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Rev Bras Ginecol Obstet. 2006; 28(2): 112-21 Artigos Originais RESUMO Objetivo: investigar a presença e resultados de malformações vasculares uterinas (MAVU) após doença trofoblástica gestacional (DTG). Métodos: estudo retrospectivo com inclusão de casos diagnosticados entre 1987 e 2004; 2764 pacientes após DTG foram acompanhadas anualmente com ultra-sonografia transvaginal e Doppler colorido no Centro de Neoplasia Trofoblástica Gestacional da Santa Casa da Misericórdia (Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Sete pacientes tiveram diagnóstico final de MAVU baseado em análise ultra-sonográfica – índice de pulsatilidade (IP), índice de resistência (IR) e velocidade sistólica máxima (VSM) – e achados de imagens de ressonância nuclear magnética (RNM). Dosagens negativas de β-hCG foram decisivas para estabelecer o diagnóstico diferencial com DTG recidivante. Resultados: a incidência de MAVU após DTG foi 0,2% (7/2764). Achados ultra-sonográficos de MAVU: IP médio de 0,44±0,058 (extremos: 0,38-0,52); IR médio de 0,36±0,072 (extremos: 0,29- 0,50); VSM média de 64,6±23,99 cm/s (extremos: 37-96). A imagem de RNM revelou útero aumentado, miométrio heterogêneo, espaços vasculares tortuosos e vasos parametriais com ectasia. A apresentação clínica mais comum foi hemorragia transvaginal, presente em 52,7% (4/7) dos casos. Tratamento farmacológico com 150 mg de acetato de medroxiprogesterona foi empregado para controlar a hemorragia, após a estabilização hemodinâmica. Permanecem as pacientes em seguimento, assintomáticas até hoje. Duas pacientes engravidaram com MAVU, com gestações e partos exitosos. Conclusão: presente sangramento transvaginal em pacientes com β-hCG negativo e história de DTG, deve-se considerar a possibilidade de MAVU e solicitar avaliação ultra- sonográfica com dopplervelocimetria. O tratamento conservador é a melhor opção na maioria dos casos de MAVU pós-DTG. PALAVRAS-CHAVE: Malformação arteriovenosas; Neoplasias trofoblásticas; Ultra-sonografia Doppler; Imagem por ressonância magnética; Complicações na gravidez ABSTRACT Purpose: to investigate the presence and outcome of uterinevascular malformations (UVAM) after gestational trophoblastic disease (GTD). Methods: retrospective study of 2764 patients with GTD diagnosed from 1987 to 2004. All patients were followed up annually at the “Santa Casa da Misericórdia” Trophoblastic Disease Center (Rio de Janeiro, RJ, Brazil) with transvaginal ultrasonography (US) and color Doppler imaging. Seven patients had a final diagnosis of UVAM based on ultrasonographic analysis – pulsatility index (PI), resistance index (RI), peak systolic velocity (PSV) – and pelvic magnetic nuclear resonance (MNR) findings. Negative β-hCG values were of utmost importance to establish differential diagnosis with persistent GTD. Results: the incidence of UVAM after GTD was 0.2% (7/2764). US features of UVAM: PI mean 0.44±0,058 (extremes: 0.38-0.52); RI mean 0.36±0.072 (extremes: 0.29-0.50); PSV mean 64.6±23.99 cm/s (extremes: 37-96). MNR image showed a bulky uterus, myometrial inhomogeneity, serpiginous flow-related signal voids, and prominent parametrial vessels. The most common UVAM clinical presentation was vaginal hemorrhage, present in 52.7% (4/7). Pharmacological management with 150 mg medroxyprogesterone acetate was employed to control bleeding, after hemodynamic stabilization. These patients are still being followed and remain asymptomatic nowadays. Two patients with persistent UVAM became pregnant and had successful outcomes. Conclusion: patients with antecedent of GTD presenting transvaginal bleeding and negative β-hCG may be considered to have UVAM and should be investigated through US with Doppler velocimetry. Conservative management is a valuable option in many of the acquired UVAM after GTD. KEYWORDS: Arteriovenous malformations; Trophoblastic neoplasms; Ultrasonography, doppler; Magnetic resonance imaging; Pregnancy complications Recebido em: 6/2/2006 Aceito com modificações em: 27/2/2006 Centro de Neoplasia Trofoblástica Gestacional (CNTG) da 33ª Enfermaria (Maternidade) da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ). Rio de Janeiro – RJ; Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP – Botucatu (SP), Brasil. 1 Professor do Curso de Pós-graduação Médica em Clínica Obstétrica do Centro de Ensino da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (CESANTA). Diretor do CNTG / SCMRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 2 Pós-graduando (Mestrado) do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP / SP. Assistente do CNTG / SCMRJ. Pós-graduando (lato sensu) da 28ª Enfermaria (Ginecologia) da SCMRJ / CESANTA – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 3 Chefe do Laboratório de Anatomia Patológica e Citopatologia da 33ª Enfermaria da SCMRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Correspondência: Paulo Belfort Avenida das Américas, 3939, Bloco 1, Conjunto 216 – Barra da Tijuca – 22630-003 – Rio de Janeiro – RJ – Telefone: (021) 3325-6643 / FAX 2220-0060 – e-mail: [email protected] Malformação arteriovenosa uterina após doença trofoblástica gestacional Uterine arteriovenous malformation after gestational trophoblastic disease Paulo Belfort 1 , Antônio Braga 2 , Nazaré Serra Freire 3

Artigos Originais Malformação arteriovenosa uterina após ...scielo.br/pdf/%0D/rbgo/v28n2/30678.pdf · sentavam hemorragia uterina disfuncional. Tais pacientes eram encaminhadas

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Rev Bras Ginecol Obstet. 2006; 28(2): 112-21

