Artigo_Nietzsche e Wagner

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  • 7/25/2019 Artigo_Nietzsche e Wagner

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    Revista Trgica: estudos sobre Nietzsche 2 semestre de 2008 Vol.1 n2 pp.53-70

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    Revista Trgica: estudos sobre Nietzsche Vol.1 n2

    Nietzsche e Wagner: caminhos e descaminhos na concepo do trgico

    Jair Antunes*

    Resumo:

    Este texto divide-se em duas partes principais. Na primeira, mostra-se como Wagnerconcebe inicialmente a arte trgica grega em sua acepo puramente esttica a artecomo afirmao do carter trgico da vida e como, em seguida, ele mesmo rompe comesta concepo e assume uma acepo idealista-pessimista schopenhauriana da arte. Nasegunda parte, pretende-se mostrar qual concepo de trgico o jovem Nietzsche recebee aceita de Wagner e como isso determina o posterior rompimento radical de ambos e anova filosofia nietzschiana.

    Palavras-chave: Wagner; Trgico; Arte.

    Nietzsche and Wagner: paths and mispaths in the conception of the tragic

    Abstract:

    This article is divided in two main parts. In the first, we show how Wagner initiallyconceives Greek tragic art in its purely esthetical sense art as the affirmation of thetragic character of life and how, later on, he moves away from this conception andtakes on a schopenhauerian, idealist-pessimist acceptance of art. In the second part, weintend to show which conception of tragic the young Nietzsche receives and accepts

    from Wagner and how this determines their later radical rupture and the newnietzschean philosophy.

    Key-words: Wagner; Tragic; Art.

    Friedrich Nietzsche e Richard Wagner, como se sabe, mantiveram por

    aproximadamente uma dcada intensa relao de amizade e de contribuio artstico-

    filosfica. Durante este perodo, Nietzsche considerou Wagner a maior expresso da

    msica europia, a prpria expresso da msica dionisaca na Modernidade. O jovem

    fillogo alemo, em suas aventuras terico-artsticas juvenis, embalado na proposta

    artstico-revolucionria do (jovem)-Wagner, ao constatar a crise qual a cultura

    europia havia-se enredado, pensou a possibilidade (e ao mesmo tempo a necessidade)

    de uma mudana radical na cultura europia. Esta mudana teria como via a Arte, a

    necessidade de (re)fundao de uma nova forma de arte: uma arte livre. Desta forma,

    parece-nos que a grande Arte, nos termos pensados pelo jovem Nietzsche e pelo jovem

    Doutor em Filosofia pela UNICAMP-SP. Professor de Filosofia na UNICENTRO-PR.

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    Wagner, somente poderia ser pensada em formaes culturais onde a cincia

    instrumentalizada no aparea como princpio norteador da vida humana, pois, para

    ambos, a Arte Moderna estaria envolvida em um manto de interesses individualistas que

    destoam totalmente de seus verdadeiros princpios. assim que eles encontram na arte

    helena, no perodo ante-socrtico, mais especificamente no gnero artstico trgico, o

    caminho para se pensar novos paradigmas para a cultura ocidental Moderna. Pois, para

    Nietzsche e Wagner, a arte grega trgica aparecia como a dramatizao da realidade

    bela/feia do cotidiano do povo heleno. E a arte wagneriana aparecia para o jovem

    fillogo como o caminho, Moderno, para este renascimento do trgico na cultura alem

    de ento. E assim que o jovem Nietzsche deposita todas as suas esperanas de um

    retorno da tragdia na arte revolucionria de Wagner. Este, em meados do sculo XIX,

    percebendo a crise de falta de sentido na sociedade europia de ento, e, por

    conseguinte, nas conseqncias da instrumentalizao das relaes sociais para a Arte,

    vislumbrou uma sada para a cultura artstica nas revolues operrias de ento, onde a

    transformao poltico-social abriria tambm, de forma imanente, a possibilidade do

    renascimento da arte trgica.

    A admirao de Nietzsche por Wagner nesta poca era tamanha que o prefcio

    de sua primeira obra publicada, O nascimento da tragdia, de 1872, por exemplo,

    dedicado especial e diretamente a Wagner. Para o jovem Nietzsche, a msica

    wagneriana aparecia como o grande renascimento da concepo trgica da arte. O

    msico alemo aparecia para o jovem fillogo como o artista que revolucionaria a

    sociedade moderna atravs da arte, mais especificamente atravs da msica trgica (Cf.

    LEFRANC, J. Compreender Nietzsche).

    No entanto, notrio tambm que tanto esta amizade quanto a admirao de

    Nietzsche por Wagner findaram-se desde a inaugurao do teatro de Bayreuth em 1876.

    Este modernssimo teatro havia sido projetado pelo prprio Wagner para encenao desuas prprias peas teatrais e havia criado vrias expectativas em Nietzsche quanto

    possibilidade de renascimento da msica no esprito trgico. Para Nietzsche, Wagner

    era ento o principal msico crtico da decadncia dos valores modernos e da submisso

    da arte (moderna) aos interesses da indstria. Assim sendo, o motivo de tal rompimento

    brusco e definitivo entre ambos parece ter sido a decepo de Nietzsche quando este

    teria constatado a submisso de Wagner ao cristianismo nas obras apresentadas em

    Bayreuth, revelando desta forma o carter decadente e redentor de sua arte. Wagner,

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    agora, na dcada de 1880, representava para Nietzsche no mais a expresso trgicado

    dionisismo na Modernidade, mas sim o grande redentor do cristianismo na arte

    ocidental e, assim, a principal expresso da decadncia da sociedade ocidental.

    Porm, como pretendemos mostrar neste trabalho, em seus primeiros anos de

    relacionamento com o mestre Wagner o jovem Nietzsche no teria percebido ou pelo

    menos no teria levado em considerao (ainda) esta mudana de concepo quanto

    ao objetivo da arte musical trgica no drama wagneriano.

