a situao histri-co-social que abrange um perodo bem deter-minado da histria europia, que abrange

    Fac-smile da prova

    de Florestan

    Fernandes para a

    Livre Docncia da

    Cadeira de

    Sociologia, realizada

    a 19 de outubro de

    1959, com o tema:

    "A Famlia Patriarcal

    e suas Funes

    Econmicas"

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    pe uma escolha rigorosa do tema a ser exa-minado. Sabe-se que a famlia patriarcal semanifesta em diversos nveis de civilizao eem variados tipos de organizao estruturalda sociedade. Alm disso, o valor original deuma dissertao diminui a olhos vistos quan-to mais ela se concentra em fenmenos de-masiado conhecidos no prprio campo deinvestigaes. Por isso, preferimos limitar oalcance do tema proposto, no que concerne sua discusso emprico-indutiva, propondo-nos a considerar a seguir, nos limites deproporcionalidade facultados pela condioem que nos encontramos, as

    FUNES ECONMICAS DA FAMLIAPATRIARCAL EM SO PAULO

    sabido que um dos fenmenos melhorestudados da vida social brasileira exata-mente o da famlia patriarcal. Pondo de ladoinvestigaes que encontraram menor resso-nncia, por causa da delimitao do tema oudo carter geral da prpria orientao. Al-guns trabalhos lograram alcanar grande no-toriedade e mereceram, pela prpria contri-buio que traziam, grande interesse entre osespecialistas. Entre eles, cumpre-nos pr emevidncia os que possuem maior relevnciapara a interpretao sociolgica (1):

    1o) Os estudos de Oliveira Viana. Esteautor deve ser considerado como o inegvelprecursor sociolgico na investigao dessetema. Sua obra se confina historicamente, masincide de preferncia nas manifestaes dafamlia patriarcal que poderiam nos interes-sar mais de perto e que dizem respeito ao suldo pas.

    2o) A obra de Gilberto Freyre, cujo alcan-ce sociolgico repousa na contribuio quenos legou para o estudo da famlia patriarcalno Brasil (inclusive sobre os seus aspectoseconmicos).

    3o) As obras em que so por assim dizeranalisadas as funes econmicas propria-mente ditas da famlia patriarcal no Brasil:so as obras de Caio Prado Jnior (Formaodo Brasil Contemporneo) e de Fernando deAzevedo (Canaviais e Engenhos na VidaPoltica do Brasil), que trataram igualmentedas relaes existentes entre a constituio

    aproximadamente o lapso de tempo entre ossculos XI-XV (ou, como fazem outros: aorganizao da famlia patriarcal romana).Alm desse, porm, a sociologia modernaelaborou dois pontos de vista diferentes: umconsiste em tomar cada uma das manifesta-es histrico-culturais da famlia patriarcal,analis-las detidamente com o propsito depr em evidncia seus aspectos peculiares ede elaborar uma anlise comparativa; outroconsiste em escolher uma das manifestaeshistrico-sociais do fenmeno, e analis-lasegundo as implicaes e os critrios da pr-pria investigao sociolgica. O fundamentolgico deste procedimento monogrfico de-riva da necessidade de lidar, para finsinterpretativos que almejam comparao,com investigaes particulares realizadaspelos prprios socilogos (e no por histori-adores, por economistas, por especialistas emcincia poltica e em direito comparado). Comisso, a comparao no negada, propria-mente falando; mas transferida para uma po-ca mais propcia, em que a sociologia tenhaacumulado por meios prprios e segundo asexigncias do esprito de investigao positi-va os seus materiais de trabalho.

    Ora, acontece que o primeiro tipo de con-siderao do fenmeno tem merecido umaateno cuidadosa por parte dos especialistas.E uma obra como a de Max Weber (Economiae Sociedade) chega a conter os resultados maisfrutferos e fecundos que se pretendesse alcan-ar por meio da investigao comparativa, talcomo ela pode ser desenvolvida no presentepelos socilogos. Como no pretendemos fa-zer aqui um resumo dos resultados a que che-gou aquele socilogo, inclinamo-nos a consi-derar o tema proposto em termos da segundaorientao assinalada. Ela apresenta o risco deconfundir-se com os antigos ensaios de hist-ria econmica; mas, por seu prprio esprito,distingue-se destes pelo fato de pretender apre-sentar uma explicao dos fatos que atenta emconexes funcionais e causais, em vez de in-sistir somente na caracterizao de seqnciase fases da vida econmica que assumem umpadro definido quando encaradas de uma pers-pectiva temporal.

    Coloca-se, porm, uma dificuldade. Essaorientao, por sua prpria natureza, pressu-

    1 Deixamos de mencionar aobra recente de Lus Martins(O Patriarca e o Bacharel),porque ainda no tivemosoportunidade de l-la na suaedio recente.

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    interna da famlia patriarcal em suas cone-xes com as condies da vida econmica noBrasil e da influncia exercida, com base nasituao econmica, pelos senhores ruraisbrasileiros e por suas famlias.