Artigos Originais

RESUMOObjetivo: investigar a presença e resultados de malformações vasculares uterinas (MAVU) após doença trofoblástica gestacional(DTG). Métodos: estudo retrospectivo com inclusão de casos diagnosticados entre 1987 e 2004; 2764 pacientes após DTGforam acompanhadas anualmente com ultra-sonografia transvaginal e Doppler colorido no Centro de Neoplasia TrofoblásticaGestacional da Santa Casa da Misericórdia (Rio de Janeiro, RJ, Brasil). Sete pacientes tiveram diagnóstico final de MAVUbaseado em análise ultra-sonográfica – índice de pulsatilidade (IP), índice de resistência (IR) e velocidade sistólica máxima(VSM) – e achados de imagens de ressonância nuclear magnética (RNM). Dosagens negativas de β-hCG foram decisivas paraestabelecer o diagnóstico diferencial com DTG recidivante. Resultados: a incidência de MAVU após DTG foi 0,2% (7/2764).Achados ultra-sonográficos de MAVU: IP médio de 0,44±0,058 (extremos: 0,38-0,52); IR médio de 0,36±0,072 (extremos: 0,29-0,50); VSM média de 64,6±23,99 cm/s (extremos: 37-96). A imagem de RNM revelou útero aumentado, miométrio heterogêneo,espaços vasculares tortuosos e vasos parametriais com ectasia. A apresentação clínica mais comum foi hemorragia transvaginal,presente em 52,7% (4/7) dos casos. Tratamento farmacológico com 150 mg de acetato de medroxiprogesterona foi empregadopara controlar a hemorragia, após a estabilização hemodinâmica. Permanecem as pacientes em seguimento, assintomáticas atéhoje. Duas pacientes engravidaram com MAVU, com gestações e partos exitosos. Conclusão: presente sangramento transvaginalem pacientes com β-hCG negativo e história de DTG, deve-se considerar a possibilidade de MAVU e solicitar avaliação ultra-sonográfica com dopplervelocimetria. O tratamento conservador é a melhor opção na maioria dos casos de MAVU pós-DTG.

PALAVRAS-CHAVE: Malformação arteriovenosas; Neoplasias trofoblásticas; Ultra-sonografia Doppler; Imagem porressonância magnética; Complicações na gravidez

ABSTRACTPurpose: to investigate the presence and outcome of uterinevascular malformations (UVAM) after gestational trophoblasticdisease (GTD). Methods: retrospective study of 2764 patients with GTD diagnosed from 1987 to 2004. All patients werefollowed up annually at the “Santa Casa da Misericórdia” Trophoblastic Disease Center (Rio de Janeiro, RJ, Brazil) withtransvaginal ultrasonography (US) and color Doppler imaging. Seven patients had a final diagnosis of UVAM based onultrasonographic analysis – pulsatility index (PI), resistance index (RI), peak systolic velocity (PSV) – and pelvic magneticnuclear resonance (MNR) findings. Negative β-hCG values were of utmost importance to establish differential diagnosiswith persistent GTD. Results: the incidence of UVAM after GTD was 0.2% (7/2764). US features of UVAM: PI mean0.44±0,058 (extremes: 0.38-0.52); RI mean 0.36±0.072 (extremes: 0.29-0.50); PSV mean 64.6±23.99 cm/s (extremes: 37-96). MNRimage showed a bulky uterus, myometrial inhomogeneity, serpiginous flow-related signal voids, and prominent parametrialvessels. The most common UVAM clinical presentation was vaginal hemorrhage, present in 52.7% (4/7). Pharmacologicalmanagement with 150 mg medroxyprogesterone acetate was employed to control bleeding, after hemodynamic stabilization.These patients are still being followed and remain asymptomatic nowadays. Two patients with persistent UVAM becamepregnant and had successful outcomes. Conclusion: patients with antecedent of GTD presenting transvaginal bleedingand negative β-hCG may be considered to have UVAM and should be investigated through US with Doppler velocimetry.Conservative management is a valuable option in many of the acquired UVAM after GTD.

KEYWORDS: Arteriovenous malformations; Trophoblastic neoplasms; Ultrasonography, doppler; Magnetic resonanceimaging; Pregnancy complications

Recebido em: 6/2/2006 Aceito com modificações em: 27/2/2006

Centro de Neoplasia Trofoblástica Gestacional (CNTG) da 33ª Enfermaria (Maternidade) da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (SCMRJ). Rio deJaneiro – RJ; Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP – Botucatu (SP), Brasil.1 Professor do Curso de Pós-graduação Médica em Clínica Obstétrica do Centro de Ensino da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (CESANTA).

Diretor do CNTG / SCMRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.2 Pós-graduando (Mestrado) do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP / SP. Assistente do CNTG /

SCMRJ. Pós-graduando (lato sensu) da 28ª Enfermaria (Ginecologia) da SCMRJ / CESANTA – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.3 Chefe do Laboratório de Anatomia Patológica e Citopatologia da 33ª Enfermaria da SCMRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.Correspondência: Paulo BelfortAvenida das Américas, 3939, Bloco 1, Conjunto 216 – Barra da Tijuca – 22630-003 – Rio de Janeiro – RJ – Telefone: (021) 3325-6643 / FAX 2220-0060– e-mail: [email protected]

Malformação arteriovenosa uterina após doença trofoblástica gestacionalUterine arteriovenous malformation after gestational trophoblastic disease

Paulo Belfort1, Antônio Braga2, Nazaré Serra Freire3

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IntroduçãoA malformação arteriovenosa uterina

(MAVU) é alteração vascular rara, com menos deuma centena de casos relatados na literatura1,2.Trata-se de dilatação no espaço interviloso da in-timidade miometrial que permite fluxo direto dosistema arterial para o venoso, sem participaçãocapilar3.

É classificada, de cotio, congênita ou adqui-rida. É congênita quando há diferenciação anôma-la no plexo capilar primitivo, resultando em co-municação anormal entre artérias e veias –fístula. Histopatologicamente essas malformaçõessão classificadas em cirsóides ou cavernosas, con-forme o diâmetro da fístula vascular. Nos casoscongênitos, é habitual a presença destas altera-ções vasculares em diversas áreas do organismo,notadamente no cérebro; presente no útero, nãose associa, pelo geral, a hemorragia4. Já a MAVUadquirida tem etiopatogenia relacionada a episó-dios traumáticos na matriz – curetagem uterina,ao carcinoma endometrial e cervical, à cicatrizuterina de cesariana e à exposição da mulher aodietilestilbestrol. Consta ser a doença trofoblásticagestacional (DTG) a causa mais importante daMAVU adquirida.

