105
Vulnerabilidade social: o psicodiagnóstico como m étodo de mapeamento de doenças mentais Social vulnerability: psychological assesment as a mapping method of mental diseases Vulnerabilidad social: el psico-diagnóstico como método de mapeo de dolencias mentales Leila Grana * ,I ; André G. Bastos ** ,I,II I Contemporâneo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade II Universidade Federal do Rio Grande do Sul Endereço para correspondência RESUMO O presente estudo demonstra a experiência de trabalho em um Centro de Referência de Assistência Social do interior do Rio Grande do Sul. Foi realizado um mapeamento de doenças mentais na população em vulnerabilidade social, através do processo de psicodiagnóstico, em caráter de estudo-piloto. Foram escolhidos três sujeitos como amostragem: uma mulher, uma adolescente e um menino. Foram analisados os fatores psicossociais, e os resultados revelaram que essa população está mais sujeita ao desenvolvimento de psicopatologias. O estudo demonstrou que a inserção do psicodiagnóstico pode contribuir como instrumento de diagnóstico da população. É necessário que haja interesse por parte das políticas públicas em ofertar os serviços de saúde à população para trabalhar com os fatores de risco socioemocionais de maneira satisfatória. Palavras-chave: Vulnerabilidade, Psicodiagnóstico, Distúrbios mentais, Políticas públicas.

Artigos Para Tcc

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O presente estudo demonstra a experiência de trabalho em um Centro de Referência de Assistência Social do interior do Rio Grande do Sul. Foi realizado um mapeamento de doenças mentais na população em vulnerabilidade social, através do processo de psicodiagnóstico, em caráter de estudo-piloto. Foram escolhidos três sujeitos como amostragem: uma mulher, uma adolescente e um menino. Foram analisados os fatores psicossociais, e os resultados revelaram que essa população está mais sujeita ao desenvolvimento de psicopatologias. O estudo demonstrou que a inserção do psicodiagnóstico pode contribuir como instrumento de diagnóstico da população. É necessário que haja interesse por parte das políticas públicas em ofertar os serviços de saúde à população para trabalhar com os fatores de risco socioemocionais de maneira satisfatória.

Citation preview

Page 1: Artigos Para Tcc

Vulnerabilidade social: o psicodiagnóstico como m étodo de mapeamento de doenças mentais

 

Social vulnerability: psychological assesment as a mapping method of mental diseases

 

Vulnerabilidad social: el psico-diagnóstico como método de mapeo de dolencias mentales

 

 

Leila Grana*,I; André G. Bastos**,I,II

I Contemporâneo Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade II Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO

O presente estudo demonstra a experiência de trabalho em um Centro de Referência de Assistência Social do interior do Rio Grande do Sul. Foi realizado um mapeamento de doenças mentais na população em vulnerabilidade social, através do processo de psicodiagnóstico, em caráter de estudo-piloto. Foram escolhidos três sujeitos como amostragem: uma mulher, uma adolescente e um menino. Foram analisados os fatores psicossociais, e os resultados revelaram que essa população está mais sujeita ao desenvolvimento de psicopatologias. O estudo demonstrou que a inserção do psicodiagnóstico pode contribuir como instrumento de diagnóstico da população. É necessário que haja interesse por parte das políticas públicas em ofertar os serviços de saúde à população para trabalhar com os fatores de risco socioemocionais de maneira satisfatória.

Palavras-chave: Vulnerabilidade, Psicodiagnóstico, Distúrbios mentais, Políticas públicas.

ABSTRACT

This study demonstrates the experience of working in a Reference Center of Social Welfare of the state of Rio Grande do Sul. A mapping of the mental illnesses of the population in social vulnerability was carried out, through the process of

Page 2: Artigos Para Tcc

psychological diagnosis, as a pilot study. Three subjects were chosen as sample: a woman, a female teenager and a boy. The social and psychological factors were analyzed. The pilot study showed that the inclusion of psychological diagnosis can contribute as an important diagnostic tool of the population. However, it is necessary that public policy offers the proper health services to the population as a strategy to the work with risk factors.

Keywords: Vulnerability, Psychological diagnosis, Mental disorders, Public policy.

RESUMEN

El presente estudio demuestra la experiencia de trabajo en un Centro de Referencia de Asistencia Social del interior de Rio Grande do Sul. Fue realizado un mapeo de dolencias mentales en la población en vulnerabilidad social, a través del proceso de psico-diagnóstico, en carácter de estudio-piloto. Fueron escogidos tres sujetos como muestreo: una mujer, una adolescente y un niño. Fueron analizados los factores psicosociales, y los resultados revelaron que esa población está más sujeta al desarrollo de psicopatologías. El estudio demostró que la inserción del psico-diagnóstico pode contribuir como instrumento de diagnóstico de la población. Es necesario que haya interés por parte de las políticas públicas en ofertar los servicios de salud a la población para trabajar con los factores de riesgo socioemocionales de manera satisfactoria.

Palavras clave: Vulnerabilidad, Psico-diagnóstico, Transtornos mentales, Políticas públicas.

 

 

A partir de nossa experiência profissional, observamos que famílias economicamente carentes apresentam diversos desajustes familiares e sociais. Sabemos que a vulnerabilidade social não é fato recente em nossa sociedade, e nela estão embutidas precariedades de diversos segmentos, tais como habitação, saneamento básico, educação e saúde.

Diante do contato com as famílias que pertencem à área de abrangência do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), percebemos que inúmeras delas possuíam dificuldades financeiras, emocionais e psicológicas. Nesse sentido, buscamos realizar, através do psicodiagnóstico, um mapeamento emocional da população no formato de estudo-piloto, a fim de melhor identificar e compreender as dificuldades de ordem psíquica.

Para ilustrar o presente artigo, utilizaremos três estudos de caso. São eles: uma adulta do sexo feminino, de 44 anos de idade, um menino de 10 anos de idade e uma adolescente de 13 anos. Todos os sujeitos são moradores de um bairro de baixa renda em um Município do interior do Rio Grande do Sul.

As avaliações incluíram entrevistas clínicas, grafismos, H.T.P. (House – Tree – Person), Teste das Fábulas de Düss, hora de jogo diagnóstica, técnica de Rorschach, Escalas Wechsler de Inteligência (WISC III e WAIS III) e Teste Gestáltico Visomotor de Bender, do Sistema de Pontuação Gradual (B-SPG).

Page 3: Artigos Para Tcc

 

Desenvolvimento

Diante das precárias condições no espaço social brasileiro, o Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), firmou parceria com a nova Política Nacional da Assistência Social (PNAS/2004) com o intuito de investir em uma rede articulada de proteção social às famílias vulneráveis. A nova proposta da PNAS/2004 reorganiza os projetos, programas, serviços e benefícios, indicando a implantação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) no território nacional.

A proteção social tem como objetivo prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Nesse sentido, foram implantados os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) em comunidades de baixa renda com o propósito de atuar na inclusão e garantir os direitos sociais, que são o direito à renda, a segurança alimentar e a assistência social.

O CRAS é a unidade pública estatal responsável pela oferta de serviços de proteção social básica da assistência social. Nele é ofertado o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), que é proporcionado através de serviços socioassistenciais, socioeducativos e de convivência, além de oficinas de inclusão produtiva.

Um dos profissionais que compõe a equipe técnica do CRAS é o psicólogo, e é através de visitas domiciliares e trabalhos em grupo que a equipe busca realizar o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Em Psicologia, �vulnerabilidade refere-se a uma predisposição individual para apresentar resultados negativos no desenvolvimento, ou seja, aumenta a probabilidade de um resultado negativo ocorrer na presença de um fator de risco � (Masten & Gamerzy, 1985).

Historicamente, a população vulnerável está inserida na sociedade em espaços estigmatizadores, conforme menciona Wanderley (2001):

A pobreza contemporânea tem sido percebida como um fenômeno multidimensional que atinge tanto os clássicos pobres (indigentes, subnutridos, analfabetos...) quanto outros segmentos da população pauperizados pela precária inserção no mercado de trabalho (migrantes discriminados, por exemplo).

Não é resultante apenas da ausência de renda; incluem-se aí os outros fatores como o precário acesso aos serviços públicos (grifos nossos) e, especialmente, a ausência de poder. Nessa direção, o novo conceito de pobreza se associa ao de exclusão, vinculando-se às desigualdades existentes e especialmente à privação de poder de ação e representação. (p. 23)

Apesar de a pobreza ser fato histórico, a discussão a respeito desse tema somente adentrou a comunidade científica e as organizações internacionais a partir da década de 90. Especialmente nas Organizações das Nações Unidas (ONU), surgiu o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que visa ao combate à pobreza no trabalho junto aos governos, iniciativa privada e sociedade civil, por reconhecer que há um número expressivo de sujeitos que vivem em precárias condições. Nesse sentido, um dos objetivos dos países que fazem parte desse Programa, inclusive o Brasil, é reduzir a pobreza extrema até o ano 2015.

Ainda de acordo com o PNDU, no Brasil, atualmente (dados de 2008), 7,5 milhões de brasileiros ainda têm renda domiciliar inferior a um dólar por dia. Frente a essa

Page 4: Artigos Para Tcc

realidade, existem algumas iniciativas por parte dos governos na tentativa de mudar tal cenário social (http://www.pnud.org.br/pnud/).

Nas famílias, além de visualizarmos a problemática social, também identificamos o sofrimento psíquico de seus membros. Nossa experiência mostra que, frente ao profissional de saúde mental, o sujeito em sofrimento tende a descarregar suas aflições e angústias. Apesar de a proposta do PAIF ser voltada para os trabalhos de grupo visando ao fortalecimento dos vínculos familiares e/ou comunitários, existem situações em que urge realizarmos a psicoterapia individual por identificarmos intenso sofrimento psíquico.

Conforme levantamento realizado no CRAS, em três anos, 447 famílias foram cadastradas. De acordo com dados obtidos no Programa Saúde da Família (PSF), que atua na mesma área de abrangência do CRAS, existem 629 famílias, totalizando um número de 2.026 sujeitos. Mensuramos 152 sujeitos que buscaram ou foram encaminhados ao atendimento psicológico. No entanto, a continuidade do acompanhamento se dá em muito poucos casos, em virtude da desistência do paciente (104 sujeitos desistiram do atendimento).

Dentre as problemáticas existentes, depressão, alcoolismo/drogadição e dificuldades de aprendizagem são as mais frequentes. Diante da grande demanda, realizamos o encaminhamento a outro profissional da rede pública. Normalmente, as pessoas precisam deixar suas angústias e aflições em uma lista de espera sem tempo previsto para serem atendidas, uma vez que não há profissionais em número e capacitação suficientes para realizar o trabalho no Município. A questão da doença dos nervos é abordada por Costa (1989) como um adoecer mental espalhado pela população de baixa renda, e isso aparece muito nos relatos de nossos usuários.

Apesar de o processo psicodiagnóstico não fazer parte das atividades propostas pelo Programa, percebemos uma demanda e uma oportunidade de mapear a população utilizando esse processo para avaliar as doenças mentais e/ou demais dificuldades que possam estar vivenciando no âmbito psicológico. Essa escolha foi feita por se tratar de método estrutural que nos permite obter tanto dados qualitativos como quantitativos dos sujeitos avaliados.

Considerando o sofrimento emocional inerente ao sofrimento socioeconômico, o presente estudo-piloto buscou mapear tanto as doenças mentais como as possíveis dificuldades dessa população vulnerável. Dessa forma, acreditamos que a realização do psicodiagnóstico seja um procedimento válido na busca de investigar as principais demandas dos munícipes concernentes à saúde mental. Segundo Cunha (2000), um dos objetivos do psicodiagnóstico é a prevenção, isto é, a identificação dos problemas de maneira precoce, a avaliação de riscos e a realização de uma estimativa de força dos sujeitos para o enfrentamento de situações difíceis, novas e estressantes. Essa autora ainda acrescenta:

O psicodiagnóstico é um processo científico, limitado no tempo, que utiliza técnicas e testes psicológicos (input), em nível individual ou não, seja para entender problemas à luz de pressupostos teóricos, identificar e avaliar aspectos específicos, seja para classificar o caso e prever seu curso possível, comunicando os resultados (output) na base dos quais são propostas soluções, se for o caso. (p. 26)

De acordo com Arzeno (1995), o processo psicodiagnóstico inclui as entrevistas iniciais com familiares, a hora de jogo e o uso de testes. No que tange aos propósitos, são de estabelecer o diagnóstico e, em consequência, avaliar o prognóstico e as devidas estratégias para ajudar o sujeito frente as suas problemáticas.

Page 5: Artigos Para Tcc

Pensando no psicodiagnóstico como um trabalho rico em informações obtidas a partir das estratégias de instrumentalização regulamentadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), podemos inferir que a avaliação tem muito a contribuir com a questão pública. Ainda conforme Arzeno (1995), através do psicodiagnóstico, podese chegar mais próximo dos motivos do sofrimento dos sujeitos.

Descreveremos os casos para exemplificar as dificuldades psicológicas vividas por essa população. Cabe ressaltar que todos os procedimentos éticos foram seguidos, incluindo a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por parte dos participantes e/ou responsáveis.

 

Caso A:

Paciente do sexo feminino, 44 anos, casada, 05 filhos, ensino fundamental incompleto, do lar. Após envolver-se em mais uma briga, em que, de um lado, estava o esposo, e de outro, o filho primogênito juntamente à companheira, sendo que ambos os lados faziam uso de facas, a paciente deu baixa hospitalar em nosso Município. No hospital, fez um breve tratamento clínico e, em seguida, foi encaminhada ao CRAS. A paciente chegou até nós extremamente debilitada, muito magra, conforme prontuário médico do PSF. Constava, ainda, que a paciente apresentava dores no corpo e cefaléia, ansiedade, tremores, fala lenta e baixa bem como sintomas depressivos. Dentre alguns sintomas depressivos, podemos citar visões desoladas e pessimistas de futuro, ideias e atos autolesivos, sono perturbado, apetite diminuído e humor deprimido.

No decorrer do acompanhamento médico, foram realizados encaminhamentos à psiquiatria; no entanto, a paciente suspendeu o uso dos psicofármacos devido a dificuldades financeiras. Tais dificuldades ainda fazem parte do histórico clínico e social dessa paciente.

O histórico da paciente também nos mostra que ela fez uso de bebidas alcoólicas durante um período de 08 anos, entre 32 e 40 anos de idade. A paciente remeteu-se à data de nascimento de sua penúltima filha, hoje com 12 anos de idade, e também à morte de seu pai para lembrar a época em que abusava do álcool. Sua aproximação com a bebida se deu a partir de dificuldades financeiras enfrentadas pela família e também da perda da figura paterna, que era referência para a paciente.

Durante acompanhamento realizado com a paciente, esta demonstrou ter raiva de bebidas alcoólicas, contudo, apenas após muita investigação ela revelou que também fez tal uso. Disse que dormia apenas quando estava alcoolizada, e que essa foi uma época muito difícil de sua vida.

O esposo, por sua vez, fez uso do álcool por um período aproximado de 25 anos, entre 17 e 42 anos de idade. Em virtude de encontrarse com problemas de saúde, o esposo cessou a ingestão de bebidas alcoólicas há cerca de um ano.

Ocorreram muitos episódios de violência física entre pai e filhos, principalmente com o primogênito, quando o primeiro se encontrava alcoolizado e o filho era ainda muito pequeno.

A violência ainda hoje marca presença nesse contexto familiar. A agressividade aparece acentuadamente no terceiro filho e na filha mais jovem, de 09 anos de idade, através de desobediência às figuras de autoridade. Há indícios de que o terceiro filho, de 15 anos, esteja fazendo uso de drogas. O adolescente também não

Page 6: Artigos Para Tcc

demonstra nenhum interesse em continuar estudando, e os pais pouco o incentivam a manter a frequência escolar.

Os membros normalmente se vestem com roupas velhas, às vezes, sem serem passadas. Quando lavadas, ficam expostas à poeira e à fumaça da chaminé da casa. Os dois netos da paciente, que residem bem próximos a sua casa, normalmente necessitam de higiene corporal.

A família apresenta situação socioeconômica bastante comprometida, e isso se reflete na precária habitação. A residência de madeira é pequena e possui frestas nas paredes, o que se agrava especialmente no inverno, quando a temperatura, às vezes, é negativa.

Esse grupo familiar é beneficiário do Programa Bolsa Família (PBF) e do Programa de Aquisição de Alimentos (P. A. A.), desenvolvido mensalmente no Município. Quando há entrega da cesta de alimentos, os membros ficam envolvidos na atividade, deixando de ir à escola e/ou ao atendimento psicológico.

O resultado da avaliação mostrou que a paciente apresenta grandes dificuldades. Podemos mencionar a orientação autopsíquica prejudicada bem como o prejuízo na memória de curto e de longo prazos, com lentidão de pensamentos, ideação suicida e comportamentos automutilantes (fazer buracos na perna e tentar cortar pulsos utilizando-se de uma faca).

A paciente, há dois anos e meio, vem realizando tratamento com médico psiquiatra, em um Município distante cerca de 200 km. As consultas são marcadas em períodos de quatro meses, e, normalmente, a família estende esse período em virtude das dificuldades financeiras.

Durante o tratamento, várias trocas de medicamentos foram efetuadas na busca de melhorias para a saúde. Essa paciente apresenta um caso muito difícil de ser diagnosticado, pois, da maneira como os sintomas se sobrepõem, há, simultaneamente, indícios de que ela possua esquizofrenia e/ou síndrome orgânica cerebral, conforme resultado de sua avaliação. O tratamento realizado com médico psiquiatra não apresentou melhoras significativas, uma vez que também não foi possível realizar exames complementares de neuroimagem. O Município não possui convênio com as clínicas/hospitais que realizam exames dessa espécie.

Diante de tal situação, seu quadro clínico não pôde ser diagnosticado de maneira rápida na tentativa de evitar mais riscos para si mesma e para sua família. Seria útil e necessário, então, fazer uso de vias secundárias, que demandam um tempo extenso para o fechamento do diagnóstico. Essas vias se dão através de reavaliações psicológicas programadas para períodos que podem variar de 06 a 12 meses, a fim de podermos nos aproximar longitudinalmente do mais real possível em termos diagnósticos.

Por conhecermos tal realidade, ofertamos a avaliação a essa paciente, para então melhor demonstrar à família e a ela suas dificuldades, o seu grau de seu sofrimento e, principalmente, para propor os devidos encaminhamentos. Voltaremos a esse caso na discussão teóricoclínica.

 

Caso B:

Menino de 10 anos, estudante da 5ª série de uma escola pública estadual, que reside com pai, madrasta e duas irmãs.

Page 7: Artigos Para Tcc

Sua avaliação psicológica foi realizada devido à presença de comportamentos que envolviam pequenos furtos, piromania, agressividade, mentiras e desinteresse escolar.

Anteriormente a essa avaliação, não conhecíamos e não houve nenhum contato com o menino. Seu pai possui histórico familiar de envolvimento com brigas, furtos e possível tráfico de drogas. O contato entre os filhos e a mãe pouco ocorre, em virtude de ela residir em outra cidade e pouco visitar os dois filhos, que ficaram com o pai quando houve a separação do casal. Na época do novo casamento do pai, a menina tinha 6 anos, e o menino, 4 anos de idade. Assim, a madrasta tornou-se responsável pela educação e pelos cuidados com as crianças.

No que se refere à residência da família, esta é grande, de alvenaria, com quartos separados para casal e crianças. Não adentramos a casa toda, contudo, visualizamos que a mobília da sala é composta por móveis bonitos, novos e é bem limpa. Praticamente todas as vezes que fazíamos visita à família, a casa estava sendo faxinada, organizada, com muitas roupas lavadas. Todos os membros da família se vestem adequadamente, têm roupas bastante limpas e bonitas.

A família possui um veículo que, segundo a madrasta do menino, seu esposo utiliza para o trabalho. Esse trabalho é tráfico de narcóticos, camuflado com vendas de CDs e DVDs piratas. O pai do menino, por vezes, fica cerca de 15 dias fora de casa devido ao trabalho.

A avaliação foi iniciada com entrevistas com a responsável e, posteriormente, com o menino, a partir de uma estratégia de instrumentos, que incluíram: grafismos, H. T. P., hora de jogo diagnóstica, Teste Gestáltico Visomotor de Bender, Teste das Fábulas e WISC III.

Uma das dificuldades encontradas na realização dessa avaliação foi em relação ao acesso ao pai, pois, mesmo quando solicitado por duas vezes, não aceitou nosso convite. De acordo com a madrasta, o pai é figura ausente mesmo quando presente no lar.

O pai compareceu somente no momento da devolução da avaliação, quando sua companheira não pôde se fazer presente. Os resultados da avaliação mostraram que o menino possui um lar desprovido de afeto, segurança, apoio e diálogo. Como consequência, passou a apresentar sentimentos de inadequação, descontentamento, diminuição grave em sua autoestima e também sintomas depressivos, com tendência a se afastar ainda mais de seus familiares e do meio social.

Parece-nos que, em virtude de estar inserido em um ambiente constituído de estigmas, exclusão e preconceito, bem como carência de afeto e incentivos, o menino passou a apresentar comportamentos inadequados. A avaliação apresentou um prognóstico reservado para o caso estudado. Mesmo diante de tal prognóstico e de esclarecimentos sobre a importância de se buscar os devidos encaminhamentos, a família não efetuou nenhum movimento nessa direção.

 

Caso C:

Adolescente de 13 anos de idade, sexo feminino, estudante da 5ª série de uma escola pública. Reside com a mãe, a irmã de 11 anos, o irmão de 15 anos e o padrasto.

Page 8: Artigos Para Tcc

A adolescente avaliada possui ainda dois irmãos por parte de pai. Este constituiu nova família, cuja companheira possui três filhos que não são dele.

Os pais da adolescente tiveram o relacionamento conjugal marcado por inúmeras brigas e separações. Na época do término do casamento dos genitores, a adolescente tinha aproximadamente 10 anos de idade. Cada cônjuge aponta, a partir de seus pontos de vista, diferentes fatores como desencadeadores do fim da relação. De acordo com a mãe, o abuso de bebidas alcoólicas pelo ex-companheiro foi prejudicial. O pai, por sua vez, verbaliza que sua ex-companheira não dava a devida atenção e cuidados aos filhos, além de frequentemente sair com amigas e traí-lo algumas vezes.

Quanto à renda familiar, esta é obtida a partir do trabalho da mãe e do padrasto da adolescente. A mãe prepara lanches e, no turno inverso ao da escola, a adolescente e os irmãos vendem os produtos. O padrasto trabalha em uma cidade vizinha.

A adolescente frequentava as oficinas de reforço escolar e sociopedagógicas no CRAS há dois anos, quando a mãe relatou que a filha estaria apresentando dificuldades de concentração, com baixo rendimento escolar. A adolescente apresenta histórico de repetições na 1ª e na 4ª séries.

A partir do contato já existente entre a equipe do CRAS e a adolescente, foi possível perceber que ela se apresentava de maneira bastante infantil e envergonhada se comparada com as demais adolescentes de igual idade e, principalmente, em relação à irmã mais jovem.

Assim, somando as dificuldades apresentadas pela mãe e as observações realizadas, foi dado início ao processo de avaliação com a adolescente com o objetivo de identificar suas dificuldades e potencialidades. Primeiramente, realizamos as entrevistas individuais com os genitores. Com a adolescente, foram utilizados os seguintes instrumentos: entrevistas clínicas, grafismos diversos, H. T. P., WISC- III e Teste das Fábulas.

A mãe, que, inicialmente, buscou ajuda e mostrou interesse por melhorias no rendimento e no comportamento da filha, demonstrou também ter sido a principal responsável pela desistência da mesma nas oficinas do CRAS bem como no processo da avaliação. A mãe deixava os afazeres domésticos para a adolescente, principalmente nos dias em que esta tinha compromisso no CRAS.

Os resultados da avaliação mostraram que a paciente se apresentava com QI total 83, isto é, em nível médio inferior, segundo WISC III, necessitando de avaliação complementar a partir de exames de neuroimagem devido a dificuldades no índice de organização perceptual e de resistência à distração, bem como de apoio psicopedagógico e de acompanhamento psicológico.

Particularmente, no que tange à avaliação dos exames de neuroimagem, estes não puderam ser realizados pelos mesmos motivos já mencionados no caso A. Convém ressaltar que esse fato prejudicou o andamento do trabalho. Não há expectativas de serem devidamente resolvidas essas questões, mas a infeliz possibilidade de seus sintomas serem intensificados com o decorrer do tempo pela ausência do tratamento adequado.

 

Discussão Teórico-clínica

Page 9: Artigos Para Tcc

É na família que as funções de cuidado e transmissão dos valores e das normas culturais devem ser cumpridas, produzindo assim as condições necessárias para a sua participação nos demais grupos (Bock, 1999). Esses grupos, dos quais também fazemos parte, são o bairro onde residimos, a escola, os programas e a igreja que frequentamos, dentre outros. Todos eles, conforme seus contextos, tendem a nos moldar.

De acordo com Eizirik, Kapczinski e Bassols (2001), as mudanças ocorridas na vida dos adultos são, hoje, um reflexo do meio social, cultural e econômico em que vivem os sujeitos, somado a sua história transgeracional.No que tange à identidade social, esta é constituída pelo conjunto de características individuais reconhecida pelo meio onde o sujeito está inserido. Isso significa dizer que, em um ambiente pobre do ponto de vista econômico, tende-se a criar/moldar sujeitos pobres de cultura, com rede afetiva precária e com pouco diálogo, com ausência de autonomia e baixa autoestima.

Considerando que o sofrimento psíquico é um fenômeno que perpassa todas as classes sociais, acreditamos, entretanto, que, em sujeitos vulneráveis, o sofrimento psíquico tem maior amplitude, em virtude de se ter menor possibilidade para melhorar suas relações familiares e sua qualidade de vida, uma vez que estão também desprovidos de apoio e de serviços públicos satisfatórios.

Nossas avaliações demonstraram ampla vulnerabilidade ao contexto nos três casos, cada um com a sua particularidade, mas com um fator de risco em comum: o próprio meio ambiente onde estão inseridos. Além desse importante fator de risco, existem tantos outros muito presentes nessa população, que são: a violência doméstica e social, o histórico familiar de alcoolismo/drogadição, negligências diversas por parte dos pais e/ ou responsáveis, sintomas depressivos, etc. Observamos, ainda, a evasão escolar, a ausência de rede afetiva entre familiares e o espaço que privilegie a proteção e a influência educativa, bem como a ausência de disponibilidade para aprender a lidar melhor com os filhos.

Existem inúmeros estudos que demonstram que a exposição de crianças e jovens às práticas parentais inadequadas (conflitos, violência, coerção, etc.) e baixo envolvimento familiar e socio-cultural constituem fatores de risco para o desenvolvimento e aumentam a vulnerabilidade de eventos ameaçadores (delinquência, drogas, etc.) externos ao contexto familiar (Ferreira & Marturano, 2002; Gomide, 2003; Mc Dowell & Parke, 2002; Marturano, 2004).

Particularmente no que se refere à violência, esta existe de maneira exacerbada, podendo estar explícita, através dos relatos dos membros ou de sinais físicos presentes nos corpos dos sujeitos, ou camuflada, quando os sujeitos tentam negar a existência da violência física e/ou psicológica em seus lares. De qualquer maneira, o sujeito violentado tende a apresentar sintomas depressivos, pois sofre chantagens, acusações e ameaças por parte de seus responsáveis.

Na população avaliada, constatamos que em todas há a presença de abuso de drogas ou de envolvimento com tráfico por algum membro familiar. Para alguns, esse é um mecanismo de fuga da realidade, ao mesmo tempo que, para outros, é fonte de renda. Também podemos considerar que o abuso de substâncias pode ser encarado como uma tentativa de automedicação, em que o sujeito busca remediar principalmente seus sintomas mais depressivos.

Mesmo sem as devidas condições, as novas famílias vão se formando. Normalmente, não há planejamento familiar, e o número de filhos é maior do que as reais possibilidades econômicas e afetivas da família. Observamos que, nos três casos, os filhos vieram sem planejamento.

Page 10: Artigos Para Tcc

Também verificamos que, em todos os casos, os pacientes tiveram perda de um dos pais, seja em decorrência de morte, seja de separação conjugal. A separação, depois de ocorrida, deposita o compromisso para um dos responsáveis que, sem as estruturas física e/ou emocional adequadas, não consegue ofertar aos filhos o devido suporte de que tanto necessitam. Os genitores têm dificuldades em lidar com os filhos.

Nas entrevistas realizadas com os sujeitos avaliados ou com seus familiares, enumeramos várias vezes a fala: �eles (os filhos) têm de tudo �, referindo-se ao aspecto econômico, quando dizem que têm o que comer, o que vestir e onde dormir. Sabemos que isso não é suficiente. De fato, os pais não percebem que os filhos estão desprovidos de afeto, de apoio e de segurança, necessários para um adequado desenvolvimento biopsicossocial.

Muito frequentemente, precisamos reafirmar a importância de um vínculo afetivo satisfatório entre os membros da família, pois nossa experiência nos mostra que, frente a carências em demasia, a falta de perspectivas, de incentivos parentais, de características de personalidade que justifiquem uma mudança, podemos dizer que o futuro reserva a eles a marginalização, o uso de álcool e/ou drogas e a prostituição, que contribuiem para que os fatores de risco venham a se manter bem presentes em seu contexto social.

