ARTIGO_MOTA, BOSI, COHN. Florestan Fernandes, História e Histórias

Embed Size (px)

DESCRIPTION

RESUMOEm depoimento realizado para o Museu da Imagem e do Som, tendo como interlocutoresAlfredo Bosi, Carlos Guilherme Mota e Gabriel Cohn, Florestan Fernandes fala de suarajetória intelectual e política, desde os primeiros anos de formação acadêmica. O ingresso naUSP e a luta pelo fortalecimento da universidade; a campanha em defesa da escola pública; odesenvolvimento da sociologia no Brasil e de sua obra como sociólogo; a luta pelademocracia e a luta pelo socialismo; o problema dos partidos e as perspectivas de mudançada sociedade brasileira são alguns dos temas abordados por Florestan Fernandes nestedepoimento que, embora realizado há quinze anos, mantém-se extremamente atual.

Citation preview

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN*

    RESUMO Em depoimento realizado para o Museu da Imagem e do Som, tendo como interlocutores Alfredo Bosi, Carlos Guilherme Mota e Gabriel Cohn, Florestan Fernandes fala de sua rajetria intelectual e poltica, desde os primeiros anos de formao acadmica. O ingresso na USP e a luta pelo fortalecimento da universidade; a campanha em defesa da escola pblica; o desenvolvimento da sociologia no Brasil e de sua obra como socilogo; a luta pela democracia e a luta pelo socialismo; o problema dos partidos e as perspectivas de mudana da sociedade brasileira so alguns dos temas abordados por Florestan Fernandes neste depoimento que, embora realizado h quinze anos, mantm-se extremamente atual. Palavras-chave: Florestan Fernandes; sociologia; Universidade de So Paulo; ensino pblico; democracia; socialismo.

    SUMMARY Florestan Fernandes, in a conversation involving Alfredo Bosi, Carlos Guilherme Mota and Gabriel Cohn and taped by So Paulo's Sound and Image Museum, speaks of his intellectual and political life, going back to the early years of his academic training. Among the topics brought up by Fernandes, a few stand out: his hiring by the University of So Paulo and his struggle to strengthen the university; his campaign defending public education; the develop- ment of sociology in Brazil and his own contribution as sociologist; the struggles for democracy and socialism; the problems with political parties and the perspectives for change in Brazilian society. Though taped fifteen years ago, Florestan Fernandes' account remains extremely up-to-date. Keywords: Florestan Fernandes; sociology; University of So Paulo; public education; demo- cracy; socialism.

    "Eu no posso criar a histria do meu pas, eu posso quando muito participar dela." Depende do que se entende por "quando muito"; especialmente quando o autor da frase Florestan Fernandes, esse homem que jamais soube conter as duras exigncias que impe a si prprio. E no se trata de frase ocasional, isolada. Ela encerra um depoimento dos mais significativos, no qual essa nfase na participao fornece o fio que permite entrelaar vida e obra.

    Reunido numa tarde de outono de 1981 no ambiente oferecido pelo Museu da Imagem e do Som com trs colegas de reas de trabalho diferentes, que compartilham a formao no contato direto com sua obra, Florestan expe suas idias e posies. Perfeito, dir algum, mas isso foi h catorze anos. Ser que Novos Estudos est nnnnnnnnnnnn

    JULHO DE 1995 3

    (*) Este depoimento foi reali- zado no Museu da Imagem e do Som (MIS), em So Paulo, no dia 26 de junho de 1981. Carlos Guilherme Mota pro- fessor de histria contempor- nea da Universidade de So Paulo; Alfredo Bosi professor de literatura brasileira da Uni- versidade de So Paulo; e Ga- briel Cohn professor de so- ciologia da Universidade de So Paulo.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    fazendo a arqueologia das posies daquele que foi o mestre de vrios fundadores do Cebrap? Quem conhece o nosso entrevistado sabe que no assim. Se participao uma palavra-chave para definir sua conduta pblica, a contrapartida disso na sua conduta privada a coerncia. E uma parte do encanto do texto que aqui se apresenta consiste precisamente nisto: do ponto de vista das posies nele sustentadas a entrevista poderia ter sido feita ontem. Claro, se fosse ontem talvez se pudesse pedir a Florestan uma reflexo sobre sua experincia parlamentar (mas essa reflexo certamente est sendo feita, em profundidade). Talvez algumas questes mais especficas pudessem ser dirigidas sua clssica anlise sobre a revoluo burguesa no Brasil (cujos vinte anos de publicao se comemoram neste ano). Mas esta, cuja segunda edio acabara de sair, estava muito clara na sua cabea exatamente naquele momento, como demonstra a entrevista. Nada de arqueologia, portanto, mas um documento vivo, atual e, sobretudo, solto e mesmo alegre.

    Para quem participou daquele encontro, contudo, impossvel no conside- rar um ou outro ponto que poderia ter sido examinado; especialmente quando no o foi em qualquer outra oportunidade. o caso de um episdio exemplar, em que se cruzaram com grande nitidez a participao de Florestan na vida acadmica e suas concepes sobre alguns problemas bsicos da poltica nacional. Refiro-me ao debate com Guerreiro Ramos nos anos 50 e 60; ou, formulado em termos institucio- nais, entre um representante eminente da USP e um representante eminente do ISEB.

    Nesse debate defrontaram-se duas concepes opostas sobre o papel do intelec- tual mais especificamente, do cientista social na sociedade. A dimenso poltica da atividade cientfica constitui a questo de fundo, com respostas contras- tantes de lado a lado. Onde Florestan v cincia institucionalizada conforme padres universais de desempenho Guerreiro v a participao dos intelectuais na organizao de uma conscincia social conforme s peculiaridades nacionais na correspondente "fase" histrica; onde Florestan, na perspectiva do inovador e organizador, v obstculos estruturais na sociedade e adota uma posio institucio- nal, Guerreiro, mais prximo dos centros nacionais de deciso, v obstculos nos agentes do poder e adota uma posio mais diretamente poltica; em conseqncia, onde um busca a mudana estrutural das condies sociais de existncia o outro volta-se para a mudana da conscincia nacional; onde Florestan enfatiza a cincia social aplicada e o planejamento racional Guerreiro defende a construo de uma ideologia eficaz para um projeto nacional. Em consonncia com essas diferenas bsicas (cujo sutil jogo ao longo do debate certamente mereceria um exame mais detido) ambos formulam meios diversos para atingir metas tambm discrepantes. Para Guerreiro importa um meio poltico por excelncia, a substituio do mero predomnio de classe pela capacidade dessa mesma classe de assumir a direo efetiva da sociedade, tendo em vista o objetivo que lhe importa, a nao autnoma (vale dizer, no-colonial). J para Florestan a preocupao central com as mudanas estruturais na sociedade mediante tcnicas sociais adequadas, visan- do a constituio de uma sociedade democrtica (vale dizer, no-oligrquica e muito menos autocrtica). fora de dvida que nem Guerreiro era avesso democracia nem Florestan queria uma nao heternoma. Mas as estratgias propostas e os objetivos no poderiam ser mais contrastantes; at porque respondiam a diferenas de base nas situaes dos interlocutores. Guerreiro via o mundo com olhos polticos, era muito mais um homem de partido e voltado para a mobilizao de apoios na sociedade do que Florestan, que, neste debate, figurava mais como o profissional acadmico engajado, voltado para a participao mas pouco disposto a nela dispensar o recurso ao conhecimento bem-fundado. Interessante, claro, que nn

    4 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    Florestan veio a tornar-se homem de partido, mas sem abrir mo de suas posies de fundo, expostas nesta entrevista.

    Por que lembrar aqui, e ademais de modo to esquemtico, esse debate que, pela envergadura dos seus participantes, pelo momento em que se deu e pela persistente relevncia dos temas tratados, bem mereceria outro tratamento? No s para lamentar que naquele encontro (e depois) no tenha sido solicitada uma reflexo de Florestan a respeito. Mas para lembrar que naquele debate, e nos seus desdobramentos na obra de Florestan, fica patente que havia nele, especialmente a partir dos anos 50, uma explcita preocupao com um tema que por vezes visto como tendo sido negligenciado pelo pensamento de esquerda at o perodo ps-1964: o da urgncia da democracia. Verdade que h a uma concepo mais social do que poltica de democracia: a ateno incide mais sobre as condies sociais e histricas relativas formao generalizada de atitudes e valores democrticos e, portanto, da construo de uma "ordem social democrtica" do que sobre as instituies que sustentam as prticas polticas correspondentes. E uma concepo radical. "Ou admitimos que o povo constitui a fonte dos dinamismos essenciais ao equilbrio e ao aperfeioamento da democracia, e trabalhamos nessa direo, ou nos mante- remos 'atrasados' e 'dependentes' em relao s naes de que recebemos um progresso' de teleguiados", escrevia ele em 1962. Novamente, no se trata de arqueologia. So posies desse tipo que atravessam, em diferentes registros, este depoimento, e a atuao de Florestan Fernandes at hoje. (Gabriel Cohn)

    Carlos Guilherme Mota Professor, a questo da democracia sempre o acompanhou, s vezes mais agudamente, s vezes menos agudamente. Para esse depoimento eu tenho a impresso que seria importante remontarmos a sua trajetria buscando os momentos em que a questo da democracia foi se colocando. Eu ento perguntaria se foi na Faculdade de Filosofia l pelos anos 40.

    Realmente, o meu contato poltico na sociedade brasileira no foi com a democracia, foi com a ausncia da democracia. Na realidade quando eu iniciei o meu curso de madureza ns j estvamos sob uma ditadura, a do Estado Novo. Quando eu entrei para a Faculdade de Filosofia o Estado Novo estava esplendoroso. Posteriormente, a nica possibilidade que eu tinha de luta poltica seria a de me engajar no movimento estudantil e na luta contra o Estado Novo. Eu entrei muito mais atravs de movimentos de intelectuais que no eram apenas de estudantes e professores. Eu achava o grmio da Faculdade daquela poca pouco srio, ele no teve um contato slido com a parte subterrnea do movimento estudantil. Quando eu entrei como universitrio j colaborava em um jornal, em companhia de jornalistas, advogados, inclusive um professor da Faculdade de Direito e alguns professores da Filosofia. A luta contra o Estado Novo era um movimento subterr- neo que encontrava forte apoio nos vrios setores da sociedade, porque naquele momento a burguesia estava dividida com relao centralizao de poder e havia setores dispostos a lutar contra a ditadura. O Partido Comunista tinha uma boa infra- estrutura clandestina e com isso o movimento tinha boa expresso. Nesse processo acabei me filiando formalmente Quarta Internacional, qual eu pertenci durante algum tempo, quando eu cheguei concluso de que no tinha sentido politica- mente o meu trabalho, a me afastei. De modo que a luta pela democracia, nesse nnnnn

    JULHO DE 1995 5

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    sentido limitado da democracia que possvel sob o capitalismo, na realidade s comea abertamente depois que o Estado Novo se desagrega, em 44. A eu avancei para... existem entrevistas que mostram um estilo muito violento eu me lembro de entrevistas que dei para a Folha que no eram realmente sbrias. Posteriormente tentei ficar fiel ao socialismo revolucionrio, mas no havia ambiente propcio na sociedade brasileira. Ento o meu partido acabou sendo a Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. Mas no foi uma luta pela democracia, foi uma luta contra a ditadura. Esse parece que um parmetro brasileiro.