    Assim, dentro dos limites deste trabalho, vamos organizar nosso texto dividindo-

    o em duas partes principais. Primeiro vamos procurar entender como Wagner concebe

    inicialmente a arte trgica grega em sua acepo puramente esttica a arte como

    afirmao do carter trgico da vida , e como, em seguida, ele mesmo rompe com esta

    concepo esttico-artstica-afirmativa e assume uma acepo idealista-pessimista

    schopenhauriana da arte, ou seja, da arte como forma de ascese ao Absoluto. Vamos

    chamar este primeiro momento de Wagner de revolucionrio, e o segundo de

    momento schopenhauriano ou metafsico da concepo e produo artstica do msico

    alemo. Na segunda parte, pretendemos mostrar qual concepo de trgico o jovem

    Nietzsche recebe e aceita de Wagner e como isso determina o posterior rompimento

    radical de ambos e a nova filosofia nietzschiana.

    Richard Wagner: da concepo esttica concepo metafsica da arte trgica

    Richard Wagner (1813 - 1883) era j no final da dcada de 1840 e incio da

    dcada de 1850 um clebre e eminente msico de sucesso. Em 1849, em meio onda

    revolucionria que toma conta de quase toda a Europa, toma parte do levante operrio

    em Dresden e obrigado a fugir para o exlio. Influenciado pelas idias do

    revolucionrio-anarquista russo Mikhail Bakunin e da filosofia materialista deLudwig Feuerbach, empreende em suas obras uma enorme crtica moderna arte

    ocidental, colocando o destino da arte no mesmo plano da necessidade da mudana

    scio-poltica. Para o jovem msico alemo, seriam exatamente a negao da vida pelo

    cristianismo e a consolidao da indstria moderna a qual transformaria tudo e todos

    em mera mercadoria(Ware) de consumo das classes abastadas da sociedade as razes

    da decadncia da arte moderna, a qual havia se tornado mera distrao para burgueses

    ricos entediados com a vida. Nesta mercantilizao da sociedade nem mesmo a arte e

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    os artistas escapam de seu destino baixo j que tudo se transforma em objeto de troca.

    O projeto de Wagner nesta poca ento promover uma revoluo completa na

    concepo da arte ocidental (via revoluo social) para promover um renascimento da

    arte e cultura alems atravs do espritoda msicatal como se teria dado com a poca

    trgica dos gregos. Este projeto alternativo decadente arte europia atravs da criao

    de um projeto artstico revolucionrio totalmente novo e com uma nova sociedade

    Wagner havia denominado como projeto de uma obra de arte total(Gesamtkunstwerk)

    (MACEDO,Nietzsche, Wagner e a poca trgica dos gregos, p.24).

    Dos textos deste seu perodo revolucionrio, um dos mais importantes (e que

    muito teria influenciado o jovem Nietzsche) seria um artigo escrito pelo msico ainda

    no calor do processo revolucionrio dos conflitos europeus de meados do sculo XIX.

    Wagner, naquela poca, teria participado ativamente das jornadas revolucionrias do

    proletariado contra o capital e assumido sinceramente a causa proletria em favor da

    destruio da sociedade burguesa e edificao de uma sociedade livre.1 Este processo

    revolucionrio teria marcado, assim, diretamente, a carreira artstica do jovem Wagner,

    bem como influenciado profundamente sua concepo de arte (Kunst). Este texto

    parece resumir, em grande medida, a concepo musical e artstica do jovem Wagner,

    colocando assim, no mesmo plano, arte e existncia afirmativa.

    Trata-se, pois, do artigo A Arte e a Revoluo (AR), escrito em 1849, no

    rescaldo do calor provocado pelos combates revolucionrios em Dresden. Neste texto,

    Wagner apresenta uma sntese do que seria a histria da arte ocidental desde os gregos

    clssicos, passando pelas culturas romana, medieval e renascentista at a Modernidade,

    bem como seu enorme desagrado com o atual estado da arte apresentada nos palcos

    europeus.

    EmA Arte e a Revoluo(Die Kunst und die Revolution) Wagner faz um estudo

    comparativo do que teria sido a arte na Grcia clssica e seu Atual estado naModernidade. Desta forma, comea por fazer uma severa crtica ao decadente estado da

    Arte (Kunst) europia e do que considera hipcritas e reacionrios lamentos dos artistas

    contra o processo revolucionrio em si, os quais acusavam a revoluo de ser a

    responsvel pela condio de penria a que agora estariam submetidos todos os

    1 Essa transformao revolucionria da sociedade, porm, no se d na mesma perspectiva que hojediramos marxista, mas numa perspectiva anarquista e no propriamente comunista. Da sua grande

    amizade e concordncia poltica com o anarquista russo Mikhail Bakunin e com os filsofos hegelianos-de-esquerda, tambm anarquistas, Pierre-Joseph Proudhon e Ludwig Feuerbach.

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    supostos artistas europeus. O jovem Wagner, ao contrrio, acredita que s a

    transformao da sociedade via vitria do operariado poderia ser a salvao para a obra

    de arte do futuro. Da justificar-se seu enorme entusiasmo e engajamento poltico direto

    nos conflitos revolucionrio-anarquistas de ento. E na obra de arte grega, mais

    especificamente no gnero cnico-musical trgico, que Wagner vai procurar e encontrar

    o modelo artstico ideal para seu projeto de obra de arte total ou, obra de arte do futuro.