É importante também assinalarmos que, dentre as problemáticas mais eminentes no público infanto-juvenil, se encontram as dificuldades de aprendizagem. Acreditamos que exista tal demanda em virtude de os pais não possuírem escolaridade suficiente para auxiliar os filhos, e apresentarem até mesmo a alegação que a responsabilidade para com o filho é apenas da instituição de ensino. Especialmente no caso B, o menino demonstra insatisfação, descontentamento através de comportamentos como piromania e agressividade na escola e em casa, como forma de dizer que está necessitando de mais atenção. O menino encontra-se vulnerável e exposto a fatores de risco.

Para mantermos a presença do público no desenvolvimento das atividades grupais, enfrentamos grande obstáculo. Por um lado, temos a impressão de que os sujeitos se sentem amedrontados por estarem conversando sobre suas experiências quando, na verdade, a população vizinha já conhece seus problemas. Por outro lado, quando conversamos sobre suas famílias, as mulheres falam simultaneamente, mostrando que precisam ser ouvidas e ajudadas. Avaliamos que, de maneira geral, os sujeitos de baixa renda se mostram reservados e com dificuldades de se vincular à equipe multidisciplinar, mas, quando se sentem seguros, depositam suas expectativas nos profissionais. Para assegurarmos a presença dos sujeitos nas atividades desenvolvidas objetivando auxiliá-los, foi preciso desenvolver a estratégia de atrair a população com brindes. Isso nos dá a impressão de que a atenção e o apoio devem ser fornecidos apenas mediante um pagamento, principalmente quando nos referimos às questões familiares, educacionais e afetivas. Temos que pagá-los para que aceitem se tratar.

Os sujeitos avaliados apresentam sentimentos de inadequação, baixa autoestima, são muito agressivos e inseguros e possuem pouca iniciativa. Essas características nos remetem a um ambiente empobrecido de afeto, onde as relações afetivas estão fragilizadas, com pouco vínculo e diálogo.

Os resultados também nos mostram que as mulheres são as responsáveis pelos cuidados da casa e dos filhos, enquanto o homem possui maior liberdade e é o responsável pelo sustento familiar. É uma estruturação familiar mais primitiva.

Abreu, Salzano, Vasques, Filho e Cordás (2006) revelam um dado assustador, a partir de dados estatísticos da Organização Mundial da Saúde (OMS). A depressão

Page 11: Artigos Para Tcc

tem projeção para ser a quarta causa de ônus social em 2020. Nosso trabalho com a população tem nos mostrado que cresce de maneira significativa o número de pessoas com doenças mentais, como, por exemplo, a depressão. De acordo com Abreu et al. (2006), eventos estressantes, tais como perdas de entes queridos, de emprego e/ou doença e ausência de suporte social satisfatório, estão intrinsecamente relacionados ao risco de se apresentar quadro depressivo. A depressão envolve um acentuado esforço pessoal, físico e social e compreende a incapacidade individual e o desgaste emocional e financeiro suportado pelos familiares.

Evidenciamos que não pretendemos discorrer sobre a depressão, mas mencioná-la de maneira suficiente e coerente, haja vista que tal patologia é desencadeada pela soma dos fatores genético, psicológico e socioambiental e está presente nos resultados das três avaliações realizadas e aqui descritas, como morbidade principal ou como comorbidade.

Arriscamos dizer, então, que sintomas depressivos podem surgir a partir do momento em que o sujeito, independentemente de sua idade, não encontra afeto e apoio suficientes em seu grupo familiar e em sua rede de apoio social. Segundo Bock, Furtado e Teixeira (1999), diante de situações difíceis e de sofrimento intenso é que mais precisamos de pessoas que sejam continentes com nosso sofrimento, e que não devemos excluir o sujeito nem discriminálo de maneira a evitar que a problemática se torne ainda maior. Quando sozinhos, temos a tendência de nos menosprezar, ter baixa autoestima e, infelizmente, procurar nas ruas o que não encontramos em nosso lar. Diante dos resultados das avaliações, inferimos que as pessoas se apresentam com prognósticos de reservado a ruim por apresentarem aqueles sintomas e, muitas vezes, por não receberem o devido tratamento.

Considerando que Cunha (2000) define o psicodiagnóstico como um processo que busca identificar problemas de maneira precoce, avaliar riscos e realizar uma estimativa da força dos sujeitos para o enfrentamento de situações difíceis, novas e estressantes, faz sentido dizermos, então, que podemos identificar quais sujeitos são resilientes ou vulneráveis através do psicodiagnóstico. A partir de suas experiências em trabalhos com comunidades de baixa renda, Hutz, Koller e Bandeira (1996) afirmam:

Se desejarmos conduzir programas sociais capazes de melhorar o prognóstico e a qualidade de vida das nossas populações pobres e marginalizadas, teremos que produzir localmente o conhecimento necessário para entender com clareza qual o nível de stress produzido pelos fatores da vida cotidiana e que variáveis ou processos aumentam a vulnerabilidade ou protegem os indivíduos do risco produzido por esses eventos. (p. 84)

Sendo assim, podemos utilizar o psicodiagnóstico como método de evitar a disseminação das problemáticas e/ou doenças mentais quando realizado adequadamente. Esse processo se mostrou útil e de caráter preventivo-interventivo.

 

Considerações Finais

Este estudo revelou resultados tristes e persistentes, porém reais, de uma parte do cenário social brasileiro. Acreditamos que esses resultados se repitam em outras comunidades de baixa renda de todo Brasil, e talvez, do mundo.

Trabalhar com famílias de baixa renda é, simultaneamente, satisfatório e difícil, pois, de um lado, percebemos que podemos contribuir com elas quando ofertamos

Page 12: Artigos Para Tcc

nossa compaixão e respeito, ou seja, quando as escutamos; por outro lado, o trabalho se torna difícil, pois, diante da complexidade das questões que cercam a miséria, parece que pouco contribuímos. No trabalho com essa população, precisamos compreender que a ajudamos a obter um nível de funcionamento mais sadio dentro de seu contexto, fazendo o que está ao nosso alcance.

Nós, profissionais de saúde, juntamente aos governos, iniciativa privada e sociedade civil, se realmente reconhecermos tamanha carência presente nos lares brasileiros, poderemos dedicar mais atenção e manifestar menos preconceitos em relação aos mesmos.

Evidenciamos que o psicodiagnóstico é um instrumento que visa a ajudar no diagnóstico dos problemas e a facilitar o planejamento objetivo das soluções, na busca da superação dos graves déficits de saúde mental que estão presentes nessas comunidades. Nesse sentido, assinalamos a importância de maior número de psicólogos buscarem a capacitação nessa área, pois ainda há muito o que fazer, principalmente com as populações vulneráveis.

Parece-nos utopia pensar que, a partir de métodos clínicos tradicionais da Psicologia, se possa curar as mazelas da sociedade e impedir o que podemos chamar de epidemia socio-emocional. Entretanto, a Psicologia, identificando e mensurando as doenças mentais distribuídas pela população, pode, através do processo psicodiagnóstico, por exemplo, contribuir com a saúde mental e/ou com a promoção da saúde dos sujeitos que se encontram em vulnerabilidade social.

Entendemos que a sociedade urge por políticas públicas capazes de bem atender as demandas da população mais carente. Caberá, assim, às autoridades e aos cidadãos buscar a implementação de políticas de saúde mental que valorizem a dignidade humana de TODOS os sujeitos. As políticas não devem ser assistencialistas, e sim, devem colocá-los como sujeitos ativos no processo de mudanças.

Sem superações, o Brasil, futuramente, continuará apresentando o retrato de uma sociedade repleta de pobreza, de exclusão social e, em consequência, de sofrimento psíquico como o mencionado neste artigo.

 

Referências

Abreu, C. N., Salzano, F. T., Vasques, F., Filho, R. C., & Cordás, T. A. (2006). Síndromes psiquiátricas: diagnóstico e entrevista para profissionais de saúde mental. Porto Alegre: Artmed.

Arzeno, M. E. G. (1995). Psicodiagnóstico clínico: novas contribuições (B. Affonso Neves, trad.). Porto Alegre: Artmed.

Bock, A. M. B., Furtado, O., & Teixeira, M. L. T. (1999). Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia (13a ed., rev. e ampl.). São Paulo: Saraiva.

Costa, J. F. (1989). Psicanálise e contexto cultural. Imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapia. Rio de Janeiro: Campos.

Cunha, J. A. (2000). Psicodiagnóstico-V (5a ed. rev. e ampl.). Porto Alegre: Artmed.

Eizirik, C. L., Kapczinski, F., & Bassols, A. M. S. (2001). O ciclo da vida humana: uma perspectiva psicodinâmica.Porto Alegre: Artmed.

Page 13: Artigos Para Tcc

Ferreira, M. C. T., & Marturano, E. M. (2002). Ambiente familiar e os problemas do comportamento apresentado por crianças com baixo desempenho escolar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 15(1), 35-44.

Gomide, P. I. C. (2003). Estilos parentais e comportamento antisocial. In A. Del Prette & Z. A. P. Del Prette (Orgs.), Habilidades sociais, desenvolvimento e aprendizagem (pp. 21-60). Campinas, SP, Alínea.

Hutz, C., Koller, S., & Bandeira, D. (1996). Resiliência e vulnerabilidade em crianças em situação de risco. In S Koller (Ed.), Aplicações da psicologia na melhoria da qualidade de vida. Porto Alegre: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. (Coletâneas da ANEPP, Vol.1, n.12).

Marturano, E. M. (2004). Fatores de risco e proteção no desenvolvimento sócio-emocional de crianças com dificuldades de aprendizagem. In E. G. Mendes, M. A. Almeida & L. C. A. Williams (Orgs.), Avanços recentes em educação especial (pp. 159-165). São Carlos, SP: EDUFSCar.

Masten, A., & Garmezy, N. (1985). Risk, vulnerability and protective factors in developmental psychopathology. In B. B. Lahey& A. E. Kazdin (Eds.), Advances in clinical child psychology (pp. 1-52). New York: Plenum.

Mc Dowell, D. J., & Parke, R. D. (2002). Parent and child cognitive representations of social situations and children �s social competence. Social Development, 11(4), 469-486.

Wanderley, M. B. (2001). Refletindo sobre a noção de exclusão. In Bader Sawaia, As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (2a ed., pp. 16-26). Petrópolis, RJ: Vozes.

Page 14: Artigos Para Tcc

Examinar as condições de vida da população exige ter informação não apenas sobre a renda, mas também sobre a escolaridade, a saúde, as condições de inserção no mercado de trabalho, o acesso aos serviços prestados pelo Estado e as oportunidades de mobilidade social. Enfim, a qualidade de vida é um fenômeno com diversas determinações, as quais devem ser levadas em conta para construir políticas públicas visando uma vida mais digna para todos.

E é certo que a atuação do poder público nesses territórios vulneráveis é fundamental para a distribuição mais equitativa tanto de bens e serviços públicos quanto para o desenvolvimento de ações que contribuam para romper o ciclo da pobreza.

Page 15: Artigos Para Tcc

Cadernos de Saúde PúblicaPrint version ISSN 0102-311X

Abstract

FERREIRA, Rosiane Araújo et al. Análise espacial da vulnerabilidade social da gravidez na adolescência. Cad. Saúde Pública [online]. 2012, vol.28, n.2, pp. 313-323. ISSN 0102-311X.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2012000200010.

O objetivo deste estudo foi apresentar uma análise espacial da vulnerabilidade social da gestação na adolescência, por meio do geoprocessamento de dados sobre nascimento e morte, existentes nos bancos de dados do Ministério da Saúde, com intuito de subsidiar ações e estratégias no processo de gestão intersetorial com base na problematização da análise espacial em áreas-bairros. Os mapas temáticos sobre educação, ocupação, parição e situação marital das mães, referentes a todos os nascimentos e óbitos no município, apresentaram correlação espacial com a gestação na adolescência. A sobreposição desses mapas temáticos produziu o mapa da vulnerabilidade social da gestação na adolescência e da mulher. O geoprocessamento revelou-se de grande importância para o estudo da vulnerabilidade social.

Keywords : Gravidez na Adolescência; Adolescente; Vulnerabilidade Social; Análise Espacial.

Análise espacial da vulnerabilidade social da gravidez na adolescência

Page 16: Artigos Para Tcc

 

Spatial analysis of the social vulnerability of adolescent pregnancy

 

 

Rosiane Araújo FerreiraI, II; Maria das Graças Carvalho FerrianiI; Débora Falleiros de MelloI; Ione Pinto de CarvalhoI; Maria Aparecida CanoI; Luiz Antônio de OliveiraIII

IEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil IIFaculdade de Medicina, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil IIIInstituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil

Correspondência

 

 

RESUMO

O objetivo deste estudo foi apresentar uma análise espacial da vulnerabilidade social da gestação na adolescência, por meio do geoprocessamento de dados sobre nascimento e morte, existentes nos bancos de dados do Ministério da Saúde, com intuito de subsidiar ações e estratégias no processo de gestão intersetorial com base na problematização da análise espacial em áreas-bairros. Os mapas temáticos sobre educação, ocupação, parição e situação marital das mães, referentes a todos os nascimentos e óbitos no município, apresentaram correlação espacial com a gestação na adolescência. A sobreposição desses mapas temáticos produziu o mapa da vulnerabilidade social da gestação na adolescência e da mulher. O geoprocessamento revelou-se de grande importância para o estudo da vulnerabilidade social.

Gravidez na Adolescência; Adolescente; Vulnerabilidade Social; Análise Espacial

ABSTRACT

The purpose of this study was to present a spatial analysis of the social vulnerability of teenage pregnancy by geoprocessing data on births and deaths present on the Brazilian Ministry of Health databases in order to support intersectoral management actions and strategies based on spatial analysis in neighborhood areas. The thematic maps of the educational, occupational, birth and marital status of mothers, from all births and deaths in the city, presented a spatial correlation with teenage pregnancy. These maps were superimposed to produce social vulnerability map of adolescent pregnancy and women in general. This process presents itself as a powerful tool for the study of social vulnerability.

Page 17: Artigos Para Tcc

Pregnancy in Adolescence; Adolescent; Social Vulnerability; Spatial Analysis

 

 

Introdução

A gestação na adolescência é tema contemporâneo, abordado por diferentes áreas do conhecimento.

A gestação na adolescência ganha visibilidade como problema de saúde, a partir da década de 70, com o aumento proporcional da fecundidade em mulheres com 19 anos de idade ou menos. No período de 1965 a 2006, a fecundidade geral declinou aproximadamente de seis filhos para 1,8 filhos por mulher, verificando-se diferenças regionais e entre as mulheres de diferentes graus de escolaridade, e aquelas com menos tempo de estudo apresentaram taxas mais elevadas. Ao contrário da fecundidade geral, a fecundidade adolescente aumentou sua participação relativa, no mesmo período, passando de 7,1%, em 1970, para 23%, em 2006 1.

Após 2009, observa-se redução nas taxas de gestação na adolescência, no país, relacionada: ao aumento do grau de escolaridade, à ampliação do mercado de trabalho para as mulheres, às campanhas em relação ao uso de preservativo, com a disseminação da informação e do maior acesso aos métodos anticoncepcionais 2. Contudo, a redução da gestação na adolescência não ocorre de forma uniforme, mas apresenta desigualdades, de acordo com o desenvolvimento social do território, sendo menor nas classes sociais mais excluídas 3,4.

A redução das iniquidades sociais é uma das prioridades da política de saúde do adolescente, no país. Segundo a política de saúde dos adolescentes e jovens 5, as ações e estratégias de promoção da saúde e redução das iniquidades da gestação na adolescência devem ser organizadas em rede de atenção à saúde, intra e intersetorialmente, pela análise da situação de um território e pela participação social, respeitando-se as diversidades.

Compreende-se que a gestação na adolescência não se constitui como um problema em si, mas ao contexto de iniquidade que a produz e reproduz, podendo fazer parte dos projetos de vida de adolescentes e até se revelar como elemento reorganizador da vida 6.

Em São Carlos, São Paulo, a taxa de gestação na adolescência segue a tendência nacional de redução e, em 2008, esteve abaixo das médias estadual e nacional, sendo de 13,5%, 29,17% e 15,75%, respectivamente. Denota-se aumento proporcional do risco de morbimortalidade infantil nessa faixa etária, relacionado à maior incidência do baixo peso ao nascer, ao menor número de consultas no pré-natal e às intercorrências no parto (Departamento de Informática do SUS. http://www.datasus.gov.br).

Tendo como pressupostos a diversidade da adolescência e a determinação social da gestação na adolescência, o interesse deste estudo foi conhecer e analisar o contexto social das disparidades intraurbanas da gestação na adolescência, em São Carlos, São Paulo. O referencial teórico adotado foi o de vulnerabilidade 7, aqui entendida como indicador de iniquidade social, distinguida em três dimensões interdependentes: individual, social e programática. Para os autores, "(...) a

Page 18: Artigos Para Tcc

vulnerabilidade social se relaciona aos aspectos materiais, culturais, políticos que dizem respeito à vida em sociedade, como educação, trabalho, relações de gênero, relações raciais etc." 7 (p. 397).

A vulnerabilidade se apresenta como perspectiva de renovação das práticas de cuidado para além do risco de adoecer, especialmente na promoção da saúde, constituindo-se em importante referencial para a construção de intervenções intersetoriais dinâmicas e aplicáveis 8.

Há estudos que apontam para a importância da incorporação da técnica de geoprocessamento na saúde pública no Brasil, especialmente no mapeamento de doenças e avaliação de risco 9,10. Considerando a densidade de informações disponíveis nos bancos de dados oficiais, na atualidade, o objetivo deste estudo foi apresentar uma análise espacial da vulnerabilidade social da gestação na adolescência, por meio do geoprocessamento de dados sobre nascimento e morte, existentes nos bancos de dados do Ministério da Saúde, com vistas a subsidiar ações e estratégias no processo de gestão intersetorial com base na problematização da análise espacial em áreas/bairros.

 

Material e método

Trata-se de estudo ecológico, pois são considerados como unidades de análise os 236 bairros da zona urbana do Município de São Carlos.

A base digital dos bairros utilizada para esse trabalho foi gerada no Laboratório de Pesquisas Interdisciplinares da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, no âmbito do projeto Observatório dos Determinantes Sociais de Saúde.

As fontes de dados foram provenientes do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), cedidos gentilmente pelo Setor de Vigilância Epidemiológica do município.

O campo de estudo foi o município de São Carlos, localizado no centro geográfico do Estado de São Paulo, Brasil, com população estimada, para 2008, de 221.950 habitantes (Departamento de Informática do SUS.http://www.datasus.gov.br), taxa de urbanização de 96,39% 11, a fecundidade geral por mil mulheres entre 15 e 49 anos de 44,88, para o mesmo ano (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados.http://www.seade.sp.gov.br). Em 2000, a taxa de analfabetismo na população com 15 anos ou mais era de 5,64%, a média de estudos entre a população de 15 a 64 anos foi de 8,29 anos e 99,06% dos domicílios possuíam saneamento e infraestrutura urbana adequados.

A gestão da saúde pública em São Carlos está distritalizada em cinco Administrações Regionais de Saúde (ARES): ARES 1 - Aracy; ARES 2 - Vila Isabel; ARES 3 - Redenção; ARES 4 - São José; ARES 5 - Santa Felícia. Cada ARES possui serviços de baixa e média densidade e unidade de Pronto Atendimento. Todas as ARES referenciam para um Centro de Especialidades Médicas, um Centro de Atenção Psicossocial, um hospital geral filantrópico conveniado com o SUS e o Hospital-Escola da Universidade Federal de São Carlos. A atenção primária à saúde é mista, coexistindo três modalidades: unidades básicas de saúde (UBS), Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e unidades da Estratégia Saúde da Família (UESF). Em 2008, a Estratégia Saúde da Família (ESF) cobria cerca de 24% da população. O município é referência regional na atenção à gestante e ao neonato de alto risco.

Page 19: Artigos Para Tcc

Foram georreferenciados na malha cartográfica do município os dados das mães e crianças, disponíveis no SINASC e no SIM, do período de 2006 a 2008. O período da pesquisa se justifica pela disponibilidade dos dados desagregados por endereço, no sistema de vigilância municipal.

As variáveis analisadas, no SINASC e no SIM, em relação às mães, foram: endereço de residência, idade, estado civil, escolaridade, ocupação, parição e número de consultas no pré-natal. A etnia estava subnotificada e, portanto, não foi utilizada. No que se referem às crianças, as variáveis foram: peso ao nascer e duração da gestação. No SIM, também foi selecionada a causa mortis, com o objetivo de estudar a relação das mortes infantis evitáveis com as condições sociais das mães. Os critérios de exclusão foram: não residir na zona urbana de São Carlos e/ou ter o endereço de residência incompleto.

Assim, a espacialização geográfica baseou-se em todos os nascimentos e óbitos infantis das mulheres residentes em São Carlos, no período de 2006 a 2008, cujos endereços estavam completos no SINASC e no SIM, ou seja, 7.679, correspondendo a 95% do total de 8.065 nascimentos e óbitos infantis.

A análise não se limitou às mães adolescentes, considerando que estudar as desigualdades entre as faixas etárias era um dos objetivos específicos da pesquisa.

Sempre que possível, as variáveis foram transformadas em binárias. A faixa etária foi classificada como ser adolescente ou não, o estado civil, como morar ou não com o pai da criança, no momento do parto. A escolaridade utilizou como referência o Ensino Fundamental, tendo em vista que é direito social no país e mais de 80% das mães apresentaram mais de oito anos de estudo. Desse modo, as mães foram classificadas em ter ou não menos de oito anos de estudo. Quanto à parição, as mães foram classificadas como: primíparas ou multíparas. Na causa do óbito infantil, a classificação baseou-se na Lista Brasileira de Mortes Evitáveis, como: evitável, não evitável e mal definida. Segundo o Ministério da Saúde, morte evitável é aquela pode ser prevenida pelos serviços e tecnologias oferecidos pelo SUS 12. Em relação ao número de consultas no pré-natal, tomou-se como referência a recomendação do Ministério da Saúde para a realização mínima de seis consultas durante a gestação. Quanto às ocupações, as mães foram classificadas de acordo com a competência exigida, segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), quais sejam: ensino superior, ensino técnico, ensino fundamental ou sem exigência. As mães sem ocupação foram classificadas como: desocupada ou doméstica 13.

Foram georreferenciadas as condições mais vulneráveis das mães e das crianças, conforme apresentadas naTabela 1.

 

Page 20: Artigos Para Tcc

 

Visando melhor organização dos dados, no ArcView 9.3 (Environmental Systems Research Institute Inc.,http://www.esri.com/software/arcview/), foi criado um arquivo de geodatabase contendo feature dataset e respectivos features class. Os planos de informação (features class), bem como o projeto no ArcMap (interface do ArcView) foram configurados para sistema projetado UTM, datum WGS84.

No SIG ArcView 9.3 foi inserida a base cartográfica que contém a malha urbana de São Carlos, escala 1:20.000, cedida gentilmente pela Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Carlos. A base original foi retificada e corrigida geometricamente, tomando-se por referência pontos de controle levantados em imagem de satélite ASTER, resolução espacial de 15m. Os polígonos dos bairros e ARES foram traçados na base cartográfica primária, por meio do programa Autocad (Autodesk San Raphael, Estados Unidos). Para o georrefenciamento, adotou-se projeção UTM e datum WGS84.

Configurado o SIG, elaborados o banco de dados e a base cartográfica, passou-se a georreferenciar os dados de nascimentos e óbitos por endereço de residência, tendo em foco aumentar a confiabilidade da classificação do bairro no endereço do SINASC e SIM. A análise por bairro, como menor unidade geográfica, e na ARES, baseou-se na lógica da territorialização e da gestão de saúde local.

Na tabela de dados dos pontos, criada no SIG, foi lançado um campo identificador (ID), o qual foi preenchido com o mesmo número constante no campo ID da tabela do banco de dados Dbase IV (http://www.dbase.com/). Após lançados os eventos, na forma gráfica de pontos, realizou-se a operação de união das tabelas do SIG com a tabela externa no formato Dbase IV. Utilizando-se a base georreferenciada, vetorizaram-se os planos de informação referentes aos bairros e às áreas de cobertura das ARES.

A espacialização ocorreu com o uso da técnica de interseção entre os pontos de nascidos vivos e óbitos com os polígonos representantes dos ARES e dos bairros. Concluída a interseção dos planos de informação e levantada a relação caso/região, procedeu-se ao tratamento estatístico de classificação dos dados.

Page 21: Artigos Para Tcc

A análise espacial dos planos de informação oportunizou a construção de mapas temáticos: nascidos vivos, gravidez na adolescência, baixo peso ao nascer, prematuridade, mortes infantis evitáveis, escolaridade, ocupação, estado civil, parição, consultas no pré-natal.

O mapa temático da gestação na adolescência foi o resultado da sobreposição da prevalência e da taxa da gestação na adolescência por bairros. A sobreposição dos mapas temáticos: escolaridade, ocupação, situação marital e parição geraram o mapa de vulnerabilidade social.

 

Resultados

No triênio estudado, verificam-se disparidades intraurbanas, como: em sessenta bairros não houve registro de mães adolescentes, quarenta e oito bairros apresentaram taxas de nascidos vivos acima da média municipal (15,2%), em dezesseis bairros foram encontradas taxas acima de 25% e 11,2% do total dos nascimentos ocorreram apenas no bairro Aracy. Os bairros que apresentaram maior número de nascidos vivos total foram os que registraram maior taxa de gestação na adolescência (Tabela 2).

O cruzamento dos dados pelo sistema ArcView identificou cinco gradientes de densidade de gestação na adolescência, classificados por cor, da mais escura para a mais clara.

De acordo com a Figura 1, os bairros mais densos foram o Aracy (ID2), a Chácara São Caetano (ID86), o Santa Felícia (ID164), o Presidente Collor (ID3), Jockey Club (ID 178). Todos os bairros estão em bolsões de pobreza da periferia da cidade.

O bairro Chácara São Caetano (ID186) chama a atenção por ser área de pequena extensão, com densidade 5 de gestação na adolescência, inserido em uma ARES com densidade 0, a ARES 4 - São José. A hipótese é que a densidade da gestação na adolescência esteja relacionada à densidade populacional das áreas. A investigação dessa hipótese não foi realizada porque requer dados populacionais por bairros que não estavam disponíveis noCenso Demográfico de 2000 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. http://www.ibge.gov.br), apenas por setores censitários, que nem sempre coincidiam com o limite dos bairros. No Censo Demográfico de 2010, houve adequação entre os setores censitários e a territorialização local, permitindo pesquisas futuras.

A análise dos dados pelo sistema ArcView identificou quatro gradientes de vulnerabilidade, classificados por cor, da mais escura para mais clara. A densidade 9 de vulnerabilidade indica as áreas onde é maior o percentual de mães, em todas as faixas etárias, com menos de oito anos de estudo que estão excluídas ou inseridas precariamente no mercado de trabalho e que têm o maior número de filhos. Coincidentemente, o bairro Aracy (ID2) apresenta a maior densidade de vulnerabilidade social, seguido pelos bairros Santa Felícia (ID164), Antenor (ID1), Presidente Collor (ID3), Cruzeiro do Sul (ID7) e Jockey Club (ID178) (Figura 2).

Os resultados foram categorizados em nove grupos, da maior para a menor densidade, e podem ser visualizados no mapa da Figura 3. As áreas mais escuras referem-se aos bairros Aracy (ID2), Presidente Collor (ID3), Santa Felícia (ID164), Jockey Club (ID178), Cruzeiro do Sul (ID7), novamente coabitando com as áreas de maior vulnerabilidade social. As áreas mais claras correspondem às áreas de médio grau de vulnerabilidade social e que, também, se encontram em áreas periféricas da cidade. Destaca-se a enorme disparidade na frequência das mortes infantis evitáveis, variando de oito ocorrências, somente no bairro Aracy, para nenhuma

Page 22: Artigos Para Tcc

ocorrência em 199 dos 234 bairros do município. Ressalta-se que mortes infantis evitáveis foram mais frequentes no período neonatal precoce (0-3dias) (Figura 3).

Foi possível verificar a correlação espacial entre densidade de gestação na adolescência (Figura 1), de vulnerabilidade social (Figura 2) e de morbimortalidade neonatal (baixo peso ao nascer e mortes infantis evitáveis) (Figura 3).

 

Discussão

As disparidades intraurbanas e a correlação espacial positiva entre a densidade de nascidos vivos (Figura 1), a gestação na adolescência e a vulnerabilidade social (Figura 2) reforçam que a gestação na adolescência é fenômeno de reprodução social, relacionada às condições de gênero. Oliveira 14 estudou os significados da maternidade em populações de baixa renda, em São Paulo, e afirma que, nessas comunidades, o papel social da mulher ainda é o cuidado da casa e da educação dos filhos. Frente às limitadas possibilidades de se emanciparem economicamente, para muitas dessas meninas a maternidade é uma âncora social para se tornarem adultas. Nessas comunidades, a família ocupa posição central, enquanto a escolaridade e o trabalho tomam posições periféricas. A autora concluiu que o nascimento, a amamentação, o crescimento e a adolescência constituem-se realidades simbólicas, circunscritas, imaginadas e reproduzidas de diferentes maneiras, dependendo dos contextos socioculturais. Nas palavras da autora: "... ainda que a gravidez seja processada no corpo das mulheres, seus significados são construídos com base na experiência social e cultural e variam conforme a classe social, a idade, o gênero, dentre outros fatores" 14 (p. 14).

As áreas de maior densidade de vulnerabilidade social e de gestação na adolescência coincidem com as áreas de menor renda do município.

Segundo os dados do Cadastro Único das Famílias em Situação de Vulnerabilidade Social, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em 2008, as famílias beneficiárias do Bolsa Família (programa de transferência de renda para famílias com renda per capita inferior a ½ salário mínimo 15), concentravam-se nos bairros Aracy (ID2), Antenor (ID1), Presidente Collor ID3), Santa Felícia (ID164), Cruzeiro do Sul (ID7) e Jockey Cub (ID 178), sendo essas as áreas com altas densidades de gestação na adolescência. Tais resultados confirmam a produção social da gestação na adolescência no município.