    4o) A anlise comparativa desenvolvidapor Emlio Willems (Assimilao e Popula-es Marginais no Brasil Meridional e AAculturao dos Alemes no Brasil), atravsdo confronto da organizao da famlia patri-arcal com a dos migrantes alemes, que colo-nizaram ou se fixaram em Santa Catarina eRio Grande do Sul.

    5) A nica tentativa de sntese que conhe-cemos e que procura compreender a organiza-o da famlia patriarcal tendo em vista ascondies de sua organizao, de sua desinte-grao e da formao da famlia conjugalmoderna, que coincide com a integrao denovos tipos de organizao da famlia em nos-so meio o ensaio de Antonio Candido, TheBrazilian Family (publicado parcialmentecomo captulo da obra editada por T. LynnSmith, Brazil: Portrait of a Half Continente).

    No estado atual da investigao sociol-

    Na foto do alto, Fernando Henrique Cardoso,

    e Samuel Noah Eisenstadt ( esquerda de Florestan),

    na Universidade de Mnster, Alemanha;

    acima, durante o 2 Congresso Sindical dos

    Trabalhadores do Estado de So Paulo, 1960,

    Caio Prado Jnior e Florestan esto em p,

    esquerda, na fila dos oradores

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    gica no Brasil poderamos analisar o temaproposto aproveitando os resultados das in-vestigaes dos autores citados. Mas tera-mos que repetir, inevitavelmente e semnenhum mrito pessoal o que escreveramesses autores, em particular Gilberto Freyre.Por isso, preferimos explorar o pouco queconhecemos sobre esse assunto, e que obti-vemos atravs de nossa prpria iniciativa,em investigaes cujos resultados j so par-cialmente conhecidos do pblico. Lamenta-mos no nos ser possvel aprofundar a an-lise dos problemas sugeridos. No nos dare-mos por satisfeitos se ela sugerir de formaadequada como enfrentaramos a tarefa depr em evidncia, sociologicamente, as fun-es econmicas da famlia patriarcal emSo Paulo.

    Na anlise que empreendemos sobre asrelaes entre economia e sociedade na evo-luo de So Paulo (sinteticamente exposta,ainda que de forma superficial, no primeirocaptulo do trabalho escrito em colaboraocom Roger Bastide, o qual captulo seintitula: Do Escravo ao Cidado*) ficaevidente que h fases estruturalmente dis-tintas na histria econmica do nosso esta-do. Contudo, todo um longo perodo que vaido sculo XVI aos fins do sculo XIX apre-senta uma relativa homogeneidade social queno afetada pelas alteraes que se produ-zem na organizao da vida econmica. Osncleos de atividades econmicas fundamen-tais se alteram (passa-se sucessivamente doapresamento para a minerao e desta para alavoura de subsistncia e depois para a ex-plorao propriamente colonial do caf), comeles se transformam substancialmente ospadres de instituio e de organizao dosistema de trabalho (passa-se da exploraodominante do trabalho escravo indgena paraa do trabalho escravo africano e depois explorao combinada do trabalho escravonegro e do trabalho livre), sem que a estruturasocial sofresse nenhum abalo realmente pro-fundo. que essas transformaes se opera-ram sem pr em jogo os prprios princpiosda organizao social: a posse de escravos ea explorao de grandes extenses territoriais.A sociedade transformara-se nos aspectosexteriores de sua economia, mas permanece-

    ra relativamente invarivel em sua substn-cia a propriedade territorial e a exploraodo trabalho servil.

    Esse background sugere, naturalmente,que na anlise das funes econmicas (es-pecficas) da famlia patriarcal preciso se-parar os aspectos que revelam certa estabi-lidade dentro da instabilidade geral da evo-luo do sistema de relaes sociais de SoPaulo, dos que se transformam continuamen-te, atravs dos diferentes perodos ou ciclosda histria econmica de So Paulo. E indi-ca, em segundo lugar, a convenincia de as-sinalar concretamente as imputaes feitasfuncionalmente, quanto s relaes da eco-nomia paulista com a organizao da fam-lia patriarcal. A isso limitaremos a nossadissertao, por julgarmos que a est o es-sencial em uma anlise como a presente.

    Quanto s funes econmicas, que po-deramos considerar constantes, precisoconsiderar trs aspectos distintos o que afamlia patriarcal significou em nosso meiodo ponto de vista adaptativo e do ajustamen-to recproco dos homens como condio davida econmica; o que ela significava comomeio de classificao social e de ajustamen-to dos indivduos a um sistema senhorial eescravocrata de relaes de produo; e asua funo propriamente ativa nadinamizao da vida econmica. Quanto aoprimeiro ponto, bvio que a famlia patri-arcal no se explica em So Paulo (encaradasociologicamente) seno pelas condieseconmicas que favoreceram e tornarampossvel a transferncia e revitalizao deum padro de organizao da vida domsti-ca que se encontrava em desagregao naEuropa. A produo baseada na mo-de- obraescrava, o gnero de atividade econmica(apresamento, lavoura extensiva de produ-tos de subsistncia ou depois dos produtoscoloniais e a grande propriedade territorial)e a facilidade (relativa) de obter mo-de-obraescrava parecem ter agido como fatores deperpetuao e de integrao da famlia pa-triarcal ao novo meio geogrfico, econmi-co e humano. Sob este aspecto, somos leva-dos a definir como funes econmicas es-pecficas da famlia patriarcal um conjuntode atividades que repousavam em sua estru-