    A Arte grega representaria para Wagner o completo oposto da arte operstica

    Moderna, submissa a Mercrio, o deus dos comerciantes e smbolo esttico

    caracterstico da sociedade baseada no lucro. Segundo Wagner, os gregos teriam

    desenvolvido uma cultura onde a arte estaria no centro da vida social. A cultura artstica

    grega ter-se-ia desenvolvido em toda sua plenitude porque teria sido ao mesmo tempo a

    construo da prpria comunidade grega como expresso de uma comunidade livre. A

    vontade livre dos gregos era a expresso esttica do prprio esprito grego, no qual

    Apolo aparecia, na leitura esttico-artstica de Wagner sobre os gregos, como o deus

    nacional das tribos helnicas, como o executor da vontade de Zeus sobre a terra da

    Grcia (WAGNER,A arte e a revoluo,pp.37-38).2

    Os gregos teriam feito uma arte verdadeira porque somente a arte verdadeira

    poderia apresentar-se como a mais elevada liberdade. E arte, para os gregos, era

    alegria de viver, era jbilo pela existncia presente, pelo contexto geral a que [se]

    pertence. E teria sido no gnero artstico trgico onde se poderia perceber mais

    claramente a elevada espiritualidade esttico-artstica da comunidade helena. A arte

    dramtica grega expressava a prpria vivncia esttico-artstica do povo heleno,

    transformando em arte trgica todas as alegrias e sofrimentos que a vida em

    comunidade proporciona. Os gregos teriam sido o nico povo realmente livre porque

    teria sido a nica nao histrica que teria na afirmao trgica da vida a mais alta

    expresso esttica da liberdade a que o esprito humano poderia alcanar.A tragdia era o gnero artstico que punha em artedramtica...

    os feitos dos deuses e dos homens, os seus sofrimentos e alegrias,anunciados de modo grave ou jubiloso na essncia superior de Apolosob a forma do ritmo eterno, da harmonia eterna de todo o movimento

    2Wagner prioriza Apolo frente a Dioniso. Este aparece citado uma nica vez nesta obra para afirmar que

    ele, Dioniso, inspira o autor dramtico: E era assim que este deus magnfico [Apolo] era visto naperspectiva do autor dramtico inspirado por Dioniso.... (Op cit, p.39).

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    e de todo o existir, tornavam-se coisa palpvel, real (WAGNER, Op.Cit., p.40).

    Na tragdia grega era representada a prpria existncia trgica do espectador, pois,

    tudo o que nessas aes era movimento e vida e era idntico aomovimento e existncia viva no expectador encontrava a a maisperfeita expresso; expresso em que os ouvidos e os olhos, ainteligncia e o corao, tudo captavam e percebiam como vida erealidade, tudo viam de fato, o fsico e o espiritual, que desse modono eram apenas produto de um trabalho da imaginao (WAGNER,Op. Cit., p.40).

    E, mais frente:

    O drama grego, entendido como obra de arte perfeita, era a sntese detudo o que na essncia grega havia de representvel. Era a prprianao grega que, em ntima ligao com sua Histria, se confrontavaconsigo mesma na apresentao da obra de arte, se apreendia e, porassim dizer, se alimentava de si mesma com o mais elevado prazerdurante aquelas escassas horas (Ibidem, p.80).

    Como vemos, para Wagner o cidado grego, no anfiteatro, participava de uma

    encenao trgica como se ele mesmo estivesse participando de forma real dos prprios

    fatos ali representados, como se o anfiteatro fosse um local onde, naquele instante, ele

    estivesse vivenciando a prpria tragicidade da vida em sua plenitude. por isso que

    Wagner diz que o dia da representao trgica era na verdade o dia da celebrao do

    prprio deus Apolo, porque na representao trgica era o prprio deus que se

    exprimia e se dava apreenso clara dos homens. E se nessa representao trgica do

    esprito grego o poeta aparecia como o sumo sacerdote do deus, era no entanto o prprio

    deus que estava real e corporalmente presente na obra de arte. E Wagner diz que era

    assim a obra de arte grega: Apolo transformado em arte real e viva. Era assim o povogrego no aspecto mais elevado da sua verdade e da sua beleza (WAGNER, Op. Cit.,

    p.41).

    Toda esta liberdade da expresso trgico-esttica da vida dos belos gregos,

    porm, segundo Wagner, lamentavelmente teria deixado de ter existncia com a

    decadncia do prprio Estado ateniense e com as formaes scio-histricas que a

    sucederam. O drama trgico teria deixado de ser uma unidade artstica desde ento e se

    dispersado em suas partes componentes, tanto quanto o Estado teria deixado de ser uma

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    unidade civilizacional. A ascenso da Filosofia como expresso da busca pelas causas

    da existncia como confirmao da mera transitoriedade da beleza e do vigor humanos

    teria sido a mais clara expresso da negao da arte grega como afirmao da vida. A

    arte ps-grega era pois expresso no da afirmao, mas sim da negao da vida, a

    comear pelo tipo de arte praticada nas arenas de Roma, e em especial com a ascenso

    do cristianismo como padro cultural dominante (Ibidem, pp. 44-56).

    A sociedade moderna do sculo XIX, pautada, por um lado, pelos valores

    cristos de negao da vida na Terra, e, por outro, pelos interesses do grande capital,

    eram a expresso mxima da oposio entre a arte verdadeira dos gregos, a arte trgica,

    com a arte artificial, a arte operstica, praticada nos palcos da Europa moderna. O que se

    encena nos teatros modernos, diz o jovem Wagner, no so representaes da arte

    trgica no sentido grego do termo, mas apenas pera, ou seja, uma forma de encenao

    artstica que objetiva meramente emocionar e divertir um pblico cansado e estafado

    tanto do trabalho quanto da vida. A arte operstica uma forma de arte que tem como

    objetivo meramente ou distrao do pblico ou o lucro dos proprietrios de casas de

    shows, j que os grandes teatros modernos teriam sido tambm transformados em

    empresas comerciais. Mercrio quem domina a arte moderna. Assim, somente a

    revoluo social poderia acabar com este estado amorfo da arte e abrir o caminho para o

    nascimento de uma arte que objetivasse no a negao, mas a afirmao da vida, e que

    aparecesse novamente como a expresso da alegria de viver como na poca trgica dos

    gregos: S a grande Revoluo da humanidade, cujo longnquo incio reduziu a runas

    a tragdia grega, nos pode vir a dar uma tal obra de arte (Ibidem, pp.82-83).