Rosa 16 estudou os determinantes da reincidência da gestação nas adolescentes em Rondonópolis, Mato Grosso, e encontrou relações positivas entre escolaridade, ocupação, multiparidade e espaço geográfico das residências das mães adolescentes, geralmente se localizando no que ele denominou de "periferia das periferias", ou seja, as mães adolescentes estão distribuídas nos pontos extremos da cidade, justamente nos lugares mais carentes e de difícil acesso aos bens comunitários e àqueles oferecidos pelo poder público.

Cavasin et al.17 desenvolveram estudo exploratório em cinco capitais brasileiras sobre a gravidez na adolescência e a vulnerabilidade social. Encontraram que a escolaridade está diretamente relacionada à incidência da gravidez nessa faixa etária. Nas palavras dos autores, "boa parte dessa população vive na periferia, integrando famílias de baixa renda e de baixa escolaridade, fator que reflete nas possibilidades de inserção dos jovens no mercado de trabalho e no acesso a bens e serviços. Muitas vezes adolescentes e jovens são convocados a assumir prematuramente responsabilidades para as quais não estão preparados. E, justamente por serem jovens, eles não devem ser vistos apenas como consumidores e trabalhadores em potencial, mas como um grupo socialmente

Page 23: Artigos Para Tcc

vulnerável, mais exposto e sensível aos problemas enfrentados pela sociedade" 17 (p. 11).

Minucci & Almeida 18 investigaram as disparidades intraurbanas dos nascimentos e os fatores de risco para o baixo peso ao nascer e prematuridade no Município de São Paulo, com base no SINASC e SIM, em 2002-2003. Os autores encontraram correlação espacial, por meio de regressão logística, entre o mapa de vulnerabilidade social, produzido pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Fundação SEADE), e a gravidez na adolescência e o menor número de consultas no pré-natal.

A associação entre a gestação na adolescência e resultados adversos do recém-nascido tem sido objeto de vários estudos 19,20.

Martins 19 avaliou a relação entre a mortalidade infantil e a assistência pré-natal, ao parto e pós-natal imediato em Belo Horizonte, Minas Gerais, apontando que o número de consultas no pré-natal, o trimestre da primeira consulta, a realização pelo profissional médico e a escolaridade das mães foram os fatores mais preditivos para a mortalidade infantil. Dentre os motivos mais frequentes alegados pelas gestantes, para a não realização de pré-natal, constavam a rejeição da gravidez e o medo das consequências sociais da gestação, especialmente entre as adolescentes.

Andrade & Szwarcwald 20 analisaram a distribuição espacial da mortalidade neonatal precoce no Município do Rio de Janeiro, de 1995 a 1996, visando identificar os fatores mais explicativos das variações espaciais. Considerando os bairros como a unidade de análise, verificaram os indicadores relativos às condições socioeconômicas e às características das mães dos recém-nascidos por bairros de residência. As fontes de dados foram o SINASC, SIM e o Censo Demográfico de 1991, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes aos chefes de domicílios. O mapa temático da mortalidade neonatal precoce revelou disparidades intraurbanas e as variáveis que melhor explicaram os aglomerados espaciais foram "proporção de mães adolescentes", "proporção de mães que não fizeram o pré-natal", "proporção de pessoas residentes em favelas em 1996" e "proporção de chefes com rendimento de um salário mínimo". Essas variáveis foram igualmente correlacionadas entre si, constituindo-se em um conjunto de fatores associado ao excesso de óbitos nos primeiros dias de vida. Os autores supõem que a mortalidade infantil sofre influência de fatores individuais da mãe (idade, grau de instrução e estilo de vida) e coletivos (privação social).

Os resultados dessa análise indicam que os contextos de vulnerabilidade social que permeiam a gestação na adolescência (mães com menos de oito anos de estudo, multíparas, que vivem sem o companheiro, sem ocupação ou com ocupação que exige apenas o nível fundamental) coincidem com os fatores que permeiam a morbimortalidade infantil.

Outros estudos apontam que baixo nível socioeconômico das mulheres, morar sem companheiro no momento do parto, multiparidade associada à história de complicações obstétricas em gestações anteriores, religião e rede de apoio social frágil interferem na adesão ao pré-natal 21,22,23.

Neste estudo, também as áreas de maior vulnerabilidade social, maior densidade de gestação na adolescência e de morbimortalidade neonatal coincidiram com a menor adesão ao pré-natal (menor número de consultas e início tardio do pré-natal).

Tais resultados fortalecem a importância do acolhimento, do acompanhamento e da busca ativa da gestante pela unidade de saúde, com ênfase nas adolescentes.

Page 24: Artigos Para Tcc

Conclui-se que as disparidades intraurbanas da incidência e dos riscos da gestação na adolescência são resultantes de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas, essencialmente coletivos e contextuais e requerem políticas públicas e intervenção em rede intersetorial, tendo em vista a redução das desigualdades.

Assim, é fundamental que as políticas sociais atentem para as necessidades e as demandas específicas em saúde reprodutiva dessa população, na construção de estratégias que atuem para a redução da vulnerabilidade ocasionada por situações em que as variáveis de garantia dos direitos e de inserção social podem ser desfavoráveis para a qualidade de vida dessa população.

 

Conclusões

O geoprocessamento dos dados do SINASC e SIM do município revelou as iniquidades intraurbanas ocultas nos indicadores sociais e de saúde gerais das mães.

A correlação espacial relativa aos piores indicadores de educação (menos de oito anos de estudo), trabalho (exclusão e inserção precária no mercado de trabalho), parição e situação marital das mães permitiram a construção do mapa de vulnerabilidade social da gestante adolescente em São Carlos.

Ainda, a correlação espacial entre o mapa da prevalência da gestação na adolescência e o mapa da vulnerabilidade social confirma a produção e reprodução social da gestação na adolescência e indicam que a educação, o trabalho, as relações de gênero são as principais vulnerabilidades sociais da gestação na adolescência no território estudado.

A densidade populacional dos bairros pode estar associada à vulnerabilidade social dos bairros e ARES, porém, a ausência de dados populacionais dos bairros em São Carlos foi um limite do estudo.

O geoprocessamento dos dados de nascimento e óbitos infantis favorece a avaliação do impacto das políticas sociais para os adolescentes, potencializa o trabalho em rede intersetorial e pode se constituir na base para a organização do Sistema de Comunicação e Informação Intergerencial, fundamental para gestão intersetorial.

Sendo oficiais tais bases de dados, de alimentação contínua, permitem a construção de mapas dinâmicos, criando fluxo permanente de monitoração da saúde no território, contribuindo para a avaliação das políticas públicas.

A apresentação gráfica, por meio do mapa, torna a informação mais acessível, inclusive para a população, e pode ser estratégia para a democratização do conhecimento, condição fundamental para o empoderamento dos sujeitos e para a gestão participativa.

Portanto, a técnica do geoprocessamento dos dados do SINASC e SIM se apresenta como ferramenta potente para a análise da vulnerabilidade social da gestação na adolescência, identificando áreas prioritárias e necessidades das áreas/bairros e ARES.

 

Page 25: Artigos Para Tcc

Colaboradores

R. A. Ferreira, M. G. C. Ferriani e L. A. Oliveira participaram da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão a ser publicada. D. F. Mello, I. P. Carvalho e M. A. Cano contribuíram na análise e interpretação dos dados, na revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e na aprovação final da versão a ser publicada.

 

Referências

1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Fecundidade, natalidade e mortalidade.http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/pesquisas/fecundidade.html#anc1 (acessado em 23/Set/2010).         [ Links ]

2. Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos e na assistência. Brasília: Ministério da Saúde; 2009.         [ Links ]

3. Sabroza AR, Leal MC, Gama SGN, Costa JV. Perfil sócio-demográfico e psicossocial de puérperas adolescentes do Município do Rio de Janeiro, Brasil - 1999-2001. Cad Saúde Pública 2004; 20 Suppl1:S112-20.         [ Links ]

4. Esteves JR, Menandro PRM. Trajetórias de vida: repercussões da maternidade adolescente na biografia de mulheres que viveram tal experiência. Estud Psicol (Natal) 2005; 10:363-70.         [ Links ]

5. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Marco teórico e referencial: saúde sexual e saúde reprodutiva de adolescentes e jovens. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. [ Links ]

6. Gontijo D, Medeiros M. "Tava morta e revivi": significado de maternidade para adolescentes com experiência de vida nas ruas. Cad Saúde Pública 2008; 24:469-72.         [ Links ]

7. Ayres JRM, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França Junior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 375-416.         [ Links ]

8. Ayres JRM, França Junior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003. p. 117-40.         [ Links ]

9. Skaba DA, Carvalho MS, Barcellos C, Martins PC, Terron SL. Geoprocessamento dos dados da saúde: o tratamento dos endereços. Cad Saúde Pública 2004; 20:1753-6.         [ Links ]

10. Barcellos C, Ramalho W. Situação atual do geoprocessamento e da análise de dados espaciais em saúde no Brasil. Informática Pública 2002; 4:221-30. [ Links ]

Page 26: Artigos Para Tcc

11. Prefeitura Municipal de São Carlos. Dados da cidade (geográfico e demográfico).http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/conheca-sao-carlos/115442-dados-da-cidade-geografico-e-demografico.html (acessado em 23/Jun/2010). [ Links ]

12. Malta DC, Duarte EC, Almeida MF, Dias MAS, Morais Neto OL, Moura L, et al. Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiol Serv Saúde 2007; 16:233-44.         [ Links ]

13. Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação brasileira de ocupações. http://www.mtecbo.gov.br(acessado em 24/Jun/2010).         [ Links ]

14. Oliveira RC. Adolescência, gravidez e maternidade: a percepção de si e a relação com o trabalho. Saúde Soc 2008; 17:93-102.         [ Links ]

15. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Bolsa Família. http://www.mds.gov.br/bolsafamilia(acessado em 24/Jun/2010). [ Links ]

16. Rosa AJ. Novamente grávida: adolescentes com maternidades sucessivas em Rondonópolis - MT [Tese de Doutorado]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2007.         [ Links ]

17. Cavasin S, coordenadora. Gravidez de adolescentes entre 10 e 14 anos e vulnerabilidade social: estudo exploratório em cinco capitais brasileiras.http://www.ecos.org.br/download/Pesquisa%20Gravidez%20na%20Adolescencia%20-%20Mar%C3%A7o2004.pdf(acessado em 12/Jul/2010). [ Links ]

18. Minuci EG, Almeida MF. Diferenciais intraurbanos de peso ao nascer no município de São Paulo. Rev Saúde Pública 2009; 43:256-66.         [ Links ]

19. Martins EF. Mortalidade perinatal e avaliação da assistência ao pré-natal, ao parto e ao recém-nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais [Tese de Doutorado]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2010.         [ Links ]

20. Andrade CLT, Szwarcwald CL. Análise espacial da mortalidade neonatal precoce no Município do Rio de Janeiro, 1995-1996. Cad Saúde Pública 2001; 17:1199-210. [ Links ]

21. Tamez-González S, Valle-Arcos RI, Eibenschutz-Hartman C, Méndez-Ramírez I. Adaptación del modelo de Andersen al contexto mexicano: acceso a la atención prenatal. Salud Pública Méx 2006; 48:418-29.         [ Links ]

22. Savage CL, Anthony J, Lee R, Kappesser ML, Rose B. The culture of pregnancy and infant care in African American Women: an ethnographic study. J Transcult Nurs 2007; 18:215-23.         [ Links ]

23. Simkhada B, Teijlingen ER, Porter M, Simkhada P. Factors affecting the utilization of antenatal care in developing countries: systematic review of the literature. J Adv Nurs 2008; 61:244-60.         [ Links ]

 

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2012000200010&lng=en&nrm=iso)

Page 27: Artigos Para Tcc

Estudos de Psicologia (Natal)Print version ISSN 1413-294X

Abstract

GERMANO, Idilva Maria Pires  and  COLACO, Veriana de Fátima Rodrigues.Abrindo caminho para o futuro: redes de apoio social e resiliência em autobiografias de jovens socioeconomicamente vulneráveis. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2012, vol.17, n.3, pp. 381-387. ISSN 1413-294X.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300005.

Este trabalho discute processos de resiliência e redes de apoio social a partir de entrevistas narrativas realizadas com jovens socioeconomicamente desfavorecidos de escolas públicas de Fortaleza. O objetivo do estudo foi analisar como contavam suas histórias de vida, especialmente como enfrentavam adversidades em busca de recursos promotores de saúde e bem-estar. Os relatos foram analisados temática e narrativamente a fim de compreender como os jovens recrutam recursos pessoais, familiares, comunitários e culturais disponíveis e como esses recursos e as formas de manejo atuam de modo protetivo. Considerando que a resiliência também implica a disponibilidade dos recursos buscados pelo jovem, atenção especial foi dada à capacidade de suas comunidades em fornecê-los apropriadamente. Um resultado significativo é sua percepção do poder público como ineficaz ou ausente. Frente ao declínio da esfera pública, o jovem tende a refugiar-se na família e em seus próprios recursos pessoais para enfrentar o futuro.

Keywords : redes de apoio social; resiliência; juventude; vulnerabilidade social.

Estudos de Psicologia (Natal)Print version ISSN 1413-294X

Estud. psicol. (Natal) vol.17 no.3 Natal Sept./Dec. 2012http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300005 

DOSSIÊ: JUVENTUDES E VULNERABILIDADES: DILEMAS E PROPOSTAS

 

Page 28: Artigos Para Tcc

Abrindo caminho para o futuro: redes de apoio social e resiliência em autobiografias de jovens socioeconomicamente vulneráveis

 

Paving the way to the future: social support networks and resilience in autobiographies of socioeconomically vulnerable youth

 

 

Idilva Maria Pires Germano; Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Universidade Federal do Ceará

 

 

RESUMO

Este trabalho discute processos de resiliência e redes de apoio social a partir de entrevistas narrativas realizadas com jovens socioeconomicamente desfavorecidos de escolas públicas de Fortaleza. O objetivo do estudo foi analisar como contavam suas histórias de vida, especialmente como enfrentavam adversidades em busca de recursos promotores de saúde e bem-estar. Os relatos foram analisados temática e narrativamente a fim de compreender como os jovens recrutam recursos pessoais, familiares, comunitários e culturais disponíveis e como esses recursos e as formas de manejo atuam de modo protetivo. Considerando que a resiliência também implica a disponibilidade dos recursos buscados pelo jovem, atenção especial foi dada à capacidade de suas comunidades em fornecê-los apropriadamente. Um resultado significativo é sua percepção do poder público como ineficaz ou ausente. Frente ao declínio da esfera pública, o jovem tende a refugiar-se na família e em seus próprios recursos pessoais para enfrentar o futuro.

Palavras-chave: redes de apoio social; resiliência; juventude; vulnerabilidade social.

ABSTRACT

This work discusses resilience processes and social support networks among youth based on narrative interviews with socioeconomically disadvantaged students from public schools in Fortaleza (Brazil). The aim of the study was to analyze how they told their life stories, particularly how they dealt with adversities, navigating their way to health-sustaining resources and well-being. Thematic and narrative analysis were applied to understand the way youth achieve personal, family, community and cultural resources and how these resources and strategies have a protective effect.

Page 29: Artigos Para Tcc

Considering that resilience also refers to the availability of the resources sought special attention was directed to their communities' capacity to properly provide them. A meaningful result is their perception of public politics and services as ineffective or absent. Facing the decline of the public sphere, youth tend to take refuge in the family and in their own personal resources as means to stand up to their future.

Keywords: social support networks; resilience; youth; social vulnerability.

 

 

Rede de apoio e resiliência: explorando as tensões negociadas por jovens em desvantagem

Muito tem se falado sobre o papel da rede de apoio social na construção subjetiva, organização identitária e desenvolvimento psicossocial, especialmente em se tratando de populações menos favorecidas economicamente ou consideradas em situação de vulnerabilidade social. Diferentes enfoques podem ser dados a essa noção, porém, o que os unifica é a ideia de rede de apoio como uma trama de relações sociais articuladas de forma densa na qual se movem as pessoas e coletividades em seus ambientes físicos e sociais. Movimentar-se nessa trama obtendo suporte para uma vida saudável ao longo do desenvolvimento pessoal e social define o sentido positivo de rede de apoio.

Conceitualmente entendemos por rede de apoio um complexo sistema de ações, relações e intervenções, que ocorre tanto num plano microssocial, o qual comporta a família, amigos, grupos sociais mais próximos, quanto num plano macrossocial, envolvendo as políticas públicas em geral (saúde, educação, cultura, esporte, lazer, habitação e trabalho), que são ou deveriam ser efetivadas por instituições governamentais e não governamentais, órgãos especiais e também por pessoas nas interações do convívio cotidiano.

Alguns estudos recentes (Amparo, Galvão, Alves, Brasil, & Koller, 2008; Andrade & Vaitsman, 2002; Costa, 2009; Marques & Bichir, 2011; Siqueira, Betts, & Dell'Aglio, 2006) têm abordado o alcance e os limites das redes de apoio no contexto brasileiro, questionando a sua disponibilidade e o seu acesso por crianças, jovens e suas famílias e comunidades, nos campos da saúde, educação, trabalho e segurança. Temas como comportamentos de risco (por exemplo, consumo de drogas e sexo não seguro), ato infracional e conflito com a lei e institucionalização de crianças e jovens recebem particular atenção, mobilizando pesquisadores a produzir subsídios para o aperfeiçoamento de políticas e ações nesses quesitos. Levantamentos e diagnósticos sobre fatores de risco e redes de apoio social nos variados contextos urbanos no país são acompanhados por esforços de teorização, que levam estudiosos a refletir sobre os processos interacionais no curso da vida e sua relação com o desenvolvimento saudável, mesmo em circunstâncias adversas. Nesse sentido, os estudos sobre processos de resiliência ganham relevo, assinalando as complexas conexões entre os indivíduos e seus ambientes materiais e sociais que condicionam o modo como negociam variados recursos em direção à saúde e ao bem-estar (Dell'Aglio, Koller, & Yunes, 2006; Libório, 2009; Yunes, 2003). Tais estudos, orientados por princípios da Psicologia Positiva, concentram-se nos potenciais e aspectos saudáveis das pessoas (em seus contextos relacionais), que as capacitam a enfrentar, de forma bem sucedida, obstáculos e adversidades em seu desenvolvimento. O que se revela nesses trabalhos é o poder das relações pessoais e sociais como base para a superação de dificuldades cotidianas e

Page 30: Artigos Para Tcc

situações excepcionais que ameaçam ou prejudicam o bem-estar e a qualidade de vida, com resultados danosos em termos de saúde física e mental. Assim, a possibilidade de se contar com uma rede de suporte social que abarque o círculo de amigos, a família, a comunidade e o ambiente cultural faz toda a diferença quando se trata de superar condições de risco e vulnerabilidade social.

Neste artigo, discutiremos o manejo de recursos pessoais, familiares, comunitários e culturais por jovens no enfrentamento de situações de vulnerabilidade social, obtidos numa pesquisa sobre processos biográficos e projetos de vida juvenis, realizada em Fortaleza. A pesquisa, de orientação qualitativa, faz parte de uma investigação quantitativa mais abrangente que examinou fatores de risco social e redes de proteção, mediante questionário, numa amostra de 1.140 alunos de 14 a 24 anos, de ambos os sexos, da rede pública de ensino dessa capital.

O subprojeto qualitativo estava interessado em abordar as questões de risco, vulnerabilidade e proteção social, sob uma perspectiva narrativo-biográfica, como forma de compreender essas temáticas, enfatizando aspectos (inter)subjetivos e processuais.

Uma das linhas de análise buscou compreender como os jovens recrutam os variados recursos disponíveis para o enfrentamento de riscos e adversidades significativas em casa, na escola, no bairro e no trabalho; e como esses recursos e as formas de manejo atuam de modo protetivo, garantindo bem-estar ao jovem. Nesse sentido, esse estudo discute os processos de resiliência que se revelam nas narrativas autobiográficas dos jovens entrevistados, apoiando-se particularmente nos estudos de orientação construcionista e transcultural de Michael Ungar e colaboradores (Libório & Ungar, 2010; Ungar, 2003; 2004; Ungar, Brown, Liebenberg, Cheung, & Levine, 2008) que têm discutido o conceito em termos de "tensões" entre indivíduos, famílias, comunidades e culturas. Essas tensões – a saber, acesso a recursos materiais, desenvolvimento de uma identidade pessoal desejável, acesso a relacionamentos interpessoais que fornecem apoio, experiências de coesão social, aderência cultural, poder e controle pessoal, justiça social – devem ser negociadas no curso da vida e com base em contextos socioculturais situados.

Como explicam os autores acima, a tensão do acesso a recursos materiais envolve a possibilidade de o jovem obter suporte financeiro para suas necessidades básicas, no plano alimentar, de saúde, de educação e de trabalho. A tensão da identidade pessoal refere-se à possibilidade de desenvolver um senso valorizado de individualidade em relação com os outros e nos múltiplos espaços de interação. A tensão dos relacionamentos implica a possibilidade de estabelecer relações significativas com pares, amigos, familiares, professores e outros que podem fornecer afeto e suporte emocional. A tensão da coesão social envolve a possibilidade de desenvolver o senso de responsabilidade e compromisso com sua família e comunidade mais ampla. A aderência cultural trata da capacidade de aceitar ou desafiar as normas culturais, crenças e valores partilhados na sua comunidade local e/ou em âmbito global. A tensão do poder e controle pessoais implica a condição de tomar decisões e de agir (agency), e o controle de concretizá-las envolve a autoconfiança e a capacidade de o jovem cuidar de si e de outros e imprimir mudanças no seu ambiente, a fim de alcançar recursos que promovam seu bem-estar. Por fim, a tensão da justiça social refere-se à possibilidade de o jovem reivindicar e assegurar seus direitos individual e coletivamente, contra preconceitos e formas de opressão sociopolítica, encontrando um papel significativo que lhe traz aceitação e igualdade social.

Como resumem Ungar, Brown, Liebenberg, Cheung e Levine (2008), a resiliência implica três aspectos: primeiramente, a competência dos indivíduos de navegar em direção aos recursos promotores de bem-estar; segundo, a capacidade de suas comunidades (as ecologias físicas e sociais) de fornecer esses recursos e, terceiro, a

Page 31: Artigos Para Tcc

capacidade de indivíduos, suas famílias e comunidades de negociar caminhos culturalmente significativos para os recursos a serem partilhados.

As entrevistas narrativas foram analisadas com base nas noções de resiliência como "navegação em direção a" recursos promotores de saúde e bem-estar e como "negociação de tensões" que conferem maior relativismo e dinamismo ao conceito. Neste trabalho, tecemos algumas considerações baseadas nas entrevistas narrativas acerca do modo como esses jovens abrem caminho em direção ao que definem e imaginam como um futuro saudável e feliz (em seus próprios termos), vencendo os desafios que seus ambientes lhes impõem. Certas configurações entre o que o jovem demanda de sua rede de apoio e o que lhe é oferecido nos variados ambientes em que circula, podem ter efeitos danosos ou benéficos. As entrevistas narrativas permitem investigar o que o jovem vivencia em termos do apoio buscado, oferecido e negado na rede, uma vez que seu formato estimula o jovem a organizar sua história (mesmo que provisoriamente) e avaliar diversos episódios e situações como benéficos ou prejudiciais para si e para outros. Para pesquisadores de processos de resiliência, permitem especialmente acompanhar a emergência e o desenvolvimento de processos de sofrimento nas biografias juvenis, bem como as formas de enfrentamento, superação e mudança pessoal.

A relação entre rede de apoio e processo de resiliência, em se tratando de adolescentes e jovens no Brasil, deve ser compreendida à luz da Doutrina da Proteção Integral que fundamenta a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990). São basilares os Art. 4: "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária" e Art. 86: "A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal". Isto é, sendo a criança e o adolescente prioridades em todos os setores das políticas públicas para que se lhes assegurem as condições básicas ao seu pleno desenvolvimento, esse conjunto articulado de ações está previsto pelo Sistema de Garantia de Direitos que compõe a rede de apoio social e pessoal para esse segmento populacional. Mas, em que medida esse sistema é efetivado? Qual a implementação e eficácia das políticas públicas destinadas às crianças e adolescentes? Qual a real intersetorialidade das políticas para serem reconhecidas em rede?

Na área da infância e adolescência, a partir do ECA, foram criados órgãos especificamente voltados para a garantia de seus direitos, como é o caso dos Conselhos Estadual e Municipal de Direitos, que se destinam a propor políticas que assegurem a efetivação e o cumprimento do ECA no âmbito do estado e do município, de acordo com a sua competência; dos Conselhos Tutelares, órgãos fiscalizadores, os quais devem intervir quando os direitos são violados; da Delegacia da Criança e do Adolescente – DCA e da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente - DECECA, encarregadas de investigar e atuar em situações de violência contra criança e adolescente, além de casos de atos infracionais supostamente realizados por eles. E no nível judicial, as Varas Especializadas da Infância e da Juventude dos municípios.

Esse complexo aparato institucional tem o propósito de desenvolver ações complementares entre si, e de modo articulado, às políticas e aos equipamentos para sua efetivação, tais como a rede pública de ensino municipal, estadual e federal, o sistema público de saúde, os recursos de promoção de cultura e lazer, além daqueles que estão voltados à execução da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, como é o caso dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE.

Page 32: Artigos Para Tcc

Embora possamos perceber que o Brasil apresenta uma política avançada em termos de rede de apoio para a infância e juventude, com uma amplitude de dispositivos que almejam assegurar os direitos desses segmentos (o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Sistema Único de Saúde, a universalização do acesso ao ensino básico público e gratuito, entre outros), o que se constata ordinariamente na vida de crianças e jovens pobres brasileiros é uma realidade de precariedade, negligência e violência, de acordo com dados censitários e estudos especializados na área (Dell'Aglio, Cunningham, Koller, Borges, & Leon, 2009; IBGE, 2011; Waiselfisz, 2004, 2011).

São, portanto, enormes as lacunas e os desafios para a consolidação da Doutrina da Proteção Integral a crianças e adolescentes estabelecida pelo ECA, para a efetivação de Políticas Públicas que assegurem essa proteção e os direitos desses atores sociais, a implementação da intersetorialidade das ações e a efetivação das missões e objetivos previstos nas instituições destinadas a assegurar a prioridade definida pela Constituição (família, escola, conselhos de direito e tutelares, instituições de atendimento em geral, tanto governamentais como não governamentais).

Na interface entre as virtualidades e concretudes das políticas públicas destinadas aos jovens, perguntamo-nos sobre os seus efeitos práticos nas trajetórias pessoais. De que forma essas políticas, ora ausentes ora tíbias, atravessam as biografias desses jovens, condicionando suas oportunidades de desenvolvimento e bem-estar? Que alternativas encontram os jovens para contornar as ausências e óbices do apoio institucional e projetar-se para o futuro incerto? Como negociam aquilo que precisam e procuram navegar seu caminho em direção ao que lhes parece bom, desejável e justo?

 

O desenvolvimento da pesquisa

Durante as visitas agendadas para aplicação do questionário nas escolas públicas, membros da equipe de pesquisa solicitaram à direção e ao corpo docente da escola que indicassem estudantes que pudessem contribuir para esclarecer sobre a temática do risco e proteção juvenil, contando suas histórias. Foi destacado que os pesquisadores estavam interessados tanto em ouvir alunos que apresentavam histórico mais "difícil" em relação ao enfrentamento de adversidades no campo material, familiar, acadêmico e outros, quanto os que se mostravam mais capazes de superar problemas similares, mostrando-se bem na escola, na família e noutros contextos. Também em sala de aula, no primeiro momento do contato com os jovens para explicar a pesquisa e dar instruções, a equipe fez convites gerais, solicitando voluntários que quisessem participar da fase de entrevistas. As entrevistas foram realizadas por uma entrevistadora da equipe ou por uma dupla em salas cedidas pela direção de cada escola.

Assim, entrevistas narrativas foram realizadas com 21 jovens, utilizando de forma adaptada a técnica de Fritz Schütze (1983/2010), segundo a qual um relato autobiográfico inicial é desencadeado de forma livre, solicitando apenas que o entrevistado conte sua vida e, ao final do relato "improvisado", podem ser feitas algumas perguntas referentes à história e ao objeto de estudo em foco. Fundado na sociologia biográfica interpretativa, o objetivo dessa metodologia não é simplesmente conhecer a história de vida particular dos narradores, mas estudar as relações entre, de um lado, eventos históricos e condições socioestruturais e, de outro, as construções biográficas. Interessam particularmente em que contextos e circunstâncias as biografias foram construídas e o que move, impede e transforma as experiências e ações dos indivíduos em suas trajetórias.

Page 33: Artigos Para Tcc

Na fase de iniciação da entrevista narrativa, cada entrevistador apresentou a questão gerativa: "Estou pesquisando histórias de vida de jovens da cidade de Fortaleza e gostaria de conhecê-lo melhor. Para isso peço que você conte a sua história do modo que achar conveniente. Você pode levar o tempo que quiser, começar e terminar sua história como desejar, contando sua vida de modo que eu compreenda quem você é. Para que você conte sua história livremente, eu não vou interrompê-lo. Você deve me dizer quando a história acabou e somente depois eu farei algumas perguntas para esclarecer o que não entendi bem. Certo?" Durante a narração central, cada informante produziu um relato espontâneo sobre sua vida, com um mínimo de intervenção da entrevistadora até a indicação de finalização por parte do narrador.