    Carlos Guilherme Mota possvel o senhor identificar um grupo ou gerao com a sua trajetria?

    medida que o meu trabalho cresceu, eu acabei plantando relaes muito boas entre os estudantes. A Paula Beiguelman, a Maria Isaura [Pereira de Queiroz], o Renato Jardim Moreira e principalmente o Fernando Henrique Cardoso, o Octavio Ianni, todos esses que acabaram trabalhando comigo, Maria Silvia de Carvalho Franco, Maria Alice Foracchi, que foi minha amiga ntima e extraordinria.

    Na verdade, eu acabei construindo aos poucos um meio que lutou pelo crescimento da prpria instituio. Fora da universidade os contatos eram mais fortuitos. So Paulo no uma cidade polida, civilizada. a cidade da civilizao industrial. Isso significa que as pessoas convivem pouco, significa que as pessoas trabalham, tm uma fobia de auto-realizao, no tm um padro de vida desfrutador. Ento, fora da Universidade eu fiz relaes realmente srias com o Erminio Sachetta, com vrios jornalistas, alguns companheiros que vinham do curso de madureza, como o Cunha Batista, que era jornalista, o Manoel Lopes Oliveira Neto e outros de uma gerao bem mais velha, que me apoiaram muito, que tambm estavam nos Associados. Das pessoas de mais nome, o Srgio Milliet e o Srgio Buarque foram pessoas que mostraram uma simpatia muito ativa na minha direo. O Caio Prado foi meu amigo desde logo, ns nos conhecemos no movimento subterrneo. O [Artur] Neves, o Caio e outros foram contatos pr- intelectuais e subpolticos, vamos dizer. Agora amigos que ficaram ntimos nessas relaes foram muito mais o Antnio Cndido no meu prprio grupo de referncia de idade, o Srgio Buarque numa distncia maior, Fernando de Azevedo, Roger Bastide e todo o pessoal que trabalhava comigo na cadeira esses foram os verdadeiros companheiros; companheiros de contato cotidiano. O Gabriel est aqui e sabe como convivamos l. Ali realmente era uma comunidade, ali estava a nossa vida.

    Carlos Guilherme Mota O Hobsbawm, h dois ou trs anos, comentando a sua produo, dizia que o Florestan Fernandes est entre os dez maiores cientistas sociais do mundo, hoje. Esse comentrio sempre me intrigou e volto aqui a coloc- lo porque nesse tipo de depoimento eu acho que importante ir tentando mesclar a experincia pessoal, a biografia propriamente com a trajetria intelectual, com respostas polticas.

    A questo da periodizao muito importante para o historiador e talvez por isso fosse til que ns direcionssemos mais as nossas perguntas. Eu tentaria dividir a sua trajetria numa fase primria, inicial da vida que comea com a questo da imigrao, o encontro com So Paulo, a praa da S at a Faculdade de Filosofia. A eu colocaria um primeiro momento de sua trajetria. A segunda fase seria de 1945 aproximadamente, depois de sua formatura, a 1964, quando exatamente foi publicado A integrao do negro na sociedade de classes1. O senhor j catedrtico nnnn

    6 NOVOS ESTUDOS N. 42

    (1) A integrao do negro na sociedade de classes. Primeira edio: So Paulo, FFLCH-USP, 1964; segunda edio, em dois volumes: So Paulo: Dominus- Editora da USP, 1965; terceira edio, em dois volumes: So Paulo: tica, 1978. Todas as referncias bibliogrficas da obra de Florestan Fernandes que acompanham esta entre- vista foram extradas de D'In- cao, Maria ngela, org. O saber militante. Ensaios sobre Flores- tan Fernandes. So Paulo: Unesp/Paz e Terra, 1987.

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    da Faculdade de Filosofia, j estando num processo de ampliao do debate intelectual e poltico, aps a campanha da escola pblica etc.

    De 1964 a 1969, talvez se pudesse verificar um aprofundamento das suas reflexes no s nos estudos de estrutura social propriamente como vinha fazendo, mas preocupado mais intensamente com a questo da dependncia e tentando a questo do imperialismo, tentando associar de maneira mais sistemtica os estudos de estrutura social interna com um tipo de dependncia. Em 1969, vem a aposenta- doria sua e de vrios colegas da Faculdade de Filosofia. Eu tenderia a verificar que a partir de ento a sua problemtica se agudiza e se politiza. Eu diria at que de certa maneira, para ns que ficamos na universidade, a sua sada foi pssima, mas para a sua obra foi tima. Essa tentativa de periodizao talvez pudesse nos ajudar em nossas perguntas.

    Alm disso h fatos de sua biografia que seria interessante trazer de volta, como, por exemplo, quem Vicente, ou seus encontros com Jlio de Mesquita Filho, no s os telefonemas semanais mas tambm o clebre encontro de Nova York.

    Bem, voc repe a questo da biografia. Na verdade eu nasci em So Paulo, a imigrao foi dos meus avs, de minha me, dos meus tios, que vieram tangidos pela fome de Portugal. Se voc falar com minha me sobre as razes da imigrao ela vai dizer claramente como uma portuguesa do campo: "ns viemos para c porque ns no tnhamos o que comer!". Essa era a verdade. Minha famlia aqui foi a histria da imigrao vista mitologicamente. Na verdade, para um milho de pessoas que serviram de azeite para que esta mquina funcionasse h um que realiza um destino mpar. Na minha famlia ningum realizou um destino mpar, se algum realizou este destino mpar fui eu. uma histria dramtica de desagrega- o familiar, de sacrifcios, de trabalho duro; e eu fui arrastado por essa corrente. Eu prprio nasci em So Paulo. Minha me era a empregada, a criada na casa de Ermnia Bresser de Lima, que foi minha madrinha, e eu fiquei Vicente porque a minha me deu o nome de Florestan e a minha madrinha dizia que Florestan no era nome para mim, era nome de alemo. E eu fiquei Vicente para a famlia de minha madrinha, e para a minha prpria famlia que achou muito estranho chamar algum de Florestan.

    Aos seis anos eu comecei a trabalhar, no fiz ensino primrio seno parcialmente, s os trs primeiros anos num pequeno perodo em que eu estive numa outra escola perto da casa da minha madrinha. Mais tarde eu fiz o curso de madureza, fiz tudo de uma vez. Realmente a minha histria muito sinttica, e com nove anos eu ganhava tanto quanto um adulto naquela ocasio, engraxando, fazendo servios improvisados e outras coisas. H pouco interesse nisso. O fato que, embora eu no estudasse organizadamente, pelo fato de ter nascido na casa de dona Ermnia Bresser de Lima aprendi o que era livro, a importncia de estudar e com pouco mais de seis anos adquiri uma disciplina...

    Carlos Guilherme Mota Que bairro era? Na rua Bresser mesmo, Celso Garcia com Bresser numa grande casa l. Agora,

    um dos padrastos que tive, Joo Gonalves de Carvalho, era um garom e era um homem culto que lia muitos livros. Ento, combinando a influncia de minha me e a influncia dele, eu estudava no Feliciano de Carvalho, no Trajano, at no Nobre, a fsica do Nobre. Eu li muita coisa. O Mario Wagner [Vieira da Cunha] descobriu o meu talento oculto e me deu muitos livros, e vrios fregueses tambm. Eu conhecia muita histria. Depois o madureza foi funcionar perto do Bidu e eu fiz contato com os professores, engatei o curso. O Manoel Lopes de Oliveira Neto me nnnn

    JULHO DE 1995 7

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    aconselhou a fazer o tiro de guerra porque disse que depois eu no poderia... Ele um dos meus protetores. O Manoel Lopes de Oliveira Neto, a Ivana Piano de Castro, Jos de Castro Manso Preto e a Ermnia Bresser de Lima foram meus protetores. Aqui parece uma sociedade fiorentina, sem protetores a pessoa pifa.

    O fato que eu aprendi muito sozinho e quando fui para o curso de madureza foi timo porque aquilo disciplinou o meu trabalho intelectual e eu j tinha potencial de informaes muito grande. Quer dizer que em trs anos fiz o equivalente de sete anos. Quem fazia o curso de madureza de acordo com o artigo 100 tinha direito de fazer exames para ingressar num curso no colgio que era junto universidade era o pr e tinha tambm direito de fazer habilitao. Eu fiz as duas coisas porque eu no confiei na minha fora e me classifiquei em segundo lugar entre milhares de pessoas no pr e em quinto lugar na Cincias Sociais entre seis candidatos. Havia trinta vagas, 29 candidatos e os franceses deixaram passar seis. Era um exame pente fino. Quer dizer que foi uma boa experincia.

    O curso que eu fiz era um curso inadequado para c. H uma viso elitista do que foi a Faculdade de Filosofia e uma viso, vamos dizer, concreta. O que era essa faculdade para os pobres coitados que viviam e saam do nosso mundo cultural? No saam por cima, porque uma grande parte das pessoas que faziam uma certa assimilao de progresso de pas central eram pessoas localizadas na vida alta, que no precisavam fazer cursos, iam l ouvir conferncias, fazendo um desdobramento da universidade francesa aqui. Agora eu era uma espcie mais pobre do nosso meio cultural. Eu no sabia francs, o que eu tinha aprendido de francs e ingls dava para passar no exame, no dava para ler um livro, um artigo, quanto mais ouvir um curso de um professor francs, ou ouvir um curso de estatstica em italiano. Realmente havia uma falta de conexo entre a idia da Universidade e o potencial concreto. Isso foi bom. Por qu? Porque no se usavam mamadeiras. Os assistentes no davam assistncia nenhuma. O fato que eles prprios estavam intimidados.

    O trabalho que teve mais xito naquela ocasio foi a pesquisa sobre folclore, em 1941, no ano em que eu entrei para a Faculdade. A professora encarregada de orientar no soube orientar, eu que encontrei o meu caminho, eu que fiz a pesquisa e ela ainda ficou assustada, achava que eu no podia fazer um trabalho daqueles, que aquilo no era folclore. Foi o professor Bastide, depois, que reconheceu o valor do trabalho e quis publicar. Da vem a relao com o Srgio Milliet, pelas mos do Bastide.

    Ento ns fomos obrigados a fazer um esforo enorme, um esforo que era basicamente de leitura, o que fazia da Faculdade de Filosofia, para esses pobres estudantes, uma mistura de curso ordenado, organizado e de autodidatismo, porque todos ns ramos autodidatas, dependamos muitos das bibliotecrias e at dos livreiros que estavam a par das bibliografias up to date. Inclusive o bibliotecrio da Faculdade de Filosofia, que muitas pessoas achavam antiptico, ele guardava livros para mim, ele me ajudava. Na Biblioteca Municipal, na biblioteca da Faculdade de Direito eu tinha tambm minhas relaes, e os livreiros, inclusive o nio Guazelli, que pouco depois montaria sua prpria livraria, estava sempre muito informado sobre os ltimos ttulos e disposto a importar e vender. Ento, era uma formao tpica de uma zona colonial. Ns j ramos um pas independente, mas isso acontecia em todo o mundo colonial da Europa. Com todo o nosso avano, com uma Faculdade de Medicina j slida, com uma Escola Politcnica tambm tida como de ponta, com uma Faculdade de Direito com prestgio nacional. Na verdade esse desabrochar foi algo muito pouco ordenado e que criou essa dualidade, muito produtiva porque de uma hora para outra em qualquer setor de conhecimento ns nnnnnn

    8 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    estvamos realmente na metade do sculo XX. Se no acontecesse isso ns continuaramos com um dbito muito grande com o processo recente de desenvol- vimento cultural.