Exibindo clínica variável, sinala-se a hemor-ragia transvaginal como o elemento sintomatoló-gico mais freqüente. Vale citar a metrorragia ca-taclísmica que se segue após curetagem, iatrogê-nica, que pode levar ao choque hipovolêmico senão instauradas, de pronto, medidas para a esta-bilização hemodinâmica.

Ainda que o método padrão para o diagnósti-co da MAVU seja a angiografia pélvica, a ultra-so-nografia (US) com dopplerfluxometria tem-se mos-trado recurso semiótico de valor, com vantagemde ser procedimento inócuo, não invasivo. Atomografia computadorizada (TC), a histeroscopiae a ressonância nuclear magnética (RNM) ganhamespaço no diagnóstico desta anomalia vascular.

O tratamento contempla desde a condutaexpectante, reservado às pacientes assintomáti-cas, até a histerectomia, naquelas refratárias aotratamento farmacológico, desde que presentehemorragia. Atualmente terapêutica comembolização seletiva da vasculatura uterina temmostrado resultados promissores, principalmen-te naquelas que, jovens, mantêm desejo reprodu-tivo.

A importância do tema reside na raridadeda afecção - menos de uma centena de casos rela-tados1,2 - e na possibilidade de causar óbito mater-no em decorrência de hemorragia vultosa. É o ob-

jetivo deste artigo revelar a incidência e o com-portamento da MAVU DTG, salientando aspetosclínico-imagenológicos destas lesões e o segui-mento a que as pacientes foram submetidas, de-mais de rever a literatura.

MétodosTrata-se de estudo retrospectivo desenvol-

vido no Centro de Neoplasia Trofoblástica Gesta-cional da 33ª Enfermaria (Maternidade) da SantaCasa da Misericórdia do Rio de Janeiro (CNTG/SCMRJ). Foram acompanhadas neste centro es-pecializado, entre 1987 e 2004, 2764 pacientes comDTG. Destas, após a remissão, sete permanece-ram com seqüelas vasculares, diagnosticadas pormeio da US com dopplerfluxometria e RNM dapelve. Todas as sete pacientes com MAVU tive-ram comprovação histopatológica da DTG.

A suspeita diagnóstica foi suscitada naque-las pacientes que se encontravam em remissãopós-DTG, com níveis de subunidade beta da gona-dotrofina coriônica (β-hCG) normais e que apre-sentavam hemorragia uterina disfuncional. Taispacientes eram encaminhadas para o departa-mento de ultra-sonografia da 33ª Enfermaria, sendoaí avaliadas. Caso áreas heterogêneas nomiométrio fossem visualizadas, era iniciado es-tudo dopplerfluxométrico do útero com análiseespectral do fluxo sanguíneo. Os parâmetros diag-nósticos utilizados para definir MAVU foram áre-as de hipervascularização no miométrio commarcada turbulência no fluxo sangüíneo, além dediminuição no índice de pulsatilidade (IP) e de re-sistência (IR) e aumento na velocidade sistólicamáxima (VSM), na ausência de DTG persistente,atestada pela normalidade dos níveis da β-hCG.

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pes-quisa da SCMRJ, foram revistos os prontuáriosdestas pacientes com MAVU a fim de determinara incidência de fístulas arteriovenosas uterinasapós DTG, idade, perfil obstétrico, apresentaçãoclínica, estádio e fator de risco da DTG, nível ini-cial de gonadotrofina, quimioterapia, duração doseguimento, sintomatologia referida pelas pacien-tes relacionada à MAVU, aspeto sonográfico daMAVU com análise do IP, IR e VSM na intimidadedas lesões vasculares, morfologia das fístulas àRNM, bem como as complicações clínicas e trata-mento destas lesões.

A classificação adotada para estadiar neo-plasia trofoblástica gestacional (NTG) é aquela re-comendada pela Federação Internacional de Gi-necologia e Obstetrícia (FIGO) que define estádio I

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para as lesões limitadas ao útero, II para aquelasconfinadas à pelve, III em havendo metástasespulmonares, independente do acometimento pél-vico, e IV quando há metástases para outros síti-os, habitualmente fígado e cérebro. Já o risco atri-buído ao estádio proposto pela ISSTD (InternationalSociety for Study of Trophoblastic Disease) e aceitopela Organização Mundial da Saúde (OMS) confe-re pontuação a variáveis de idade, gravidez queoriginou a DTG, intervalo entre a gravidez ante-cedente à DTG e o início da quimioterapia, nívelinicial de β-hCG, tamanho do maior tumor, sítiosde metástases, número de metástases e falha daquimioterapia. Assim o estádio como o risco orien-tam a escolha terapêutica para a paciente, ne-cessária nos casos em que há plateau ou níveiscrescentes de β-hCG avaliados semanalmente5.

Os dados estatísticos foram analisados peloEpi-Info 2000, versão Windows, elaborado pelo Cen-tro de Controle de Doenças (Atlanta, EUA).

ResultadosA idade das pacientes por ocasião da DTG foi

em média 27,5 anos (extremos: 16-33, desvio pa-drão: 5,6), tendo engravidado média de 2,1 vezes(extremos: 1-4, desvio padrão: 1,3) e parido 0,5 vezem média (extremos: 0-3, desvio padrão: 1,0). Odiagnóstico da DTG deu-se em 57,2% (4/7) pelahistopatologia, cabendo à US diagnosticar 42,8%(3/7).

As formas clínicas da DTG assim se apre-sentaram inicialmente: mola completa em 71,4%(5/7) e mola parcial em 28,6% (2/7). Já o estádiofinal foi I em 71,4% (5/7) e III em 28,6% (2/7),com risco médio de 5,4 (extremos: 3-9).