    E, desta forma, com o triunfo da revoluo social e artstica ao mesmo tempo, a

    arte trgica triunfaria tambm e se tornaria a festa de celebrao da vida de toda a

    humanidade, com suas alegrias e tristezas, felicidades e sofrimentos:

    E, uma vez que o conhecimento humano h de encontrar finalmente asua expresso religiosa num saber ativo de que a humanidade una elivre ser a nica detentora, o conjunto dessas artes ricamentedesenvolvidas encontrar na forma dramtica, na humanidadeesplendorosa do trgico, um ponto de unificao pleno de sentido. Astragdias sero as festas da humanidade. Nelas, o homem forte, livre ebelo, desobrigado de todos os convencionalismos, celebrar asalegrias e as dores da sua entrega total, e poder, ento, digno esublime, cumprir com a morte o grande sacrifcio ditado pelo amor(WAGNER, Op. Cit., p.95).

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    Vemos aqui expresso todo o otimismo do jovem Wagner, do Wagner ativista

    poltico, em nome de uma nova forma de arte, uma arte que afirmasse o fundamento

    esttico da vida, uma arte que tivesse na beleza esttica da existncia a sua finalidade

    ltima, ou seja, em nome de uma obra de arte do futuro.

    Porm, se vimos at aqui um Wagner otimista e esperanoso da possibilidade de

    ressurgimento de um perodo de fertilidade de uma arte trgica, essa no , no entanto, a

    sua ltima palavra em relao ao assunto. Na seqncia de sua trajetria de artista-

    filsofo, Wagner conheceu, desde 1854, a filosofia idealista de Arthur Schopenhauer. A

    metafsica de Schopenhauer era uma filosofia de cunho pessimista que via na arte no

    uma atividade libertadora da modernidade, mas uma atividade redentora da

    humanidade, como um meio de emancipao e liberdade em relao existncia social

    e individualmente corrompida do homem moderno (MACEDO,Nietzsche, Wagner e a

    poca trgica dos gregos, p.37). Desde ento, ou seja, desde a leitura de O mundo com

    vontade e Representao, segundo Macedo, Wagner teria passado a ter uma viso no

    mais esttica da arte grega, mas sim uma viso metafsica da arte em geral e em especial

    da arte helena: O que muda essencialmente [com a influncia da filosofia

    schopenhauriana] que ele passa a ter uma viso metafsica da atividade artstica e,

    conseqentemente, passa a ter uma viso metafsica da Grcia (MACEDO, Op. Cit.,

    p.36).

    Essa mudana radical na finalidade da arte como esttica para uma finalidade

    redentora da mesma aparece especialmente no artigo Beethovem publicado em 1870.

    Nesse artigo, Wagner teria abandonado uma perspectiva da arte como jbilo pela

    existncia presente e afirmao da alegria de viver, e que, para se efetivar na

    modernidade, deveria perpassar necessariamente pela revoluo poltico-social, como

    em sua primeira fase terica, e assumido pois uma perspectiva metafsica e idealista da

    arte, vista sobretudo como redeno (Erlsung). Esta mudana radical de perspectivacom relao finalidade da tragdia assim explicada por Macedo:

    A possibilidade do renascimento de uma cultura trgica, emcontraposio aos valores modernos, foi uma das perspectivasfundamentais do pensamento de Wagner nos tempos em que escreveu

    A arte e a revoluo, A obra de arte do futuro e pera e drama.Durante esse perodo, Wagner cultiva uma viso no-metafsica daatividade artstica inspirada no princpio de que a arte deve ser jbilopela existncia presente e afirmao da alegria de viver. Essas idias,

    cultivadas a partir de uma viso do mundo grego, estavam tambm

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    associadas a um projeto de transformao poltica e de superao docristianismo. A partir de 1854, no entanto, inspirado pelas leituras deSchopenhauer, Wagner passou a considerar a arte de um ponto devista metafsico, como meio de ascese, exerccio de resignao erenncia, possibilidade de acesso a um mundo superior e supra-sensvel. Em 1870, o seu ensaio sobre Beethoven registrou, de modomais definitivo, essa mudana terica. A arte, que at ento tinha serevelado para ele como fora poltica e revolucionria, passa a sercompreendida como uma forma idealista de redeno em relao aomundo (MACEDO, Op. Cit., p.121).

    Isso significa que o velho Wagner, o Wagner schopenhauriano, era, agora, no

    final da dcada de 1860, perodo em que se deu seu encontro com Nietzsche, no mais

    um msico otimista que pensava a arte grega pelo vis esttico, mas sim um artista

    pessimista com uma viso idealista da cultura trgica helena. A metafsica de

    Schopenhauer teria levado Wagner a pensar no mais a arte como forma de afirmao

    da liberdade grega frente aos sofrimentos da vida, mas sim como uma forma de relao

    metafsica com o mundo, como redeno (Erlsung) dos sofrimentos e dores que a

    existncia da vida moderna nos impe.

    Quando Nietzsche conhece Wagner em 1868 (o jovem fillogo tinha ento apenas

    trinta e quatro anos de idade), Wagner (agora com 55 anos) j havia rompido com sua

    concepo afirmativa da arte e promovido uma reconciliao de sua msica com o ideal

    cristo, (re)afirmando assim o carter supostamente redentor da msica, mostrando pois,

    na prtica, sua adeso filosofia pessimista de Schopenhauer e abandonando de vez seu

    projeto de uma obra de arte total, tal como exposto em seus textos dos tempos de

    exlio, por uma msica idealista e redentora da miservel condio humana.