    S para se ter uma idia do que era isso, o professor Roger Bastide, no primeiro semestre na cadeira dele, pedia que se fizessem dois trabalhos. Um sobre folclore, uma pesquisa que depois acabou saindo em livro, Folclore e mudana social na cidade de So Paulo2, um material que eu colhi, umas elaboraes que eu fiz na ocasio e posteriormente. O segundo era um pequeno trabalho metodolgi- co, "A crise causal na explicao sociolgica". Naturalmente o que eu conhecia de Filosofia eu no fiz curso de Filosofia no madureza eu conhecia de leituras antigas de autodidata. Eu tinha que formar uma bibliografia nas bibliotecas daquele jeito que eu j falei, usando fichrios, orientao de bibliotecrios e fiz um ensaio de umas dez, doze pginas. Ele fez um comentrio abaixo dizendo que tinha pedido uma discusso sistemtica do assunto e no uma reportagem, me deu nota 4,5. Isso para ter uma idia, quer dizer, os professores franceses no entendiam a situao em que estvamos e por isso exigiam e ns tnhamos que alcanar. E j no fim do mesmo ano eu consegui naquela cadeira a melhor nota do grupo, com um trabalho que ele elogiou em pblico, o que mostra a rapidez com que ns avanamos. Sem a relao maternal, sem mamadeira, o estudante cresce, amadurece.

    Agora, isso no impediu que as coisas fossem difceis para mim. Quando voc fala em perodos, naquele ensaio que est publicado na Sociologia do Brasil3, "Em busca de uma sociologia crtica e militante", eu fao uma periodizao a partir de uma viso interior. O perodo de formao no se esgota com a formatura. Na verdade um curso em que h uma superposio de ensino sistemtico e de autodidatismo cria muitas inseguranas, muitas incertezas. Quando eu fui convida- do para ser assistente, eu tive sorte de ter trs oportunidades de trabalho e me fixei na que era oferecida na cadeira de Sociologia. Eu cheguei a dizer: professor Fernando Azevedo, eu no sou responsvel pelo que vai acontecer. Eu sou aluno, o senhor est convidando um aluno para ser assistente, e isso est errado. No fosse o Antnio Cndido, eu teria perdido o convite. Agora, como eu poderia me converter de aluno a professor num passe de mgica, aquelas deficincias todas estavam muito presentes, eu sabia. Tanto que eu acho que a Faculdade de Filosofia foi formidvel porque ela dava a ns a conscincia da ignorncia, da impotncia. Ento eu submergia a um trabalho enorme, ficava horas e horas na Biblioteca Municipal, a ponto de o Antnio Cndido dizer que a minha vantagem sobre os outros estava no volume da minha bunda, tinha mais tempo para ficar sentado e agentava.

    Foi um perodo longo, duro, no qual eu no resolvi naturalmente todos os problemas que deveria enfrentar, mas resolvi as dvidas necessrias para poder trabalhar com os estudantes. O primeiro curso que eu dei no foi desastroso porque modestamente eu peguei, no segundo semestre da cadeira de Sociologia II, como foco de discusso As regras do mtodo sociolgico e fiquei um semestre discutindo. A Maria Isaura fez esse curso comigo, devia ser tedioso, terrvel para os estudantes, mas ainda assim no era o que eu fui fazer em seguida, porque no ano seguinte eu dei o curso de Introduo e levei para os estudantes as preocupaes que eu tinha.

    A Faculdade tinha crescido em prestgio e as classes eram grandes, eu comeava com 45-50 estudantes, quando chegava na metade do semestre eu tinha 25 ou menos, mas a era milho que iria virar pipoca. Os outros batiam em retirada. Por que acontecia isso? Porque eu levava para os estudantes os problemas que eu no tinha resolvido. Eu estava lendo autores que sequer os franceses tinham usado. nnnn

    JULHO DE 1995 9

    (2) Folclore e mudana social na cidade de So Paulo. So Paulo: Anhembi, 1961; segun- da edio: Petrpolis: Vozes, 1979.

    (3) A sociologia no Brasil. Con- tribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977; segun- da edio: 1980.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    Eles no eram muito de usar autores que acabaram sendo bsicos no meu ensino. Os estudantes no tinham condies de enfrentar aquilo e os que no tinham realmente uma vinculao sria com as aspiraes de carreira ou de estudo migravam, saam dali.

    Esta primeira fase se esgota praticamente com a pesquisa sobre relaes raciais que eu fiz em colaborao com o professor Roger Bastide, em 514. Eu tive sorte porque acabei tendo uma ampla experincia de pesquisa. Graas ao folclore, acumulei experincia concomitante com a pesquisa de reconstruo, de gabinete e em pesquisa de campo, material colhido com crianas, com adultos etc. E depois participei de algumas pesquisas na Antropologia em colaborao com outros colegas e eu prprio encetei uma pesquisa sobre a aculturao dos filhos de libaneses. Mas no fim acabei desistindo porque eu vi que a Universidade ainda no estava madura para absorver um trabalho desses. Colhi muito material, tenho muito material em casa. Quem fez o projeto de pesquisa sobre relaes raciais fui eu, quando eu fui fazer aquilo eu j estava realmente no ponto para comear, a eu poderia ser convidado para ser assistente ou de ensino ou de pesquisa ou as duas coisas. Vocs querem insistir ainda sobre a dcada de 50?

    Carlos Guilherme Mota Sobre esse perodo ainda, eu gostaria que o senhor localizasse A funo social da guerra5.

    O problema que voc est colocando exige uma reflexo mais ampla. A Faculdade de Filosofia tinha como parmetro uma experincia, uma tradio europia, e a Escola de Sociologia e Poltica, uma orientao e uma tradio mais norte-americana. Na Faculdade de Filosofia, de acordo com os padres de auto- referncia, ns seramos mais eruditos, na outra as pessoas seriam um pouco mais preocupadas com o fact finding, a informao superficial, no crtica etc. Mas eu fiquei muito curioso de saber qual era a formao que se dava na Escola de Sociologia e, como ns no possuamos ps-graduao, eu tentei fazer ps- graduao l. No havia uma atitude muito favorvel aos estudantes de filosofia na Escola Livre de Sociologia e Poltica. A minha primeira tentativa falhou, eu j tinha uma certa notoriedade poltica por causa dos artigos de jornal que comearam a sair em 43 e em 44, j tinha sido convidado para ser assistente, quer dizer que no havia muita vontade de me absorver l. J tinham absorvido a Gioconda [Mussolini], a Lucila [Hermann], e o esforo que o Donald Pierson fazia era tentar limitar o campo humano da Escola Livre de Sociologia e Poltica. A primeira tentativa em 44 falhou e em 45 eu me dediquei ao estudo de ingls francs no era problema e passei e eles no puderam me recusar. E houve uma coisa curiosa, entre os trabalhos que eu tive que fazer que foram pedidos pelos professores, havia um pedido do professor Baldus para fazer uma avaliao do material do Gabriel Soares para o estudo das sociedades aborgines. Quando eu fiz essa avaliao ele ficou surpreso. Ele leu o trabalho e disse: "Olha, Florestan, pelo que voc diz a, se tudo isso que voc diz a real, o Mtraux no entendeu, ele no pegou os problemas centrais, ele pegou s a parte da cultura material, da religio, e deixou o resto de lado". Eu disse a ele: "No sei avaliar em profundidade, mas eu andei consultando as outras fontes para ter idia do valor do Gabriel Soares, eu acho que as outras fontes tm igual valor, podem no ser to densas as informaes, mas so boas".

    A discutimos muito e eu estabeleci que como critrio seria melhor eu pegar uma fonte totalmente estranha, talvez o Staden, eu j conhecia as Cartas Jurdicas e o material portugus, ento vamos pegar uma fonte estranha, o Hans Staden, e fazer a mesma anlise, e a riqueza foi comprovada. A ele me disse: "Olha, Florestan, voc nnn

    10 NOVOS ESTUDOS N. 42

    (4) Negros e brancos em So Paulo. Em colaborao com Roger Bastide. Publicao pr- via: Revista Anhembi, 1953; edi- o original: So Paulo: Editora Anhembi, 1955.

    (5) A funo social da guerra na sociedade Tupinamb. So Paulo: Museu Paulista, 1952; segunda edio: So Paulo: Li- vraria Pioneira-Edusp, 1970.

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    descobriu isso, justo que voc aproveite isso". A eu fiz o levantamento subsistemtico de todas as informaes, eu tenho esse fichrio at hoje, e surgiu a Organizao social dos tupinamb6, que foi defendida em 1947; s foi publicada em 1949 porque o Instituto de Progresso Editorial atrasou dois anos para publicar. Mas esse seria o trabalho sobre os tupinamb. Eu tinha idia de fazer um estudo dos contatos com os brancos, at tinha separado um material sobre destribalizao para isso e tinha idia de estudar o sacrifcio humano, mas isso ficou para o futuro. Por que acabei escrevendo sobre a guerra? Porque a tentativa de transformar a pesquisa de campo na fonte da minha tese de doutorado no deu certo. A Faculdade de Filosofia, por questes que eu no vou discutir agora, porque envolvem pessoas que eu no gostaria de associar a uma experincia negativa, demonstrou uma falta de flexibilidade para esse tipo de trabalho naquele momento. No havia interao humana que permitisse um trabalho desse ser levado a cabo com eficcia, com uma certa rapidez. Ento, virou um impasse. Eu refleti pensando um pouco no Gilberto Freyre, pensei: a sociedade brasileira tem um nvel de interesse por reconstruo histrica, isso reconhecido, ento eu vou voltar aos tupinamb. Avisei o chefe da cadeira que trocara de assunto, foi feita a substituio. E, em vez de fazer um estudo global do sacrifcio humano que seria um assunto muito vasto, eu escolhi a guerra porque atravs da guerra podia pegar os ritos de sacrifcio, mas no me obrigava a me concentrar na religio, coisa que j tinha sido analisada pelo Mtraux. Com isso fiz o trabalho com um certo xito, porque ele foi aprovado muito bem pela banca em 1951 e o prprio Mtraux pegou a primeira parte e publicou em francs. E ele me disse cara a cara, ele mostrou uma qualidade intelectual rara: "Voc fez o trabalho que eu deveria ter feito". Quer dizer, A funo social da guerra uma continuidade do trabalho da dcada de 40, enquanto a pesquisa sobre relaes raciais, e tambm a de aculturao dos srio-libaneses, se eu tivesse expandido, seria j o trabalho da dcada de 50.

    Agora, s para esclarecer este que um assunto importante para mim, a questo da dependncia na dcada de 60, o Gabriel est aqui e ele sabe que ns discutamos a heteronomia em termos weberianos: a relao entre grupos e sistemas. Voc encontra em ensaios que eu escrevi no incio dos anos 60 o uso do conceito de heteronomia, e eventualmente o de dependncia tambm. S muito mais tarde eu vim a descobrir que o conceito de heterenomia aplicado por Marx, e provavelmente ele era corrente na lgica formal na Alemanha do sculo XIX. De qualquer maneira, em Mudanas sociais no Brasil7 e em alguns outros trabalhos voc vai encontrar a problemtica da dependncia formulada de uma maneira um pouco rudimentar com o nome de relaes de heteronomia.