Por ocasião do diagnóstico da gravidez mo-lar, a sintomatologia apresentada pelas pacientesfoi: hemorragia transvaginal em 85,7% (6/7), úterogrande para a idade gestacional em 42,8% (3/7),hiperêmese em 42,8% (3/7), cistos tecaluteínicosdos ovários em 28,5% (2/7) e edema dos membrosinferiores em 14,2% (1/7), nenhuma pacientecursando com toxemia. O nível inicial de gonado-trofina esteve entre 10.000 e 100.000 mUI/mL em52,7% (4/7) e acima de 100.000 em 48,2% (3/7).

O esvaziamento uterino ocorreu de formahabitual em duas pacientes, encaminhadas comsuspeita de DTG para nosso Centro Especializado,onde foram submetidas à vácuo-aspiração (VASP)uma, e a dilatação e curetagem (D&C) outra. Quan-to às demais: em duas realizaram-se D&C e aspi-ração manual intra-uterina, quando foram enca-minhadas ao CNTG com restos molares, sendo

então submetidas a VASP. Em outras duas foi rea-lizada D&C antes de serem encaminhadas aoCNTG com restos molares, sendo então submeti-das a VASP. A última delas, por ocasião da D&C,fora do Centro Especializado, teve extensa perfu-ração uterina, corrigida por laparotomia.

Foi a quimioterapia necessária em todas aspacientes. Duas tiveram remissão após dois ci-clos de metotrexato com resgate do ácido folínico(MTX/FC). Outras duas, após três ciclos de MTX/FC, necessitaram regime com actinomicina-D(Act-D), um ciclo em uma delas e três ciclos emoutra. Uma paciente, após dois ciclos de MTX/FC,apresentando metástases pulmonares, necessitouseis ciclos do regime EMA/CO (etoposida, meto-trexato, actinomicina-D, ciclofosfamida e oncovin)para conseguir a cura. Outra apresentou resis-tência após duas séries de MTX/FC e duas de Act-D, sendo necessários mais quatro ciclos do regi-me EMA/CO para a remissão do tumor. O casomais complicado necessitou quatro ciclos de MTX/FC, dois de Act-D, três de Act-D com etoposida, trêsdo regime EMA/CO e mais dois ciclos do regimeBEP (bleomicina, etoposida e cisplatina).

Todas as pacientes alcançaram remissão daNTG e permanecem em acompanhamento anual.Deu-se a remissão, após NTG, no tempo médio de19,7 meses (extremos: 14-36 meses, desvio pa-drão: 6,9 meses). A cura foi evidenciada pela nor-malização dos níveis séricos de β-hCG por maisde 12 meses. O tempo necessário para negativa-ção da β-hCG foi 7,7 meses (extremos: 2-24, des-vio padrão: 6,9 meses).

Após a alta, durante as consultas de segui-mento anual, 52,7% (4/7) das pacientes referiramhemorragia transvaginal de moderada a intensa,exigindo hospitalização. Uma delas, internada forado Centro Especializado, foi submetida a D&Csemiótica pelo sangramento transvaginal, evolu-indo com copioso sangramento e instabilidadehemodinâmica, necessitando transfusão de qua-tro concentrados de hemácias. Cessada a hemor-ragia, estabilizada hemodinamicamente, a pacien-te, bem como as outras três que sangravam, fo-ram controladas com acetato de medroxiprogeste-rona 150 mg intramuscular e, após três meses,iniciaram etinilestradiol 0,05 mg e levonorgestrel0,25 mg, a partir do que não mais sangraram. Duasdessas pacientes interromperam a associaçãohormonal proposta, aderindo a contraceptivos demenor dosagem, sem sinal de hemorragia. Qua-renta e oito por cento pacientes (3/7) mantive-ram-se permanentemente assintomáticas após acura da NTG.

As imagens proporcionadas pela US duran-te o seguimento anual e naquelas pacientes que

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apresentaram hemorragia transvaginal revelaramáreas anecogênicas, dando ao miométrio aspetoheterogêneo (Figura 1). Nestes casos o exame foicomplementado com o Doppler colorido, que exi-biu hipervascularização miometrial com marcadaturbulência vascular (Figura 2). A análiseespectral dos vasos mostrou baixa pulsatilidade,baixa resistência e VSM elevada, com IP médio de0,44 (extremos: 0,38-0,52; desvio padrão: 0,058),IR médio de 0,36 (extremos: 0,29-0,50; desvio pa-drão: 0,072); e VSM média de 64,6 cm/s (extre-mos: 37-96; desvio padrão: 23,99), levando à con-clusão de tratar-se de lagos vasculares no útero.Inexistindo β-hCG para sinalar NTG, foi selado odiagnóstico de MAVU adquirida após-DTG, cujaincidência, em relação às pacientes diagnostica-das com DTG, foi de 0,2% (7/2764).

planos axial, sagital e coronal. O útero mostrava-se aumentado de tamanho, miométrio heterogê-neo, notadamente na região fundo-corporal ante-rior e na posterior, observando-se, nessas topogra-fias, focos hipointensos nas seqüências de T2,considerados seqüela vascular (Figura 3). Houveainda descrição de ectasia e tortuosidade dos va-sos uterinos e parametriais bilateralmente.

Uma paciente foi submetida à RNM da pelvepara melhor caracterização das seqüelasvasculares. Foram obtidas imagens pélvicas nasseqüências pesadas em T1 com e sem supressãode gordura no plano axial, e pesadas em T2 nos

Duas pacientes engravidaram após 14 (pa-ciente I) e 19 (paciente II) meses do diagnóstico deMAVU. A paciente I manteve-se assintomática des-de a alta do seguimento pós-molar, e a paciente IIinterrompeu a contracepção hormonal por desejarnova gestação. As gravidezes foram acompanhadasno Centro Especializado e as imagens sonográfi-cas do útero demonstraram, com clareza, a conco-mitância de gravidez e MAVU, conforme revelamas Figuras 4 e 5. Os resultados obstétricos e peri-natais revelaram gestações de termo e partos va-ginais, dirigidos, nascendo conceptos hígidos, ummasculino (paciente I), outro feminino (pacienteII), Apgar de 1º e 5º minutos 8/9 (paciente I) e 8/10(paciente II). O delivramento foi espontâneo na pa-ciente I, à Baudelocque-Schultze, após 15 minu-tos, seguido de puerpério. Quanto à dequitação napaciente II, após expectativa de 60 minutos, não sedando delivramento espontâneo, e sem que o úterose contraísse adequadamente, fez-se a extraçãomanual da placenta com alguma dificuldade. Tra-tava-se de placenta sucenturiada e o exame ana-tomopatológico concluiu haver acretismo parcial.Durante o quarto período houve hemorragia mode-rada, coibida com o emprego de derivados ergóticosconjugado à perfusão de ocitocina. Contido o san-gramento, o puerpério seguiu sem sobressaltos.