Na segunda fase – a das "perguntas imanentes" (referentes ao conteúdo da história contada) – após indicação do narrador de que a história havia acabado, a entrevistadora fez, quando necessário, algumas perguntas para esclarecimentos (por exemplo, "não entendi quando você disse..."). Posteriormente, na fase das "perguntas exmanentes" (referentes ao interesse do pesquisador), cada entrevistador fez perguntas mais dirigidas à problemática do risco, vulnerabilidade e proteção juvenil: 1) Você tem algum medo na sua vida? Fale-me sobre isso. 2) Você se sente um jovem desprotegido, desamparado? Como assim? 3) Que situações você acha que mais trazem risco para você, mais prejudicam seu desenvolvimento? 4) Você acha que pode evitar esses riscos? Como você evita essas situações? 5) Você se considera forte para enfrentar as dificuldades da sua vida, mesmo que elas pareçam sem solução? Fale-me sobre situações como essas que você vivenciou. 6) Que situações você acha que mais trazem benefício para você, mais ajudam o seu desenvolvimento? 7) Quem ou o que lhe ajuda nas horas difíceis? 8) Quais são seus planos para o futuro?

Cada história contada pelos jovens é uma construção que envolve uma tessitura complexa das tensões assinaladas acima e as soluções relatadas pelos jovens não obedecem a uma lógica causal ou linear. Optamos aqui por apresentar como o campo de tensões se apresenta nas entrevistas realizadas e como certas tensões tendem a dominar a configuração da história e a avaliação autobiográfica do jovem.

Percepção da rede de apoio disponível: o que contam os jovens entrevistados

Em termos gerais, os relatos revelam a onipresença do campo de tensões referente ao acesso a recursos materiais, com as temáticas da desvantagem social em variados planos (financeiro, habitação, saúde, educação, trabalho, lazer) apresentando-se seja como pano de fundo de eventos estressores, seja como questão central a ser contornada pelos jovens em seu cotidiano e no futuro. Processos de resiliência juvenil aqui envolvem a adoção de muitos esquemas de ação visando superar as dificuldades financeiras da família em circunstâncias marcadas por baixa escolarização dos pais, desemprego ou emprego precário dos responsáveis, bem como escassez ou baixa qualidade de equipamentos públicos potencialmente capazes de minorar tais desvantagens (ex. escolas e hospitais públicos degradados). Os desafios frente à indisponibilidade de recursos materiais se apresentam em histórias que tratam, entre outros tópicos, da migração do jovem e/ou de suas famílias para a capital, do declínio financeiro em seguida ao divórcio dos pais, de trabalhos precários e mal pagos que impõem sacrifícios pessoais ao jovem, de circunstâncias desfavoráveis que se repetem entre as gerações no contexto de vida das classes populares e que o jovem sente obrigação de superar. São histórias pregressas de vulnerabilidade que atingiram pais e avós e que mobilizam o jovem a estudar mais para obter melhores ganhos no futuro e ajudar seus pais e parentes. Nesse sentido, vemos entrelaçarem-se as tensões por recursos no campo material com as tensões referentes ao senso de coesão social. A jovem C.R., de 16 anos, aluna do 2o ano do ensino médio ilustra o compromisso que muitos jovens confessam de interromper a circularidade da pobreza na sua família, muitas vezes definida por uma sequência deletéria de fatos (ex. gravidez precoce

Page 34: Artigos Para Tcc

da mãe, interrupção dos estudos dos pais, subemprego/desemprego, dependência financeira de terceiros):

Eu me sinto triste por ver que determinadas pessoas da minha família necessita (sic) de coisas importantes, que minha mãe tem um determinado sonho, tem um determinado objetivo e ele não possa ter alcançado pelo (sic) um erro que ela cometeu na adolescência (choro), aí eu tenho, meu maior objetivo é dar tudo aquilo que a minha mãe um dia quis, era, tipo, quero dar maior conforto do mundo pra (sic) ela (...) E é assim, em relação aos estudos é muito cansativo, mas é como eu tô (sic) te dizendo, eu tenho um objetivo né, que é estabilidade financeira pra (sic) eu poder auxiliar a minha família e pra (sic) eu poder fazer aquilo né, que é ajudar as outras pessoas e tal, aquilo que eu pretendo fazer, que eu quero fazer.

Não é surpreendente, portanto, que em termos de planos de futuro, 17 dos 21 entrevistados pretendam cursar o ensino superior e obter um emprego mais qualificado e quase todos vejam como imperativo finalizar o ensino médio. Os valores da educação e da formação profissional dominam os relatos revelando como os jovens, suas famílias e escolas partilham crenças e valores comuns sobre o empoderamento pessoal e coletivo por meio das instituições acadêmicas. Respondendo à pergunta sobre as "situações que mais trazem benefício ao seu desenvolvimento", o jovem refere os estudos e o ambiente escolar como importante recurso, juntamente com o apoio parental e as "boas amizades".

Eu acho que só o estudo mesmo, porque outra coisa não ajuda, mas só o estudo mesmo. Só o que dá certo nessa vida." (R.O., aluno do 7o ano do ensino fundamental). "Estudar sabe, você aprende muita coisa e aí pode ser alguém na vida. (M.A., 14, aluno do 8o ano do ensino fundamental).

Eu acho que uma coisa que seja boa pra me trazer benefícios é meus estudos porque sem ele, como eu já falei, eu não vou pra frente (...), eu penso assim, se eu não estudar, eu não vou ser uma pessoa digna da sociedade, ser uma pessoa que possa ter assim ter, assim, uma coisa sua mesmo, aí eu tento estudar muito agora mesmo eu tô tentando estudar mesmo (C.L., 18, aluna do 2o ano do ensino médio).

Eu agradeço pela escola que eu tenho porque é uma oportunidade única, eu me esforço o máximo possível pra tirar nota boa, eu tenho muita dificuldade em matéria, mas eu me esforço, sim corro atrás dos mais inteligentes da minha sala pra poder me ensinar (C.A., 16 anos, aluna do 2o ano do ensino médio).

Se, no plano prospectivo, o binômio escola-trabalho é construído como fonte de poder pessoal e associa-se a experiências de cuidado de si e dos outros, observamos um frágil balanço no campo das experiências de poder e controle quando se trata de obter hoje os recursos para concretização dos sonhos de futuro. Com efeito, a resiliência implica também a capacidade de alterar as circunstâncias que atrasam ou impedem o alcance de recursos necessários ao desenvolvimento. Entretanto, os relatos dos jovens exibem, muitas vezes em tom queixoso, sua consciência dos direitos e benefícios que lhes são ordinariamente suprimidos numa sociedade desigual. São escolas, serviços de saúde, transportes públicos, condições de moradia, segurança e lazer percebidos como deficitários e fora do controle de suas ações.

C.R., aluna do 2o ano do ensino médio, inicia sua narrativa contando sua difícil jornada em busca de melhores oportunidades de aprendizagem no ensino público, uma vez que os recursos de sua família não permitem que ela e sua irmã frequentem simultaneamente uma escola privada:

Sincera, sinceramente, tinha professora lá que pelo amor de Deus, só a misericórdia, o ensinamento da escola pública tá altamente defasado, era contado a

Page 35: Artigos Para Tcc

dedo os professores de lá que prestavam porque os professores que não prestavam era demais, era a maioria... vencia qualquer... era terrível.

Queixas sobre as ausências e deficiências dos equipamentos públicos pontilham os relatos, de forma mais ou menos contundente em todas as áreas, contribuindo para uma experiência cotidiana de desamparo na esfera pública: "Aí, assim, os hospitais públicos, eles já são altamente precários, arcaicos, o povo de hospital público é terrível, você depender de hospital público, pelo amor de Deus... (C.R., 16 anos, aluna do 2o ano do ensino médio).

Ó, com essa falta de ônibus, né? A gente as vezes tem que ir pra casa andando, aí quando a gente vai pra casa a gente tem que passar por esse ambiente, né? O [bairro] São Miguel. E aí? Pode vim um ... homem pegar menina pra fazer o que não presta, só o que tem aí é ladrão, se você não tem nada lhe mata, se você tem lhe mata... (C.A., 16 anos, aluna do 2o. ano do ensino médio).

O bairro que eu moro faz fronteira com outro bairro, digamos, um pouco perigoso e às vezes pra eu chegar ao meu bairro eu tenho que passar por esse, logo há o risco de ser assaltado, perder a vida, essas coisas, os riscos iminentes, tanto pra jovens, quanto pra adultos, quanto pra crianças. (D.E., 15 anos, aluno do 2o ano do ensino médio).

Tais deficiências, mais dificilmente superadas, pois relativas a condições socioestruturais mais abrangentes, são contornadas pelos jovens por uma disposição voluntarista, ou melhor, uma sobrevalorização da esfera íntima, dos próprios recursos pessoais e do apoio familiar e dos pares como principal meio de enfrentamento. Nesse sentido, esses resultados ressoam outros estudos sobre juventude no Brasil que assinalam o reforço da esfera privada e a família como principal referência subjetiva. Como assinala Gonçalves (2005), "O jovem brasileiro atribui à família expectativas que nas sociedades centrais são compartilhadas por outras instâncias sociais; a retração do público reforça o privado e faz com que repousem no sujeito e no núcleo familiar as forças de agregação social" (p. 213).

Essas expectativas não se dão sem contradições evidentes, especialmente quando se revela que as famílias são elas mesmas fonte de violência, com episódios de humilhações, espancamentos do jovem, irmãos e mãe (especialmente pelo pai), abuso sexual no passado e até homicídio ou tentativa de homicídio na família.

O viés voluntarista do "querer é poder" atravessa de modo singular a relação entre as experiências do jovem em direção a uma identidade pessoal socialmente valorizada e aquelas referentes ao poder e controle. I.A., 15 anos, aluno do 9o ano do ensino fundamental, ilustra uma percepção comum entre os entrevistados de que o jovem corre certos riscos – como, por exemplo, vender e consumir drogas – por escolha pessoal, mas que também pode fugir deles fundamentalmente por vontade própria. Tendo ele mesmo uma história de envolvimento precoce com álcool e outras drogas e liderado por certo período o tráfico em seu bairro (em sucessão ao seu irmão mais velho), refere motivações de foro íntimo para esses comportamentos: uma depressão causada pelo falecimento do pai e certa fraqueza da vontade ou imaturidade para resistir às "falsas amizades" e enfrentar os conflitos no espaço doméstico:

Eu vivia com o meu pai, era muito apegado ao meu pai, sempre vivia grudado com ele, sempre. Aí quando eu tinha onze ele morreu do coração. Ai eu fiquei com depressão, passei dois anos com depressão. Ai quando eu cheguei nos treze anos eu saí. Aí eu parti pro álcool e pras drogas. Do álcool, eu bebia socialmente e tal. Ai eu comecei a me envolver com esse pessoal. (...) Drogas era como um remédio pra mim. Eu cheirava... era só cocaína, era só pó. Eu usava, aí eu me sentia melhor, né? Era como um remédio, eu usava e se sentia melhor. E se saía daquela solidão. (...)

Page 36: Artigos Para Tcc

Aí, isso eu me envolvi mais ainda: "Não, ele é teu irmão, tu vai ser o sucessor dele". Aí, com isso, a cabeça, moleque, botaram na minha cabeça, aí eu pô. Eu ficava alegre, animado, conversava com todo mundo (...) Aí tudo, tudo, eu tinha tudo do bom e do melhor, escola particular, tudo, tudo. Até que eu parei, parei pra pensar, né? Veio me dando conselho, minha irmã também. Aí eu parei pra pensar. Cara eu... isso não vale a pena não, isso é bom no momento. Rapaz, meu futuro não vai ser muito legal. Aí eu me decidi a se afastar disso. Aí com 14 anos decidi me afastar. Eu já estava alucinado, sem ter amizade, amizade, a amizade que eu tinha era amizade falsa, ali que tavam querendo se aproveitar de mim. Aí, tudo bem, eu passei, parei um pouco, pensei na vida. Aí continuei estudando, aí só que isso eu voltei. Teve festa, eu voltei, eu não me controlava. Voltei, voltei, fiz minha mãe chorar (...) Aí com isso a minha mãe foi se chateando, aí falava: "eu vou mandar tu embora daqui" tal tal. Aí dois, três meses depois (...) em janeiro, ela botou pra eu vim pra cá. Aí com isso eu parei, parei de fazer isso. Sem vontade de voltar mais. Eu parei totalmente de fazer essas coisas. Aí hoje eu vivo aqui, aqui na escola há 3 meses. (...) é isso ai. Aí eu parei, até hoje eu tô vivendo muito bem. Aí, em julho eu vou pra lá pra ver se eu me controlo. Aí essa é a história da minha vida. Eu espero me distanciar das amizades que me influenciam, né? Que a gente vai mais pelas amizades. A gente não faz... a gente só faz o que quer, mas as amizades influenciam muito. Porque a gente tá lá, né? A gente vê eles fazendo, a gente sente vontade também de fazer.

Perguntados se se sentiam "desprotegidos, desamparados", catorze jovens entre os vinte e um entrevistados responderam negativamente, principalmente porque pais, familiares amigos e namorados, mas também outros adultos como alguns professores e mentores da igreja, forneciam o apoio necessário. Nas horas difíceis, essas pessoas aparecem como a principal fonte de suporte social, reforçada às vezes pela menção a Deus e à religião. Religiosidade e espiritualidade têm sido compreendidas nos estudos sobre risco social como fatores de proteção no nível individual ou indicadores de "positividade pessoal" que atuam articulados com fatores de apoio em nível social (Amparo et al, 2008; Koller, Ribeiro, Cerqueira-Santos, Morais, & Teodoro, 2005; Libório, 2007). Aqui, o recurso a Deus, destacado em cerca de um terço das entrevistas, contribui para a auto-percepção do jovem como alguém rumo a uma identidade pessoal desejável e que, em último caso, na ausência ou negligência de seus familiares e amigos, ainda dispõe de um porto-seguro. De modo geral, os jovens percebem-se fortalecidos principalmente no campo das relações interpessoais mais próximas, isto é, os outros significativos com os quais de fato podem contar no dia a dia. Daí que, indagados sobre os seus medos, mais da metade dos entrevistados refere-se aos relacionamentos de apoio, isto é, à possibilidade de perder definitivamente relações que fornecem suporte emocional e proteção, como é o caso de morte dos pais, avós e amigos queridos.

No aspecto referente às experiências de justiça social, as narrativas dos jovens transparecem um conjunto de temáticas que oscila entre os problemas macrossociais vinculados à condição de classe e pobreza e variadas circunstâncias em que são vitimados por relações desiguais ou violentas nos espaços domésticos e na comunidade. Dignos de nota são os efeitos em cascata da violência contra a mulher, que prejudicam o jovem, mas também sua família como um todo, bem como sua comunidade. São agressões (muitas vezes efetuadas por maridos alcoolizados) que geram fugas das mães e seus filhos para outras cidades, separações, declínio financeiro, trabalho precário, condições de vida inferiores, adoecimento e, acima de tudo, processos de sofrimento que podem se prolongar, afetando a saúde física e mental do jovem. As situações de preconceito também devem ser contornadas em formas de resistência e solidariedade que podem resultar em empoderamento e fortalecer o senso de justiça social entre os jovens. Como ilustra a história de E.M., 19 anos, estudante do 2oano do ensino médio, que desafiou expectativas culturais ao optar pela transexualidade, reivindicando seu direito à diferença com a ajuda de amigos e, mais tarde, da própria família:

Page 37: Artigos Para Tcc

Aí, aos 16, eu me decidi, minha vida a partir daí, o que eu queria ser, e foi assim meio difícil, porque a minha mãe, a minha família, às vezes, não aceitava. Eu sofri, sofri muito, mas aí, ao passar o tempo, a minha família começou a aceitar do jeito que eu sou, do jeito que eu sou agora. Hoje, eu dou graças a Deus que eu tenho a minha família, que ela me aceita do jeito que eu sou, eu não tenho mais aquela angústia que eu tinha (...). Nessa parte aí eu sou a pessoa mais feliz do mundo de eu ter descoberto o que eu queria, ser uma pessoa aceita, minha alegria é ser uma pessoa aceita e não ter mais aquela angústia que eu sempre tinha.

Como no caso de EM, as biografias dos jovens entrevistados envolvem abrir caminho ao desenvolvimento psicossocial enfrentando normas e valores culturais que podem ser opressivos no plano das relações de gênero, da orientação sexual e outros. Assim, os jovens devem navegar entre os dilemas da aderência cultural e os dajustiça social.

 

Considerações finais

À luz de uma concepção de resiliência como processo dinâmico e interdependente entre o indivíduo e suas ecologias materiais e sociais, este trabalho discutiu como as narrativas autobiográficas de jovens em desvantagem socioeconômica são atravessadas por um tecido de "tensões" que condicionam sua auto-percepção como protegidos ou desprotegidos. Ao evitar a ênfase sobre as capacidades pessoais de enfrentamento e conceber a resiliência também em termos do que as comunidades podem fornecer ao jovem como suporte rumo ao pleno desenvolvimento psicossocial, com saúde e bem-estar, essa concepção contribui para desvelar o conjunto de problemas enfrentados pelos jovens para conduzir suas vidas, especialmente quando lhes estorvam ou negam essa rede de apoio comunitário. Nesse sentido, as histórias contadas pelos entrevistados trazem evidências do impacto biográfico da ausência articulada das políticas públicas no campo educacional, laboral, de segurança, de saúde, bem como aquelas destinadas mais diretamente às juventudes. Ora mais ora menos conscientes dessa ausência, os jovens em desvantagem socioeconômica ressentem-se da não efetivação do sistema de apoio macrossocial em rede, o que pode motivá-los a buscar recursos protetivos onde esses estão mais acessíveis, isto é, na esfera privada. Os recursos mais acessíveis são a própria interioridade (personalidade, disposições pessoais, força de vontade, reflexividade, espiritualidade) e as relações interpessoais no espaço familiar e entre amigos. No plano microssocial da rede, algumas pessoas em particular figuram como tutores ou adjuvantes, desempenhando papel significativo no suporte emocional dos jovens, especialmente em momentos mais difíceis. São mães, amigos íntimos, religiosos e professores isolados que atuam ouvindo e aconselhando o jovem ou servindo de modelo de vida, sendo reconhecidos e valorizados como pessoas especiais na sua formação.

Reveladora dos impedimentos do jovem na obtenção dos recursos necessários ao seu desenvolvimento é a contradição entre a escola como instituição, percebida como de baixa qualidade e a educação como recurso para superação das condições precárias de vida. Contrastando com a partilha praticamente unânime no valor da escolarização como meio de ascensão social, os jovens entrevistados percebem a inferioridade da escola pública que lhes é oferecida, muitas vezes mencionando a sua diferença em relação à escola particular. Ainda assim, esse espaço escolar degradado é fonte importante de apoio enquanto locus de relações interpessoais significativas (especialmente de amigos íntimos) que ajudam a enfrentar os episódios e situações de sofrimento e a sustentar projetos de vida.

Finalmente, algumas notas sobre a nossa opção metodológica. Como afirma Ungar (2003), estudar a problemática da resiliência por meio de um desenho qualitativo

Page 38: Artigos Para Tcc

de pesquisa permite contornar alguns obstáculos impostos pela pesquisa quantitativa que levanta fatores de proteção e de "risco" social. O primeiro é a arbitrariedade na seleção de variáveis de "resultado" da resiliência, que implica, por exemplo, na dificuldade de definir um "bom" desfecho do desenvolvimento psicossocial. O outro é o desafio de explicar o contexto sociocultural no qual a resiliência ocorre e que se mostra bastante heterogêneo e situado nos estudos transculturais. A adoção do modelo da resiliência como "navegação em direção a" e "negociação de" recursos propõe solucionar esses impasses e resulta de estudos que se valeram de entrevistas e observações participantes, como complemento a estudos estatísticos. Para o autor, entre as vantagens do desenho qualitativo estão: sua adequação para a descoberta/construção de novos processos de proteção relevantes na experiência vivida dos participantes da pesquisa; o fato de fornecer uma "descrição densa" dos fenômenos em contextos bem específicos; a possibilidade de fortalecer vozes minoritárias a definirem, em seus próprios termos, o que vem a ser positivo para o seu desenvolvimento; e a exigência de que o pesquisador reflita sobre possíveis vieses de base. Em nosso estudo, mais particularmente, vislumbramos que o emprego de entrevistas narrativas autobiográficas com os jovens pode abrir um espaço adicional de apoio pela possibilidade de estimular a reflexão e o ordenamento das próprias vivências dos participantes – o que Schütze chama de "trabalho biográfico". A entrevista narrativa funciona como momento dialógico em que, na presença de um pesquisador interessado e comprometido, o jovem pode concatenar narrativamente suas experiências, avaliando passado e presente rumo ao futuro que se descortina.

 

Referências

Amparo, D. M., Galvão, A. C. T., Alves, P. B., Brasil, K. T., & Koller, S. H. (2008). Adolescentes e jovens em situação de risco social: redes de apoio social e fatores pessoais de proteção. Estudos de Psicologia, 13(2), 165-174.         [ Links ]

Andrade, G. R. B., & Vaitsman, J. (2002). Apoio social e redes: conectando solidariedade e saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 7(4), 925-934.         [ Links ]

Costa, L. G. (2009). A rede de apoio social de jovens em situação de vulnerabilidade social e uso de drogas(Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://hdl.handle.net/10183/16339 (000699006)        [ Links ]

Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal no 8069 (1990). Brasília: Congresso Nacional. Recuperado dehttp://www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L8069.htm        [ Links ]

Dell'Aglio, D. D., Cunningham, Koller, S. H., Borges, V. C., & Leon, J. S. (2009). Índice de Bem-Estar Infanto-Juvenil: um levantamento de indicadores sociais. In R. M. C. Libório & S. H. Koller (Orgs.), Adolescência e juventude: risco e proteção na realidade brasileira (pp. 57-78). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Dell'Aglio, D. D., Kolller, S. H., & Yunes, M. A. M. (Orgs). (2006). Resiliência e Psicologia Positiva: interfaces do risco à proteção. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]

Gonçalves, H. S. (2005). Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade. Tempo Social (Revista de Sociologia da USP), 17(2), 207-219. [ Links ]

Page 39: Artigos Para Tcc

IBGE. (2011). Censo 2010. Recuperado de http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/.         [ Links ]

Koller, S.H., Ribeiro, J., Cerqueira-Santos, E., Morais, N. A., & Teodoro, M. L. (2005). Juventude Brasileira: Comportamento de risco, fatores de risco e de proteção (Relatório Técnico/2005). Washington, DC: Banco Mundial.         [ Links ]

Libório, R. M. C. (2007). Comportamentos e fatores de risco e proteção na adolescência e juventude nos municípios de Presidente Prudente e Belo Horizonte (Relatório de pesquisa/2007), Presidente Prudente, SP, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista (UNESP).         [ Links ]

Libório, R. M. C. (2009). Escola: risco, proteção e processos de resiliência durante a adolescência. In Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED) (Org.), Anais eletrônicos da reunião anual da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED), Caxambu, MG, Brasil, 32. Recuperado dehttp://www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/GT20-5283--Int.pdf         [ Links ]

Libório, R. M. C, & Ungar, M. (2010). Hidden resilience: the social construction of the Concept and its implications for professional practices with at-risk adolescents. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(3), 476-484.         [ Links ]

Marques, E., & Bichir, R. (2011). Redes de apoio social no Rio de Janeiro e em São Paulo. Novos Estudos – CEBRAP, 90, 65-83.         [ Links ]

Schütze, F. (2010). Pesquisa biográfica e entrevista narrativa (D. Werle, Trad.). In W. Weller & N. Pfaff (Orgs.),Metodologias da pesquisa qualitativa em Educação: teoria e prática. Petrópolis, R.J.: Vozes. (obra original publicada em 1983).         [ Links ]

Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell'Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 2(40), 149-158.         [ Links ]

Ungar, M. (2003). Qualitative contributions to resilience research. Qualitative social work, 2(1), 85-102.         [ Links ]

Ungar, M. (2004). A constructionist discourse on resilience: multiple contexts, multiple realities among at-risk youth. Youth Society, 35, 341-365.         [ Links ]

Ungar, M., Brown, M., Liebenberg, L., Cheung, M., & Levine, K. (2008). Distinguishing differences in pathways to resilience among Canadian youth. Canadian journal of community mental health, 27(1), 1-13.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2004). Relatório de Desenvolvimento Juvenil 2003. Brasília: UNESCO.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2011). Mapa da violência 2011: os jovens do Brasil. São Paulo: Instituto Sangari.         [ Links ]

Yunes, M. A. M. (2003). Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo (Maringá), 8(Num. Esp.), 75-84.         [ Links ]

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2012000300005&lng=en&nrm=iso)

Page 40: Artigos Para Tcc

História, Ciências, Saúde-ManguinhosPrint version ISSN 0104-5970

Abstract

PALMA, Alexandre  and  MATTOS, Ubirajara A. de O.. Contribuições da ciência pós-normal à saúde pública e a questão da vulnerabilidade social. Hist.

Page 41: Artigos Para Tcc

cienc. saude-Manguinhos [online]. 2001, vol.8, n.3, pp. 567-590. ISSN 0104-5970.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702001000400004.

O objetivo deste artigo é discutir os riscos à saúde pública, considerando-se as ponderações de Funtowicz et al. (1997, 1994), sobre a complexidade e incertezas de estudos, avaliação e gerenciamento dos riscos à saúde pública, verificadas nas relações da saúde pública com a vulnerabilidade dos grupos sociais. O discurso predominante sobre a saúde pública opera com dados estatísticos, que reduzem o fenômeno da doença a uma relação causal determinada biologicamente, desconsiderando a história da sociedade e imputando ao indivíduo a responsabilidade pelos problemas de saúde ocorridos. Pretendemos mostrar que a saúde, como um processo dinâmico, necessita de um novo 'olhar' atento a essas questões. Os grupos colocados à prova da exclusão social estão enfraquecidos de suas capacidades de reação e, talvez por isso, mais facilmente passíveis de agravos à saúde. A discussão sobre a complexidade dos estudos, avaliação e gerenciamento dos riscos à saúde pública deveria evitar o reducionismo e determinismo de qualquer ordem.

Keywords : vulnerabilidade social; complexidade; incerteza e saúde pública.

Contribuições da ciência pós-normal à

saúde pública e a questão da

vulnerabilidade social

Contribution of post-normal science to public health and the issue of

social vulnerability

PALMA, A. e MATTOS, U. A. de O.: 'Contribuições da ciência pós-normal à saúde pública e a questão da vulnerabilidade social'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(3): 567-90, set.-dez. 2001.

O objetivo deste artigo é discutir os riscos à saúde pública, considerando-se as ponderações de Funtowicz et al. (1997, 1994), sobre a complexidade e incertezas de estudos, avaliação e gerenciamento dos riscos à saúde pública, verificadas nas relações da saúde pública com a vulnerabilidade dos grupos sociais. O discurso predominante sobre a saúde pública opera com dados estatísticos, que reduzem o fenômeno da doença a uma relação causal determinada biologicamente, desconsiderando a história da sociedade e imputando ao indivíduo a responsabilidade pelos problemas de saúde ocorridos. Pretendemos mostrar que a saúde, como um processo dinâmico, necessita de um novo 'olhar' atento a essas questões. Os grupos colocados à prova da

Page 42: Artigos Para Tcc

Alexandre Palma

Doutorando em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz e docente da Universidade Gama Filho 

Rua José Veríssimo, 14/101 20720-180 Rio de Janeiro — RJ Brasil 

[email protected]

Ubirajara A. de O. Mattos

Professo da Faculdade de Engenharia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador da Escola Nacional de Saúde

Pública, Fundação Oswaldo Cruz Rua Duque de Caxias, 107/202 

20551-050 Rio de Janeiro — RJ Brasil [email protected]

exclusão social estão enfraquecidos de suas capacidades de reação e, talvez por isso, mais facilmente passíveis de agravos à saúde. A discussão sobre a complexidade dos estudos, avaliação e gerenciamento dos riscos à saúde pública deveria evitar o reducionismo e determinismo de qualquer ordem.

PALAVRAS-CHAVE: vulnerabilidade social, complexidade, incerteza e saúde pública.

PALMA, A. e MATTOS, U. A. de O.: 'Contribution of post-normal science to public health and the issue of social vulnerability'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(3): 567-90, Sept.-Dec. 2001.

The objective of this article is to discuss the threats to public health, by taking into consideration the arguments of Funtowicz et al. (1997, 1994) about issues related to the complexity and uncertainties of the studies, evaluation and management of the threats to public health that have been observed in the relationship between public health and the vulnerability of social groups. The prevailing discourse on public health uses statistical data, which reduce illness to a biologically determined case relation, do not take into account the history of society and holds individuals responsible for their health conditions. We intend to show that, as a dynamic process, health requires a new approach to consider these issues. Socially-excluded groups have weak capacity to react and, maybe due to it, they are more likely to get sick. Consequently, discussing the complexity of the studies, evaluation and management of threats to public health would

Page 43: Artigos Para Tcc

avoid any type of reductionism or determinism.

KEYWORDS: social vulnerability, complexity, uncertainty and public health.