    Posteriormente, o Fernando Henrique foi para o IUPES e l trabalhou com um grupo que estava mais interessado por esse tipo de anlise. Quando ele voltou para c eu j tinha avanado um pouco, como vocs podem ver na primeira parte da Revoluo burguesa no Brasil8, que estava escrita quando ele chegou e ele leu. A as reflexes se aprofundaram, avanaram. Em 67 eu apresentei um trabalho j de mbito maior sobre o assunto, inclusive aproveitando a colaborao do Fernando Henrique. Uma coisa que no havia antes no Brasil, que era essa colaborao entre indivduos, graas a uma universidade ela surgiu. S havia na Alemanha, na Frana, aqui no havia. E parece que hoje voltamos ao padro anterior onde cada indivduo uma ilha e comea tudo de novo.

    Gabriel Cohn A sua ltima observao me suscita uma questo. H uma tendncia muito forte entre os que discutem a sociologia no Brasil no sentido de nnnnnnn

    JULHO DE 1995 11

    (6) Organizao social dos Tu- pinamb. So Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949; se- gunda edio: So Paulo: Difu- so Europia do Livro, 1963.

    (7) Mudanas sociais no Bra- sil. So Paulo, Difuso Euro- pia do Livro, 1960; segunda edio, 1974; terceira edio, 1979.

    (8) A Revoluo burguesa no Brasil. Ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975; segunda edio, 1976; terceira edio, 1981.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    referir-se a uma escola paulista, a uma escola de sociologia de So Paulo. E, certamente, quando se fala nisso o seu nome surge de maneira extremamente acentuada e talvez num momento decisivo do perodo coberto por esses debates, digamos, primeira metade da dcada de 60, um pouco antes, um pouco depois, que seja, se trata de referncia ao senhor como uma posio de liderana e de constituio mesmo disso. No entanto, recentemente, talvez no pela primeira vez, o senhor repeliu a idia de que se possa falar nisso, numa escola paulista de sociologia. Talvez o senhor pudesse comentar um pouco esse aspecto e discutir em que medida se pode e em que medida no se pode falar num grupo coeso, com uma linha comum...

    A sua pergunta est bem formulada. Falar numa escola de sociologia de So Paulo me parece um exagero. Agora, num grupo de socilogos articulado, com vrias ramificaes, isso se pode e se deve falar. E nesse caso no sou s eu que tenho importncia, h os professores franceses, especialmente o Bastide, o prprio Pierson, que no poderia ser ignorado, o Fernando Azevedo e outros. Eu tive um papel importante, mas outros tiveram uma importncia enorme para ns em termos de pesquisa. Hoje ningum lembra mais do [Emlio] Willem, numa classe o estudante no sabe quem foi o Willem. No Brasil a pessoa morre enquanto est viva, ningum manda o atestado de bito para a famlia.

    O que eu combati foi uma idia de me converter em uma espcie de pax. O chefe da cadeira de Sociologia I e em conseqncia da Escola de Sociologia de So Paulo, eu nunca lutei por isso; inclusive isso uma preocupao anticientfica, extracientfica; pessoas que querem se valorizar provavelmente pensam isso. Agora, dada a precariedade das nossas origens, da formao recente da sociologia aqui, como ter uma escola de sociologia de So Paulo? Como definir uma situao cultural desse tipo?

    A debilidade de nossa situao era to grande que eu prprio basta ver os Fundamentos empricos da explicao sociolgica9 fui procurar ganhar solidez e terreno nos clssicos. Eu era militante do movimento de esquerda, extremado, eu poderia ter ficado um marxista dogmtico; de l para c, ter superado o Caio Prado Jr. em matria de preocupao pela dialtica. E no entanto no fiz isso, estudei simultaneamente antropologia, sociologia, um pouco de psicologia, alguma econo- mia, alguma filosofia, muita histria. Quer dizer, fiz uma coisa que os marxistas que no so o prprio Marx s vezes chamam de orientao ecltica. Na antropologia estudei muita coisa importante que se no fosse o Willem na filosofia e a Escola de Sociologia Poltica eu nunca teria aprendido. Trabalhei muito com os antroplogos sociais ingleses, com os etnlogos franceses, discpulos de Durkheim, inclusive pelo vigor do Mauss vocs podem saber qual o valor disso.

    Mas teoricamente me concentrei, apesar de ter apanhado toda a evoluo intelectual da sociologia, me concentrei no Marx, no Max Weber e no Durkheim. Como autores de menor importncia que estudei muito estavam, por exemplo, o Mannheim, que teve uma importncia grande no meu pensamento; na Frana o Mounier, o Halbwachs, o Simiand, que um homem intragvel. At curso sobre Simiand eu dei quando ainda era estudante. No terceiro ano eu dei um curso para os meus colegas sobre o Simiand, eles no conseguiam entender Le salaire, l'evolution sociale et la monnaie. Eu dei um curso de trs meses para eles. E nos Estados Unidos eu gostava muito da sociologia do perodo pioneiro, o Giddens, por exemplo, e aquelas monografias da Universidade de Chicago eram muito freqen- tes nas minhas leituras e eu usava muito nos cursos, at chegar ao prprio Parsons, embora eu lesse mais o Merton e gostasse mais da sociologia descritiva americana do que da sociologia comparada.

    12 NOVOS ESTUDOS N. 42

    (9) Fundamentos empricos da explicao sociolgica. So Paulo: Companhia Editora Na- cional, 1967; segunda edio: idem, 1967; reimpresso, 1972; terceira edio: Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientficos, 1978; quarta edio: So Paulo: T.A. Queiroz, 1980.

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    O que caracteriza a minha embocadura foi procurar o ponto de partida nos clssicos. Eu estava falando exatamente na minha tentativa de me fixar nos clssicos. Qual a importncia dos clssicos? Qualquer um diria: bom, esto muito distantes! O prprio professor Willem combateu sistematicamente a minha preocu- pao pelos clssicos. No que ele fosse um ignorante, ele era um professor muito bem informado. Mas ele achava, como acham atualmente os socilogos e os antroplogos dos principais centros de ensino, que a melhor investigao a mais recente, o melhor livro o mais novo. Ele achava que eu estava perdendo tempo. Ora, na verdade, quando eu fiz a leitura da Ideologia alem, eu estava escrevendo a introduo ao livro que eu traduzi, A crtica da economia poltica, que saiu em 1944, e encontrei um dilogo muito mais vivo, muito mais consistente e produtivo com Marx e Engels. Quer dizer, era ali que estavam vivas as tendncias que eu estava enfrentando nas cincias sociais naquele momento, as minhas dvidas, tentando combinar ecologia, economia, sociologia, psicologia, histria. Para mim, era como se eles fossem professores vivos. A ideologia alem teve essa importncia para mim, aquele primeiro captulo do livro, que um captulo longo.

    Durkheim eu j conhecia at mais do que Marx, porque inclusive j tinha dado cursos sobre As regras do mtodo sociolgico, e quando fiz meu exame de habilitao o texto que os franceses escolheram saiu d'A diviso do trabalho social, quer dizer, eles supunham que a gente j devia conhecer este livro antes de entrar na Faculdade. E, de outro lado, Weber, porque entre os autores que trabalhavam com a sociologia formal ele foi o que pareceu mais rico e que dava uma base emprica mais slida ao trabalho do investigador na sociologia. Procurar estas tendncias significa exatamente procurar caminhos que no esto to distantes. Eles parecem distantes, so homens do sculo XIX ou do incio do sculo XX, mas eles esto presentes porque so correntes fundamentais dentro da sociologia e que oferecem recursos para abrir um campo. Na situao brasileira no se tratava de procurar, vamos supor, a linha dominante em Chicago e transferir para c. O importante era apanhar dentro da herana cultural da sociologia uma base slida para depois levantar aqui possibilidades de trabalho, explorando as tcnicas de investigao, os mtodos lgicos, de acordo com nossas possibilidades e com nossos recursos intelectuais. Ento foi isso que eu tentei fazer.

    Eu acabei fazendo trs teses: A organizao social dos tupinamb10, A funo social da guerra na sociedade tupinamb11 e o ensaio sobre A interpretao do mtodo funcionalista na sociologia. Eu fiquei com uma experincia viva bastante dramtica para pensar que, se aquilo poderia ser importante na Europa, decidida- mente no era conveniente para ns e que o trabalho intelectual do pessoal que estava se congregando ao meu lado deveria ter outra orientao, outra direo. E por isso nenhum deles repetiu esse padro. Tudo que eu procurei fazer ficou como parte da armadura do guerreiro. A pessoa precisa se armar para enfrentar a vida. Podem ver que o Fernando Henrique, o Octavio Ianni j foram trabalhar com problemas mais delimitados, de investigao sobre o presente, o perodo recente da histria, e a histria em fluxo. E basicamente procurando esclarecer os problemas centrais da formao e desenvolvimento da sociedade brasileira, e principalmente o que se poderia chamar a modernidade da sociedade brasileira. Ento, neste sentido se pode falar numa escola sociolgica paulista, mas a ela no obra minha: eu no sou um chefe de escola, eu sou um companheiro mais velho, e a produo caracterstica est ainda em crescimento, ela no se extinguiu. Eu acredito que na periferia no surgiu em nenhum lugar no mundo um grupo de investigao com recursos muito moderados, muito pobres, mas ao mesmo tempo to rico e com uma

    JULHO DE 1995 13

    (10) Citado na nota nmero 2. (11) Citado na nota nmero 1.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    gama de preocupaes to ampla. Eu acho que nesse sentido acaba havendo um perfil de uma escola sociolgica paulista, mas preciso haver muito cuidado com isso, porque ela no se caracteriza pelo fato de haver uma unidade terica, um centro de preocupao obsessiva. Se vocs pegam ensaios que esto publicados n'A sociologia numa era de revoluo social12, vocs vo ver que essas reflexes aparecem em trabalhos feitos em 1960, 1961, 1962. Inclusive a minha comunicao como presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, enfatizando as reas de investigao nas quais ns poderamos dar uma contribuio original, nos trs nveis: da contribuio emprica, da contribuio terica, e tambm a possibilidade de uma reflexo crtica sobre uma realidade histrica, isto , se h problema de democracia, que relao deve haver entre democracia e desenvolvimento, vocs encontram essa discusso l. E rejeitando a acelerao do desenvolvimento, a prioridade do desenvolvimento, afirmando que desenvolvimento sem democracia significaria continuar com estruturas arcaicas, que cresceriam apenas em extenso, no haveria transformao realmente da sociedade brasileira. Ento, o elemento central, o nexo dessas preocupaes est a. Eu posso ter sido um inspirador ocasional dessa evoluo, mas no havia o intuito de unilateralizar o trabalho intelectual, converter a sociologia em alguma coisa fechada, atravs da qual no se respira, no se v o mundo concreto, no se v o processo da histria, no se v a relao dramtica do homem com a transformao da vida.