Figura 3 - RNM de pelve mostrando útero aumentado de volume, com heterogeneidadedo miométrio, notadamente na região fundo-corporal anterior e posterior, observando-se nestas topografias focos hipointensos nas seqüências de T2, de aspecto vascular.Há ainda dilatação e irregularidade dos vasos uterinos.

Figura 2 - US com Doppler colorido mostrando útero com intensa hipervascularizaçãomiometrial com marcada turbulência, baixa impedância e tortuosidade vascular, cujaanálise espectral caracterizou-se por IP 0,40; IR 0,29 e VPS 88 cm/s.

Figura 1 - US em escala de cinza mostrando útero em AVF com forma e volume normais(6,6 cm de comprimento; 3,4 cm de largura; 6,1 cm de espessura; 71,1 cm3 de volume),textura miometrial heterogênea, representado por áreas anecogênicas, principalmenteem região póstero-fúndica, sinalando vasos miometriais serpiginosos e dilatados.

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DiscussãoÉ MAVU afecção bissexta, descrita original-

mente em 1926 por Dubreuil e Loubat6, a partirda qual vem recebendo sinonímia abundante con-forme o entendimento dos autores: aneurisma cir-sóide, aneurisma arteriovenoso, fístula arteriove-nosa, aneurisma racemoso, hemangioma caver-noso, angioma cavernoso, arterioectasia, angiomapulsátil e malformação arteriovenosa, termo queacreditamos descrever melhor a doença, por suanatureza hamartomatosa7.

Pode a MAVU ser classificada em congênitaou adquirida, nem sempre havendo consenso so-bre a real etiologia da afecção. Sabe-se que a MAVUcongênita é anomalia do desenvolvimento vascularembriológico, ocasionando múltiplas conexõesvasculares, manifestando-se notadamente no cé-rebro, músculo, pele e vísceras. Já os casos adqui-

ridos ocorrem quando há processo traumático noútero, como na D&C, na cicatriz de operação cesa-riana, após a exposição da mulher ao dietilestil-bestrol, no carcinoma endometrial e cervical, alémda DTG. Ficará sempre, contudo, a dúvida sobre agênese da MAVU nos casos em que doença e proce-dimentos se sobrepuserem, como ocorre amiúdeno esvaziamento uterino por D&C vigente gravidezmolar. Ademais, procedimentos traumáticos noútero ou doenças do órgão podem precipitar MAVUcongênita silenciosa. Sabe-se ainda que MAVU con-gênita pode ser hormônio sensível, crescendo emresposta à puberdade e à gravidez, dificultando suaclassificação nos casos de D&C por abortamento.Todavia, ainda que com os vieses sinalados, estábem estabelecido na literatura que a causa maisimportante de MAVU adquirida é a doençatrofoblástica gestacional8,9, responsável por 35,7%(5/14) dos casos de MAVU adquirida7.

A DTG é evento reprodutivo anômalo em quehá crescimento anárquico do tecido de revesti-mento das vilosidades coriais – trofoblasto, possu-indo graus variáveis de invasão e cujas formasclínicas são representadas pela mola hidatiforme(parcial e completa), mola invasora, coriocarcino-ma e tumor trofoblástico do sítio placentário, aexibir características benignas, malignas emetastáticas.

Na DTG, sobretudo na neoplasia trofoblásticagestacional, apresentando o trofoblasto anaplasiaacentuada e atividade mitótica elevada, asvilosidades coriônicas penetram nos vasosuterinos, proliferam e promovem alteração no lei-to vascular. Tais alterações cursam com destrui-ção e substituição do endotélio dos vasos, invasãoda parede arterial com destruição das fibras elás-ticas e musculares da camada média, promoven-do alteração vascular significativa, tornando aparede das artérias de espessas a delgadas,saculares e flácidas. Essas alterações, analisadascom subsídios da arteriografia pélvica, mostraramaumento do tamanho e da intensidade da vascu-larização do útero, aspeto irregular e tortuoso dasartérias miometriais e veias contrastadas suge-rindo a existência de comunicações arterioveno-sas vigente DTG. Com a remissão da doença,regrediam também as modificações vasculares,fazendo-se acreditar que a comunicação arterio-venosa fosse resposta vascular autolimitada àfisiopatologia da DTG. Ocorre de algumas pacien-tes permanecerem com alterações vasculares noútero – fístulas arteriovenosas, após a cura daDTG, induzindo a associação de MAVU com a mo-léstia trofoblástica, notadamente nos casos deneoplasia trofoblástica gestacional tratados comantiblásticos10,11.

Figura 4 - US transvaginal mostrando saco gestacional com embrião compatível comgestação de 6 semanas. Notar presença de áreas anecogênicas miometriaisrepresentando fístula arteriovenosa. Imagem cedida pelo Prof. Jorge de Rezende Filho.

Figura 5 - US transvaginal 2D com Doppler exibindo gestação de 6 semanas e intensavascularização miometrial decorrente das fístulas vasculares. Imagem cedida pelo Prof.Jorge de Rezende Filho.

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A real incidência da MAVU é desconhecida,vez que a maioria dos artigos relata série peque-na de casos. Entre 265 mulheres com sangramen-to uterino anormal, foram observados nove casosde MAVU (incidência de 3,3%). Entre estes doiscasos pós-DTG, com incidência de 0,7%, próximaàquela por nós encontrada: 0,2%. Certamente sãocifras que não refletem a realidade por seremexaradas por unidades de referência.