    Friedrich Nietzsche: da concepo metafsica concepo esttico-artstica damsica trgica

    Nietzsche (1844 -1900), na condio de professor de filologia greco-romana naUniversidade da Basilia (Sua) entre 1869 e a dcada seguinte, encontrava-se j

    bastante decepcionado com os rumos que a arte de seu tempo havia tomado, submetida

    que estava aos interesses do jbilo popular e do capital. E no contexto de crtica

    cultura moderna e na esperana de encontrar uma sada para a arte que representasse um

    ideal de liberdade frente ao pessimismo cristo que Nietzsche teria travado seus

    primeiros contatos artstico-filolgicos com o mestre moderno da msica trgica.

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    Nos tempos em que teria conhecido e convivido com Wagner, Nietzsche, um

    jovem fillogo em incio de carreira, teria ficado encantado pela proposta artstica do

    msico alemo. Essa relao de encantamento e amizade pode ser atestada, segundo

    SOCHODOLAK ( ), pela enorme correspondncia (Briefe)

    travada entre ambos desde 1868, ano em que se conheceram, at finais da dcada

    seguinte, quando de seu rompimento, bem como entre a correspondncia entre

    Nietzsche e Cosima Liszt, esposa do msico. Cosima sempre teria estado ao lado de

    ambos nesta sincera relao de amizade e troca recproca de conhecimentos filosficos e

    artsticos, fazendo constantemente o papel de elo entre a concepo artstica do marido e

    a concepo filolgica da arte grega do amigo.3

    Na poca em que conheceu o artista alemo, segundo Macedo, porm, Nietzsche

    no teria percebido aquela profunda mudana na concepo artstica de Wagner qual

    nos referimos acima, ou seja, entre sua concepo esttica da arte (perodo

    revolucionrio) e de sua concepo metafsica da arte (perodo schopenhauriano). Como

    explica Macedo: Nietzsche [...] ir entender, na poca de O nascimento da tragdia,

    que no h incompatibilidade entre uma viso redentora e metafsica da arte e uma

    atividade artstica como manifestao de um pacto entre a intensificao dionisaca da

    vida e a mesura apolnea (MACEDO, Nietzsche, Wagner e a poca trgica dos

    gregos, p.36-37). Teria sido esta tentativa de juno entre a concepo esttica da arte

    trgica grega do jovem Wagner com a concepo idealista da arte de Schopenhauer que

    teria permitido Nietzsche propor em sua primeira obra publicada a possibilidade de

    pensar a arte trgica como uma metafsica de artista.

    Em O nascimento da tragdia, ou helenismo e pessimismo (Die Geburt der

    Tragdie oder Griechentum und Pessimismus), publicada em 1872, aparecem,

    conciliadas, tanto a concepo schopenhauriana do mundo como Vontade e como

    Representao quanto a concepo esttica da Grcia pr-socrtica do jovem Wagner.Nesta obra, Nietzsche apresenta uma concepo da arte trgica grega que, segundo

    Macedo, poderia ser considerada uma sntese do pensamento do filsofo pessimista e do

    artista revolucionrio-idealista (Cf. MACEDO, Op. Cit., pp.121-122).

    3No captulo IV de sua Tese de doutoramento, intitulada O jovem Nietzsche leitor de Wagner, HlioSochodolak faz uma anlise bastante minuciosa e precisa da correspondncia entre Nietzsche e o casal

    Wagner e o papel de fio de Ariadne representado por Cosima nesta relao de amizade e cumplicidadeterico-artstica entre o jovem fillogo trgico e o msico dionisaco.

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    Para o jovem Nietzsche, segundo Machado, a tragdia grega est marcada pela

    oposio inicial, e sua necessria reconciliao subseqente, de dois princpios

    estticos: o apolneoe o dionisaco (Cf. MACHADO, , p.202).

    O princpio apolneo est ligado ao conceito de beleza, de justa medida. Apolo o deus

    que imprime limites e medida s coisas no tempo e no espao (MACEDO,

    , p.133). Ele se manifestaria sobretudo nas artes

    plsticas, onde a preocupao com a beleza e a justa medida imprimem ao mundo a

    noo de bela aparncia, como explica Nietzsche em O nascimento da tragdia:

    Apolo, na qualidade de deus dos poderes configuradores, ao mesmotempo o deus divinatrio. Ele, segundo a raiz do nome o

    resplendente, a divindade da luz, reina sobre a bela aparncia domundo interior da fantasia [...] Seu olho deve ser solar, emconformidade com a sua origem; mesmo quando mira colrico e mal-humorado, paira sobre ele a consagrao da bela aparncia(NIETZSCHE, NT, p.26).

    A singularidade da bela arte apolnea, como diz Machado, est na criao de

    um vu de beleza que encubra o sofrimento da vida enquanto manifestao da dor e da

    alegria (MACHADO, O nascimento do trgico, p.209). Nietzsche diz que o apolneo

    pode ser mais claramente compreendido atravs do conceito de princpio deindividuao de Schopenhauer. Esta noo de princpio de individuao est ligada ao

    que visvel no mundo, beleza, posta sobretudo nas artes plsticas. A imagem do

    heri grego, tal como apresentadas nas epopias homricas, segundo Machado,

    representaria o modelo ideal de indivduo apolneo, pois na epopia o heri desafia os

    perigos da vida em nome da glria individual, da imortalidade potica, atingindo assim

    a perfeio, mesmo que para tal tenha que morrer em combate (Ibidem, p.204). Desta

    forma o princpio apolneo deixaria transparecer o lado alegre da vida e encobriria ao

    mesmo tempo seu lado obscuro, sofrido. Criaria, portanto, uma iluso, um mundo de

    aparncia bela, um mundo de representao no sentido schopenhauriano do termo.