    Gabriel Cohn O senhor dizia antes que, entre as idias pelas quais o senhor lutou, algumas delas esto no cerne mesmo dessa caracterizao que se faria dessa peculiaridade da produo sociolgica aqui em So Paulo. Porque provavelmente, se tivssemos que fazer uma sntese de qual essa peculiaridade, ns teramos pelo menos dois pontos, eles confluem. Dizem respeito a uma implacvel busca do rigor no tratamento de questes importantes e referentes sociedade brasileira na sua integridade e um rigor alimentado por uma formao que inclui pelo menos esses trs grandes clssicos, esses que continuam sendo trabalhados na USP e que de alguma maneira infundem uma certa atmosfera, um certo clima intelectual que identificado como caracterstico de So Paulo. O fato de ns continuarmos hoje l considerando fundamental para o estudante que passe pelo Durkheim, pelo Marx e pelo Weber, seja l qual for a ordem e, veja bem, o fato de no haver uma ordem fixa nisso uma marca dessa escola. Isto, o fato de permanecer, me parece extremamente interessante porque indica uma continuidade por detrs de todas as diferenas que houve e que foram tambm estimuladas isso uma outra marca, eu tenho a impresso. O Fernando Henrique Cardoso agora recentemente, ao reeditar Capitalismo e escravido no Brasil, que foi uma tese apresentada ao senhor como doutorado...

    Foi minha primeira tese.

    Gabriel Cohn ...ele faz uma referncia, procurando caracterizar o clima intelectual de formao em que vivia. Faz uma referncia quase obsessiva preocupao do senhor com o rigor e o modo pelo qual isto transparecia num trabalho seu absolutamente decisivo na formao de muita gente que Fundamentos empricos da explicao sociolgica13, que inclui o texto que o senhor mesmo caracterizou como seu texto de entrada na maturidade, de 1957, "A reconstruo social da realidade". E eu insisto nisso porque talvez pudesse servir de contraponto referente ao momento presente de se ver essa questo. Isto que o Fernando Henrique chama de uma busca quase obsessiva pelo rigor e a busca do cultivo cuidadoso dos nnnn

    14 NOVOS ESTUDOS N. 42

    (12) A sociologia numa era de revoluo social. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962; segunda edio: Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

    (13) Citado na nota 5.

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    grandes autores est presente na obra dele e de todos os demais, est tambm na sua e, com todas as enormes mudanas que a universidade sofreu, persiste l dentro, de modo que no uma abstrao falar dessa escola.

    Isto uma marca, mas eu no penso que isso deva ser creditado a mim, isso o produto de uma convergncia de influncias. Talvez, pode ser que a minha origem modesta tenha me levado a me suplantar. Procurar alguma interpretao psicanaltica poderia sugerir que eu praticamente quisesse me afirmar por um rigor cientfico implacvel. Mas eu no acho que seja, no. Eu tenho impresso que o rigor faz parte da investigao cientfica. Nas cincias sociais ainda hoje para mim o padro de rigor o Marx. At na Crtica do Programa de Gotha, o rigor com que ele trabalha com categorias, com realidades, com conceitos abstratos, caracters- tico do mtodo cientfico, onde existe cincia existe rigor. No pode haver evaso, onde no h rigor no h preciso da descrio, no h objetividade, ento est havendo pseudocincia. Voc lembra a polmica que eu tive com o Guerreiro Ramos, quer dizer, voc no pode ter meia cincia, voc no pode ter meia mulher grvida, est grvida ou no est. A cincia tambm, ou voc corresponde a uma descrio precisa e depois voc pode trabalhar analiticamente com os dados e com as interpretaes ou ento no h. Talvez eu tenha encarnado uma etapa da transio da cincia, mas eu fico muito incomodado com a idia de me atriburem uma posio maior que eu no tive. Na verdade esse grupo cresceu muito, cresceu comigo e cresceu independentemente de mim. E esse reconhecimento da colabo- rao do que se fez alm e acima de mim, isso tem que ser posto em questo.

    Voc pega as escolas na Europa e v que ao contrrio, a tentativa de ter um papa. E a verdade vem dali, inclusive as publicaes, as pessoas escrevem e quem publica o tal. Por isso que o nome de escola me assusta. Por isso que foi boa a sua interveno: voc deixou dois nveis para a idia da escola, e o segundo nvel era bom e h uma certa fisionomia no trabalho desse grupo. A ento est bom. Nesse sentido eu estou inteiramente de acordo.

    Gabriel Cohn Eu gostaria de extrair um desdobramento disso. Naquilo que o senhor fez na universidade e naquilo que o senhor publicou eu creio que o eixo est em 1965, n'A integrao do negro na sociedade de classes14 e tambm nas obras seguintes , eu tendo a distinguir a sua produo de grande parte do que tem sido feito nas cincias sociais e na sociologia entre ns, nos seguintes termos: me parece que o senhor nunca perdeu de vista, teve sempre uma viso muito clara da convenincia e da necessidade de se procurar manter uma perspectiva, uma viso propriamente sociolgica dos problemas. Ou seja, eu tenho a impresso que em alguns momentos o senhor teve uma viso extremamente aguda, nem sempre perfeitamente explcita, de que, se no houvesse uma preocupao forte com a manuteno e o cultivo de uma viso propriamente sociolgica dos problemas, essa viso poderia se diluir e ns teramos uma sociologia se enfraquecendo diante de outras vises, perfeitamente legtimas do problema, mas que exatamente no captariam aquilo que o socilogo pode oferecer, sem cair nos riscos de uma diviso rgida de trabalho na cincia. Isso parece que uma diretriz da sua reflexo.

    Isso correto. Inclusive os clssicos com os quais eu trabalhei ajudaram muito nessa direo. Durkheim, nem preciso dizer, a idia dele que a sociologia a rainha das cincias em geral, mas especificamente a nica cincia social verdadeira. Se voc extrai o ponto de vista sociolgico de Marx voc no tem o mecanismo da crtica da economia, das relaes de poder. O Lukcs e o [Karl] Korsh tm razo, a perspectiva sociolgica intrnseca. Se vocs quiserem chamar de nnnnnnn

    JULHO DE 1995 15

    (14) Citado na nota 1.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    histria o que se faz, que eles s reconhecem como cincia a histria, uma histria de perspectiva sociolgica, porque atravs da sociologia que se v a relao da economia com a sociedade, o homem ativo, lutando em termos de antagonismo de classe. Por sua vez, Weber o mais discreto, ele no d sociologia essa eminncia, mas ao mesmo tempo ele muito rigoroso porque o que ele chama de sociologia realmente o limite, aquela vem a ser a perspectiva pela qual a explicao sociolgica se distingue da explicao histrica ou da psicolgica ou da filosfica etc. Todas essas influncias se somaram nessa mesma direo. Agora, eu lutei muito para no ser sociologista e principalmente para no excluir psicologia, economia, histria, porque na verdade ns temos que voltar a um texto que para mim muito fundamental, o posfcio d'A crtica da economia poltica, aquela idia da totalidade. Durante algum tempo, eu corri o risco de palmilhar o caminho da filosofia social, da filosofia das cincias modernas, de pulverizar as cincias e de procurar uma falsa autonomia das cincias. Eu teria entrado por um mau caminho. O que me salvou foi a impregnao marxista da minha relao prtica com os problemas da sociedade brasileira. A eu compreendi que o socilogo realmente sozinho opera com um ponto de vista, com os fatos que esse ponto de vista exige.

    [trecho omitido N.E.] A universidade acabava sendo para ns um rico equivalente de um partido.

    Por l ns podamos apanhar a cincia no que ela tem de revolucionria, uma reflexo crtica sobre o presente, independentemente de uma formalizao poltica maior. Eu sempre fui socialista. No me conheci em outra posio desde que eu tenho idia do que atividade poltica. Eu poderia ter tomado uma posio em termos socialistas sobre a universidade, mas no foi isso o que ocorreu. Foi muito mais em termos do que , ou deveria ser, uma universidade numa sociedade pobre, com problemas graves de desenvolvimento econmico, social e poltico. Nunca fui desenvolvimentista, ao contrrio, minha posio para com o desenvolvimentismo sempre foi crtica. Nunca entrei na linha das bandeiras superficiais de pensar que a burguesia ia abrir caminho para a revoluo democrtica no Brasil, de modo que eu via na universidade, na educao, um elemento central para a pesquisa bsica, que fornecer conhecimento original, com o qual ns poderamos no s diagnosticar os dilemas da sociedade brasileira, mas enfrent-los. Da o fato de que havia este trip, cincia, educao e planejamento, as coisas estavam realmente integradas. Na medida em que tive a oportunidade de participar da campanha em defesa da escola pblica, eu tive uma oportunidade concreta de ver como na realidade tudo isso era necessrio e seria muito instrutivo. Todo um avano revolucionrio dentro da ordem, em termos at de requisitos da prpria transformao capitalista da sociedade, como tudo isso poderia se vincular com o funcionamento e o crescimento da universidade. Hoje se diria: "Trata-se de um reformismo". Sim, era um reformismo, mas era um reformismo construtivo para uma sociedade que no levou at o fim a descoloniza- o. As estruturas coloniais esto ao lado de estruturas capitalistas superavanadas na sociedade brasileira. Uma sociedade que paralisou a revoluo nacional porque o excedente econmico foi monopolizado no pelas classes possuidoras, mas pelas elites das classes possuidoras, pelos setores estratgicos das classes possuidoras. Ento, o excedente econmico da nao foi utilizado unilateralmente, a revoluo nacional foi estancada. E a revoluo democrtica era impossvel, na medida em que esses estratos no abriam espao histrico para as classes trabalhadoras no campo e na cidade aparecerem e se afirmarem em termos de uma sociedade civil com mltiplas vozes. Ento eu via a importncia enorme que tinha a cincia, a educao e o planejamento. Agora, o trabalho que ns fizemos foi muito nessa direo. Hoje se nnnn

    16 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    fala em ecletismo, porque se pensa de imediato que o que estava em jogo era a ideologia, era uma opo ideolgica unilateral. Ora, se fosse uma opo ideolgica eu ficaria no marxismo e acabou. E eu s vou ficar no marxismo e acabou em Toronto, porque a eu no tenho razo nenhuma de pretender ser o professor universitrio que a Europa quis criar no Brasil, atravs das misses. Aqui ns temos uma perspectiva para avaliar o que foi feito. Nosso trabalho no foi s na campanha de defesa da escola pblica, mas tambm nas reformas de base. A minha contribuio entrou por a discutindo desenvolvimento e reforma educacional, principalmente reforma universitria. E, de outro lado, a discusso interna, que da dcada de 50, aparece como algo pblico em 60. Foi um processo ntimo na Congregao da Faculdade de Filosofia. Os professores que se chamavam radicais acabaram saindo da Congregao porque viram que a dinmica da instituio era pobre para esse salto. Da o fato de que eu procurei nos estudantes um ponto de apoio, nos sindicatos, e terminei falando, em 1960, l na Bahia, no primeiro Congresso da UNE, abrindo todo um debate que depois ficou sendo o debate da dcada de 60.