Consigna a literatura que as mulheres afe-tadas de MAVU encontram-se na faixa etária de20 a 40 anos, ao que se superpõe a experiênciaora relatada: 16 a 33 anos. No trabalho deTimmerman et al.1 a média de idade é 27,8 anos,igual à registrada neste estudo: 27,5 anos. Estafaixa etária inclui não apenas a maior prevalên-cia de DTG, mas sugere também relação entre asalterações hormoniais da puberdade e da gravidezna fisiopatogenia da MAVU.

Os antecedentes tocoginecológicos não sãomenos relevantes para pôr em evidência fatoresassociados à MAVU: D&C, cirurgias uterinas, cân-cer ginecológico, exposição ao dietilestilbestrol eDTG prévia. No que respeita o passado obstétrico,observa-se MAVU em pacientes com história deabortos recorrentes7 e até multíparas com proleconstituída12. Nossas pacientes tiveram média deduas gravidezes, ainda que 0,5 parto, dados próxi-mos a outros autores: média de duas gravidezes eum parto1.

O diagnóstico da DTG não foi estabelecidoda maneira habitual (por meio da US), pois 57,2%(4/7) o foram mediante exame histopatológico, ca-bendo à US diagnosticar apenas 42,8% (3/7) doscasos. Sabe-se ser a US responsável por quase 90%dos diagnósticos de gravidez molar, a histopatologiacontribuindo com menos de 2%2. O diagnósticohistopatológico freqüente quer apenas dizer queestas pacientes foram acompanhadas inicialmen-te fora do Centro Especializado de DTG, razão pelaqual a presença da mola não foi suspeitada a par-tir das imagens sonográficas. Tal circunstânciajustifica o fato de haverem sido as pacientes sub-metidas a D&C repetidas vezes. Além do risco deperfuração uterina, como ocorreu em uma pacien-te, e deportação trofoblástica, curetagem repetidaé fator de risco para MAVU adquirida.

Das formas clínicas da DTG predomina amola completa em relação à parcial: 71,4% (5/7) e28,6% (2/7), respectivamente. O estádio finalmostra que 28,6% das pacientes desenvolverammetástases pulmonares, ainda que todas apresen-tassem invasão miometrial. Em virtude disso, as-sim a NTG oriunda de MC como de MP, havendoinvasão miometrial, há fator de risco para MAVU.

A sintomatologia apresentada pelas pacien-

tes por ocasião do diagnóstico da gravidez molaresteve de acordo com a literatura, sendo repre-sentada por hemorragia transvaginal em 85,7%(6/7), útero grande para a idade gestacional em42,8% (3/7), hiperêmese em 42,8% (3/7), cistoseovariana em 28,5% (2/7) e edema dos membrosinferiores em 14,2% (1/7). Estes valores não fo-ram significativamente diferentes quando com-parados com a sintomatologia referida por 801 pa-cientes acompanhadas pelo CNTG/SCMRJ entre1992 e 199813. Sabe-se que o diagnóstico cada vezmais precoce da DTG restringe a sintomatologiaclínica, tornando a remissão espontânea mais pre-coce e freqüente.

Quase metade das pacientes apresentaramníveis de β-hCG superiores a 100.000 mUI/mL.Níveis elevados de gonadotrofina coriônica ates-tam atividade trofoblástica intensa, sinalandoigualmente acentuado processo proliferativo,degenerativo e invasivo do trofoblasto.

Durante o seguimento pós-molar, estabili-zando-se ou elevando-se os níveis de β-hCG, dosa-dos hebdomadariamente, deve-se iniciar a quimio-terapia.

A quimioterapia induz remissão na gran-de maioria de casos e, após 12 meses de níveisnormalizados de β-hCG, atesta-se a cura. Havidaremissão, encerra-se a sintomatologia, involueme desaparecem as alterações vasculares descri-tas: aumento dos vasos e da intensidade da vas-cularização do útero, aspeto irregular e tortuosodas artérias da parede uterina e veias contrasta-das sugerindo a existência de comunicações ar-teriovenosas.

Dado o seguimento por findo, são as pacien-tes orientadas a realizar revisão anual no CentroEspecializado, sendo dosada β-hCG e realizada UStransvaginal. Os ciclos menstruais do ano trans-corrido são analisados, valorizando-se quaisquerepisódios de hemorragia uterina disfuncional. Emmetade das nossas pacientes, (4/7), 57,1% houverelato de hemorragia transvaginal de moderada agrande intensidade. O sangramento transvaginalé a manifestação clínica mais indiciativa da MAVUsendo, por vezes, copiosa, podendo também se apre-sentar como quadro de insuficiência cardíacacongestiva, hemorragia pós-menopausa, dorpélvica crônica, hematúria, útero aumentado detamanho com consistência amolecida ou median-te tumoração pélvica assintomática2,14. Em algunscasos a massa pélvica é tão volumosa que chega aser palpável, tendo característica pulsátil, e sen-do acompanhada por murmúrio à ausculta15.

Deve-se evitar a curetagem uterina em taiscasos, pois pode ocorrer hemorragia, por vezesincontrolável. Nossa casuística inclui D&C

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semiótica realizada fora do Centro Especializado,cursando com sangramento vultoso, quase deman-dando histerectomia total abdominal. Em casosdessa natureza é a perda sangüínea tão marcanteque, não raro, induz choque hipovolêmico. Revelaa literatura a necessidade, em 30% dos casos16,de hemotransfusão, à semelhança do ocorrido comuma de nossas pacientes. Nos casos mais reni-tentes, havendo risco de vida, a histerectomia to-tal abdominal deve ser realizada15-17.

As que apresentaram hemorragia ou aque-las que em sua revisão anual, por ocasião da US,apresentaram áreas miometriais anecóicas,sonolucentes, dando aspeto heterogêneo à matriz,semelhante ao quadro de mola invasora, tiveramestas imagens correlacionadas com a β-hCG. Nor-mais os níveis de gonadotrofina coriônica e sus-peitada MAVU, realizava-se estudo dopplerfluxomé-trico do útero.