    * Florestan Fernandes se refe-re ao que viria a ser o primeirocaptulo do livro de RogerBastide e Florestan Fernandes:Brancos e Negros em SoPaulo (Ensaio Sociolgico so-bre Aspectos da Formao,Manifestaes Atuais e Efeitosdo Preconceito de Cor na So-ciedade Paulistana), 2. edi-o, So Paulo, 1959, pp. 1-76. Esse captulo foi escrito porFlorestan Fernandes e publi-cado originalmente na revistaAnhembi (bol. X, nmero 30,So Paulo, 1953). O conjuntodo livro teve uma primeira edi-o como parte de obra maior:Roger Bastide e FlorestanFernandes (organizadores),Relaes Raciais entre Negrose Brancos em So Paulo, Edi-tora Anhembi, So Paulo, 1955(N. de J. S. M.).

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    tura e em seu funcionamento. Tais ativida-des so as que contribuam para a adaptaodos brancos vida nos trpicos, mentali-dade de explorao mercantil do trabalhohumano sob a forma de escravizao de enteshumanos e idia de que o ajustamento inter-humano podia se ajustar a outros padres,que no existiam mais em plena vigncianas sociedades europias. A famlia patriar-cal forneceu assim o prprio arcabouo donovo regime social, em que a divisoestamental foi completada por uma divisoem castas: em sua estrutura ela continha oprprio modelo da sociedade inclusiva, queela representava como um pequeno mundoautnomo e completo. Os seus trs ncleosfundamentais (o ncleo legal, o ncleo dedependentes e o ncleo de escravos) conti-nham todas as situaes sociais possveis nasociedade escravocrata brasileira e ofere-ciam todos os estmulos que alimentavamos ideais de vida da camada senhorial, suaspretenses de direito absoluto, suas aspira-es de nobreza e sua tica social, que abran-gia uma vasta gama de diferenciao doshomens e do seu destino social. Nesse planode relaes adaptativas e de ajustamentosdos homens uns aos outros, a famlia patri-arcal desempenhou sempre a mesma fun-o, que estritamente econmica no queconcerne s condies de existncia mate-rial que repousavam em semelhante estru-tura social.

    Quanto ao segundo ponto, ele evidentee se inclui parcialmente nos processos jmencionados. De fato, desde o sculo XVI aclassificao social dos indivduos e sua dis-tribuio no sistema de ocupaes sociaisdepende diretamente da prpria posio dossujeitos na estrutura da famlia patriarcal.Esta prov o sistema econmico mediante acombinao de preceitos tradicionais comargumentos pecunirios o que o membrodo ncleo legal da famlia patriarcal no podefazer, faz por ele o seu dependente e, princi-palmente, o seu escravo. Essa combinao(que se repete em outros casos anlogos) ofe-rece barreiras mais ou menos conhecidas expanso econmica, tanto no que concerne diviso do trabalho e especializao, queao desenvolvimento da produo e da troca.

    Era porm uma decorrncia dessa funo dafamlia patriarcal (que, alis, variou nos pe-rodos de histria econmica de So Paulo)restringir a operao dos mecanismos da vidaeconmica, que s podia expandir-se, assim,dentro dos limites prprios a uma economiasem mercado e posteriormente a uma eco-nomia baseada na explorao de produtostropicais sob regime escravocrata.

    Quanto ao terceiro ponto, claro que afamlia patriarcal s operava dentro de cer-tos limites como fator restritivo da vidaeconmica. Vista luz da poca histrico-social que nos interessa, bvio que elaoperava como um agente de dinamizao davida econmica. A experincia histricademonstra como os imperativos surgidos ouimpostos pela concepo patriarcal do mun-do puderam ser atendidos sob atividadeseconmicas distintas (apresamento, lavourade subsistncia e explorao de produtos tro-picais). Desse modo, a defesa de uma situa-o econmica e socialmente privilegiadaatuou contra as normas legadas pela tradi-o e contra os preconceitos dos paulistaspor vrias atividades econmicas senhoriais( o que atestam, principalmente, os depoi-mentos legados ou coordenados peloDesemb. Machado de Oliveira).

    Falta-nos tempo para examinar os ele-mentos variveis. Mas podemos apont-lossucintamente:

    1o) a funo de equipar a camada senho-rial com os meios legais e propriamente eco-nmicos das atividades econmicas bsicas;

    2o) restringir o acesso de indivduos damesma raa ou indivduos mestios masde outros estamentos situao econmicada camada senhorial;

    3o) restringir a competio e os confli-tos no prprio nvel senhorial, restringir oexerccio de atividades no-nobilitantes amembros da mesma raa de outrosestamentos e a representantes de outraraa e abrir critrios plsticos de classi-ficao a todos os indivduos pertencentesao ncleo legal da famlia. Isso permitiauma renovao peridica de seus quadroshumanos sem pr em risco o exerccio dadominao senhorial, confinada assim auma s camada social.