    Com isso eu esgoto a primeira pergunta e entro na segunda. Apesar da minha posio socialista, apesar de eu ser um socilogo, apesar de eu ser uma pessoa desconfiada, e orgulhosa, eu tambm engoli mitos, eu mitifiquei a universidade: eu acreditei que a universidade tinha uma dinmica que fosse capaz de ultrapassar as contingncias do meio ambiente. Foi preciso 1964, principalmente foi preciso a terrvel luta que houve em 1967 e fim de 1968. Foi uma luta tremenda, foi o perodo, em minha vida, de desdobramento to grande que a ltima vez que eu fui a Porto Alegre fiz quatro conferncias em dois dias. Sobre a ltima eu no sabia o que tinha dito. Eu perguntei para aquele escritor gacho, o Limeira Tejo: "Eu falei bobagem?"; "No, voc falou tudo de uma forma articulada, bonita, estava tudo bem". Exausto! Venho para So Paulo e vou para um mdico. O mdico falou: "O senhor est se matando, o senhor tem que fazer quatro meses de repouso absoluto. O senhor est com uma hipertenso tremenda". Eu disse: "No, eu posso fazer um ms de repouso absoluto e dois meses de repouso relativo".

    Esse foi um embate para os que entraram na luta, foi uma luta terrvel e luta aberta contra a ditadura em campos rasos. Porque inclusive havia a luta contra a ditadura e havia a luta contra os vrios grupos da esquerda. Eu cheguei a dizer que eu s no apanhava na sola dos ps porque eu piso com os ps no cho e no havia espao para bater em mim. Apanhava de todos os lados, era uma situao dramtica. Eu presidia as reunies do Conselho e saa da presidncia para discutir, depois voltava para a presidncia, porque eu no queria como presidente assumir posies que deveriam ser do coletivo. Essa foi uma situao terrvel, e uma situao que mostrou que na luta entre a universidade e o meio, o meio acabou, vamos dizer, vergando a universidade, atravs principalmente das foras que eram pr-universit- rias, que vieram das escolas superiores e dos profissionais liberais. A contra- revoluo no se deu s no plano poltico, ela se deu no plano de todas as instituies: ela se deu na igreja, ela se deu na universidade, se deu nas escolas primrias, nas escolas secundrias, nas fbricas, em todo lugar. E os agentes ativos dessa contra-revoluo eram os colegas que l nunca se identificaram com uma condio universitria realmente autnoma. Que sempre se viram como membros de elite e que no fizeram essa identificao com a funo revolucionria da cincia, com a funo revolucionria da educao e com o potencial revolucionrio do planejamento numa sociedade em crescimento de origem colonial.

    Essas foras crescem, elas empolgam a universidade, elas redefinem no s a forma, tambm os ritmos da universidade. E foi nesse processo que realmente eu nnnnn

    JULHO DE 1995 17

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    sofri um desmascaramento, no era eu prprio quem estava fazendo, era uma coisa externa a mim, num processo histrico. E hoje ns estamos diante do grande dilema. Muitos esto lutando por recuperar a universidade que ns poderamos ter, universidade que ns no construmos, que ns no conseguimos na dcada de 60. Quando o problema outro. Quer dizer, agora ns temos... de repente todo o problema da universidade, ns estamos no fim do sculo XX, ns temos que pensar numa universidade para uma sociedade democrtica, num momento em que os operrios esto dizendo basta s ditaduras, fazendo a sua afirmao de luta de classes. uma realidade nova. Ento, eu devo dizer que apesar de tudo eu mistifiquei, eu no vi direito e s pude ver direito na medida em que no processo poltico a ditadura me puniu pelo que eu fiz de bom. Eu no fui punido pelo clandestino, pelo subversivo que eu fui anteriormente, isso eles devem saber porque o meu documentrio era grande. O que foi trazido baila eram coisas documentadas no meu currculo, e principalmente trabalhos como esse sobre o negro, as reflexes sociolgicas que para mim acho que so vitais ainda hoje, embora hoje tenham que ser feitas de outra forma, sobre a universidade, sobre o jovem, sobre a funo dos partidos, sobre o planejamento e principalmente sobre a liberdade da cincia. Ns no temos interesse em competir com a Europa, com os Estados Unidos, com a Unio Sovitica em pesquisa cientfica; ns no temos porte para isso. Ns temos de trabalhar numa rea na qual ns podemos produzir to bem quanto eles e que seja vital para ns. Essas reas devem ter privilgios. E muito menos devemos cultivar a cincia como meio de vida, ela no pode ser meio de vida. claro que com esse meio de vida o professor pode, como disse o Guerreiro Ramos: "Vocs tm uma renda de empresrio mdio". Naquele momento ns tnhamos. Ora, por a no se justifica nada, a universidade no se pode justificar assim. Ns somos um pas com uma massa de pobreza absoluta muito grande. Ento, na verdade eu mistifiquei.

    A segunda ruptura se imps a mim como se fosse um soco, como se um campeo me desse um soco no queixo e me espatifasse. Eu no estava preparado para esse choque. Eu confiei um pouco demais na instituio, porque a instituio so os homens que trabalham, as pessoas, homens e mulheres. Na verdade o que prevaleceu foi uma acomodao ampla num perodo plido, com pginas belas porque uma resistncia ficou l dentro, cresceu e essa resistncia que afinal de contas permite universidade hoje dar um novo salto. Tudo se passa organicamente a partir de dentro em conexo com uma presso do meio imediato, do meio externo, no plano mundial.

    No podemos ignorar isso, mas a debilidade que a universidade revelou e principalmente o aprofundamento da influncia externa retrgrada so coisas que merecem reflexo porque no era para que acontecesse assim. Eu acho que era para ter havido uma luta maior. Em 1969, incio de 1970, ainda tentei levantar na Congregao um ltimo manifesto dizendo: "No podemos deixar as coisas assim, a ltima oportunidade que ns temos de no sucumbirmos como os alemes sob o nazismo. Temos de dizer a nossa posio". A houve uma oposio geral, no se pode publicar. Eu s tive um apoio do Fernando Henrique em termos de discusso, mais nada. Uma universidade com vitalidade, que estivesse realmente incorporada na luta pela transformao da sociedade brasileira no se acalmaria assim, quer dizer, ela seria estraalhada, mas no estraalhamento se perderia muito de imediato mas se ganharia muito a longo prazo. Hoje todo o terreno tem que ser recuperado assim como em banho-maria.

    18 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    Carlos Guilherme Mota Eu acho que nesse processo, professor, de recupera- o em banho-maria est a questo da demarcao desses projetos que estiveram em vigncia nesses anos 50 e 60. Eu gostaria de ouvi-lo sobre como o senhor avalia hoje essa coparticipao na campanha da escola pblica, na implantao de uma universidade mais democrtica, considerando alguns dos seus companheiros de luta, como, por exemplo, Ansio Teixeira, Darcy Ribeiro ou, ainda em outro plano, prolongando para um outro projeto cultural, talvez um Paulo Freire, nos anos 60. Como reavaliar as distncias e os projetos em comparao com a sua linha.

    muito difcil fazer uma avaliao porque a campanha da escola pblica... no sei se voc lembra da campanha abolicionista que teve uma peculiaridade muito grande, ela diferente em So Paulo. E curioso, em So Paulo o Antnio Bento, rebento de uma famlia aristocrtica, quer levar a revoluo para a senzala. Ele v no negro o elemento de transformao revolucionria, de desagregao total da sociedade escravista, de revoluo tambm para o negro e no de uma revoluo social do branco para o branco. S em So Paulo, voc no v isso na campanha abolicionista. O prprio Jos do Patrocnio fala que ele no instigaria um choque de raas na sociedade brasileira. Quer dizer, h peculiaridades. Com relao escola pblica, curioso, o Ansio, como o Fernando Azevedo, eles operaram no plano das elites culturais, quer dizer, desencadeando um processo atravs do Parlamento, criando condies de funcionamento orgnico do sistema educacional brasileiro de tal maneira a dar flexibilidade ao funcionamento local e regional e, ao mesmo tempo, uma centralizao racionalizadora e criadora na totalidade. Alguma coisa parecida com o que se fez na Frana. E parecia que tudo ia bem, o projeto estava no Parlamento, tudo parecia encaminhado para que o projeto de diretrizes e bases preenchesse essa dupla funo de coordenar num plano central e diferenciar nos planos local e regional. Nesse nterim, a Igreja Catlica e o setor privado, que comercializava o ensino, se unificaram e descobriram a importncia desse projeto, e passaram a atuar atravs da Sandra Cavalcanti, daquele padre que socilogo tambm, o Bastos D'vila, talvez, fizeram um grupo e elaboraram um anteprojeto que passou pelo crivo do Lacerda, que se tornou o campeo do setor catlico e privado. E era um desastre.

    Na luta contra isso, os educadores, inclusive o Ansio, ficaram muito em termos de posies de cima para baixo. Tiveram vrias participaes importantes, mesmo trabalhando politicamente, discursando, lidando com os estudantes, mas sempre na rbita dos administradores, o que tem uma iniciativa no nvel adminis- trativo, no nvel da organizao do sistema. Aqui no, o movimento veio de baixo para cima, dos professores, em termos de revolta na sala de aula, alcanando o apoio dos estudantes e das congregaes religiosas no-catlicas, dos espritas, do setor catlico radical e tambm evasivamente do Partido Comunista e de outras correntes radicais. Ento foi um movimento muito rico. Eu entrei nisso a contragos- to porque aquilo representava para mim um investimento de tempo muito penoso, eu tinha obrigaes mltiplas como professor: escrever, tomar conta de trabalho, trabalhar na Congregao, escrever em jornal. Eu tinha muita coisa e para mim era penoso enfrentar essa atividade, mas me lancei a ela. O xito foi estrondoso, a primeira conveno feita na Biblioteca Municipal reuniu pessoas de grande gabarito, o Jlio Mesquita foi l, o Paulo Duarte, havia vrias pessoas eminentes, e um auditrio de jovens empenhados na transformao do sistema educacional. E foi l que a amizade do Jlio Mesquita surgiu por mim. No sei que frase que eu falei no meu discurso e ele chorou, ficou vermelho e chorou. E ele passou a apoiar a campanha e a mim decididamente a partir da, inclusive ele tentou me tirar da lista. nnnnn

    JULHO DE 1995 19

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    Da primeira lista ele me tirou, da segunda foi impossvel. Foi uma amizade leal, embora ele soubesse que eu era inimigo poltico dele.

    A campanha logo revelou uma vitalidade enorme: ns tivemos penetrao nos sindicatos, no meio operrio, tivemos at conveno operria em defesa da escola pblica. Um debate to rico que o Laerte Ramos de Carvalho disse para mim, numa hora em que ns estvamos discutindo com operrios: "Florestan, essa gente discute educao como se fosse arroz com feijo". Realmente, arroz com feijo alguma coisa que no estava sobrando no prato deles, e que eles precisavam numa direo diferente. E pude falar em todos os lugares, no interior de So Paulo, em outras cidades do Brasil. E eu vi ali no s uma atividade criadora para mim, eu vi um meio de praticar o que eu chamei de observao participante. Eu at escrevi um trabalho sobre isso. Em Assis os padres exigiam que a minha presena fosse declarada de pessoa no-grata, porque mobilizaram todas as foras de oposio para me receber no aeroporto. Tive que debater com oito padres l. Eu falava em mdia uma hora e meia, duas horas, s vezes mais, a parte expositiva e depois havia uma hora e meia, duas horas de discusso. Eu tinha um flego grande, podia falar horas. A eu posso imitar o Fidel Castro.