Entender o comportamento da MAVU empre-gando-se Doppler colorido é fundamental. A fístulaarteriovenosa se caracteriza por um emaranhadode múltiplas conexões vasculares de baixa resis-tência em que o sangue arterial passa bruscamen-te para uma rede vascular de baixa pressão. O flu-xo sanguíneo rapidamente se acelera, acarretan-do aumento na VSM. A baixa pressão do fluxo desaída causa discreta desaceleração durante adiástole, com diminuição da pulsatilidade do fluxoarterial. Por fim, o tortuoso aglomerado vascularapresenta rápida variação na direção do fluxo nãoobservado nos vasos normais18. Estas caracterís-ticas vasculares fornecem os parâmetros clássi-cos que diagnosticam MAVU: diminuição do IR,diminuição do IP, aumento da VSM, com pequenavariação nas velocidades sisto-diastólicas etortuosidade vascular.

Nossa casuística apresentou IP médio de0,44; IR médio de 0,36; VSM média de 64,6 cm/s,semelhante aos apresentados na série de novecasos de Timmerman et al.1, cuja média de IP foi0,45; IR de 0,37 e VSM de 56 cm/s, e aos dez casosdescritos por Huang et al.18, cuja variação de IP foide 0,25-0,55; IR 0,3-0,6 com VSM superior a 96cm/s.

A angiografia permanece como a técnicapadrão-ouro para o diagnóstico de MAVU7. Os tra-balhos pioneiros descrevendo MAVU mostram adilatação de vasos arteriais uterinos durante afase de enchimento arterial, com o contraste pas-sando rapidamente através de espaços vascularesamorfos para as veias ovarianas19. Imagens clás-sicas de angiografia da MAVU exibem hipertrofiabilateral das artérias uterinas cujo sangue é dre-nado rapidamente para uma massa tortuosa deveias. Atualmente, o procedimento, invasivo, di-

vide espaço com propedêutica moderna, nãoinvasiva, representada pela US. Os achados ultra-sonográficos revelavam áreas hipoecóicas na in-timidade miometrial, semelhando mola invasora20.Atualmente a US é associada à dopplervelocime-tria colorida21, cujo espectro de onda, IR, IP e VSM,fornece indícios muito satisfatórios para o diag-nóstico de MAVU.

RNM também pode ser utilizada para diag-nosticar MAVU. Em uma de nossas pacientes aressonância mostrou miométrio heterogêneo efocos hipointensos que correspondem às seqüelasvasculares, além de ectasia e tortuosidade dosvasos uterinos. Ainda que a US com Doppler colo-rido indique presença de MAVU, seus limites sãomelhor visualizados na RNM18,22. As característi-cas das fístulas na ressonância incluem múlti-plas áreas hipointensas, aumento do volume damatriz uterina com distorção em sua anatomia edilatação dos vasos uterinos. Sendo recursopropedêutico ainda pouco acessível, mais estudosdevem ser realizados a fim de elucidar as possibi-lidades da RNM frente à MAVU.

Recursos diagnósticos modernos, incluindohisteroscopia e TC têm-se mostrado úteis no diag-nóstico de MAVU. Na década de 90 surgiram naliteratura os primeiros trabalhos com histerosco-pia e MAVU. No primeiro caso em que a malfor-mação vascular foi visualizada por meio desta téc-nica, as imagens características descritascorrespondiam à massa pulsátil, rubra e alargadana parede uterina. A TC helicoidal com recons-trução tridimensional demonstra massa pélvicaaumentada com vasos tortuosos na região anexa,além de visualizar toda a dimensão da alteraçãovascular23. No relato original desta técnica apli-cada ao diagnóstico de MAVU utilizou-se a TC emquatro casos de MAVU. Por ter determinado comprecisão o tamanho, a extensão e a vasculariza-ção das fístulas, a TC foi fundamental para esco-lha da melhor terapêutica: histerectomia ouembolização. É a TC, demais, valiosa na monitori-zação das pacientes após o tratamento23,24. O diag-nóstico inconcusso de MAVU é indispensável paradistingui-la de hemangioma, sarcoma uterino eNTG (concomitante ou não)1.

Há que considerar no tratamento da MAVUfases de emergência, urgência e expectante. Cons-titui emergência a hemorragia profusa que ocor-re por ocasião do sangramento transvaginal, apósD&C iatrogênica ou não. Pode ser útil a instala-ção de cateter de Foley intra-uterino a fim detamponar a hemorragia16. Nem sempre se conse-gue estancar o sangramento. Nesses casos, ha-vendo risco de vida, pode-se optar pela ligaduracirúrgica da artéria ilíaca interna, procedimento

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nem sempre fácil, reservado a cirurgiões experi-entes. Indisponíveis tais recursos, recorrer à his-terectomia total abdominal considerada, então,cirurgia salvadora, principalmente naquelas comprole constituída25. O exame anatomopatológico dapeça cirúrgica haverá de revelar a naturezavascular da lesão: numerosos e irregulares cor-dões vasculares, de diferentes diâmetros, varian-do de 20 μm a alguns milímetros, presença deectasia focal luminal, ausência de processo infla-matório, áreas delimitadas de hemorragia recen-te e antiga, além da dificuldade em diferenciarartérias e veias pela presença de elementos am-bíguos nas estruturas vasculares característicosde MAVU12.