    J o princpio dionisaco est ligado ao desmesurado, violncia primordial da

    natureza. O dionisismo representa a embriaguez, a falta de medida a que o homem est

    submetido quando mergulhado na natureza, quando desapegado da racionalidade

    apolneo-socrtica a que os homens civilizados esto submetidos. Ele est ligado idia

    de Uno-primordial, ou seja, ao exato oposto ao princpio de individuao caracterizador

    do apolneo, como explica Nietzsche em O nascimento da tragdia:

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    Na mesma passagem Schopenhauer [ao descrever em forma demetfora o princpio de individuao] nos descreveu o imenso terrorque se apodera do ser humano quando, de repente, transviado pelasformas cognitivas da aparncia fenomenal, na medida em que o

    princpio da razo, em algumas de suas configuraes, parece sofreruma exceo. Se a esse terror acrescentarmos o delicioso xtase que, ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais ntimodo homem, sim, da natureza, ser-nos- dado lanar um olhar essncia do dionisismo, que trazido a ns, o mais de perto possvel,pela analogia da embriaguez(NIETZSCHE, NT, p.27).

    Dioniso o deus da desmesura, o deus do desregramento, a natureza se

    manifestando da forma mais selvagem, em toda sua originalidade primordial. Como diz

    Macedo: Dioniso [...] ainda a expresso da vontade na sua unidade mais imediata, o

    elemento musical do mundo que fala do ser ainda no alienado nas formas do tempo, do

    espao e da causalidade. a natureza despojada do vu da individuao, reconciliada

    consigo mesma, com sua verdade mais profunda (MACEDO,Nietzsche, Wagner e a

    poca trgica dos gregos, p.133).

    O princpio dionisaco, para o jovem Nietzsche, no est ligado noo de

    beleza, como no caso do princpio apolneo, mas sim noo de sublime. O sublime

    seria este carter desmesurado da natureza, que se manifesta na embriaguez e

    desregramento primordiais. A esttica dionisaca representaria o carter metafsico da

    arte. E seria a msica, uma forma de arte no-plstica, que representaria este carter

    metafsico da esttica dionisaca. E, para Nietzsche, seria no culto s bacantes onde

    melhor estaria representado este carter desmesurado e desregrado, ou seja, sublime do

    princpio dionisaco. Como diz Machado, o culto s bacantes representaria o culto

    manifestado nos cortejos orgisticos de mulheres que, em transe coletivo, danando,

    cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, invadiram a Grcia vindas da sia,

    para fazer seu deus ser reconhecido, glorificado pelos gregos (MACHADO, O

    nascimento do trgico, p.211). O dionisaco representaria assim, pois, a negao dos

    valores principais da cultura apolnea. Em vez de um processo de individuao, uma

    experincia de reconciliao entre as pessoas e das pessoas com a natureza, uma

    harmonia universal e um sentimento mstico de unidade (Ibidem, p.212).

    E a tragdia seria o momento de reconciliao destes dois princpios

    aparentemente antagnicos e irreconciliveis. A tragdia diz Machado a unio

    dos dois impulsos, das duas foras: o horror dionisaco da natureza e a beleza apolnea

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    da arte. Na tragdia, os princpios dionisaco e apolneo se reconciliam em forma de

    arte. A tragdia assim a transformao de um fenmeno natural em um fenmeno

    artstico, representado no anfiteatro (Ibidem, p.224).

    Desta forma, a finalidade da tragdia para Nietzsche, segundo Machado, ao

    promover a transformao do mito pico em mito trgico, reconciliando desta maneira

    Apolo e Dioniso, de fazer o espectador aceitar o sofrimento com alegria, como parte

    integrante da vida, porque seu prprio aniquilamento como indivduo em nada afeta a

    essncia da vida, o mais ntimo do mundo, da vontade (Ibidem, p.238). E o efeito

    trgico, a sublimao, que o elemento dionisaco da arte trgica possibilitado pela

    msica, seria exatamente a consolao metafsica schopenhauriana, da qual Wagner

    estava j embebido e que havia influenciado sua produo artstica e filosfica da

    dcada de 1860 em diante, em especial no seu Beethoven, do qual Nietzsche havia j

    lido antes de escrever O nascimento da tragdia.

    E nesta admirao sem limites da poca trgica dos gregos, onde a tragdia

    representava para ele a mais alta forma de arte, em especial pela importncia do coro

    musical como parte mais importante da encenao trgica, que o jovem Nietzsche

    aposta todas as suas fichas no drama musical wagneriano como a maior esperana do

    renascimento da msica trgica na modernidade. E a esperana deste renascimento da

    tragdia no esprito da msica wagneriana nesta poca era tanta que ele havia intitulado

    o prefcio desta sua obra inaugural O nascimento da tragdia homenageando

    diretamente o msico que havia dado significado novo arte moderna: O nascimento

    da tragdia a partir do esprito da msica: prefcio para Richard Wagner

    (NIETZSCHE, NT, Prefcio). Nietzsche expressa, nesta poca, a importncia de

    Wagner para o projeto de refundao, na modernidade, do drama musical trgico como

    contraposio direta aos valores decadentes do cristianismo, em nome de uma arte que

    afirme a alegria de viver. Por isso Nietzsche apostava to alto na inaugurao do teatrode Bayreuth: ali, o pblico presente (um pblico seleto e j educado na concepo

    trgica da arte) disposto no anfiteatro de forma que todos pudessem ver o palco em

    toda sua plenitude assistiria encenao trgica no como meros expectadores que se

    sentem exteriores ao ato cnico em si, mas sim como elementos que participariam de

    forma ativa da encenao e atingiriam o xtase da arte trgica como se estivessem

    possudos pelo prprio deus. O pblico sentir-se-ia em Bayreuth, acreditava Nietzsche,

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    na mesma situao em que se encontrariam os cidados gregos ao participarem da

    encenao da tragdia: como num culto trgico ao prprio deus Dioniso.