    Qual o resultado? Nesses debates entravam todos, entravam os padres, os maons, os espritas, os protestantes, os estudantes, os velhos, gente pobre, gente rica, operrios, patro. Os prprios patres se mobilizaram, a Federao de Indstrias apresentou um projeto alternativo de diretrizes e bases mas dentro dos requisitos de um regime competitivo formalmente. Ento foi muito rico, foi uma campanha que me deu uma viso muito rica da sociedade brasileira, eu como socilogo teria de depender de muitas monografias para apanhar esse cadinho.

    Mas eu estava falando da peculiaridade da campanha em So Paulo. Aqui, ns formamos um ncleo organizador, quer dizer, um certo grupo de educadores com posies diferentes. Naquele tempo eu seria o da extrema, o Laerte [Ramos de Carvalho] seria o liberal, o Roque [Spencer Maciel de Barros] e o Villalobos seriam os socialistas moderados. Veja como o mundo mudou! Essa equipe central tinha uma boa capacidade organizadora. Promovemos congressos, promovemos confe- rncias etc. Foi diferente do que aconteceu no resto do Brasil, e ns mesmos que fomos para os outros lugares levar o debate num nvel de profundidade maior. Inclusive, com recursos que o doutor Jlio arranjou, ns mandamos o Laerte e outros auxiliares para trabalhar vrios dias em Braslia e suplementar e alimentar intelectualmente um projeto novo de diretrizes para combater o que estava sendo apresentado pelo PTB e que estava sendo aprovado. Eu fui l discutir, nos organizamos e depois levantamos os recursos e isso foi feito.

    Agora, a campanha de reformas de base j foi mais dura, porque ela j tinha um carter de confrontao poltica especfica. E, por outro lado, o combate ditadura era o elemento central, no havia dvida de que tudo o que fazamos era uma tentativa de combater a ditadura. Porque havia um espao democrtico que a ditadura no conseguiu esmagar e todo o problema era tirar esse espao democrtico da presso que ele estava sofrendo e ao mesmo tempo criar um empuxe que engolisse o regime ditatorial. A realmente eu me tornei inimigo do sistema ditatorial. Do sistema global eu j era antes. O regime a me v como inimigo encarniado. Em 1964, o coronel que me prendeu disse: "antes de prender o senhor ns desconfiva- mos que o senhor era um agitador, agora com o que o senhor fez aquele negcio da carta ns tivemos a prova cabal de que o senhor um agitador mesmo".

    Com as atividades de 1967, 1968, as nossas posies ficaram marcantes, e realmente a contra-revoluo ganhou a segunda batalha, porque foi a segunda nnnnnnnnn

    20 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    batalha, e uma batalha dolorosa, porque a essa batalha a universidade sucumbiu, no respondeu como um todo. A primeira sim, a luta democrtica da Congregao, que nica na histria brasileira, teve consistncia na primeira fase, quando a ditadura ainda pensava que poderia tapar o sol com a peneira. J na segunda, a universidade no teve consistncia e permitiu essa ressurreio do passado, que ns pensvamos que amos eliminar com rapidez e que temos que carregar. Aqui ns voltamos ao Gramsci, quer dizer, todos os problemas da desigualdade da Itlia, como afinal de contas at um partido socialista acaba sendo um movimento oportunista de defesa da ordem no pior sentido. A universidade acabou fazendo isso.

    Carlos Guilherme Mota Ainda sobre estes episdios, durante a campanha no incio dos anos 60, alm de falar em sindicatos, o senhor falou tambm no II Exrcito. Houve um episdio com o general Castello Branco. O senhor poderia detalhar um pouco mais?

    Eu fui convidado, mas no por conta da campanha de defesa da escola pblica, no. Eu fui convidado para dar um curso no comando do II Exrcito. Um coronel naquela ocasio no me lembro o nome dele, hoje ele general foi faculdade para falar comigo. Eu teria que fazer cinco conferncias. Ele foi mandado pelo Jlio Mesquita, isso foi em 1962. Na verdade, eles estavam conspirando, tentando conhecer os quadros intelectuais com que contariam e, naturalmente, devem ter feito na universidade vrias investidas em reas ativas para ver at onde seria possvel levar essa camuflagem e engajar os intelectuais de ponta no processo. E eu fui convidado e disse: "Olha, infelizmente eu estou com muito trabalho, no posso dar o curso, mas eu posso pensar, vou falar com os meus auxiliares aqui e vamos ver o que se pode fazer". Falei com o Fernando Henrique, falei com o Octavio [Ianni] e organizamos o curso, cada um iria dar duas conferncias no II Exrcito, em Santa Ceclia. Eu fiz uma primeira exposio crtica sobre o militar mesmo. Peguei na unha a questo. O Castello Branco foi me buscar na porta da Filosofia e foi me deixar l. Agora, apesar de haver uma diferena entre nacionalistas e, vamos pr entre aspas, "liberais", o fato que a primeira conferncia que eu fiz encontrou uma resistncia tremenda. Eu procurei analisar a composio do exrcito, mostrar que ele no democrtico, porque um mito pensar que o exrcito se democratiza pela sua morfologia. Ele pode ter uma origem muito variada e ser um exrcito tremendamente reacionrio, tudo depende da educao que os militares recebem. E discuti o problema principalmente em termos do grau de conscincia racional que eles tm da realidade brasileira, mostrando que pelo fato de eles se isolarem do ensino comum, eles terem um ensino segregado, eles cultivarem valores que so esotricos, eles acabaram se distanciando da sociedade brasileira, no entrando nos processos de transformao mais profunda. Isto porque ao mesmo tempo eles avanaram contraditoriamente no sentido de absorver e monopolizar os papis ativos. Eu disse: "Eu no tenho nada quanto aos senhores mobilizarem os papis ativos, eu tenho contra a falta de preparo dos senhores, o currculo dos senhores, os senhores tm de conviver conosco, os senhores tm que estudar nas universidades, os senhores tm que fazer trabalho fora da alada militar, fora do mbito militar". claro que eu no ia colocar l o problema do exrcito do povo e outras coisas. Sabe que causou uma revolta tremenda, porque eles me definiram como inimigo do exrcito. Mas ainda assim houve o debate e eu no achei o apoio de ningum l, e o Laerte, foi muita gente da universidade, depois ele falou comigo na universidade: "Florestan, voc louco, eu estava procurando um buraco no cho de cinqenta metros para me esconder". nnnnn

    JULHO DE 1995 21

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    No aconteceu nada. Depois o Fernando Henrique e o Octavio fizeram as exposies e eu fiz a ltima, a pegando toda a problemtica da resistncia mudana na sociedade brasileira. Era uma preocupao muito forte, voc lembra do meu ensaio sobre a resistncia socioptica mudana cultural e como colocar toda essa problemtica em termos de interesses mdios de transformao da sociedade brasileira. A eles receberam bem. Depois disso houve o desenlace da campanha de defesa da escola pblica, quando j no tinha mais onde bater. Eu j estava desesperado. Aconteceu que o Ansio e o Darcy acabaram entrando na composio do Jango. Para ceder Igreja e ao setor privado faziam concesses, o governo fazia concesses, e afinal de contas a rede geral satisfaria a todos. claro que no satisfazia a ns porque ns ramos, por assim dizer, uma fora espontnea que cresceu na luta. A eu avancei tremendamente, a tal ponto que o artigo que eu escrevi sobre esse negcio foi terrvel. Foi feito como entrevista, o Tamas fez a entrevista e salvou porque teve a idia de perguntar se eu aceitava publicar como artigo, a a direo do Estado aceitou. E saiu como artigo.

    Nesse momento de desespero eu pensei: "Onde bater?". Eu pensei, s h uma porta, o exrcito. Telefonei para o tal coronel. Ele disse que no podia. Eu falei: "Olha, coronel, no quero saber se o senhor pode ou no pode, o senhor j veio bater aqui na minha porta e eu no podia e atendi. Eu no estou pedindo ao senhor para o senhor paralisar o debate sobre o projeto para criar um projeto novo. Eu estou pedindo ao senhor para falar a, eu penso que o exrcito deve ser uma fora viva, deve ter gente a interessada nessas questes". A ele disse: "O senhor me d uns dias que eu vou ver o que vou fazer". E organizou um debate na 2 Regio Militar, na Conselheiro Crispiniano. Eles tinham um auditrio na parte de trs do prdio; o prdio onde eu fui preso. Foi a que eu vi qual era a realidade orgnica do exrcito. O setor nacionalista, chamado esquerdista, s o era entre aspas, porque no debate aqueles militares que discutiam comigo estavam mais informados que a Sandra Cavalcanti. Eles tinham dados defendendo todas as solues que ns combatamos no projeto de diretrizes. Eles realmente tinham medo de combater o setor orgnico. E eu encontrei, na defesa de concepes que ns chamaramos de norte-americanas, uma intransigncia maior ainda do que entre os padres reacion- rios do interior ou aqui de So Paulo. Isto definiu bem qual a natureza da evoluo que o exrcito tinha sofrido no plano dos oficiais: capites, coronis, majores, generais. O Costa e Silva assistiu uma parte em p, depois eu acho que ele viu que no tinha nada que interessasse, foi embora.

    Alfredo Bosi Eu queria chegar a um terceiro momento. Depois que o senhor redefiniu os limites da universidade com a experincia concreta que teve e verificou realmente este achatamento da universidade depois da dcada de 70, ideolgico, poltico, enfim o seu recuo completo no sentido da participao e por motivos externos a ela tambm, mas tambm por motivos internos. Mas h uma experincia que eu acho muito importante e que agora comea a ser assimilada pelo pblico, que o seu conhecimento da Revoluo Cubana. Em que medida o seu conhecimento que foi mais ntimo com a Revoluo Cubana e sobretudo a Cuba posterior revoluo, em que medida isto lhe deu uma nova perspectiva para estudar a relao entre Estado, educao e desenvolvimento? Temos a um esboo de prtica socialista, da relao do Estado com a educao. Essa experincia o senhor estudou topica- mente, em Cuba, ou isso abriu alguma perspectiva para o estudo dos pases latino- americanos em transformao? Nessa questo particular de relao da educao com o Estado.

    22 NOVOS ESTUDOS N. 42

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    Para responder essa pergunta, que muito boa, eu tenho de voltar um pouco. Porque, na verdade, todo o problema da dinmica da sociedade de periferia, eu acabei levantando teoricamente nos trabalhos que se iniciam no fim da dcada de 50, incio da de 60 em alguns ensaios. Mas realmente a investigao emprica e o trabalho de interpretao rigorosa comeam apenas com o estudo do negro. H uma tendncia de chamar o estudo do negro de um estudo de relao racial. Ele no bem isso. um estudo de relao racial, mas no feito para esgotar a problemtica nos termos em que os norte-americanos converteram a relao racial, numa anlise que no questiona a sociedade, nem as classes, nem o capitalismo. O nico trabalho de l feito dessa perspectiva o do [Gunnar] Myrdal, que foi feito com colaborado- res. O Myrdal socialista, moderado mas socialista, e ele questiona as classes, a ideologia das classes. E surgiram alguns trabalhos posteriormente quanto educao, quanto a relaes raciais, aprofundando e radicalizando essa temtica. Aqui a investigao sobre o negro me permitiu ir alm das fronteiras da extino do indgena, dos povos livres. Eu pude apanhar toda a dinmica da sociedade escravista e toda a passagem do escravismo para o trabalho livre e as limitaes que isso sofre. E com isso a minha inteligncia da revoluo burguesa na periferia ganha uma outra dimenso. No Brasil, se falava muito sobre a revoluo burguesa numa perspectiva, por assim dizer, da revoluo que ocorreu na Frana e na Inglaterra, e de outra maneira na Alemanha, e de outra nos Estados Unidos, e que fatalmente vai ocorrer aqui. Como se fosse intrnseca ao capitalismo. como uma doena venrea, o sujeito acaba adquirindo uma vez na vida pelo menos. A revoluo burguesa vai acabar sucedendo aqui.