Introdução

    Um olhar sobre a história do conhecimento humano mostra que a razão ou a lógica operam, tradicionalmente, segundo certos princípios que parecem estar em concordância com a realidade aparente. Tais princípios são, de modo geral, os seguintes: a) o princípio da "identidade", a partir do qual algo só pode ser conhecido e pensado se for percebida e conservada sua identidade; b) o princípio da "não-contradição", com base em que se afirma que as idéias que negam a si mesmas se autodestroem; c) o princípio do "terceiro excluído", com base em que se consideram duas opções possíveis e se descarta uma terceira possibilidade; e, d) o princípio da "razão suficiente", ou da "causalidade", a partir do qual se afirma que tudo que existe e tudo que acontece tem uma razão (causa ou motivo) para existir (Chauí, 1994).     Um grande 'abalo' oriundo das ciências da natureza (física), no entanto, atingiu esses princípios, principalmente o do "terceiro excluído". A mecânica quântica descobriu que a luz tanto pode ser explicada por ondas luminosas quanto por partículas descontínuas, o que significa que já não se pode dizer que a luz ou se propaga por ondas contínuas ou se propaga por partículas descontínuas, como exigiria esse princípio. Surge, então, o princípio da "indeterminação".     Heisenberg, questionando os fundamentos da física clássica, explica que, para se verificar com exatidão a posição e velocidade de um elétron no interior de um átomo, seria preciso utilizar uma sonda, que, em última instância, destruiria o átomo. Ou, ainda, que seria possível fazer-se uso de radiação gama, cuja precisão se daria através do comprimento de onda dos raios gama. Mas, ainda assim, o elétron poderia vir a modificar sua posição pela interferência dessa mesma radiação, o que não garantiria a validade da medição (Heisenberg, 1999; Omnès, 1996).     Bohr, por sua vez, apresenta uma outra abordagem do problema e introduz o conceito de "complementaridade". Com base nesse conceito, considera que a mecânica quântica, ao descrever a luz por meio de partículas e por ondas luminosas, oferece descrições complementares da mesma realidade (Heisenberg, 1999; Omnès, 1996).     Por outro lado, o avanço científico-tecnológico tem engendrado na atualidade, além de descobertas e aplicações de novos fatos científicos, 'patologias' decorrentes desse próprio avanço. Em outras palavras, as descobertas científicas e suas conseqüências tecnológicas podem engendrar efeitos paralelos incertos ou desconhecidos.     Uma das tarefas fundamentais da ciência atual é, então, reformular seus olhares em relação a esses novos problemas, reconhecendo a incerteza e a complexidade que deverá guiar o

Page 44: Artigos Para Tcc

conhecimento científico. Esse novo entendimento, em consonância com as formulações de Funtowicz et al. (1994) e de Morin (1983), denominado de "ciência pós-normal" ou "pensamento complexo", considera que, em geral, a ciência não fornece teorias bem fundamentadas para explicar e prever a ocorrência de novos problemas, os quais não podem ser esclarecidos à luz de predições científicas tão incertas e dependentes de aspectos diversificados.     O objetivo deste artigo é, então, discutir os riscos à saúde pública, considerando-se as reflexões acerca das questões da complexidade e das incertezas inerentes ao fazer científico, suas relações com a vulnerabilidade dos grupos sociais, bem como suas implicações na avaliação e gerenciamento dos procedimentos de saúde pública. A partir das ponderações sobre o assunto, especialmente aquelas realizadas por Funtowicz et al. (1997, 1994), buscar-se-á refletir o modo como esse novo entendimento pode contribuir para a saúde pública.    A importância deste trabalho reside na possibilidade de se poder ponderar sobre alguns dos vários aspectos que podem colocar em risco a saúde da sociedade, ao se considerar que o discurso predominante sobre saúde pública opera com base em dados estatísticos, que desconsideram a história do indivíduo e da sociedade a que este pertence, imputando-lhe a responsabilidade dos problemas de saúde ocorridos e reduzindo o fenômeno da doença a uma relação causal determinada biologicamente.     Contudo, é preciso estar atento para não se cair em algumas das armadilhas que cercam esta contribuição: por um lado, agir como um bricoleur, no sentido mais vulgar de 'juntar' várias disciplinas e chegar a algumas conclusões superficiais; por outro, tratar esta nova compreensão como um avanço dentro de um paradigma, no sentido atribuído por Kuhn (1997), em que a superação dos conhecimentos científicos se dá com os mesmos 'olhares', o que resultaria em não compreensão da complexidade, incerteza e diversidade dos fatos.

Ciência pós-normal

    Atualmente, está cada vez mais difícil admitir a visão determinista da ciência clássica, tornando-se, pois, necessário, o combate à simpli-ficação que oculta o ser e toda sua complexidade. O "demônio de Laplace", que seria capaz de controlar e prever os fenômenos a partir de algumas informações e do conhecimento das leis gerais da natureza, é, hoje, colocado à prova. Essa ciência, autodenominada objetiva, que busca isolar e reduzir seu objeto ou foco de estudo, omite que o conhecimento do objeto, seja ele físico, biológico ou sociológico, não pode estar dissociado de um sujeito que conhece, com raízes em uma cultura e uma história.     Uma "nova ciência" então se apresenta, desafiando as possibilidades de cálculo, ao reconhecer, cada vez mais, a importância da consideração dos fatores decorrentes das incertezas, indeterminações, contradições e dos fenômenos aleatórios, conferindo, assim, liberdade para se inscrever todo conhecimento na contribuição do avanço da ciência.     Sem dúvida, é na física, mais precisamente na mecânica quântica, que essas discussões tomam corpo. Ao poder explicar a luz por partículas descontínuas ou ondas luminosas,

Page 45: Artigos Para Tcc

configuram-se a ruptura do princípio do terceiro excluído e o surgimento do princípio da indeterminação. De maneira geral, Heisenberg (1999) mostra que nada nos obriga o abandono de qualquer das interpretações e estende, com os devidos cuidados, tal compreensão a outras ciências e formas de conhecimento. Para o autor, mesmo os conceitos do senso comum poderão ser bastante úteis.     Essas considerações ocasionaram incertezas em relação ao conhecimento científico. Para Funtowicz et al. (1993), diferentes tipos de incertezas podem ser expressos e usados para a avaliação da qualidade da informação científica. Brian Wynne (1992), ao tratar de acidentes industriais e ambientais, propõe um alargamento das noções de incerteza. Para esse autor, a incerteza pode se caracterizar pelo modo como se pensa a tomada de decisão sobre as descargas de produtos tóxicos e prejuízos ambientais, ou pelo modo como se pensa o papel da autoridade científica em relação a tais decisões. Contudo, em ambos os casos, há conhecimento dos parâmetros do sistema, mas não da distribuição das probabilidades. A ignorância refere-se ao completo desconhecimento sobre o objeto, que, por se caracterizar numa situação nova, ainda não observada, escapa ao reconhecimento.     O debate proposto por Funtowicz et al. (1997, 1994, 1993) muito se assemelha ao discurso elaborado por Edgar Morin (1983), que, ao ponderar sobre o problema epistemológico da complexidade, comenta o quão incerta e frágil é a "aventura" de tentar compreender os fenômenos nos moldes clássicos. Morin avança tentando mostrar que o problema não está, necessariamente, em que cada um perca sua própria competência especializada, mas, antes, em que não seja desenvolvida, suficientemente, a articulação com outras competências que, ligadas em cadeia, engendram o "anel epistêmico" do novo conhecimento.     A complexidade é para Morin (1990), nesse sentido, interpretada, grosso modo,de duas formas. Primeiro, como um tecido de constituintes heterogêneos associados e, segundo, como o tecido de acontecimentos, ações, interações, determinações e acasos que constituem o mundo fenomenal em sua relação com os traços inquietantes da confusão, da contradição, da desordem, da ambigüidade, da incerteza etc.     Em concordância com tal pensamento, Funtowicz et al. (1994) apontam que, em resposta aos novos problemas, a tradição científica tem sido inadequada e os sistemas complexos tornaram-se foco de uma inovação importante para pesquisa e aplicação em muitas áreas do conhecimento.     Para esses autores, embora já exista alguma diferença entre sistemas simples e complexos, parece ser mais proveitoso distinguir os sistemas complexos "ordinários" (comuns) dos "emergentes". A "complexidade ordinária", de padrão mais comum, é uma diversidade de elementos que se presta à complementaridade da competição e cooperação, de tal modo que a estabilidade do sistema poderia ser mantida contra perturbações que o oprimiriam.     Por outro lado, a "complexidade emergente" freqüentemente oscila entre hegemonia e fragmentação. De fato, esse sistema não pode ter seu mecanismo e funcionamento completamente explicado, uma vez que, para que haja uma análise a partir da

Page 46: Artigos Para Tcc

complexidade emergente, é necessário um pensamento dialético, do qual a contradição é um conceito-chave.     Assim, reduzir a sociedade humana ou suas organizações a sistemas complexos ordinários poderia resultar numa compreensão irreal. Desse modo, torna-se importante integrar conceitos aparentemente paradoxais num processo de "destruição criativa". Essa pluralidade de perspectivas, longe de ser um problema, torna-se essencial ao conhecimento. É com essa nova "ferramenta conceitual" que se pode produzir um entendimento filosófico denominado "ciência pós-normal". O termo "pós-normal" é utilizado por Funtowicz et al. (1997, 1994, 1993) para caracterizar a superação do pensamento elaborado por Thomas Kuhn (1997), segundo o qual a norma para a prática científica eficaz seria a resolução de quebra-cabeças dentro de um paradigma que ignore questões mais amplas.     A dinâmica de um sistema complexo emergente perpassa pela compreensão de um sistema caótico, onde o enorme número de perturbações tornam incertas as predições. Mesmo aquelas perturbações consideradas mínimas podem, a longo prazo, resultar em erros. Bergé et alii (1996) ao explicarem o modelo de Lorenz, conhecido como "efeito borboleta", comentam que este professor de ciências da atmosfera percebeu que um minúsculo erro inicial em seus cálculos, em razão de um arredondamento, provocava um erro que crescia exponencialmente, à medida que o cálculo prosseguia até alcançar resultados completamente sem relação com os anteriores.     Foi possível para Lorenz (apud Bergé et alii, op. cit., p. 203), então, descobrir o efeito considerável da sensibilidade às condições iniciais (SCI). O pesquisador, assim, formulou o modelo, com base no qual considera que "uma pequena perturbação, tão fraca quanto o bater de asas de uma borboleta, pode, um mês depois, ter um efeito considerável, como o desencadeamento de um ciclone, em razão de sua amplificação exponencial, que age sem cessar enquanto o tempo passa".     Numa compreensão análoga, a sociedade comporta inúmeros aspectos em interação. Assim, para estudar a saúde pública e seus riscos, não se deveria desconsiderar o contexto em que vive tal sociedade. Muitas vezes, uma perturbação considerada mínima pode ter efeitos devastadores, como aconteceu, por exemplo, com a dinâmica das bolsas de valores e os recentes abalos na Ásia e na Rússia, que causaram instabilidade em todo mundo. A competição pelo mercado mundial pode, também, gerar consideráveis níveis de desemprego num país e isso pode ter conseqüências sobre a saúde, como bem reconheceram Paim et al. (2000) e Waltner-Toews (2000). Enfim, a perturbação em um aspecto pode desencadear problemas ainda maiores.     Morin (1990, p. 124), baseando-se nesse efeito em cadeia e tomando como exemplo o processo do trabalho, postula as seguintes máximas: a) "um todo é mais do que a soma das partes que o constituem", uma vez que o processo de trabalho, é mais que a "soma" de todos os elementos (empregados, máquinas, serviços etc.) que o constituem; b) "o todo é menor que a soma das partes", na medida em que o trabalho como um todo não permite a plena expressão de cada elemento,

Page 47: Artigos Para Tcc

que, no processo, está inibido; e c) "o todo é simultaneamente mais e menos que a soma das partes", pois o trabalho apresenta-se como um sistema dinâmico e complexo.     De acordo com a complexidade emergente, o modelo matemático, apesar de legítimo, pode não ser suficiente para analisar de forma completa as propriedades de um sistema. Funtowicz et al. (1997, 1993) buscam, então, à luz desse entendimento, repensar a análise do risco e sugerem que a resolução dos problemas ou tomada de decisões se dê através de um diagrama biaxial em função dos dois atributos seguintes: "incertezas dos sistemas" e "decisões em jogo" (Figura 1).     Resumidamente, o esquema proposto por Funtowicz et al. (1997, 1993), para resolução dos problemas, comporta três níveis a partir da interseção dos dois atributos, um dos quais se refere-se à "incerteza dos sistemas". Quando a incerteza em relação a um determinado conheci-mento é mínima, a solução kuhniana é aceita, e pode-se dizer que prevalece o nível da "ciência aplicada", ou seja, os conhecimentos científicos, aqui aplicados, são precisos para resolver os problemas. O nível da "consultoria profissional" dar-se-á quando for necessário introduzir algo a mais, tornando-se importante negociar com os problemas e utilizar diferentes metodologias para resolvê-los. No nível da "ciência pós-normal", as incertezas estão mais elevadas e torna-se evidente a pluralidade de disciplinas requeridas para enfrentar-se uma questão. Neste momento, existe um elevado conteúdo de incerteza nos conhecimentos ou mesmo ignorância sobre o assunto.     Contudo, ainda que sejam baixas as incertezas em relação ao conhecimento (ciência aplicada), se as "decisões em jogo" apresentarem-se elevadas, ocorrerá a necessidade de se alcançarem os outros níveis dos atributos. As "decisões em jogo" referem-se aos custos financeiros, aos benefícios e interesses dos grupos envolvidos. Assim, não basta o conhecimento científico que se tem sobre o objeto, mas, também, o poder de que os diversos grupos interessados dispõem.     As dificuldades de resolução dos problemas e de tomada de decisões, dentro dessa compreensão, dependeriam do ponto formado a partir dos componentes dos dois atributos. Nesse sentido, as decisões regulamentadoras dos riscos comportam, por um lado, argumentos de elevadas incertezas e, por outro, uma grande contestação a respeito da qualidade do conhecimento científico apresentado pelo opositor. Somados a isso, há, ainda, todos os interesses comercias ou corporativos que apreciam o resultado das decisões (Funtowicz et al., 1997).

Exclusão social e saúde pública

    A noção de 'exclusão social' está fortemente associada ao crescente desemprego surgido nas últimas décadas, em virtude, principalmente, das alterações ocorridas na economia internacional. Vários autores, porém, procuram não ficar presos a esse entendimento e avançam ao considerarem outros aspectos relevantes.     Dupas (1999), por exemplo, revê o conceito do termo 'exclusão', mas o delimita, para seu estudo, com um enfoque sobre a pobreza, que é por ele considerada a principal

Page 48: Artigos Para Tcc

dimensão da exclusão, uma vez que dificulta o acesso real aos serviços e bens de consumo julgados adequados a uma sobrevivência digna. Sob esse olhar, a literatura parece concordar que, após a Segunda Guerra Mundial, instalou-se, nos países centrais, o estado de bem-estar, que não deve ser encarado como "caridade" ou "fornecimento de donativos individuais", mas, ao contrário, deve ser visto como um direito do cidadão, como uma forma de "seguro coletivo" (Bauman, 1998).     O longo período de expansão do pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, representou um poder político-econômico que pode ser denominado de "fordismo-keynesiano". A mudança em curso entre as práticas político-econômicas do período de expansão do pós-guerra e os dias atuais sinaliza para a passagem do "fordismo" para um regime que pode ser chamado de "acumulação flexível" (Harvey, 1996). Para Navarro (1998a), a "ortodoxia" neoliberal, que surge a partir de 1980, considera o Estado e suas intervenções como obstáculo à economia e ao desenvolvimento social. Ainda para o autor, o surgimento dessa configuração foi facilitado pelas eleições de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1980 e 1979, respectivamente.     De fato, a "acumulação flexível" caracteriza-se pelo choque direto com a rigidez do "fordismo". Esse modo de regulamentação é marcado tanto pela flexibilidade nos processos e mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, quanto pelo surgimento de novos setores de produção, de modos de fornecimento de serviços financeiros e de mercados que exigem atendimento rápido às suas necessidades, o que resulta na intensificação da inovação tecnológica. Essa reestruturação produtiva — conseqüência da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição entre as empresas e os indivíduos e do enfraquecimento do poder sindical —, em virtude da grande reserva de mão-de-obra provocada pelo desemprego ou subemprego, impôs os regimes e contratos de trabalho flexíveis (Harvey, 1996; Kurz, 1997; Dupas, 1999).     Nesse momento histórico, observa-se claramente um processo de internacionalização da economia capitalista, nomeado de "globalização", que revela, entre outras, as seguintes características: a) desregulação dos mercados financeiros, bem como sua maior internacionalização; b) aumento no fluxo do comércio internacional; c) diminuição ou queda de barreiras protecionistas; d) enfraquecimento do poder do Estado nacional; e) deslocamento de produção pelas empresas transnacionais para onde houver maiores vantagens comparativas; e f) transformações não só no plano político-econômico, mas, também, nos valores sociais (Harvey, 1996; Dupas, 1999).     Apesar de alguns autores argumentarem que o fenômeno não é de todo uma novidade na história, esse processo de globalização vem sendo apontado como um importante condutor da maior vulnerabilidade dos grupos desprivilegiados, além do descompromisso do Estado com o bem-estar social (Navarro, 1998a; Kurz, 1997; Dupas, 1999).     A exclusão social passaria, à primeira vista, pela pobreza

Page 49: Artigos Para Tcc

material advinda, entre outros fatores, da má distribuição de renda em várias sociedades e que interfere negativamente na possibilidade de satisfação das necessidades sociais básicas. No entanto, os critérios econômicos, criados para definição daqueles que são ou não excluídos, esbarram em diversas dificuldades práticas.     Dois indivíduos podem ter rendas iguais, mas um deles apresenta um problema de saúde que exige gasto mensal com remédios e tratamento, o que torna distinta sua situação de pobreza. Desse modo, a situação econômica não pode ser analisada isoladamente entre as reais possibilidades de conversão da renda e as capacidades para "funcionar" (Dupas, 1999).     Definir o termo "exclusão social", contudo, por um aspecto estritamente econômico parece não ser adequado. Na verdade, a definição é bem complexa. Demo (1998) frisa que a pobreza material é sempre marcante, mas que o processo de exclusão passaria pela perda do senso de pertencimento, uma vez que os indivíduos experimentariam um abandono geral, além da incapacidade de reagir. A novidade é que o debate não repousa mais sobre a visão marxista de classes sociais. Os protagonistas agora são os grupos sociais, definidos em função de interesses coletivos (Santos, 1999a; Demo, 1998).     Pode-se considerar, então, que, de fato, os excluídos carecem dos bens e serviços necessários, mas, para além disso, precisa-se considerar, também, que o cerne da questão passa pela precariedade da cidadania. Bauman (1998) coloca o dedo na ferida e lembra que os "excluídos" são tratados pela sociedade como "estranhos", aos quais foram negados os recursos de construção da identidade e, por conseguinte, os instrumentos da cidadania. O aspecto político da exclusão revela que seu maior problema é a ausência de cidadania que impede os excluídos de perceberem como as carências são impostas e as oportunidades obstruídas.     Demo (1998) comenta ainda que a inserção pode ser um modo elegante de exclusão. Ao buscar soluções assistencialistas ou de inserção no percurso de privação, os indivíduos continuam desfiliados, desqualificados, inválidos, dissociados, porque, na grande maioria das vezes, não é atendida uma questão muito simples, a dos direitos humanos. Em outras palavras, parece que as soluções assistencialistas cumprem um papel de tolerância para com o outro. Contudo, "a tolerância é uma negação postergada" (Maturana, 1998, p. 50). Assim, tolerar significa expressar que o outro está em desacordo, equivocado, mas permite-se aceitá-lo por um determinado tempo.     Não tem sido possível, também, tentar compreender a exclusão desconsiderando o conflito social. O "estranho" é considerado odioso. De fato, a sociedade suporta pouco aqueles que transgridem os limites e, assim, os convertem em estranhos. Dejours (1999) observa que os indivíduos partilham um sentimento de medo e insegurança diante da ameaça de exclusão, mas adotam freqüentemente uma postura de resignação. Os concidadãos são tomados ou por uma racionalidade "naturalista" — que atribui ao infortúnio da exclusão uma causalidade do destino, uma adversidade — ou por uma racionalidade culpabilizante, mas dificilmente vêem a exclusão como conseqüência da injustiça social. O autor

Page 50: Artigos Para Tcc

comenta, porém, que esse ato pode ser visto como uma "defesa" contra a consciência dolorosa da cumplicidade. Esse processo de criação de condições específicas de obtenção do consentimento e cooperação de todos, bem como sua valorização social, Dejours (1999) designa como "banalização do mal".     No rastro desse debate, Santos (1999a) lembra que a emancipação dos excluídos não perpassa só o caminho da política e da economia, mas é, antes, individual, social e cultural. Segundo o sociólogo, para abolir as formas de opressão e exclusão social, não basta conceder os direitos, é preciso, também, organizar a reconversão dos processos de socialização e de inculcação cultural. Dupas (1999) analisa rapidamente esse fenômeno e propõe que o próprio conceito de "exclusão" deve ser formulado, em cada sociedade, sob a influência de questões socioculturais.     Os excluídos, por outro lado, não são totalmente impotentes, eles ameaçam a ordem social, uma vez que não desistiram definitivamente de reagir. E, nesse sentido, pertencem ao sistema. O processo de exclusão é, então, uma forma contraditória de inclusão e vice-versa.     O conceito de vulnerabilidade social é tratado aqui como todo e qualquer processo de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de grupos sociais. De fato, a vulnerabilidade relaciona-se inversamente tanto com a capacidade de reação dos grupos, quando da ocorrência de um evento, quanto com as possibilidades de informação e comunicação entre os pares.

Vulnerabilidade e saúde pública

    Num debate estimulante a respeito do papel emergente da saúde pública, Paimet al. (2000, p. 54) declaram a importância de os novos profissionais cumprirem distintos papéis, que irão

desde uma função histórico-política de 'resgatar', do próprio processo histórico de construção social da saúde, os conhecimentos, êxitos e fracassos da humanidade em sua luta pela cidadania e bem-estar até uma função agregadora de valor através da produção e gestão do conhecimento científico-tecnológico; desde uma função de gerência estratégica de recursos escassos e mediador estratégico das relações entre as necessidades e problemas de saúde e as decisões políticas até uma função de advocacy, utilizando o conhecimento como instrumento de denúncia, promovendo a mobilização crescente da sociedade em demanda de realização do seu potencial de saúde e exercício do direito de cidadania.

    Embora a compreensão do papel da saúde pública esteja longe de ser consensual na literatura, observam-se alguns pontos importantes nas seguintes reflexões, trazidas à baila pela "nova saúde pública": a) incorporação da sociedade na pauta das reformas sobre saúde; b) destaque da importância dos "espaços de excelência", que funcionariam como "redes institucionais agregadoras de valor"; c) implementação de uma política de eqüidade, solidariedade e justiça para enfrentar o desafio da saúde; d) superação do "biologismo" dominante, da naturalização da vida social, bem como da submissão e dependência à clínica e ao modelo médico dominante (Waltner-

Page 51: Artigos Para Tcc

Toews, 2000; Paim et al., 2000).     Sem dúvida, apreciar o campo da saúde pública deveria requerer um pensamento além do biológico. Os problemas de saúde existentes atualmente em todo o mundo estão, assim, relacionados a uma rede complexa de interações, que comportam as desigualdades sociais, os problemas fundamentais da distribuição da riqueza e de exclusão social, as questões ecológicas, as diversidades culturais, entre outros fatores (Waltner-Toews, 2000).     Mann et alii (1993), ao comentarem sobre o risco de infecção pelo HIV, explicam que, além da vulnerabilidade biológica, há uma importante realidade epidemiológica a ser considerada. Para os autores, o HIV necessita de ações/comportamentos específicos para que ocorra a transmissão do vírus. Assim, o comportamento individual seria o determinante final da vulnerabilidade à infecção pelo HIV. Porém, o que os autores propõem é considerar, na avaliação da vulnerabilidade, os fatores presentes na comunidade que podem influenciar a vulnerabilidade pessoal.     Desse modo, a vulnerabilidade cresce, em todo o mundo, quando ocorrem uma ou mais das seguintes situações: aumento da falta de informações precisas, relevantes e abrangentes; não preocupação ou desinteresse do indivíduo, de modo suficiente, com relação ao perigo; e inacessibilidade do indivíduo aos serviços necessários, suprimentos ou equipamentos, associada à falta de confiança para sustentar ou implementar mudanças comportamentais. A partir dessa constatação, os autores propõem uma classificação da vulnerabilidade social, em uma escala de pontuação, que considera os oito fatores a seguir: acesso à informação; despesas com saúde; acesso aos serviços de saúde; mortalidade até os cinco anos; desigualdade entre gêneros; liberdade individual; relação entre gastos com despesas militares e com saúde e educação; e o Índice de Desenvolvimento Humano. Essa classificação permitiu estabelecer uma visualização mais apurada entre a vulnerabilidade social dos países e o risco de infecção.

Saúde e pobreza

    Um trabalho clássico que aponta para os problemas da pobreza e da saúde é o de Luc Boltanski (1989). Uma rede de interações entre pobreza, saúde e educação se inter-relacionam de tal modo que os baixos salários, a má educação, a dieta pobre, a habitação e as condições de higiene insalubres e o vestuário inadequado se influenciam mutuamente. Essa visão é compartilhada por diversos outros autores (Navarro, 1998b; Prata, 1994). Vários estudos epidemiológicos, embora não haja consenso nesses achados, têm apontado também para os resultados desiguais da saúde.     Szwarcwald et alii (1999) observaram correlações significativas entre a desigualdade de renda e as condições de saúde no município do Rio de Janeiro. Os autores utilizaram os indicadores de distribuição de renda (índice de Gini e de Robin-Hood) e sociodemográficos (taxa de analfabetismo, índice de pobreza, renda média, densidade demográfica e da população favelada etc.) para confrontarem com os indicadores de saúde — coeficiente de mortalidade infantil, mortalidade

Page 52: Artigos Para Tcc

padronizada por idade, expectativa de vida ao nascer e taxa de homicídios. Todos os indicadores de saúde mostraram-se, então, significativamente correlacionados aos indicadores de desigualdade de renda.     Mheen et alii (1998), em estudo realizado na Grã-Bretanha, concluíram que, em relação às taxas de mortalidade por doenças infecciosas, respiratórias, cardiovasculares e causas externas ou acidentes, existem desigualdades importantes entre os diversos países da região e as diferentes classes sociais.     Winkleby et alii (1992), a partir dos indicadores "nível educacional" e "salário", ao examinarem a associação do estado socioeconômico com alguns fatores de risco cardiovasculares, constataram que, em geral, os indivíduos de baixo "nível educacional" tendem a exibir elevada prevalência aos fatores de risco, os quais são mais evidentes quando se observam as associações com o uso do cigarro, em ambos os sexos, e com o aumento do colesterol total e a diminuição do HDL-colesterol, nas mulheres. Contudo, o "salário" mostrou-se menos consistente como prognosticador do risco cardíaco. Mesmo assim, elevados riscos foram associados com baixos salários para uso do cigarro e HDL-colesterol, em ambos os sexos, e altos salários associaram-se às taxas aumentadas de colesterol total, em homens.     O Relatório do Desenvolvimento Humano de 1998 (PNUD, 1998) permite observar, também, como as desigualdades econômicas podem interferir na saúde das populações. Os casos de tuberculose para cada cem mil habitantes são de 69,9, nos países menos desenvolvidos; 68,6, nos países em desenvolvimento; e, 27,6, nos países industrializados. O percentual de crianças até um ano vacinadas contra essa doença é de 80%, 89% e 92%, respectivamente.     A observação dos dados do Relatório do Desenvolvimento Humano ainda pode indicar como as desigualdades socioeconômicas se unem às condições de saúde. ATabela 1 apresenta alguns dados, com base nos quais é possível verificar como os valores em dólares do PIB per capita variam, entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos: cerca de 6,70 vezes, nos países industrializados; 8,06, nos países em desenvol-vimento; e 32,11 vezes, no Brasil, o que denota uma grande desigualdade social no país. Os números encontrados indicam que os países industrializados estão em melhor situação que os demais, no que se refere à saúde pública.