    Posteriormente, porm, dezesseis anos aps a publicao de O nascimento da

    tragdia, Nietzsche j rompido tanto com a filosofia de Schopenhauer quanto com a

    metafsica de artista wagneriana escreve uma Tentativa de autocrtica, uma espcie

    de posfcio a O nascimento da tragdia, onde faz uma reflexo sobre aquele seu

    perodo jovial de filsofo wagneriano. Nesta autocrtica Nietzsche afirma o carter

    problemtico e deveras bizarro desta sua obra inaugural. Afirma o quo era jovem e que

    a exaltao concepo da arte como metafsica devia-se imaturidade e a certa

    arrogncia jovial.

    E em O caso Wagner, de 1888, uma de suas ltimas obras, Nietzsche explica que

    Wagner havia encalhado (sa fest) em um recife (Riff). Ele havia ido de encontro

    ao recife schopenhauriano. A filosofia de Schopenhauer havia mostrado ao msico

    alemo que ele encalhado em uma viso de mundocontrria(contrren Weltansicht),

    pois ele havia posto em msica o otimismo(Optimismus) de uma poca que, na verdade,

    era dcadant (NIETZSCHE, CW, 4). Schopenhauer teria definido esse otimismo na

    arte como otimismo infame (ruchlosen Optimismus), deixando clara a viso idealista

    da msica wagneriana. Com esse idealismo na msica Nietzsche diz que Wagner teria

    se tornado herdeiro de Hegel... A msica como idia (Idee) (Ibidem, 10). Wagner,

    ento, ao ver-se encalhado na filosofia schopenhauriana, sentiu-se envergonhado

    (schnte), por ter percebido que havia cado, com esta filosofia metafsica de

    Schopenhauer, num abismo sem possibilidade de retorno. Porm, ele necessitava de

    uma sada para seu objetivo, enquanto revolucionrio, Nietzsche diz que o msico-

    cristo teria ento vislumbrado a grande sada: o recife no qual naufragara, e se o

    interpretasse como objetivo (Ziel), como inteno oculta (Hinterabsicht), como

    verdadeiro sentido (eigentlichen Sinn) de sua viagem?. Wagner teria encontrado,assim, como sada de seu encalhamento, do encalhamento de sua pera na

    metafsica schopenhauriana, o prprio naufrgio (Scheitern): isso [o naufrgio de seu

    otimismo revolucionrio] era tambm uma meta (Ziel).4 Tudo vai torto, tudo afunda, o

    4Interessante observar aqui que scheiternpode ter tanto o sentido de naufragarcomo tambm o sentidodefracassar. Parece talvez que Nietzsche quisesse dizer aqui que a sada objetivada por Wagner tenhasido, no fundo, um fracasso, uma sada para tentar fugir ao seu fracasso enquanto msico produtor detragdias, por ter conseguido produzir apenas pera e da a necessidade de convencer o grande pblico

    de que sentir fortes emoes era mais importante do que conhecer o belona tragdia. E isso, parece-nos,era a grande decepo de Nietzsche com relao a Wagner: msica apenas como pera.

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    novo to ruim quanto o velho: Wagner estava redimido [...] Sua pera a pera da

    redeno (Oper der Erlsung). Schopenhauer o redimiu: Somente o filsofo da

    dcadencerevelou o artista da dcadencea si mesmo... (NIETZSCHE, CW, 4).

    E nesta obra, Der Fall Wagner, que Nietzsche enfatiza seu rompimento com a

    concepo metafsica do ltimo Wagner, ao apresentar seu prprio rompimento com a

    concepo de sublime. Para Nietzsche, redeno e sublimidade esto ambas no plano da

    metafsica, no plano da msica como redeno. por isso que Nietzsche afirma que,

    agora, Wagner foge do belo, pois prefere a facilidade da msica ruim msica boa, a

    msica como redeno que a msica como afirmao da dor da vida: mais fcil ser

    gigantesco do que belo (schn). Ser gigante levar a paixo massa: paixo

    (Leidenschaft) sempre se Sabe! A beleza (Schnheit) difcil (schwierig): cuidado com

    a beleza!... Mais ainda com a melodia! (NIETZSCHE, CW, 6). Wagner veria na arte

    agora mera sublimidade, no mais beleza; ele foge da beleza, pois a beleza afirmao

    esttica da vida e o compositor do Parsifal via agora na arte mera redeno, fuga de

    uma existncia que no mais valeria a pena tentar transformar.

    Nietzsche, pois, teria rompido com Wagner porque teria percebido que o sucesso

    de pblico da msica wagneriana em Bayreuth expressava, ao mesmo tempo, pois, o

    poder econmico e militar do imprio Bismarckiano. Ou seja, Nietzsche, agora,

    associava a msica de Wagner ao novoReichmilitarizado e imperialista alemo, pois a

    sociedade moderna estaria se tornando cada vez mais decadente, e a msica

    cristianizada do msico alemo expressava esta decadncia: Wagner o artista

    moderno par excellence... Ele pertence a ela: seu protagonista, seu maior nome....

    (Ibidem, 5). Para Nietzsche, Wagner no teria resistido ao feitio do mercado, glria,

    riqueza material: Hoje se faz dinheiro apenas com msica doente (kranker Musik);

    nossos grandes teatros vivem de Wagner (Ibidem, 6). Nietzsche assim associa o

    sucesso de mercado wagneriano ao sucesso de mercado do prprio Reich alemo, emseu projeto de uma grande nao alem, uma grande nao da qual os semitas/judeus

    (odiados por Wagner em seus textos de juventude) estariam fisicamente excludos (Cf.