    Eu fui levado a fazer um questionamento mais profundo das classes e do seu mbito porque realmente classe no sentido rigoroso, quando voc pensa como o Marx. Porque se voc no quer pensar que o capitalismo surge j com a escravido, se voc no adota conceitos fluidos, Marx nunca fala capitalismo comercial, ele fala capital mercantil, isso quer dizer alguma coisa. Weber era mais livre no uso de conceitos, podia qualificar o capitalismo de vrias maneiras. Marx era muito rigoroso, capital mercantil, capital industrial, a classe como formao social especfica, no como categoria geral. No Manifesto e em outros escritos eles falam de luta de classes no sentido geral, mas eles esto pensando classe independente- mente da sua especificidade. Eles esto pensando numa formao social que se vincula ao aparecimento do capital industrial. Na relao que se d graas e atravs da mais-valia, a dinmica da acumulao capitalista. Ento, eu fico colocando diante da histria brasileira esse questionamento: quando realmente desaparece o estamento e surge a classe? Por que Marx e Engels tm coragem de usar o conceito de estamentos, mas nossos marxistas tm medo? O conceito de casta, talvez eu tenha usado de maneira um pouco livre. Mas para distinguir o escravo do prprio negro e do mulato que eram membros de estamentos eu tinha que ter uma outra categoria e j houve esse uso livre do conceito de casta, ento vamos l. Eu comecei esse questionamento e pude fazer atravs desta investigao. As primeiras anlises surgem em Negros e brancos em So Paulo15. O primeiro e o segundo captulos so uma reflexo concentrada sobre o desenvolvimento econ- mico e o desenvolvimento social de So Paulo, apanhando o negro e o branco como ponto de referncia para explicar, atravs da estratificao social e da transformao das estruturas sociais, essa histria. Depois da Integrao do negro16, a realmente eu pude inclusive fazer o retrato aproximado da revoluo burguesa, como ela se equaciona historicamente em termos dbeis, atravs do fazendeiro, do imigrante. Todo esse ponto de referncia me levou a conhecer a dinmica de uma nnnnnn

    JULHO DE 1995 23

    (15) Citado na nota 4.

    (16) Citado na nota 1.

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    sociedade colonial. Eu fui levado a uma distino entre o que colonial e o que neocolonial, o que dependente. Voc tem isso no ensaio que eu elaborei em Toronto17, saiu em 1969, sobre dominao externa na Amrica Latina, a separao precisamente entre estes momentos, eles so histricos mas so tambm estruturais e s vezes o estrutural vai alm do histrico. H pases que ainda esto numa situao neocolonial at hoje: o caso do Haiti, do Peru, do Paraguai e de muitos pases. Outros conseguiram passar para uma situao de dependncia que se caracteriza pela absoro de estruturas de produo diferentes. Essa problemtica eu monto emprica e teoricamente atravs do estudo do negro, e pude com ela refletir comparativamente sobre a Amrica Latina. Em Toronto eu tive oportunidade de dar cursos trabalhando com essas idias, um pouco precariamente de incio, mas eu j tinha escrito a primeira parte e a segunda no acabada da Revoluo burguesa no Brasil18, que eu escrevi em 1975, ento eu j tinha um amadurecimento muito grande desse arsenal. Com isso em Toronto, quando eu me vi na obrigao de tomar uma perspectiva mais ampla, premido por um movimento poltico mais aguado, com maior liberdade, eu no s me informei sobre uma literatura que no era exequvel aqui, como tambm acabei dando cursos sobre poltica no Terceiro Mundo, em colaborao com um professor australiano. Nesse curso me cabia dar a parte da Amrica Latina: dez exposies, das quais eu reservei trs ou quatro para Cuba. Eu pude ver como em Cuba aconteceu a mesma coisa que no resto da Amrica Latina, s sucedeu de uma maneira pior, porque l a situao neocolonial se restabelece com uma grande vitalidade, graas ao fato de que os Estados Unidos alienam a independncia que os cubanos ganharam na frente militar. E atravs de processos econmicos, culturais, polticos e diplomticos criam uma situao neocolonial de grande vitalidade, de grande envergadura. L eu pude estudar como, afinal de contas, se repete em Cuba a histria comum da Amrica Latina, quer dizer, as tais revolues que no se concluem, que se paralisam porque a burguesia no uma burguesia de pas com desenvolvimento capitalista autnomo, ela est sujeita a uma dominao externa.

    Isso nos leva a Gramsci de novo: para ele foi muito importante interpretar a situao difcil da Itlia na relao com outras naes que exerciam hegemonia econmica, poltica e cultural dentro da Itlia. Aqui a presena das naes no se dava em termos de hostes militares, mas se dava de outra forma. E a prpria burguesia vive a mesma insegurana, ento, so revolues que no se completam. E o que peculiar a Cuba? Por causa da situao neocolonial se tornar extremamen- te viva, a luta contra a ditadura, a luta contra a repblica ttere, a luta contra o imperialismo, que assumia propores dramticas, acaba gerando um nacionalismo libertrio que desata num processo diferente do resto da Amrica Latina. No resto da Amrica Latina as revolues de independncia ocorreram no incio do sculo, ou at o meio do sculo; em Cuba ela surge em 1868, ressurge em 1893-95 e reflui. No surge, ento, uma burguesia capaz de tomar conta do Estado e usar o Estado como um elemento de autodefesa e preservao das estruturas coloniais, neocolo- niais e de dependncia. Em Cuba, os Estados Unidos, atravs de uma dominao indireta de tipo especfica, saturam de tal maneira os espaos que a luta contra a ditadura, contra a dominao externa, contra a ausncia de independncia nacional acaba evoluindo num sentido que poderia ser contido dentro do capitalismo, mas se os diferentes setores da burguesia cubana e os Estados Unidos revelassem flexibilidade. Houve todo o problema da socializao poltica dos guerrilheiros, o fato de eles saberem o que no queriam, o fato de eles aceitarem os nveis histricos da revoluo. O fato que em seguida eles conquistam o poder, vo ao poder com nnnnn

    24 NOVOS ESTUDOS N. 42

    (17) Trata-se provavelmente de The Latin American in Resi- dence Lectures. Toronto: Uni- versity of Toronto, 1969-1970.

    (18) Revoluo burguesa no Brasil. Ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975; segunda edio, 1976; terceira edio, 1981.

  • DEPOIMENTO A ALFREDO BOSI, CARLOS GUILHERME MOTA E GABRIEL COHN

    um governo de composio nacional, mas do oportunidade para provar que nem os setores mais fortes da burguesia cubana nem os Estados Unidos aceitariam uma reforma do capitalismo. Realmente no se trata de uma debilidade da burguesia cubana, trata-se de uma impossibilidade. O que a burguesia intenta? A partir do governo, expulsar os guerrilheiros. Os guerrilheiros, com o controle do exrcito, da polcia e com o apoio da populao deslocaram a burguesia. A presso dos Estados Unidos foi se intensificando e o que aconteceu? A Revoluo Cubana foi parar no nvel histrico dela, quer dizer, a nica revoluo na Amrica Latina que entra na corrente da histria moderna, por causa dessas circunstncias. Eles foram bastante sagazes e lcidos para avanar. Na verdade, a Unio Sovitica cobriu a retaguarda e Cuba entra no processo da histria moderna. Ento, o que eu penso a partir da? Eu no estou pensando apenas como socialista que gostaria da revoluo, eu estou pensando como socilogo, quer dizer, uma revoluo que se tornou possvel em Cuba e que necessria para o resto da Amrica Latina provavelmente a revoluo que responde contra-revoluo da burguesia, que responde aos regimes ditato- riais de segurana nacional que eu chamei de autocracias burguesas. Quer dizer, a sada no se d mais pela burguesia, que uma burguesia internacionalizada agora, com economia internacionalizada aliada a um imperialismo de uma maneira tal que ela est paralisada, ela no pode avanar mais do que atravs do desenvolvimento acelerado. A nica coisa que ela sabe fazer modernizar e incorporar as economias capitalistas internacionais, absorver padres de capitalismo avanado, que na verdade jogam fora do sistema de trabalho uma grande parte da sociedade brasileira e ao mesmo tempo uma parte maior ainda na misria permanente.

    Por a eu tive um pouco a reflexo que no repete o que disse Fidel Castro em Sierra Maestra, que o paradigma da revoluo ali era um parmetro de conciliao com a burguesia; nem o que diz o Che num dos ensaios, discutindo a questo de se a Repblica Cubana se repetir, ele diz que se repete porque ele acreditava na forma guerrilheira. Eu no acredito na forma guerrilheira. A minha formao poltica anterior inclusive no me levava a pensar que a guerrilha seria o caminho, embora como socilogo at antes eu j tivesse dito que se houvesse uma revoluo a massa da populao no tem na Amrica Latina nenhum motivo para ser leal a um regime que no lhe d nada seno oprbio, excluso e misria. Havendo oportunidade vai haver o que houve em Cuba: uma ecloso. Mas que os guerrilheiros viam que poderiam apanhar o apoio da massa. Mas o que os guerrilheiros no viam que a situao revolucionria no foi criada por eles, ela foi produto de uma longa evoluo, que no comea sequer em nosso sculo, comea com o desenvolvimento do sistema colonial, na maneira pela qual a dominao dura at o fim do sculo e substituda no pelo regime representativo da burguesia, mas por um regime ttere, governos sucessivamente ditatoriais de articulao de interesses burgueses internos e externos, principalmente norte- americanos. Eles no viram que essa situao revolucionria no a guerrilha que cria, ela produto da histria; o que eles tiveram foi a inteligncia de se localizar dentro dessa situao revolucionria e de ver que aquela ditadura poderia ser removida com o poder militar e de levar a revoluo at o fim.

    Para concluir, eu queria dizer o seguinte: qual o significado da Revoluo Cubana. que a Amrica Latina tem uma alternativa histrica, essa alternativa no est no capitalismo, ela no aberta pela democracia burguesa, no aberta pelo imperialismo, no aberta pela internacionalizao da economia capitalista, ela aberta exatamente pelo socialismo. A via pela qual Cuba chegou ao socialismo muito peculiar. Eu no diria, como Che, que neste sentido a experincia de Cuba nnnnnn

    JULHO DE 1995 25

  • FLORESTAN FERNANDES, HISTRIA E HISTRIAS

    vai ser paradigmtica, vai se repetir. Agora, essa revoluo sim, porque esses povos no tm alternativa, o capitalismo cria situaes