Saúde e divisão social do trabalho

    É bastante conhecida, atualmente, a repercussão que o processo de trabalho provoca na saúde dos trabalhadores (Laurell, 1981; Hernberg, 1995). Uma lista interminável de pesquisas pode demonstrar associações entre as ocupações profissionais, o posto ou natureza do trabalho, e a prevalência de doenças.     Os estudos de Dejours (1992) sobre psicopatologia do trabalho são um bom exemplo de explanação sobre como se dá o sofrimento psíquico a partir do significado do conteúdo da tarefa. O autor percebe que a insatisfação e a ansiedade são dois sintomas comuns quando há o sentimento de "indignidade" do operário, por realizar uma tarefa

Page 53: Artigos Para Tcc

desinteressante, sem significação, ou o sentimento de "inutilidade", decorrente da falta de qualificação ou de finalidade do trabalho. Decerto, o sofrimento começa quando a relação entre o indivíduo e o significado do trabalho é bloqueada. Contudo, a grande contribuição de Dejours remonta às estratégias defensivas que o trabalhador desenvolve para lidar com o sofrimento no trabalho.     Rosengren et alii (1998) observaram, a partir dos dados de saúde dos trabalhadores suecos, que a mortalidade é três vezes maior nos trabalhadores não qualificados do que nos gerentes e altos funcionários. Os autores verificaram, também, que as baixas classes ocupacionais associaram-se com a alta prevalência do fumo, baixa integração social, baixo nível de atividades em casa e fora dela, baixo suporte emocional, bem como baixa capacidade de percepção da própria saúde. Todavia, não foi encontrada associação das classes ocupacionais mais baixas com pressão arterial, triglicerídeos e colesterol.     Em estudo realizado por Winkleby et alii (1992), a "ocupação profissional" foi considerada como um preditor de risco menos consistente. Mesmo assim, os autores constatam que homens e mulheres em cargos importantes de gerência e administração exibem menores níveis de uso de cigarros, enquanto que executivos do sexo masculino apresentam menores valores de pressão arterial.     Uma preocupação mais recente é o caso das lesões por esforço repetitivo (LER). Segundo Ribeiro (1997), em pesquisa elaborada junto aos funcionários de um banco estatal, 95% dos adoecidos pertencem à hierarquia inferior da empresa, dos quais 85% exercem a função de caixa ou escriturário.     Outro caso de suma importância refere-se ao desemprego. A repercussão do desemprego de longa duração na dinâmica causal de distúrbios constitui uma série de perturbações que chegam, inclusive, a prejudicar a própria obtenção de novo emprego, formando, assim, um ciclo vicioso que provoca cada vez mais agravos à saúde.     O desgaste mental sob a forma de desânimo e depressão, em virtude da diminuição da resistência física por carência alimentar ou da dificuldade de acesso aos cuidados médicos (bons serviços de saúde, compra de remédios etc.) e, ainda, um isolamento social e familiar, em cuja decorrência vários sintomas podem se manifestar, tais como insônia, irritabilidade, retraimento social, sentimentos de tristeza, ou mesmo doenças cardiovasculares, são conseqüências prováveis da situação de desemprego. Por isso, tanto quanto a ameaça à subsistência, são importantes para os estudos sobre desemprego, a marginalização perante a sociedade, a discriminação e humilhação sofrida pelos próprios pares e o afastamento social.     Esses agravos podem ser decorrentes, entre outros, dos seguintes fatores: aumento da pobreza, conseqüente à insuficiência de recursos financeiros para alimentação, transporte e vestuário; "estresse psicológico", que pode ocorrer pela rejeição sistemática aos empregos procurados e pela experiência traumática da repetição de insucessos; e maior uso de álcool e fumo (Seligmann-Silva, 1997, 1994; Shortt, 1996).     O risco de suicídio também foi verificado na situação de desemprego (Seligmann-Silva, 1994; Shortt, 1996),

Page 54: Artigos Para Tcc

principalmente, nas fases de depressão econômica. Nesse caso, os índices de distúrbios mentais e problemas psicossomáticos também se elevam. Contudo, nos momentos de grande desemprego, as taxas de suicídio tendem a diminuir. Isso ocorre, bem provavelmente, em virtude da menor valoração do trabalho e da conseqüente "banalização" do desemprego.

Saúde, condições socioeconômicas e acidentes de trabalho

    A análise dos acidentes de trabalho também pode passar pelo debate acerca das condições socioeconômicas. Lima et alii (1999) demostraram que os trabalhadores de baixa renda apresentam três vezes mais riscos de se acidentarem do que aqueles com renda igual ou superior a seis salários mínimos, quando comparados a grupos controle do próprio trabalho ou da vizinhança. Ao considerar o grupo populacional como controle, esse valor de risco chegou a oito vezes. Os autores perceberam ainda que a escolaridade igual ou menor a quatro anos associava-se a um risco de acidente cinco vezes maior do que o verificado com aqueles com escolaridade maior ou igual a 11 anos.     Porto et al. (1996), ao examinarem os riscos provenientes das indústrias químicas, descobriram que, a partir de 1970, com o processo de industria-lização, o número de acidentes aumentou consideravelmente nos países em desenvolvimento. O estudo mostra claramente que os países periféricos têm um grande número de acidentes industriais e comportam mais fatalidades do que os países centrais. Segundo os autores, de 295 acidentes ocorridos em dez países, 79% ocorreram em países em desenvolvimento, e 21%, em países desenvolvidos. Na análise dos dados de acidentes químicos da Organização Mundial de Saúde (OMS), é interessante perceber a dinâmica das mortes e lesões (Tabela 2).     Nos países periféricos, os números de vítimas tornam-se elevados não só em virtude dos trabalhadores acidentados, mas também em decorrência da quantidade de moradores vizinhos envolvidos. A caótica urbanização, o alto nível de pobreza, as construções irregulares, localizadas em áreas perigosas ao redor das indústrias, contribuem para a existência de maiores condições de risco nos países em desenvolvimento. Essa proximidade é um diferencial que marca a presença de um adequado plano de urbanização. Explosões de um tanque com o mesmo produto químico, ocorridas no México e na França, resultaram em proporções diferentes de vítimas. Um dos aspectos refere-se à proximidade das habitações ao redor das fábricas, que, na França, ficavam distantes em torno de mil metros e, no México, a menos de cem metros (Porto et al., 1996).

Gênero e saúde

    A questão de gênero também exige uma análise a partir das formas de desigualdades produzidas na sociedade. Um dos pontos essenciais a ser considerado refere-se àquelas formas engendradas nas relações de trabalho. Brito (1997), numa breve revisão dos problemas associados à questão, ressalta a importância de um olhar mais apurado sobre a divisão sexual

Page 55: Artigos Para Tcc

do trabalho, com o fito de se observar como os postos menos qualificados, os salários inferiores, a qualificação de um padrão natural de feminilidade, as desigualdades nos direitos entre trabalhadoras e trabalhadores, o assédio sexual e a dupla jornada de trabalho, entre outros aspectos, expressam algumas características gerais do trabalho feminino.     A vulnerabilidade da mulher diante do risco da epidemia de HIV/Aids é, também, extremamente relevante. Atualmente, vem crescendo o número de mulheres infectadas pelo vírus HIV, o que pode ser verificado pela redução da razão de casos entre os sexos. Se, em 1984, havia uma mulher infectada para cada 23 homens, em 1996-97, era uma mulher para cada três homens. Contudo, ainda hoje, percebe-se uma série de equívocos no trato dessa questão. Os programas educativos parecem desconsiderar os seguintes fatores: as mulheres também têm desejos sexuais; as prostitutas não são as únicas a correr risco; os preservativos, além das barreiras culturais a respeito, são, em sua maioria, destinados ao homem, responsável último pelo seu uso efetivo; o preservativo de uso feminino é mais caro; a prevenção está associada aos níveis educacionais e socioeconômicos (Vermelho et alii, 1999).     Outros fatos importantes relacionados à questão de gênero e saúde referem-se à violência doméstica e à impossibilidade de a mulher decidir sobre o próprio corpo, como nos casos de aborto, que também acarreta risco.

Saúde e violência social

    Souza et al. (1995), ao estudarem o impacto da violência social sobre a saúde pública, considerando a análise dos dados de mortalidade em decorrência dessa violência, que já representa a segunda causa de óbito no Brasil e cresce em todo o mundo, concluíram que os homicídios, os acidentes de trânsito, os suicídios, os acidentes em geral, entre outros, também contribuem para esse aumento. Contudo, a ênfase é dada, pelas autoras, aos homicídios e aos acidentes de trânsito.     Embora as mesmas autoras tracem um perfil do comportamento da violência em função de faixa etária, sexo etc., chamam atenção os comentários sobre o aspecto da pobreza e da má distribuição de renda, associados com o aumento da violência estrutural. Mesmo sem estabelecer uma relação causal, elas comentam que não é simples coincidência o fato de se encontrarem taxas elevadas de violência em regiões onde as desigualdades sociais são marcantes.     Szwarcwald et alii (1999), num estudo sobre as desigualdades sociais e a situação de saúde no município do Rio de Janeiro, observaram que a taxa de homicídios foi um indicador que esteve muito bem associado aos níveis de desigualdade de renda.     Ora, cada grupo desses incorpora características distintas e complexas, cujos efeitos se refletem na saúde. Pode-se, então, reconhecer que esses e outros grupos apresentam certa vulnerabilidade, que os expõe com mais facilidade aos riscos de adoecer. Para Paim et al. (2000), um dos desafios da saúde coletiva se estabelece, precisamente, na consideração de um conjunto de práticas, sejam econômicas, políticas ou técnicas, que apreendem, como objeto, as "necessidades sociais de

Page 56: Artigos Para Tcc

saúde". A formação dos saberes advindos daí resultaria num suporte às questões de saúde-doença, para os diversos atores sociais e categorias envolvidos.

Repensando a ciência pós-normal: uma visão tridimensional

    Para Funtowicz et al. (1997, 1993), os especialistas, por vezes, são incapazes de oferecer respostas conclusivas para os problemas complexos que enfrentam. Desse modo, tanto as preocupações do público, quanto os conflitos e controvérsias que circundam as análises e gerenciamentos dos riscos não podem ser rotulados de irracionais (Slovic, 1993). De fato, o conflito entre especialistas e o público pode conduzir a um aumento do conhecimento científico, uma vez que, para este último, há um "saber-fazer" e um entendimento das condições locais que poderiam permitir detectar, menos laboriosamente, os dados relevantes e, assim, ajudar na resolução dos problemas.     Paim et al. (2000) destacam a importância da valorização das experiências subjetivas dos atores sociais e consideram que o diálogo com outros saberes e práticas poderiam abrir novas perspectivas de reflexão e ação. E isso, sem dúvida, implicaria a necessidade de construção de um novo marco teórico-conceitual.     Esses novos participantes, então denominados de "comunidade ampliada de pares", atuam com o objetivo de garantir a qualidade dos resultados, transmitindo habilidades específicas, além de enriquecerem as comunidades científicas tradicionais. Porém, é preciso compreender que esse fenômeno não é, simplesmente, o resultado das pressões éticas e políticas que recaem sobre a ciência, quando o público está preocupado (Funtowicz et al., 1997, 1993).     Não obstante, o debate não se dá tão pacificamente. Como apresen-tado anteriormente, a resolução dos problemas ocorre em função de, pelo menos, dois atributos. Por um lado, o conhecimento científico que busca atenuar as incertezas, por outro, as decisões em jogo que levam em consideração os interesses econômicos, os compromissos comerciais e os benefícios de cada parte envolvida na questão.     É nesse contexto que se formam as percepções que o público tem das análises e do gerenciamento dos riscos. Segundo Kasperson et alii (1988), o termo "amplificação social do risco" se refere a um fenômeno composto pelas estruturas e processos sociais de experiência do risco, pelo resultado das repercussões nas percepções dos indivíduos e grupos e pelos efeitos dessas respostas na comunidade, sociedade e economia.     De acordo com esses autores, a "amplificação social" designa o fenômeno pelo qual o processo de informações, as estruturas institucionais, o comportamento do grupo social, e as respostas individuais formam a experiência social do risco e, por meio disso, contribuem para as conseqüências do risco. É desse modo que esse conceito pode fornecer uma base teórica que torne mais compreensiva e poderosa a análise e o gerenciamento do risco na sociedade contemporânea.     É preciso, pois, repensar o contrato social na contemporaneidade. Santos(1999b) aponta para uma "crise"

Page 57: Artigos Para Tcc

no contrato social nos termos de Rosseau. Para o autor, essa crise se revela, em primeiro lugar, na contratualização liberal individualista, pautada na idéia do contrato entre indivíduos e não entre agregações coletivas de interesses sociais divergentes. Em segundo lugar, esse novo contrato não estabelece nenhuma garantia de estabilidade. Por fim, o contrato liberal vigente não reconhece o conflito e a luta como elementos do debate, e os substitui, ao contrário, pela concordância passiva. Assim, no "rastro" do processo de globalização é que se funda aquilo que Santos (op. cit.) denominou "pós-contratualismo" e "pré-contratualismo". O primeiro consiste no processo pelo qual os grupos sociais incluídos no contrato social passam a ser excluídos sem qualquer perspectiva de retorno, e o segundo significa o bloqueio do acesso à cidadania daqueles que eram candidatos a tomar parte dela.     A saída proposta por Santos (1999a, 1999b), a qual encontra consonância em Slovic (1993), é, grosso modo, "reinventar" a democracia. Não uma democracia representativa, mas, antes, uma democracia participativa. Santos lembra, no entanto, que existe um distanciamento entre o exercício da democracia e as desigualdades socioeconômicas, tanto no nível dos cidadãos, quanto entre as nações centrais e periféricas.     Nesse contexto, poder-se-ia repensar o diagrama proposto por Funtowicz et al.(1997, 1993), incorporando-se ao original o atributo da "vulnerabilidade social", que varia sensivelmente entre as nações centrais e periféricas, entre as classes sociais, entre as categorias de trabalho, entre os gêneros ou, ainda, entre quaisquer grupos sociais que excluem outro. A Figura 2 representa esse entendimento de modo tridimensional, uma vez que, segundo Bergé et alii (1996), um sistema com apenas duas variáveis não poderá ser caótico. Para tanto, o sistema necessita de pelo menos três variáveis, e, assim, sua configuração espacial deve utilizar uma terceira dimensão.     A discussão sobre a complexidade e as incertezas dos estudos, avaliação e gerenciamento dos riscos à saúde pública deveria, então, consistir de uma compreensão que incluísse as relações entre seus vários componentes e evitasse o reducionismo e determinismo de qualquer ordem, a partir da incorporação das "incertezas do sistema", das "decisões em jogo" e da "vulnerabilidade social".     Diane Vaughan (1992), ao analisar o acidente da nave aeroespacial Challenger, ocorrido em 1986, explora a contribuição organizacional para as falhas verificadas. Essa autora considera essencial compreender os fatores estruturais que poderiam ter conduzido ao acidente e comenta, ainda, que a decisão do lançamento teve a influência dos seguintes aspectos: "ambiente competitivo" que a Nasa enfrenta no mercado mundial; "características da organização" (hierarquia, divisões etc.); e "ambiente regulador" (regulamentação, fiscalização e controle das organizações).     Porto et al. (1996) observaram a maior vulnerabilidade aos acidentes químicos de grupos sociais menos favorecidos. Nos países em desenvolvimento, como visto anteriormente, percebe-se que o número de vítimas em acidentes químicos tende a ser maior do que em acidentes semelhantes ocorridos nos países desenvolvidos. Esse fato é ainda mais dramático ao se considerar que, nos países em desenvolvimento, os dados

Page 58: Artigos Para Tcc

são mais difíceis de serem obtidos. Outro ponto relevante refere-se à manutenção inadequada, muitas vezes decorrente da redução de investimentos, seja para continuar competindo, seja para fazer frente aos custos dos acidentes, mais elevados nos países industrializados, principalmente àqueles referentes às indenizações das vítimas.     Os modelos de industrialização desenvolvidos nos países periféricos, como Brasil, México e Índia, buscaram um rápido crescimento econômico, entre 1960 e 1980, e, uma inserção acelerada no sistema econômico global, favorecido tanto pela ausência ou fraqueza do sistema político democrático, quanto pelas mudanças ocorridas na organização social. Esse modelo, segundo Porto et al. (1996), seria responsável pela maior magnitude dos acidentes químicos nesses países.     Ainda nesse sentido, Hernberg (1995), ao comentar a epidemiologia ocupacional, reconhece o "clima político" que constrange o pesquisador. Para o autor, o contexto político-econômico altamente competitivo da atualidade dificulta o acesso aos dados.     Os estudos apresentados no tópico 'exclusão social e saúde pública' deste artigo, também podem ser discutidos. Cada experiência analisada mostra que um grupo social pode estar mais vulnerável e, por isso, mais suscetível ao risco à saúde, como bem salienta Waltner-Toews (2000). As análises, pois, precisam partir da compreensão de que os fenômenos são complexos e, como tais, exigem outros "modos de olhar", ou seja, faz-se necessária a incorporação da ciência pós-normal, dentro de uma "visão tridimensional", que incorpore o atributo da "vulnerabilidade".     É possível, ainda, perceber que o entendimento dos agravos à saúde pública parece ocorrer na ação recíproca entre vários agentes, que convergem para provocar tais problemas, e a insuficiência de força de determinados grupos em reagir. Tanto no caso do aparecimento de doenças, quanto no de acidentes, é fundamental compreender como as relações sociais incorporam a interação dessa vulnerabilidade com todos os outros elementos.     Por fim, a resolução do problema da vulnerabilidade perpassaria, então, pela participação mais democrática dos atores sociais. Isso se daria, inicialmente, respeitando-se os direitos básicos do cidadão. Seria preciso, ainda, lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, embora não se tenha, ainda, "fórmulas" eficazes para solucionar tais questões. Contudo, o que se propõe aqui é sua incorporação imediata nas análises das situações de risco.

À guisa de conclusão

    O papel da ciência tem sido, e ao que parece sempre será, o de assistir às tomadas de decisões e apostas no futuro da humanidade. A visão moderna, germinada do iluminismo, buscou resolver essas questões fundamentada, principalmente, no determinismo ou nas relações de causa e efeito. As ciências consideradas "duras", como a física ou a biologia, pareciam situar-se dentro dessa perspectiva. Contudo, mais recentemente, as análises dos objetos começaram a reclamar novos "modos de olhar", a partir dessas próprias disciplinas.     A "saúde", por exemplo, tem sido estudada,

Page 59: Artigos Para Tcc

freqüentemente, pelo seu viés biológico, que, por um longo tempo, foi considerado o único possível. Porém, a "saúde", como produto das relações sociais, incorpora uma pluralidade de aspectos que dificultam toda e qualquer certeza a seu respeito. Como sistema complexo e incerto, o estudo, a avaliação e o gerenciamento dos riscos à saúde exigem, cada vez mais, a abordagem de outros profissionais, disciplinas e saberes.     O reconhecimento e a incorporação não só dos conhecimentos, mas também da participação dos grupos sociais que experimentam os riscos, torna-se, neste momento, imprescindível. Um debate com base em posições mais claras e melhor informadas, aliado à diminuição da política de poder, contribuiria, sobremaneira, para o aperfeiçoamento da informação técnica e dos princípios deontológicos, por um lado, e, por outro, neutralizaria um confuso jogo de interesses e de visões de mundo conflitantes (Freitas et al., 1997; Funtowicz et al., 1997).     É dentro dessa perspectiva que o presente artigo buscou dialogar. Partindo do entendimento que Funtowicz et al. (1997, 1994, 1993) têm da ciência pós-normal, foi considerado um terceiro elemento, aqui denominado de "vulnerabilidade social". Uma vez que as incertezas do sistema perpassam tanto pelas capacidades de reação dos cidadãos, quanto pela forma como os direitos dos cidadãos estejam assegurados, a princípio, pelo Estado, esse terceiro elemento, da vulnerabilidade social, parece constituir a dinâmica pela qual as tomadas de decisões são engendradas. Não é à toa que, nos países centrais, existe maior possibilidade de acesso às informações e garantia de respeito aos direitos dos cidadãos.     Tome-se como exemplo as discussões ou problemas recentes, ocorridos no Brasil, sobre os medicamentos genéricos, os alimentos transgênicos ou os acidentes ambientais. Em todos os casos, os cidadãos são postos de lado e, o que é mais dramático, como não têm, com raras exceções, força política ou representação consistente, não conseguem impedir o avanço desses agravos ou fazer respeitar seus direitos à saúde e informação, ficando à mercê da sorte.     Nesse sentido, o estudo, a avaliação e o gerenciamento dos riscos à saúde pública têm enfrentado a crise decorrente da insuficiência do paradigma ainda hegemônico. Uma nova perspectiva começa a se descortinar, mas a sustentação da ciência pós-normal não se dá com a inviabilização dos dados coletados a partir da ciência dita normal. Na ciência pós-normal, outros fatores estão em jogo e os próprios dados são postos em dúvida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bauman, Z. 1998 O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. [ Links ]

Boltanski, L. 1989 As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal.         [ Links ]

Page 60: Artigos Para Tcc

Bergé, P.; Pompeau, Y. e Dubois-Gance, M. 1996 Dos ritmos ao caos. São Paulo, Unesp.         [ Links ]

Brito, J. 1997 'Uma proposta de vigilância em saúde do trabalhador com a ótica de gênero'. Cadernos de Saúde Pública, 13 (supl. 2), pp. 141-4.         [ Links ]

Chauí, M. 1994 Convite à filosofia. São Paulo, Ática.         [ Links ]

Dejours, C. 1999 A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas.         [ Links ]

Dejours, C. 1992 A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo, Cortez/Oboré.         [ Links ]

Demo, P. 1998 Charme da exclusão social. Campinas, Autores Associados. [ Links ]

Dupas, G. 1999 Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo. São Paulo, Paz e Terra.         [ Links ]

Freitas, C.M. e Gomez, C. M. 1997 'Análise de riscos tecnológicos na perspectiva das ciências sociais'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. III(3), pp. 485-504. [ Links ]

Funtowicz, S. e Ravetz, J. R. 1997 'Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares face aos desafios ambientais'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. IV(2), pp. 219-30.         [ Links ]

Funtowicz, S. e Ravetz, J. R. 1994 'Emergent complex systems'. Futures, 26(6), pp. 568-82.         [ Links ]

Funtowicz, S. e Ravetz, J. R. 1993. 'Science for the post-normal age'. Futures, 25(7), pp. 739-55.         [ Links ]

Harvey, D. 1996 Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Loyola.         [ Links ]

Heisenberg, W. 1999 Física e filosofia. Brasília, Editora da Universidade de Brasília. [ Links ]

Hernberg, S. 1995 'Epidemiologia ocupacional: progressos e perspectivas'. La Medicina del Lavoro (Edição América Latina), 02(02), pp. 111-22.         [ Links ]

Kasperson, R.; Renn, O.; Slovic, P.; Brown, H.; Emel, J.; Goble, R.; Kasperson, J. e Ratick, S. 1988 'The social amplification of risk: a conceptual framework'.Risk Analysis, 8(2), pp. 177-87.         [ Links ]

Kuhn, T. 1997 A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva. [ Links ]

Kurz, R. 1997 Os últimos combates. Petrópolis, Vozes.         [ Links ]

Laurell, A. C. 1981 'Processo de trabalho e saúde'. Revista Saúde em Debate, 11, pp. 8-22.         [ Links ]

Page 61: Artigos Para Tcc

Lima, R.; Victora, C.; Dall'agnol, M.; Facchini, L. e Fassa, A. 1999 'Associação entre as características individuais e socioeconômicas e os acidentes do trabalho em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil'. Cadernos de Saúde Pública, 15(3), pp. 569-80. [ Links ]

Mann, J.; Tarantola, D e Netter, T. 1993 A Aids no mundo. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Abia, IMS/Uerj)         [ Links ]

Maturana, H. 1998 Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte, UFMG.         [ Links ]

Mheen, P.; Smith, G.; Hart, C. e Gunning-Schepers, L. 1998 'Socioeconomic differentials in mortality among men within Great Britain: time trends and contributory causes'. Journal of Epidemiology and Community Health, 52, pp. 214-8. [ Links ]

Morin, E. 1990 Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget. [ Links ]

Morin, E. 1983 O problema epistemológico da complexidade. Lisboa, Europa-América.         [ Links ]

Navarro, V. 1998a Neoliberalism globalization, unemployment, inequalities, and the welfare state'. International Journal of Health Services, 28(4), pp. 607-82. [ Links ]

Navarro, V. 1998b 'A historical review (1965-1997) of studies on class, health, and quality of life: a personal account'. International Journal of Health Services, 28(3), pp. 389-406.         [ Links ]

Omnès, R. 1996 Filosofia da ciência contemporânea. São Paulo, Editora da Unesp. [ Links ]

Paim, J. S. e Almeida Filho, N. 2000 A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador, Casa da Qualidade Editora.         [ Links ]

PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) 1998 Relatório do Desenvolvimento Humano — 1998. Lisboa, Trinova Editora.         [ Links ]

Porto, M. F. e Freitas, C. M. 1996 'Major chemical accidents in industrializing countries: the socio-political amplification of risk'. Risk Analysis, 16(1), pp. 19-29. [ Links ]

Prata, P. R. 1994 'Desenvolvimento econômico, desigualdade e saúde'. Cadernos de Saúde Pública. 10(3), pp. 387-91.         [ Links ]

Ribeiro, H. P. 1997 'Lesões por esforços repetitivos (LER): uma doença emblemática'. Cadernos de Saúde Pública, 13 (supl. 2), pp. 85-93.         [ Links ]

Rosengren, A.; Orth-Gomer, K. e Wilhelmsen, L. 1998 'Socioeconomic differences in health indices, social networks and mortality among Swedish men: a study of men born in 1933'. Scandinavian Journal of Social Medicine, 26(4), pp. 272-80. [ Links ]

Santos, B. S. 1999a Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez.         [ Links ]

Page 62: Artigos Para Tcc

Santos, B. S. 1999b 'Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo'. Em F. Oliveira e M. Paoli (org.). Os sentidos da democracia: políticas de dissenso e hegemonia global. Petrópolis, Vozes, pp. 83-129. [ Links ]

Seligmann-Silva, E. 1997 'A interface desemprego prolongado e saúde psicossocial'. Em J. F. da Silva Filho e S. Jardim (org.), A danação do trabalho: organização do trabalho e sofrimento psíquico. Rio de Janeiro, Te Corá, pp. 19-63.         [ Links ]

Seligmann-Silva, E. 1994 Desgaste mental no trabalho dominado. Rio de Janeiro, UFRJ/Cortez.         [ Links ]

Shortt, S. E. 1996 'Is unemployment pathogenic? A review of current concepts with lessons for policy planners'.International Journal of Health Services, 26(3), pp. 569-89.         [ Links ]

Slovic, P. 1993 'Perceived risk, trust, and democracy'. Risk Analysis, 13(6), pp. 675-82.         [ Links ]

Souza, E. R. e Minayo, M. C. S. 1995 'O impacto da violência social na saúde pública'. Em M. C. S. Minayo (org.),Os muitos Brasis: saúde e população na década de 80. São Paulo: Hucitec/Abrasco, pp. 87-116.         [ Links ]

Szwarcwald, C.; Bastos, F.; Esteves, M.; Andrade, C.; Paez, M.; Medici, E. e Derrico, M. 1999 'Desigualdade de renda e situação de saúde: o caso do Rio de Janeiro'.Cadernos de Saúde Pública, 15(1), pp. 15-28.         [ Links ]

Vaughan, D. 1992 'Regulating risk: implications of the Challenger accident'. Em J. Short Jr. e L. Clarke (orgs.),Organizations, uncertainties, and risk. Boulder, Westview Press, pp. 235-53.         [ Links ]

Vermelho, L. L.; Barbosa, R. H. e Nogueira, S. A. 1999 'Mulheres com Aids: desvendando histórias de risco'.Cadernos de Saúde Pública, 15(2), pp. 369-79. [ Links ]

Waltner-Toews, D. 2000 'The end of medicine: the beginning of health'. Futures, 32(7), pp.655-67.         [ Links ]

Winkleby, M.; Jatulis, D.; Frank, E. e Fortmann, S. P. 1992 'Socioeconomic status and health: how education, income, and occupation contribute to risk factors for cardiovascular disease'. American Journal of Public Health, 82(6), pp. 816-20. [ Links ]

Wynne, B. June 1992 'Uncertainty and environmental learning: reconceiving science and policy in the preventive paradigm'. Global Environmental Change, pp. 111-27. [ Links ]

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000400004&lng=en&nrm=iso)

Page 63: Artigos Para Tcc

Interface - Comunicação, Saúde, EducaçãoOn-line version ISSN 1807-5762

Abstract

MALVASI, Paulo Artur. ONGs, vulnerabilidade juvenil e reconhecimento cultural: eficácia simbólica e dilemas. Interface (Botucatu) [online]. 2008, vol.12, n.26, pp. 605-617. ISSN 1807-5762.  http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832008000300012.

A busca pelo reconhecimento cultural como estratégia no enfrentamento da vulnerabilidade entre jovens tornou-se predominante entre as ONGs (organizações não governamentais) brasileiras. Após dez anos de crescimento desta forma de ação, analisamos sua eficácia simbólica e seus dilemas. O artigo debate, inicialmente, conceitos e práticas envolvidas nesse cenário. Em seguida, volta-se para o campo das ONGs brasileiras que atuam com jovens em situação de vulnerabilidade, por meio de atividades artísticas e culturais, com o intuito de reconhecer os elementos simbólicos presentes neste contexto. Apresenta-se, ainda, um estudo de caso sobre a experiência de uma delas e destaca-se um dilema comum às ações das ONGs no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil: o de conciliar as ações de caráter cultural que valorizam o repertório particular dos jovens de classes populares com a viabilização do acesso a estruturas e recursos básicos dos quais estão afastados.

Keywords : Vulnerabilidade social; Organização não governamental; Reconhecimento cultural; Eficácia; Redistribuição material.

ONGs, vulnerabilidade juvenil e reconhecimento cultural: eficácia simbólica e dilemas

 

NGOs, juvenile vulnerability and cultural recognition: symbolic efficacy and dilemmas

 

ONGS, vulnerabilidad juvenil y reconcimiento cultural: eficacia simbólica y delemas

 

 

Paulo Artur Malvasi

Graduado em Ciências Sociais. Programa de Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei, Universidade Bandeirante de São Paulo. Rua Pedro Alvim, 20 Centro - Atibaia, SP [email protected]

Page 64: Artigos Para Tcc

 

 

RESUMO

A busca pelo reconhecimento cultural como estratégia no enfrentamento da vulnerabilidade entre jovens tornou-se predominante entre as ONGs (organizações não governamentais) brasileiras. Após dez anos de crescimento desta forma de ação, analisamos sua eficácia simbólica e seus dilemas. O artigo debate, inicialmente, conceitos e práticas envolvidas nesse cenário. Em seguida, volta-se para o campo das ONGs brasileiras que atuam com jovens em situação de vulnerabilidade, por meio de atividades artísticas e culturais, com o intuito de reconhecer os elementos simbólicos presentes neste contexto. Apresenta-se, ainda, um estudo de caso sobre a experiência de uma delas e destaca-se um dilema comum às ações das ONGs no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil: o de conciliar as ações de caráter cultural que valorizam o repertório particular dos jovens de classes populares com a viabilização do acesso a estruturas e recursos básicos dos quais estão afastados.