    HOBSBAWM, A era dos imprios). Por isso ele define o que o alemo

    contemporneo: Definio do teuto: obedincia e pernas longas... (NIETZSCHE,

    CW, 11). O velho Wagner estaria inserido neste grande projeto de construo de uma

    nao alem para alemes, e suas msicas, que tm como temas principais exaltar um

    suposto passado mtico do povo germnico, estaria se tornando a prpria msica do

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    Estado alemo. Cantar as glrias do passado grandioso dos povos pan-germnicos

    aparecia como uma grande forma de engrandecer o projeto bismarckiano da grande

    nao germnica.

    E Nietzsche havia percebido que esta grande guinada ao cristianismo e exaltao

    da alma alem tinha como fundo o apoio do Estado sua arte nacionalista-crist. Por

    isso que Nietzsche afirma que Wagner teria deixado de ser um msico trgico para se

    tornar um ator: O grande sucesso, o sucesso de massa, no est mais com os autnticos

    preciso ser ator para obt-lo (Ibidem, 11). E aqui Nietzsche iguala Wagner a

    Victor Hugo, o mais inautntico dos tericos da modernidade: eles significam a mesma

    coisa: que em culturas em declnio (Niedergangs-Culturen), onde quer que as massas

    tenham a deciso, a autenticidade (Echtheit) se torna suprflua (berflsig),

    desvantajosa, inconveniente (Ibidem, 11). Nietzsche afirma que, a partir de ento, s

    o ator ainda despertaria o grande entusiasmo do pblico inculto, pois, quanto mais

    falso for o ator, mais real apareceria para as massas, pois a realidade representada pelo

    ator era agora umafalsa-realidade, uma realidade de mera iluso(Ibidem, 11).

    Wagner seria agora, pois, antes de tudo, um ator. E o termo ator (Schauspieler)

    aqui poder-se-ia entender tanto no sentido de ele ter-se tornado mero criador de peras

    para um pblico sentimentalista (entediado com a vida) e ao mesmo tempo no sentido

    de ele ter-se tornado um grande ator do Estado, um ator no palco do grande teatro que

    seria a Alemanha bismarckiana dona do mundo. Wagner estaria garantindo seu lugar de

    ator imortal no novo Estado imperialista alemo.

    Assim, na dcada de 1880, segundo Macedo, aps o rompimento definitivo com

    Wagner e com sua concepo metafsica da arte (com uma metafsica de artista),

    Nietzsche rompe, de forma simultnea, com sua concepo anterior do dionisismo como

    sendo uma esttica do sublime e assume uma perspectiva de Dioniso como o deus de

    uma esttica da beleza e da afirmao da vida sensvel. E em Agaia cincia, de 1882,no aforismo 276, apareceriam ento os princpios fundamentais de sua nova esttica,

    fundada a partir da idia de amor fati, amor ao destino, amor beleza do mundo

    simplesmente como ele :

    Eu quero aprender cada vez mais a considerar a necessidade dascoisas como beleza assim, eu serei um daqueles que tornam ascoisas belas, amor fati: que seja este de agora em diante o meu amor!

    Eu no vou fazer guerra contra o feio, eu no o acusarei mais, eu noacusarei nem mesmo os acusadores. Suspender o olhar, que esta seja

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    minha nica forma de negar. Eu no quero, a partir desse momento,ser outra coisa seno pura afirmao (NIETZSCHE, GC, 276).

    Agora, nesta nova fase da vida filosfica de Nietzsche, aps o rompimento com a

    filosofia metafsica, com a concepo metafsica da arte, ou seja, aps o rompimentotanto com Wagner quanto com Schopenhauer, percebe-se um Nietzsche mais maduro,

    mais independente. Nietzsche agora teria percebido que pensar o renascimento da arte

    trgica na modernidade teria sido um de seus principais erros tericos de juventude,

    inebriado que estava pela metafsica de artista schopenhauriana e wagneriana. Por isso,

    ele assume a perspectiva do amor realidade como ela simplesmente : sem odiar, nem

    julgar, um simples amor fati, amor vida como ela realmente , e tendo a arte como a

    expresso esttica desta vida bela e afirmativa.

    Esta idia de amor fati, de amor existncia afirmativa, est ligada, para

    Nietzsche ao que denomina como moral dos senhores (Herren-Moral). Esta moral

    dos senhores a moral clssica, greco-romana, a moral pag, a moral da Renascena.

    Esta moral a linguagem simblica da vida que vingou, a moral que ascende

    (aufsteigenden), a moral da vontade de poder(Willens zur Macht) como princpio da

    vida. Esta moral Antiga transfigura(verklrt), embeleza, traz razoao mundo. Ela a

    contraposio mais forte moral da negao da vida, moral dos conceitos de valor

    cristos. Nietzsche explica que a moral crist aparece num solo inteiramente mrbido,

    empobrecida, plida. Esta moral crist enfeia (verhsslicht) o valor das coisas, ao

    contrrio da moral greco-romana, que embeleza a vida tal qual ela : a moral dos

    senhores afirma (bejaht) to instintivamente como a crist nega (verneint) [a vida],

    pois est ligada afirmao dos conceitos de Deus, alm, abnegao, ou seja, a

    puras negaes (CW, Eplogo, p.43-44).

    E por isso que ele termina O caso Wagnerapelando em favor da arte trgica, da

    autenticidade (Echtheit) na msica, contra o que ele chamou de teatrocracia

    (Theatrokratie), ou seja, contra o desvario de uma f na preeminnciado teatro, num

    direito supremacia do teatro sobre a arte:

    Que o teatro no se torne senhor das artes, que o ator no se tornesedutor dos autnticos e que a msica no se torne uma arte damentira (Kunst zu lgen) (CW, 12).

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