Estabilizada hemodinamicamente a pacien-te, deve-se iniciar tratamento de urgência. O tra-tamento farmacológico não apresenta, pelo geral,bons resultados, havendo risco elevado de hemor-ragia. Ainda assim, diversos autores têm apresen-tado resultados interessantes com fármacos notratamento da MAVU. Uma paciente com fístulaarteriovenosa uterina foi tratada com maleato demetilergonovina, durante um ano. Além de con-trolar a hemorragia, foi observada, mediante es-tudo dopplerfluxométrico, significativa redução dofluxo arterial na fístula uterina, atribuída pelosautores à medicação26. Em outro caso utilizou-seo danazol, para reduzir a hemorragia e o fluxo san-guíneo uterino, contribuindo para a trombose dafístula. Uma paciente com MAVU apresentourecorrência da fístula após embolização das arté-rias uterinas. Recusando nova embolização, masdesejosa em manter o potencial reprodutivo, apaciente foi tratada com 400 mg de danazol pordia, durante 12 meses. Com seguimento de 16meses, a paciente manteve-se livre de sangra-mento e sem recorrência da lesão uterina. Nossaexperiência mostrou resultados favoráveis com ouso do acetato de medroxiprogesterona 150 mg porvia intramuscular seguido de etinilestradiol 0,05mg e levonorgestrel 0,25 mg. Ainda que nossaspacientes tenham cessado o sangramento, salien-te-se que o tratamento medicamentoso só deveser instituído naquelas hemodinamicamente es-táveis e cujo seguimento possa ser realizado inin-terruptamente, pelo risco sempre presente dehemorragia.

A malformação vascular afeta, dominante-mente, mulheres jovens em idade reprodutiva,razão pela qual busca-se tratamento cirúrgico con-servador na falha do tratamento farmacológico ou,o que parece mais auspicioso, coadjuvante delesmelhorando o prognóstico. Wu et al.27 relataramos resultados obtidos em uma paciente na pós-menopausa com hemorragia por MAVU, tratada por

laparoscopia seguida de coagulação bipolar dosvasos uterinos, resultando na diminuição dos ní-veis de impedância e fluxo vascular à US comDoppler.

Procedimento conservador que melhor resul-tado tem alcançado é a embolização da artéria ute-rina28. A embolização da artéria uterina, cuja téc-nica está cristalizada9,29,30, representa alternati-va à histerectomia, sendo boa opção para preser-var a função reprodutiva nas pacientes acometi-das por MAVU. Desvantagem do procedimento re-side na recorrência das fístulas após emboliza-ção9,29 e pelo exigir pessoal treinado e recursostécnicos para sua realização.

Em revisão da literatura realizada em 2001,foram analisados 25 casos de MAVU tratados porembolização entre 1982 e 1999. A taxa de êxito,após uma a duas embolizações, foi 96%. O índicede complicação foi 4%, representado por parestesiatransitória com paralisia do braço esquerdo, difi-culdade na inserção do dispositivo paraembolização e persistência de coloração azuladana cérvice e parede vaginal. A revisão mostrouque as pacientes recuperavam-se bem após o pro-cedimento e mantinham a função uterina normal,com ciclos menstruais regulares, vez ser aembolização procedimento seletivo que bloqueiaos vasos principais que nutrem a fístula e pou-pam a circulação colateral ovariana que nutre oútero.

O tratamento conservador faculta nova gra-videz. O primeiro caso de gestação após emboliza-ção de fístula arteriovenosa foi de paciente que,aos 27 anos teve mola invasora, tratada com umciclo de MTX/FC31. Após remissão iniciou episó-dios repetidos de hemorragia, apresentando se-qüela vascular. Foi submetida a embolização daartéria uterina em 1985; engravidou 10 mesesapós, tendo a gestação evoluído até a 30ª semana,quando foi hospitalizada com dor abdominal, lom-bar e perda de líquido. Foi realizada cesárea deemergência após a cardiotocografia haver mostra-do desaceleração, nascendo concepto feminino,pesando 1.389 g. A placenta exibiu áreas deinfartos sépticos e o recém-nascido cursou cominfecção respiratória por Listeria, necessitandoamparo ventilatório, sobrevindo a cura após umasemana de tratamento. Três outros casos de gra-videz tumultuada foram relatados: dois deles complacenta prévia e um com parto prematuro16. Taisresultados negativos aventaram a hipótese de quea hipovascularização decorrente da embolizaçãouterina pudesse afetar a placentação e o cresci-mento fetal. A descrição de diversos outros exem-plos modificaram o quadro aparentemente desfa-vorável. Na revisão citada, dezoito das vinte e cin-

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co gravidezes após embolização das artériasuterinas por MAVU, 72% apresentaram evoluçãofavorável.

Nenhum dos casos de nossa experiência foitratado mediante embolização da artéria uterina.Ainda assim duas pacientes gestaram na vigên-cia de MAVU 12 meses depois do último cicloantiblástico. As gravidezes foram acompanhadasno Centro Especializado, sendo possível monitorarprecocemente a concomitância de gestação e dasfístulas arteriovenosas. Como mencionado, as gra-videzes foram exitosas, hígidos os conceptos.

Merece evocada a extração manual da pla-centa em uma das pacientes e a sua morfologiasucenturiada e com acretismo parcial. Ambas assituações foram observadas em uma de nossaspacientes. Impossível determinar nesse caso se ahemorragia descrita deveu-se à área de inserçãoda placenta acreta ou se relacionada às fístulas.Todavia, a despeito da hemorragia e da hipotonia,a situação foi facilmente controlada pela conjuga-ção de derivado ergótico e ocitocina.

Conquanto raras, as malformações arterio-venosas devem ser suspeitadas naquelas pacien-tes com história de DTG, invasora em especial,exibindo hemorragia transvaginal. Torna-se indis-pensável, para comprovar o diagnóstico e afastarNTG recidivante, dosagem de â-hCG e US pélvicacom dopplerfluxometria. Há necessidade, por ve-zes, de complementar a propedêutica com histe-roscopia, TC e RNM. Deve-se avaliar clinicamen-te a paciente, estabilizando-a hemodinamicamen-te, tentar tratamento farmacológico, associado ounão a embolização das artérias uterinas, em par-ticular naquelas que desejam engravidar.Curetagem uterina deve ser proscrita, nada aju-dando e condicionando, ao revés, hemorragia. Fa-lhando a embolização ou as medidas para conter osangramento, a vida da paciente deve ser preser-vada realizando histerectomia, decisão nem sem-pre fácil mas, salvadora. Exitosa a embolização,as pacientes podem engravidar no futuro, sendoconsideradas de risco as prenhezes, a exigir redo-brados cuidados e monitorização do bem-estar fe-tal.

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