Palavras-chave: Vulnerabilidade social. Organização não governamental. Reconhecimento cultural. Eficácia. Redistribuição material.

ABSTRACT

The search for cultural recognition, as a strategy for confronting vulnerability among adolescents, has become predominant among Brazilian NGOs (non-governmental organizations). After ten years of growth of this form of action, we seek to analyze its symbolic efficacy and its dilemmas. This article starts by discussing the concepts and practices involved in this scenario. It then turns to the field of Brazilian NGOs operating among adolescents in vulnerable situations through artistic and cultural activities, aiming to recognize the symbolic elements within this context. Furthermore, it presents a case study that observes the experience of an NGO. This article highlights a dilemma common to NGO actions dealing with juvenile vulnerability: how to reconcile actions of a cultural nature aimed at strengthening the private repertoire among working-class adolescents with enablement of access to the structures and basic resources from which they are distanced.

Key words: Social vulnerability. Non-governmental organization. Cultural recognition. Efficacy. Material redistribution.

RESUMEN

La búsqueda por el reconocimento cultural como estrategia en la confrontación de la vulnerabilidad entre jóvenes se hizo predominante las ONGS (organizaciones no gubernamentales) brasileñas. Después de die anõs de crecimiento de esta maneira de acción buscamos analizar su eficacia simbólica y sus dilemas. El artículo debate, inicialmente, conceptos y prácticas comprendidas en este escenario. En seguida, se vuelve para el campo de las ONGS brasileñas que actúan con jóvenes en situación de vulnerabilidad a través de actividades artísticas y culturales, con la intención de

Page 65: Artigos Para Tcc

reconocer los elementos simbólicos presientes artísticas y culturares, con la intención de reconocer los elementos simbólicos presientes en el contexto estudiado. Se presenta tambíen un estudio de caso que observa la experiencia de una organización no gubernamental. El artículo destaca un dilema común a las acciones de las ONGS en el enfrentamiento de la vulnerabilidad juvenil, cual sea, conciliar las acciones de carácter cultural que tienen por objeto la valorización del repertorio particular de los jóvenes de clases populares con la viabilidad del acceso a estructuras y recursos básicos de los cuales están alejados.

Palabras clave: Vulnerabilidad social. Organización no gubernamental. Reconocimiento cultural. Eficacia. Redistribución material.

 

 

Introdução

Nos últimos anos, um fator atuante no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil tem sido o aumento de ações e projetos de Organizações Não Governamentais (ONGs) que se apresentam como alternativa ao ingresso no "mundo do crime" e outros "riscos sociais" atuando no âmbito das atividades culturais música, dança, artes plásticas etc - para denunciar a exclusão, reivindicar o direito à cidadania, criar novas redes de sociabilidade. Tais ações apostam no reconhecimento cultural das manifestações dos jovens das classes populares como estratégia para enfrentar os estigmas e preconceitos que sofrem. Este artigo procura reconstituir o significado social desta prática de ONGs e analisar os dilemas que surgem ao se defrontarem com aspectos da vulnerabilidade que se referem às condições materiais necessárias para a inclusão.

Refletindo sobre os termos

Falar emONGs é definir um universo em que as representações e as práticas são tão diversas e complexamente construídas que se torna difícil defini-las como algo uno. Tratá-las como forças "negativas" ou "positivas" é tão ingênuo quanto limitante. Por trás do termo ONG (assim como do terceiro setor e sociedade civil) encontramos uma diversidade muito grande de iniciativas. Dentro de cada instituição a ambivalência está colocada.

A noção de campo de Bourdieu (1983) é uma referência interessante para refletirmos sobre o fenômeno das ONGs no Brasil, pois se trata de um universo em que agentes (indivíduos e organizações) tramam uma rede de influência recíproca e de disputas por recursos e poder. Em Bourdieu, a ação social explica-se em termos de uma interação socialmente estruturada. Os indivíduos agem orientados por disposições duráveis internalizadas que conformam e condicionam as possibilidades de apreensão do mundo - o habitus. Com base nesta orientação, os indivíduos não são meros executores de normas ou reprodutores de estruturas. A ação social acontece em campos em que as posições dos sujeitos já estão objetivamente estruturadas, embora tais posições sejam o resultado de um jogo dinâmico que depende dos objetos de disputa de cada campo. Portanto, a noção de campo procura comportar a dinâmica das interações sociais e a estrutura das relações de poder. Partir da idéia de campo de Bourdieu implica observar a existência de atores estruturados que estão competindo (Bourdieu, 1983).

Page 66: Artigos Para Tcc

Façamos, então, algumas reflexões sobre o campo das ONGs. A partir dos anos 1990 houve um processo de extraordinária diversificação e ampliação das ONGs no Brasil. No início dessa década, as organizações não governamentais passam a se articular de forma efetiva como um campo autônomo em relação aos movimentos sociais,

num claro esforço de construção de sua face pública, buscando influir nas decisões de poder e superar a 'síndrome de clandestinidade' que marcara seus primeiros anos, verifica-se o surgimento de diversas articulações através de fóruns regionais ou nacionais, e até mesmo deassociações formais, como é o caso da ABONG Associação Brasileira de ONGs, fundadaem 1991. (Doimo, 1995, p.153)

Até a década de 1980, ainda havia uma considerável especialização e segregação entre as associações e movimentos cada qual ligada a uma "causa" (educação popular, por exemplo) ou a um "público" particular (de negros, de mulheres, de jovens etc.); na década de 1990 se constroem novos espaços de interação entre as diversas associações, a partir da incorporação crescente de categorias transversais como gênero, juventude eexpressões artístico-culturais, por exemplo, que deixam de marcar um tipo de ONG, mas passam a ser elementos importantes em várias delas.

Daniel Simião (2002) analisou esse movimento de surgimento de temas transversais que perpassam diversas ONGs, destacando a categoria gênero. O autor parte de um pressuposto teórico para refletir sobre este tema: podemos dizer que os conceitos que grupos e pessoas utilizam para se posicionar no mundo como o conceito de gênero nos discursos e nas relações entre atores do universo das ONGs são bastante reveladores, não apenas de consciências individuais, mas de formas sociais de estar no mundo (Simião, 2002).

O estudo de Simião (2002) mostra como na década de 1990 se constroem novos espaços de inter-relacionamento entre as ONGs, por meio da incorporação de categorias transversais, que servem para a mobilização, a veiculação e para arregimentar financiamentos para os "projetos". A análise do autor aponta como as agências internacionais de cooperação foram determinantes neste processo, deixando claro, em textos de diferentes agências internacionais, a compreensão de gênero como um enfoque transversal que deveria estar presente nos projetos propostos por qualquer ONG.

Parece-nos que este uso instrumental de categorias transversais, que representam idéias apreciadas no desenvolvimento das ações coletivas a partir da década de 1990, tornou-se uma forma de as ONGs se posicionarem no campo. Outras "palavras-chave", além de gênero, presentes no campo das ONGs são: cultura e juventude. Em suma, as ONGs que conseguem ostentar um tipo de trabalho que contempla temas transversais valorizados pelos financiadores, ganham preciosos pontos em seu capital social, e facilitam o acesso a pleiteados recursos e financiamentos específicos das agências de cooperação internacional, dos governos e das empresas privadas.

A noção de vulnerabilidade também é uma "palavra-chave" para as ONGs utilizarem em seu repertório na busca de apoios e financiamentos. Na maior parte dos casos, a noção de vulnerabilidade juvenil remete à idéia de fragilidade e de dependência que se vincula à situação de jovens, sobretudo os mais pobres. Diversos fatores têm levado à associação corrente entre juventude e vulnerabilidade1. Tais fatores enfatizam os aspectos negativos da experiência de segmentos menos favorecidos da juventude, relacionados à crescente violência urbana, às transformações da ordem socioeconômica no mundo contemporâneo e à falta de garantia dos direitos e oportunidades nas áreas de educação, proteção social, entre outras que asseguraram os direitos humanos dos jovens.

Page 67: Artigos Para Tcc

Essa forma negativa - que é reforçada e reforça o senso comum - de pensar em algumas situações a que segmentos da juventude estão expostos, associa a juventude ao "risco", caracterizando-a como problema, e leva a uma visão do jovem como incapaz de responder às suas carências e debilidades. Embora a utilização da noção de vulnerabilidade "negativa" possa abrir caminhos para a defesa e proteção de jovens pobres, rejeitados pela escola, sem oportunidades, buscando transformar este quadro, ela pode, por outro lado, estigmatizá-los ainda mais.

Mesmo que haja um consenso de que esses jovens se encontram em situações socialmente negativas2, é importante reconhecermos a força criativa e as potencialidades presentes na vida cotidiana deles. Tal esforço tem sido realizado em torno da idéia de "vulnerabilidade positiva". Nesse caso, deve-se identificar o potencial inovador dos jovens, a possibilidade do positivo, "ou seja, a consciência quanto a riscos e obstáculos vividos e a busca por uma ética de vida que representaria um capital simbólico e cultural, que se insinua através do exercício da crítica social" (Castro, Abramovay, 2004, p.3).

Na última década, grandes estruturas que orientam as linhas de fomento ao trabalho das ONGs, como a UNESCO e a Organização Mundial de Saúde, passaram a estimular os trabalhos que se utilizam de expressões culturais para enfrentar as situações de vulnerabilidade3, fortalecendo desta forma a busca das organizações para instrumentalizarem o tema da cultura como estratégia de intervenção junto a jovens. Por outro lado, o ingresso no mundo do trabalho surge neste contexto como um desafio que necessariamente tem de ser enfrentado.

ONGs, vulnerabilidade juvenil e cultura: relações simbólicas

Temos um testemunho da centralidade que o tema transversal cultura ganhou entre as ONGs que trabalham com jovens em situação de vulnerabilidade, ao voltarmos nosso olhar para o livro Cultivando vidas, desarmando violências, resultado de pesquisa em âmbito nacional, organizada pela Unesco (Castro, 2001), com trinta das principais instituições que trabalham com jovens em todo o Brasil4: todas atuam com algum projeto que envolve o conceito arte-cultura ou arte-educação. Constrói-se, assim, um discurso que relaciona a mudança na vida dos jovens à participação em atividades culturais.

Por que "arte" e "cultura" para "jovens carentes"? Por que ONGs contemporâneas que trabalham com a juventude chegaram a este "sentido cultural"? Qual a base cultural que permite a reivindicação e a instrumentalização da dança, do teatro ou da percussão para a concepção de uma organização com o fim público de proporcionar cidadania para "jovens carentes"?

Um ponto a se considerar é a centralidade que a juventude assume nestes anos como "problema social", sobretudo (mas não só) a juventude pobre, passando os rapazes particularmente a serem mais associados à delinqüência, ao consumo de drogas, à violência. Outro aspecto é a idéia de que a "cultura" oferece um contraponto, elemento estratégico para se trabalhar com jovens em situação de vulnerabilidade social. Neste cenário ganham destaque as expressões culturais identificadas com os setores populares e, em particular, com aspectos de identidade étnica negra, como o rap, a capoeira, a percussão, entre outros.

Algumas organizações tiveram um papel central na construção da visibilidade do tema cultura na ação junto a "jovens vulneráveis", e tal construção está associada à questão da identidade étnico-racial. O Olodum e o Afro Reggae, entre outros, surgem em um movimento de valorização da cultura negra no Brasil e no mundo. Tais organizações conquistaram legitimidade social, difundiram suas ações em grandes veículos de comunicação, e difundiram o tema cultura entre ONGs que trabalham com jovens em todo o Brasil.

Page 68: Artigos Para Tcc

Nas últimas décadas, a valorização desse tipo de ação está inserida no complexo processo de valorização de expressões culturais relacionadas à negritude. A difusão e visibilidade dessas ONGs se relacionam a intercâmbios simbólicos em níveis locais e globais, envolvendo uma gama variada de agentes e instituições. Lívio Sansone aponta para a existência de um intercâmbio simbólico entre negros nos dois lados do Atlântico, uma convergência entre culturas negras locais e a constituição de uma cultura negra internacionalizada. Nesta construção cultural típica de nossa época, destaca-se a estetização da negritude por meio, sobretudo, de estilos jovens de alta visibilidade e da música pop, entre os quais estão o hip-hop e o reggae (Sansone, 1995), e também a música percussiva e as danças afro.

O autor salienta fatores estruturais que determinam as condições de vida das populações negras, ou afrodescendentes, em diferentes países, e estes se relacionam diretamente com as construções simbólicas sobre a negritude. Existem traços semelhantes na composição econômica dessas populações, que, de maneira geral, são alijadas da participação plena no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, a construção social das imagens relativas ao trabalho associa simbolicamente os negros ao lazer e à naturalidade. Estas imagens transnacionais da negritude são veiculadas tanto por brancos quanto por negros, num processo que envolve a indústria musical e a da moda, as migrações de populações negras e o fortalecimento da produção e da resistência cultural negra (Sansone, 1995).

A situação dos negros no Brasil, em relação ao mercado de trabalho e à (auto)imagem do ser negro, segue tendências semelhantes. Apesar das dificuldades de acesso e integração à sociedade, os negros e mestiços brasileiros, num processo paradoxal, têm gozado cada vez mais de prestígio, quando o tema é brasilidade. A este processo de valorização da cultura negra, somam-se dois aspectos que engendram mudanças na atitude dos jovens negros e mestiços, no sentido de assumir expressões culturais negras: com a dificuldade do acesso ao emprego, ganha centralidade o consumo e o lazer na busca de status, dignidade e direitos civis; existe um forte desejo de "ser alguém" e de "pertencer" (Sansone, 1995, p.75). Esta forma de assumir a identidade negra combina-se com ser jovem e de classes populares no consumo e na produção de elementos da cultura afro-brasileira como a percussão e a capoeira (Sansone, 1995).

Sabemos que, no Brasil, muitas vezes, as articulações e tensões sociais não adquirem explicitamente uma atribuição de cor, mesmo quando se trata de temas que remetem a ela, como, por exemplo, o caso de jovens moradores de favelas que tocam percussão e jogam capoeira (expressões remetidas a uma origem africana) ou participam do movimento hip-hop (também identificado com a negritude) como meio de conquistar auto-estima e reconhecimento, ou o que for que se esteja denominando de cidadania. Fica subentendido que esta manifestação cultural é característica de segmentos negros e/ou mestiços, mas há um deslocamento para a condição social, ou seja, a pobreza. Como assinalamos há pouco, identificações com elementos da cultura afro, nos dias de hoje, mesclam-se com o pertencer a classes populares e jovens.

Além da questão racial, o problema que se coloca nas grandes cidades brasileiras é o da periferia, dos perigos presentes nos grandes centros urbanos e dos jovens nesse contexto, retratado como de violência, tráfico de drogas, desemprego, falta de perspectiva. O advento do hip-hop na cidade de São Paulo parece ter um papel de destaque nesta valorização da música como forma de contestação, atuação e transformação entre jovens moradores da periferia da cidade. Como sugere Maria Eduarda Araújo Guimarães (Guimarães, 1999, p.47): "O raptransformou a periferia em referência para a cultura, assim como o samba já havia definido o morro como idealização de um Brasil mulato [...]". A diferença primordial é que enquanto o samba é um representante da cultura nacional, e a música dos blocos afros um elemento de resgate da cultura de raízes africanas, o rap tem como objeto a denúncia das desigualdades e discriminações que acontecem com populações

Page 69: Artigos Para Tcc

jovens em São Paulo, no Brasil, mas também em toda parte do mundo, "seu universo refere-se a um local que está remetido diretamente ao global" (Guimarães, 1999, p.47).

Outras análises sobre o hip-hop encontradas na coletânea Rap e Educação, Rap éEducação(Andrade, 1999), reforçam a idéia de que o rap tem influenciado uma grande parte dos jovens, de todas as "classes" e "cores". O movimento hip-hop como forma de expressão e ação tem extrapolado sua influência para além dos seus integrantes. Muitos jovens que não são membros do movimento hip-hop consomem os discos, cantam em festas ou mesmo em encontros ocasionais e, de certa forma, dividem com os cantores de música rap a atitude de discordância social. As letras de rap denunciam a violência, o preconceito e a discriminação sofrida por jovens pobres, especialmente os negros, e os conclamam a se organizarem e a mudarem seus destinos. Espalha-se, assim, uma "cultura de conscientização", que tende a tornar os jovens mais receptivos a projetos que apresentam alguma similaridade estrutural com as peculiaridades do hip-hop.

Qual a melhor forma, então, de atuar com o grupo etário que se tornou foco de tensões sociais? Na problemática da violência urbana, os jovens são considerados os principais protagonistas, mas, em grande medida, as possibilidades de lidar com os problemas vieram, paradoxalmente, deles mesmos. A parcela da juventude mais exposta e vulnerável ao crime e à violência encontrou, em expressões musicais como o samba-reggae, o funk e orap, formas de se posicionar no mundo, redimensionando suas condições de vida e tornando possível seu ingresso no mundo de imagens, símbolos, comportamentos e valores do mercado de bens culturais. Tais expressões musicais introduzem outras formas de expressão artística corporal, por meio das danças; textual, por intermédio das letras; plástica, por meio da "grafitagem" dentro do movimento Hip Hop - e apontam para a reivindicação de um espaço para os jovens comunicarem suas idéias por intermédio da linguagem artística.

Todas estas articulações, peculiares das décadas de 1990 e 2000, envolvendo juventude, "problemas sociais" e "arte-cultura", entraram na pauta das práticas de prevenção e saúde pública voltadas para este segmento. Paralelamente, projetos de ONGs voltados a este público-alvo incorporaram estas expressões, apontando para a tendência de valorização do repertório sociocultural dos jovens como meio mais eficaz para seduzi-los e dar alternativas às carências a que estão submetidos.

Na última década, por todo Brasil, vemos então a expansão e a variação de programas alternativos, voltados para a educação para a cidadania, em organizações não governamentais de diferentes portes norteadas para os jovens. Há uma ampla aceitação coletiva deste tipo de "projeto social", o que pode ser observado pelo crescimento vertiginoso de experiências e pelas inúmeras e repetidas reportagens sobre trabalhos com este perfil. O crescimento deste tipo de ação social está ancorado, também, no respaldo do Estado via programas oficiais. Verifiquemos exemplarmente o que o Programa Regional de Ações para o Desenvolvimento da Juventude na América Latina (PRADJAL, 1995-2000) também recomenda:

atenção para a situação dos jovens em situação de risco social; e atenção à importância da cultura, em suas múltiplas derivações conceituais, para a construção da cidadania ou para diversos tipos de cidadania, inclusive para o lidar/responder com a pobreza e outras exclusões sociais, como as relacionadas às relações étnico-raciais e de gênero. (Castro, Abramovay, 1998, p.571)

Um estudo de caso: eficácia simbólica e dilemas em uma organização não governamental5

Page 70: Artigos Para Tcc

As informações e fatos abaixo descritos e interpretados sobre o caso de uma ONG foram coletados em um processo de pesquisa que lançou mão de contribuições do método antropológico conhecido como etnografia6. A observação participante foi a técnica privilegiada da pesquisa. Observou-se o cotidiano e realizaram-se conversas formais e informais, tanto com os adolescentes e jovens que participavam das atividades da ONG, quanto com seus educadores, técnicos e gestores. Aliadas à observação participante, foram realizadas entrevistas individuais com trinta jovens e com dez membros do staff e diretores da organização. A pesquisa de campo realizou-se entre março de 2001 e abril de 2003, embora o primeiro contato e a realização de pesquisa exploratória tenham ocorrido ainda em 19997.

A associação pesquisada nasceu em meio ao vertiginoso aumento das ONGs no transcorrer da década de 1990. Sabe-se que, no campo da ação coletiva, este foi um período marcado pela crescente participação das ONGs na criação e na execução de ações sociais voltadas a diversos segmentos da população, sobretudo aos considerados menos favorecidos. De forma resumida, podemos dizer que, entre as ONGs, é reforçada a idéia de que os indivíduos devem interagir voluntariamente com a sociedade, visando a atenuar (ou erradicar talvez) vulnerabilidades sociais. As ONGs se organizam em torno de questões sociais, públicos-alvo e formas de ação (ou atividades) que proporcionam o sentido original da empresa. A escolha de temas entre as ONGs relaciona-se, entre outras motivações, com a valorização que estes têm frente aos financiadores. No caso da ONG investigada, a proposta foi enfrentar o problema da juventude em situação de vulnerabilidade com o "poder transformador da música", segundo as palavras de seu presidente.

A entidade começou como um grupo de ensaio de percussão. O discurso oficial é o de que esta foi a atividade que permitiu e promoveu a reunião de jovens de favelas locais, e também a deles com jovens de outras classes, a criação de laços afetivos e, sobretudo, de um território existencial em que pessoas cotidianamente discriminadas pudessem produzir sua dignidade e sua vontade de viver. Os principais símbolos construídos para representar a entidade, assim como os elementos reivindicados na auto-representação dos jovens que a integram, são fornecidos pela atividade musical.

Existe um item do repertório sociocultural, estereotipado sem dúvida, mas muito presente entre os brasileiros, de que nós temos um dom natural - e aqui se lê, sobretudo, a população afrodescendente, em grande medida pobre para tocar música rítmica. Parece haver um diálogo entre a elaboração deste "projeto social" e este elemento do imaginário da cultura nacional. Ele é projetado tanto para dentro quanto para fora da instituição.

O solo no qual o idealizador da associação plantou a percussão como atividade foi o de jovens paulistanos moradores de bairros populares e favelas da zona sul de São Paulo. Nesse chão, a música percussiva fertilizou, porque se trata de uma linguagem que faz parte do repertório cultural desses jovens, ou que, pelo menos, é assim socialmente validada: para jovens afrodescendentes, fazer "batuque" é algo encarado como "normal". Com efeito, a percussão é uma atividade musical típica de camadas populares, especialmente negra e mestiça, nos grandes e pequenos centros.

Durante os anos de pesquisa de campo, várias vezes ouvi, na organização, expressões como "a percussão está no sangue" ou "estes jovens têm um dom natural para a música", tanto de professores de artes, esportes e de coordenadores, quanto dos jovens participantes. Esta representação "naturalizada" da qualidade de jovens mestiços, brasileiros, de classes populares, para tocarem e dançarem música percussiva é um elemento básico para a seleção deste gênero musical.

Page 71: Artigos Para Tcc

As variáveis percussão e cidadania são utilizadas pela ONG, em sua comunicação com a sociedade, como elementos que dão legitimidade ao trabalho, propiciando-lhes também acesso às políticas institucionais na busca de financiamentos e parcerias. As concepções de "cidadania" que são encontradas no vídeo e no site, nos textos institucionais presentes no discurso veiculado, inclusive pela mídia ao retratar a ONG, situam-na no cenário das políticas públicas e ações da "sociedade civil" voltadas para a população em situação de vulnerabilidade social, especialmente jovem. Neste tipo de concepção, amplamente difundida entre ONGs e órgãos governamentais, é necessário proporcionar aos "desfavorecidos" um conjunto de repertórios para que eles possam exercer sua "cidadania". Atividades genericamente chamadas de "culturais" estão no centro destas representações.

No bojo destas concepções correntes em nossa sociedade, a percussão é usada tanto como "isca" para atrair o público-alvo quanto como mecanismo de expressão e projeção pública do grupo. As apresentações, enquanto extensão e concretização da atividade artística, atuam no mesmo sentido, proporcionando marcas de pertencimento social aos jovens integrantes e afirmando o trabalho da instituição perante platéias que representam a sociedade em geral.

Lembramos ainda que a utilização desta vertente musical na associação é uma via de mão dupla. Por um lado, estabelecida como opção inicial pelos fundadores da instituição, só foi mantida e gradativamente ampliada porque teve, de outro, a adesão de jovens. Nesta perspectiva, os posicionamentos dos integrantes da ONG (tanto adultos, coordenadores e professores, quanto jovens que participam das atividades) são equacionados pela mesma variável - a percussão. Reconhecemos, neste estudo de caso, a eficácia do arranjo simbólico desta entidade: o tripé jovens-percussão-cidadania.

A pesquisa mostrou-nos que, embora os coordenadores tivessem ascendência sobre os jovens, seus comportamentos, valores e práticas não eram reproduções ou simples aceitações do modelo proposto pela ONG. Percebemos que havia uma certa disputa pelas definições e valores dentro da entidade.

Com o crescimento institucional, uma das primeiras estratégias usadas para a criação de pessoal foi o recrutamento de jovens integrantes. O grupo de estagiários que já existia foi incrementado e gradativamente profissionalizado. Num primeiro momento, a criação da figura dos estagiários em período integral destinava-se a deixar sob controle jovens considerados, pela coordenação, em risco de sucumbir a grupos criminosos ou ao uso abusivo de drogas. Ação institucional inicialmente adotada por demanda, tornou-se estratégica ao atender simultaneamente à carência de mão-de-obra da instituição e à necessidade particular destes jovens de obterem emprego.

Para selecionar os jovens, considerou-se prioritariamente o vínculo de proximidade e a identidade que estabeleceram com a instituição; conforme declaração de funcionários da administração e de coordenadores, na separação das funções que exerceriam, o critério foi a qualificação profissional: o manuseio ou não do computador, o uso correto da língua escrita e falada, conhecimento técnico de ajuste nos instrumentos, entre outras habilidades. Este critério profissional ocasionou a tendência de separar os que possuíam maior escolaridade - em geral os jovens oriundos da classe média, que foram trabalhar em serviços gerais de escritório e em atendimento ao público - daqueles com pouca qualificação para estas funções, escalados para trabalhar no setor de manutenção.

A relação destes jovens com a ONG adquiriu uma natureza profissional, inexistente até então. O vínculo anterior era apenas de jovens (público-alvo) a quem se destina a atuação da ONG. Neste movimento, alguns optaram por uma dedicação profissional. Outros se dividiram entre a experiência anterior e a nova. Aceitaram e

Page 72: Artigos Para Tcc

se dedicaram ao trabalho proposto, mas se mostraram desencantados e descontentes com mudanças na instituição. Estes jovens constituíram um grupo informal que ficou conhecido na associação como "velha guarda"8.

A chamada "velha guarda" passou a discordar sobretudo da tendência "profissional" da entidade, envolvendo-se em situações de conflito aberto com integrantes mais novos (que chamavam de "playboys") e com funcionários (segundo eles) "mercenários". Para os mais antigos no projeto, os jovens que chegaram a partir de 2001 não vinham da "favela", não precisavam dele - só estavam ali porque era de graça e porque "apareciam na TV" - e os funcionários só estavam por causa do dinheiro. O discurso destes jovens aponta uma dicotomia entre o vínculo sentimental com o projeto que eles, da "velha guarda", representariam e o vínculo de interesse que ligava integrantes e funcionários mais novos à instituição. Como integrantes com uma íntima relação com a trajetória institucional, manifestam discordância dos novos rumos por meio da comparação entre o que era e o que é o projeto, indicando diferentes interpretações sobre o crescimento da ONG.

O "conflito de representações" na organização investigada manifestou-se, em grande medida, nas crises que surgiram do cruzamento de duas formas de se conceber a ONG: uma que enfatiza a identidade e os valores de grupo, e outra que destaca uma lógica de eficiência9. Idéias sobre "protagonismo juvenil", "solidariedade", "conhecimento", "pertencimento", "respeito", de um lado - e "qualidade", "valor", "competência", "profissionalismo", de outro - dão o tom do debate. Condutas cotidianas dos agentes fornecem a animação desta "guerra simbólica".

No quesito música, os jovens da "velha guarda" detiveram uma posição que lhes permitiu desenvolverem estratégias de fortalecimento. Aprenderam, durante os anos de participação na ONG, as técnicas da produção dos shows - estão entre os mais habilidosos com os instrumentos, conheceram os ritmos e as técnicas de improvisação durante uma apresentação. Como a "banda Show" chega a ter cem componentes, dependendo do espetáculo, tornam-se imprescindíveis para que a música não desande. Eles formam a linha de frente da banda, tocam os instrumentos mais difíceis e "vestem a camisa", tocando nas apresentações com "raça" - como gostam de dizer.

Os jovens, sobretudo aqueles que passaram dos dezoito anos, precisaram adquirir, além da habilidade com a música, "competência profissional", pois é o que pode assegurar sua permanência na entidade. Os jovens da "velha guarda" sofreram pressões dentro da ONG no que diz respeito ao referencial do "profissionalismo". Ficaram na berlinda, pois não seguem os padrões de comportamento da eficiência organizacional horário, produtividade, posturas corporais etc.; brincam, dão pausas nos trabalhos, têm posições menos comprometidas com a idéia corrente de eficácia, sendo, portanto, considerados, pela administração da entidade, como "moles para trabalhar" - e "incompetentes". O argumento é que prejudicam a dinâmica de trabalho, influenciando outros jovens. "São mau exemplo".

A ênfase do posicionamento dos jovens da "velha guarda", entretanto, não é na questão profissional, mas antes nos laços afetivos. Eles têm ciência de que são admirados pelos mais jovens e acabam, por isto, sendo "formadores de opinião" - como disse o presidente. Influenciam o comportamento de outros jovens, pois, em certo sentido, eles são o "vir-a-ser" desejado de boa parte de garotos e garotas que entram na ONG. Afinal, como disseram, formam a "linha de frente" da banda, conhecem - vivenciaram - toda a história da entidade, fizeram viagens internacionais, "ficam" (namoram) uns com os outros. Com todo este "currículo", acabam definindo, em grande medida, quais os elementos "não institucionais" para o pertencimento.

Page 73: Artigos Para Tcc

Para a presidência, surgiram questões embaraçosas na relação com a "velha guarda". Com relação ao grupo, em grande medida composto por jovens com mais de 18 anos, qualquer atitude drástica da presidência seria difícil, mesmo de acordo com o estatuto, portanto, dentro da lei. Cortá-los do projeto seria embaraçoso porque poderia representar um fracasso da entidade caso a saída fosse brusca e violenta, ou caso esses jovens, ao sair, "se perdessem" (praticassem crimes ou abusassem de álcool e drogas) - ou, ainda, caso não se integrassem à sociedade por meio do trabalho. Alguns jovens que entraram na mesma época da "velha guarda" foram presos ou participam de grupos criminosos - segundo relatos, inclusive de coordenadores. Lembremo-nos de que o começo do estágio na associação era uma estratégia para "segurar" jovens "em situação de vulnerabilidade". Por outro lado, mantê-los na entidade implicaria lidar com o "estilo bad-boy"/"moleque da favela" dos jovens, que não se harmoniza com o desejo da instituição de uniformizar alguns comportamentos considerados corretos.

Os jovens da "velha guarda" passaram a viver este dilema, pois faz parte das "personagens" que eles construíram de si mesmos, de suas "identidades pessoais", da posição que assumiram na entidade - o ser "malandro", "moleque da favela", "100% periferia", "tirar sarro da cara dos outros", "apavorar os comédia", como dizem. Entretanto, são cobrados a se ajustarem ao padrão de comportamento esperado em um "projeto social" "respeitar os outros", "ser educado", "não agredir" etc.

Cada vez mais, entram jovens com perfil diferenciado maior escolaridade, melhor renda familiar, melhores condições de moradia etc. Estes jovens ganharam espaço na entidade, e as falas da coordenação pedagógica e dos educadores, de forma geral, apontam para o crescimento e o fortalecimento deste perfil dentro da ONG. Os jovens da "velha guarda" enfrentam alguns questionamentos: mudar de "identidade" para serem aceitos no "contexto do conhecimento" seria perder a sua especificidade e sua força particular? São colocados em situação de aceitar regras impostas pela presidência da ONG, com que às vezes podem não concordar... mas e sair? O que fazer fora da ONG? E dentro, quais as suas chances, se lhes faltam algumas competências para crescerem profissionalmente?

Redistribuição material e reconhecimento cultural: o dilema das ONGs no enfrentamento da vulnerabilidade juvenil

No artigo "From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a 'postsocialist' age", Fraser (2001) propôs uma reflexão sobre as relações entre lutas culturais pelo reconhecimento e lutas pela redistribuição no mundo contemporâneo - inspiradora quando o tema é ações coletivas10. Em uma abordagem pragmática feita com base no exame da realidade empírica, a autora destaca os conflitos políticos cotidianos da contemporaneidade e sua gramática específica. Dessa forma, a análise de Fraser permite a construção de um diálogo interpretativo interessante com o caso concreto acima descrito.

Fraser revela uma preocupação com a ênfase que a luta pelo reconhecimento ganha, sobretudo a partir da década de 1990, no contexto de lutas pela cidadania: a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como meio principal da mobilização política(Fraser, 2001).Segundo a autora, o problema é a desconexão entre as dimensões econômica e cultural nas pautas e ações de movimentos sociais. Em um mundo marcado por profundas desigualdades econômicas, a separação dessas dimensões é falsa. O não reconhecimento de identidades culturais e a desigualdade social estão entrelaçados e apoiados um no outro. Para Fraser, é necessário problematizarmos simultaneamente a proteção à identidade grupal e questões redistributivas. Com base nessa apreensão, ela procurou diagnosticar o que pode acontecer quando se reivindica justiça econômica e reconhecimento cultural simultaneamente.

Page 74: Artigos Para Tcc

Estamos diante de um difícil dilema, segundo Fraser.Pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica necessitam de reconhecimento e redistribuição. Necessitam de ambos para reivindicarem e negarem sua especificidade. Como isso é possível? (Fraser, 2001). Ela chama os grupos que necessitam tanto de redistribuição quanto de reconhecimento de "coletividades bivalentes".

A juventude pobre e em situação de vulnerabilidade social pode ser pensada como uma "coletividade bivalente". Ela é diferenciada tanto em virtude da estrutura político-econômica quanto da estrutura cultural-valorativa da sociedade. Esta parcela da juventude é predominantemente afrodescendente, e o desenvolvimento histórico da pobreza e da exclusão no Brasil está relacionado à questão racial, o que faz com que haja um forte intercâmbio entre a questão de classe social e a de raça em nossa sociedade. Tais jovens sofrem de má distribuição socioeconômica, crescem em contextos de miséria, carência de infra-estrutura e falta de preparo para o mundo do trabalho formal - não são capacitados técnica e intelectualmente para atividades produtivas valorizadas na sociedade. Desta forma, são considerados "incompetentes" para ingressar no mercado de trabalho, restando para eles atividades de baixa remuneração, baixo status, enfadonhas. Por outro lado, também sofrem estigmatização do ponto de vista da valoração cultural. Com freqüência, são identificados com o tráfico de drogas, assaltos, furtos, crimes em geral. Não é por acaso que estes jovens são as maiores vítimas da violência policial e a parcela da população que mais morre por homicídio no Brasil. Estes jovens sofrem representações estereotipadas e humilhantes na mídia (como criminosos, brutais e estúpidos), e são discriminados em todas as esferas da vida cotidiana.

Segundo a análise de Fraser (2001), "coletividades bivalentes" são fonte de um dilema político. Se elas investem na "luta pelo reconhecimento cultural", afirmam a identidade de grupo valorizando suas especificidades e acabam marcando diferenciações na sociedade. Se, por outro lado, a ênfase é a "luta pela redistribuição", estas coletividades devem buscar mecanismos que minimizem e deslegitimem as distinções sociais que lhes são creditadas. Como afirmar e negar, a um só tempo, a especificidade de um grupo?

Parece-nos que a reflexão de Fraser (2001), mais do que marcar dois pólos separados de "luta pela cidadania", representa a construção de dois tipos de questões que estão atravessando as ONGs e as ações coletivas de forma geral. Neste artigo propomos re-atualizar a discussão. Podemos ver nas ONGs, da mais pragmática à mais caritativa, o desejo de reconhecimento, assim como necessidades distributivas das populações a quem as ações se destinam.

A experiência relatada no estudo de caso mostra que este dilema pode colocar-se de forma paradoxal em diferentes contextos. Voltemos à questão do pertencimento encontrada no estudo de caso. A representação dominante desta categoria na ONG aponta para uma identidade de grupo que incorpora a questão da injustiça econômica. Nesta organização, a questão valorativa-cultural de jovens pobres e afrodescendentes é encaminhada com a proposta de incorporação de uma forma de identificação coletiva miscigenada e multiclassista. A solução da organização foi trabalhar a "luta pelo reconhecimento" por meio de um convívio entre classes sociais e mediante o reconhecimento pela qualidade do que fazem expressos, sobretudo, na prática musical baseada em tambores e nas apresentações públicas.

A percussão tornou-se um elemento de valorização cultural para a população afrodescendente. Na entidade estudada, os jovens pobres e afrodescendentes destacam-se, muitas vezes, em relação aos jovens brancos de classes média e alta - o que permitiu, por vezes, um reconhecimento e uma forma de se posicionarem na entidade. Também significou o reconhecimento público como parte de uma banda que destaca elementos afro-brasileiros, embora a presidência não estimulasse deliberadamente este aspecto.

Page 75: Artigos Para Tcc

A questão redistributiva, por sua vez, é pensada pela presidência da associação de forma privada: os serviços de qualidade que ela disponibiliza aos jovens são vistos como formas de redistribuição. Embora passem a ter acesso a uma série de bens, serviços e oportunidades, isto só ocorre naquele espaço privado da ONG, e, mesmo assim, mantendo algumas divisões quanto ao tipo de ocupação que os jovens de diferentes classes exercem.

A pesquisa mostrou que a prática musical efetivamente mobiliza mecanismos de sociabilização, de criação de identidades, reforça sentimentos de pertencimento, amplia horizontes espaciais e alteridades. Sem dúvida, cria uma sensação de reconhecimento, mas e fora da banda show, qual é o espaço que esses jovens adquirem na sociedade? De fato eles se afastam das situações sociais críticas que os desfavorecem? A passagem entre o fazer musical proposto pela instituição e a efetivação dos objetivos mais amplos, como a construção da cidadania (incluindo o acesso ao mercado de trabalho) parece, às vezes, aparente, conflituosa ou pouco trabalhada.

O contato entre jovens de diferentes classes sociais pode ser um instrumento de cidadania, mas, se pouco trabalhado, pode resultar na exacerbação da diferença. Os problemas que os jovens menos escolarizados sofreram no processo de crescimento da organização explicitaram o conflito e a dificuldade da transposição do status adquirido no "palco", para fora deste.

Um dos termos-chave utilizados na entidadeé protagonismo juvenil. Também faz parte do "vocábulo de sentidos" das ONGs que trabalham com jovens por meio de "arte e cultura". Ele traduz uma ação pela participação dos jovens nos contextos em que estão inseridos, no sentido de co-organização, de proposição de caminhos, para a concretização da condição de cidadania. No caso estudado, tal participação mostrou-se limitada. Alguns (poucos) jovens que se destacam podem vir a ser monitores (auxiliar o professor no ensino aos iniciantes), ou se efetivarem como funcionários da ONG em alguma área de serviços. Mas a participação efetiva na formatação das atividades da entidade ainda não se dá. Quem sabe, um caminho para a concretização de objetivos mais amplos seja ouvir - além da música dos jovens integrantes de ONGs - os ecos de suas contradições, buscando compreender que "música" elas tocam de fundo.

Não deixa de ser um paradoxo a idéia de criar-se uma forma de identificação coletiva (o pertencimento) sob uma base diversificada socioeconomicamente. Parece existir uma "identidade coletiva fragmentada e conflitante" - uma contradição nos seus próprios termos. Jovens convivem, passam a dividir alguns símbolos e valores, criam alianças e laços de amizade. E possivelmente a experiência irá, de alguma forma positiva, marcar "muitos" com tão "poucas" perspectivas de vida neste Brasil - país injusto - em que a desigualdade social é concreta, presente em diversas dimensões na vida dos jovens moradores das periferias das grandes cidades brasileiras, levando-os, muitas vezes, a diversas situações sociais negativas.

 

Considerações finais

Neste artigo, reconhecemos a existência de efeitos importantes conquistados pelas ONGs que trabalham com jovens em situação de vulnerabilidade por meio de atividades artístico-culturais. Elas têm estimulado o reconhecimento de habilidades e inteligências de uma parcela da juventude brasileira tantas vezes esquecida e estigmatizada. ONGs que utilizam o tema transversal cultura mostram-se eficazes simbolicamente sob a perspectiva dos jovens que aderem em grande número a este tipo de empreendimento por todo o Brasil, e também sob a perspectiva da

Page 76: Artigos Para Tcc

opinião pública que aceita, apóia e divulga tais iniciativas. Entretanto, para o conjunto dos jovens consumidores de sua ideologia, aquelas organizações não garantem perspectivas concretas de atendimento às suas necessidades materiais, ilusões efêmeras de uma vida digna.

O caso concreto analisado remonta a um encontro de grupos sociais que ocupam um mesmo espaço, mas que poucas vezes convivem. Tal encontro consubstanciou-se em sociedade entre estes sujeitos, formatada por intermédio de valores, princípios e símbolos comuns a outras ONGs do campo estudado.

Tão perto e tão longe, os atores envolvidos nestas organizações (sejam profissionais, coordenadores, jovens participantes) aprendem a respeitar-se e a conviver, mas continuam afastados por um abismo de diferenças e de desigualdades. "Como" conseguir, entretanto - e de fato - aliar ideais de reconhecimento cultural, participação e solidariedade à efetiva redistribuição das riquezas? Esta é uma questão sobre a qual precisamos refletir e buscar soluções conjuntas (ONGs, governos, universidades, sociedade) para o enfrentamento das situações sociais negativas que desfavorecem segmentos da juventude.

 

Referências

ADORNO, R.C.F. Os imponderáveis circuitos dos vulneráveis cidadãos. In: LERNER, J. (Org.). Cidadania verso e reverso. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1998. p.93-109.         [ Links ]

ANDRADE, E.N. (Org.). Rap e educação Rap é educação. São Paulo: Sumus, 1999.         [ Links ]

BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. [ Links ]

CASTRO, M.G. (Org.). Cultivando vida, desarmando violências: experiências em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em situação de pobreza.Brasília: Unesco, 2001.         [ Links ]

CASTRO, M.G.; ABRAMOVAY, M. Juventude no Brasil: vulnerabilidades positivas e negativas. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINO AMERICANA DE POPULAÇÃO, ALAP, 1., 2004, Caxambu. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/site_eventos_alap/PDF/ALAP2004_295.PDF>. Acesso em: 20 dez. 2007.         [ Links ]

______. Cultura, identidades e cidadania: experiências com adolescentes em situação de risco. In: Comissão Nacional de População e Desenvolvimento. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília: CNPD/Ipea, 1998. p.571-644.         [ Links ]

DOIMO, A.M. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.         [ Links ]

FRASER, N. From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a 'postsocialist' age. In: SEIDMAN, S.; ALEXANDER, J. (Orgs.). The new social theory reader. Londres: Routledge, 2001. p.285-93.         [ Links ]

Page 77: Artigos Para Tcc

GUIMARÃES, M.E. Rap: transpondo as fronteiras da periferia. In: ANDRADE, E.N. (Org.). Rap e educação Rap é educação. São Paulo: Sumus, 1999. p.39-54. [ Links ]

MATTOS, P. A sociologia política do reconhecimento: as contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser.São Paulo: Annablume, 2006. [ Links ]

SANSONE, L. O local e o global na afro-Bahia contemporânea. Rev. Bras. Ciênc. Soc., v.10, n.29, p.65-84, 1995.         [ Links ]

SIMIÃO, D. Itinerários transversos: gênero e o campo das Organizações Não-Governamentais no Brasil. In: ALMEIDA, H.B. et al. (Orgs.). Gênero em matizes. Bragança Paulista: CDAPH, 2002. p.17-48.         [ Links ]

 

 

Recebido em 26/09/07. Aprovado em 27/02/08.

 

 

1 O número de mortes violentas entre jovens; os potenciais malefícios causados pelo consumo de substâncias psicoativas; os limites de instituições como a escola para promover o jovem-indivíduo-cidadão; o aumento da "informalização" e do trabalho não regulamentado, assim como das atividades ilegais (em especial o tráfico de drogas) como efetivo mercado de trabalho para estes jovens, e o uso da violência física e outras formas de coação como forma de mediação na relação entre eles compõem alguns dos principais aspectos elencados para associar segmentos da juventude à noção de vulnerabilidade (Adorno, 1998). 2 Condições de vida material, dificuldades de acesso a oportunidades sociais e culturais, e fatores motivados pelo imaginário social, como a discriminação e o medo, deixam segmentos da juventude efetivamente mais expostos aos riscos das grandes cidades e da violência estimulada, sobretudo, pela desigualdade social do Brasil. 3 Como um exemplo desta tendência, segue a citação de um livro da Unesco: "A vulnerabilidade social das populações que residem em áreas periféricas é também destacada em mapeamento da cidade de São Paulo, promovido pela Organização Mundial de Saúde, cujo interesse seria avaliar a vulnerabilidade dos jovens às drogas. Neste estudo, defende-se recorrer a atividades de lazer, cultura e esportes como forma de inibir o uso de energia e tempo em violências e no uso de drogas." (Castro, 2001, p.22) 4 Para compor o campo da pesquisa entre as ONGs, foram selecionadas cinco experiências de cada um dos estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, quatro do Estado de São Paulo, três do Ceará e dois de cada um dos estados do Maranhão, Pará, Paraná e Mato Grosso, perfazendo trinta no total. 5 Estudo realizado em nível de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS/USP), entre os anos de 2001 e 2004. Para preservar a organização e os atores institucionais, os nomes serão mantidos em sigilo. 6 A etnografia apresenta características peculiares: de um lado, por meio de descrições detalhistas e pormenorizadas, ela procura nos revelar um universo particular, com suas minúcias, contradições e até idiossincrasias; de outro, e com base no conhecimento do específico, esta prática busca iluminar fatos que perpassam atores e realidades sociais mais amplas, pois existem recorrências nos

Page 78: Artigos Para Tcc

casos particulares que mostram aspectos estruturantes da vida social. 7 O primeiro contato do pesquisador com a entidade ocorreu em 1999, em pesquisa para a disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia,do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Valendo-me desta experiência, elaborei um projeto em nível de mestrado que propunha, como objetivo principal, interpretar as representações dos integrantes da entidade (tanto dos adultos do staff quanto de seus jovens associados) sobre o significado da ação social por meio da música voltada para jovens em situação de vulnerabilidade. A recepção em 1999 seguiu a espontaneidade que o grupo experimentava. Mantive o vínculo com a organização durante o ano de 2000. Quando voltei a fazer pesquisa de campo em 2001, já era conhecido e próximo dos membros da organização, o que facilitou o desenvolvimento da pesquisa. 8 "Velha guarda" foi o nome informalmente dado a um grupo de jovens lideranças que estão na entidade desde o começo, que se tornaram ícones pela habilidade desenvolvida com os instrumentos, e pelo fato de trabalharem "carregando o piano" no dia-a-dia da instituição. 9 A busca pela eficiência dentro das ONGs não é uma novidade. Desde a década de 1980, as agências internacionais de fomento aos movimentos sociais procuraram estabelecer com as ONGs critérios e procedimentos que garantissem os resultados dos trabalhos, como avaliação sistemática e planejamento. A lógica de "projetos", característica das ONGs contemporâneas, pede o estabelecimento de propostas de ação com metas, prazos e verbas bem definidos, o que exige profissionalismo e qualidade na gestão. Além da lógica de projetos, o crescente relacionamento entre ONGs e fundações empresariais também estimulou a profissionalização das entidades. 10 O debate em torno do marco redistribuição e reconhecimento é um dos mais interessantes na teoria social contemporânea. Autores como Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser têm se debruçado sobre esta temática, oferecendo importantes referências para a compreensão das dinâmicas sociais contemporâneas(Mattos, 2006).

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832008000300012&lng=en&nrm=iso)

Page 79: Artigos Para Tcc

Da compreensão da vulnerabilidade social ao enfoque multidisciplinar 

From understanding social vulnerability to a multidisciplinar outlook

Cassia Maria Buchallaa e Vera Paivab

aDepartamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil.bDepartamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. São Paulo, SP, Brasil

 

 

Os resultados deste conjunto de artigos é certamente estimulante para repensar as ações de prevenção e assistência ao HIV e à Aids, além de fornecer indicações sobre o processo de formação de profissionais e ativistas como pesquisadores nesse campo, descrito na Introdução.

Os alunos participantes do programa de formação que, em sua grande maioria, desconheciam ou tinham resistência à linguagem e mesmo às metodologias quantitativas, ficaram estimulados com a possibilidade de quantificar ou conseguiram entender a importância do diálogo "quali-quanti". A maioria dos estudos incorporou o desafio de quantificar ou de, pelo menos, construir e testar instrumentos, o que, num projeto futuro, permitirá uma avaliação também generalizável para outras populações semelhantes, participantes de projetos de prevenção e assistência. Reconhece-se que esse tipo de avaliação é ainda mais valorizado que as avaliações mais qualitativas e de processo no debate das políticas públicas de saúde.

Page 80: Artigos Para Tcc

Todos os estudos fizeram uso do método qualitativo por uma razão metodologicamente relevante: é impossível quantificar aquilo que ainda não se qualificou, categorizou, compreendeu. Corre-se o risco de contar categorias pouco precisas, sem validade ou fidedignidade, ou mesmo sem nenhuma relevância interpretativa a serviço do saber prático. Como os grupos estudados são historicamente mais vulneráveis à infecção ou ao adoecimento, o que em geral implica mais dificuldade de acesso a serviços públicos de educação ou saúde, são bastante desconhecidos dos formuladores de políticas públicas ou, pelo menos, são desconhecidos na dimensão estudada.

Apenas os usuários de drogas, dentre os grupos mais vulneráveis indicados pela epidemiologia da Aids ao início do projeto, não estão incluídos como tema dos artigos publicados neste suplemento. A dificuldade de acesso e de trabalho sustentado em médio e longo prazo com usuários de drogas injetáveis é apontada com freqüência na literatura. Essa população e esse tema constituem o desafio posterior para o grupo de pesquisadores e professores que coletivamente participam dessa experiência. Iniciado em 2002, o 4o Curso de Metodologia em Pesquisa sobre HIV/Aids teve como foco a população de usuários de drogas e é dirigido a profissionais da rede pública municipal de saúde, desenvolvido nos mesmos moldes e inspirado no descrito neste suplemento.

A população feminina foi objeto de vários artigos, como os de L.G. Tunala, N.J. Santos e colaboradores, R.N. Alves e colaboradores, C. P. Simon e colaboradores. Por meio de entrevistas com mulheres soropositivas para o HIV, as várias dimensões de sua percepção de risco, suas intenções reprodutivas, suas dificuldades com a organização dos serviços, suas fontes de estresses foram descritas. Foram participantes de projetos de prevenção na escola pública e em comunidades pobres os autores M. C. Antunes e colaboradores, R. Figueiredo e J.R. Ayres. Os resultados confirmam a falta de adequação histórica dos programas de prevenção do HIV e da Aids ao contexto feminino, tanto na dimensão psicoeducativa quanto na organização do acolhimento da portadora dessa infecção nos serviços de saúde. Todos os estudos indicam a necessidade de ampliar o aconselhamento para além do manejo clínico e considerando outras dimensões da vida da portadora do HIV, visando a seu cuidado integral. Entretanto, talvez porque historicamente a categoria "gênero" tenha sido introduzida nos estudos e nas ações preventivas que tinham como foco as mulheres, a tecnologia de grupos psicoeducativos desenvolvida em duas décadas de epidemia do HIV e da Aids parece ter mais impacto entre mulheres que entre homens (M.C. Antunes e colaboradores). Pensar as propostas para a prevenção do ponto de vista dos homens, jovens ou adultos, tem sido tarefa mais que urgente nas frentes de controle da epidemia.

A descrição da vulnerabilidade da população masculina adulta em relação à infecção do HIV pela via sexual experimentou abordagens e hipóteses inovadoras, avaliadas em vários estudos que têm seus primeiros artigos apresentados neste suplemento. Os projetos realizados por L. Villarinho e colaboradores, I. Guereiro e colaboradores, C.G.M da Silva, com grupos profissionais distintos, como caminhoneiros de rota curta, motoristas de ônibus ou funcionários de empresa de transporte coletivo e moradores de uma comunidade empobrecida, e outros trabalhos realizados por W. A. Silva e colaboradores, M.C. Antunes e colaboradores, R. Figueiredo e J.R. Ayres em ações preventivas desenvolvidas entre grupos de jovens jogadores de futebol, alunos de cursos noturnos e moradores de uma favela, confirmaram a urgência de trabalhar na sensibilização conjunta de homens e mulheres em suas comunidades. Emerge desses estudos o impacto da socialização dos rapazes brasileiros que ainda estimulam noções de virilidade associadas à "impetuosidade", ao desejo sexual masculino "incontrolável", à idéia de que é natural do homem "correr riscos" e que o controle das conseqüências desejadas ou indesejadas do sexo é tarefa feminina. Parecem promissoras as abordagens que valorizam o senso de responsabilidade pela família e pelos filhos, assim como a

Page 81: Artigos Para Tcc

discussão sobre paternidade que sempre surge nos grupos de homens como primeiro momento e passo no caminho que precisam trilhar para incorporar o sexo protegido sem virar do avesso a cultura masculina em que foram socializados. Usar o espaço profissional para ações de prevenção, marca da experiência brasileira desde o início dos anos 90, também se confirma como factível e relevante para os grupos estudados.

Os jovens foram tema de cinco artigos, a partir de estudos que combinaram ações psicoeducativas com participantes de populações diferentes: jovens prostitutas (C Simon e colaboradores), jogadores de futebol (WA Silva e colaboradores), adolescentes encarcerados (C Peres e colaboradores), estudantes de curso noturno de escolas públicas de São Paulo (C Antunes e colaboradores) e moradores de uma favela (R Figueiredo & JR Ayres). Em todos os grupos verificou-se que os entrevistados conhecem pouco sobre sua sexualidade, têm pouco controle sobre sua saúde sexual e reprodutiva, protegem-se de forma inconsistente de infecções transmitidas sexualmente, têm mais preocupação com a gravidez que com o HIV, além de se sentirem, como a maioria dos jovens, menos vulneráveis do que deveriam, especialmente no contexto de relações mais duradouras. A diversidade entre esses vários grupos de jovens confirma também que a heterogeneidade entre eles exige programas bastante diferentes. Nos grupos mais vulneráveis dentre os estudados (meninas profissionais do sexo e jovens da Febem), trabalhar a idéia de cidadania e direitos humanos, co-produzir com eles espaços criativos e emancipadores para lidar com o estigma associado à raça e à marginalidade, buscando superar a idéia da inevitabilidade da exclusão e, portanto, do risco de vida inevitável, é um desafio aos programas de prevenção ou atenção.

O estudo que abordou o trabalho de uma equipe multidisciplinar no atendimento aos pacientes com Aids (N. E. K. e Silva e colaboradores) e o que teve como tema o treinamento de uma equipe de profissionais de um ambulatório comunitário (R. Figueiredo e J.R. Ayres), buscando ampliar o foco do atendimento para além da racionalidade clínica e do modelo médico tradicional (que busca exclusivamente o "paciente aderido" ao preservativo ou ao medicamento), indicam que alterações nas circunstâncias em que essa assistência interdisciplinar se realiza e o planejamento das ações têm impacto perceptível na assistência. Confirmam as sugestões para o desenho de programas de prevenção do HIV e da Aids dos demais estudos que apontam a necessidade de ampliar a integralidade do atendimento e o aconselhamento para todos os momentos de contato com os participantes das ações de saúde, apesar dos obstáculos para superar a compartimentalização entre as várias especialidades profissionais ou a sobrecarga de trabalho nas unidades básicas de saúde.

Finalmente, do que se pôde aprender destes estudos, destacam-se:

a) a vulnerabilidade de um grupo à infecção pelo HIV e ao adoecimento é resultado de um conjunto de características dos contextos político, econômico e socioculturaiss que ampliam ou diluem o risco individual. Além de trabalhar essas dimensões sociais (vulnerabilidade social), é um desafio permanente e de longo prazo sofisticar os programas de prevenção e assistência abrindo espaço para o diálogo e a compreensão sobre os obstáculos mais estruturais da prevenção e sobre o acesso e para as experiências diversas com os meios preventivos disponíveis (vulnerabilidade programática), para que, no plano das crenças, atitudes e práticas pessoais (vulnerabilidade individual), todos, significando cada um, possam de fato se proteger da infecção e do adoecimento;

b) o estigma associado ao HIV e à Aids apareceu em suas várias faces em todos os estudos e ainda é uma barreira fundamental, um desafio permanente aos programas de educação e saúde. Lidar com essa dimensão deve ser parte integrante de qualquer programa. O treinamento de profissionais da prevenção e da

Page 82: Artigos Para Tcc

assistência numa abordagem referenciada nos direitos humanos, individuais e sociais, parece promissor;

c) a socialização de brasileiros e brasileiras como homens e mulheres, ou seja, a construção sociocultural das relações de gênero, das definições coletivas ou subjetivas do que é ser "viril" ou "feminina", é um dos obstáculos mais generalizáveis para a percepção da vulnerabilidade à infecção ou à reinfecção pelo HIV e tem sido desconsiderada na organização do cuidado aos portadores. Os vários estudos indicaram que incorporar a "perspectiva de gênero" na análise de resultados de pesquisa ou na organização de programas não é falar ou pensar apenas na "opressão da mulher". Os artigos que descrevem projetos com homens e com portadoras do HIV indicaram que as definições culturais de virilidade expõem e tornam mais vulneráveis os homens também, além de favorecer a vulnerabilidade que surge dos dados epidemiológicos sobre a epidemia feminina de Aids;

d) todos os estudos confirmaram que homens e mulheres participantes de ações de saúde precisam se reconhecer nas informações sobre cuidados e prevenção, para que consigam começar a incorporá-las em sua vida. As propostas para os cuidados do portador com sua saúde ou para a prevenção devem ser um convite para o diálogo permanente com os participantes de cada projeto, para que sejam adaptadas ao contexto sociocultural e à realidade viva de cada um;

e) como vários artigos indicaram, o fortalecimento de equipes multidisciplinares que planejem o cuidado ao portador do HIV, ou a prevenção adequada a cada grupo dela participante, é difícil, mas possível. A abordagem multidisciplinar que supere o atendimento centrado na racionalidade clínica e a compartimentalização do atendimento é um desafio para novos estudos e experimentos nas frentes de enfrentamento à epidemia do HIV e da Aids.

Em conclusão, investir na formação de ativistas e profissionais de serviços públicos de saúde e educação, em estreita colaboração com pesquisadores juniores e seniores, resulta em produtos inovadores para os serviços e em novos desafios relevantes para o mundo acadêmico. Todos os participantes do projeto aprenderam com a busca de respostas às necessidades emergentes em situações epidêmicas, obtidas de forma mais rápida com recursos financeiros mais modestos e com um elevado potencial de aplicação prática.

 

*O programa em curso é um projeto do Nepaids, tendo como coordenadores Ivan França Jr. (Faculdade de Saúde Pública/USP e Nepaids) e Fábio Mesquita (Programa Municipal de Aids  Prefeitura de São Paulo e XXX de Santos) e tem o patrocínio da Fogarty Foundation e do Ministério da Saúde.

(http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102002000500016&lang=pt)