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Prof. Dr. Fábio Batista (Professor Afiliado Doutor, Coordenador do Ambulatório de Pé Diabético do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP – Escola Paulista de Medicina) DEFINIÇÃO • A Artropatia de Charcot pode ser considerada como uma condição clínica neurotraumática, de hiperfluxo, inflamatória, progressiva e incapacitante, caracterizada por desarranjos osteoarticulares, extensa destruição óssea e complexa alteração da arquitetura e função do tornozelo e pé. 1,2,6 ANATOMIA • Anatomicamente, a Artropatida de Charcot do tornozelo e pé pode ser academicamente classificada, segundo Sanders & Frykberg: 1.Antepé; 2. Mediopé; 3. Retropé; 4.Tornozelo; 5. Processo Posterior do Calcâneo. 4,5,10 PATOGÊNESE • A Neuropatia periférica secundária ao Diabetes Mellitus é a causa mais comum da Artropatia de Charcot. Contudo, Hanseníase, Alcoolismo, Sífilis Terciária, Siringomelia, Esclerose Múltipla, entre outras menos comuns, também podem ser associadas. • Mecanismos neurotraumáticos, inflamatórios e neurovasculares parecem estar envolvidos na patogênese e história natural da doença. 1,2,4,5,6 HISTÓRIA NATURAL • A combinação entre a ausência da sensibilidade protetora dos pés e a perda do controle vasomotor com hiperfluxo, associada à osteoporose hiperêmica e à carga mecânica repetitiva, levaria a fraturas periarticulares e subluxações, bem como ao desenvolvimento de deformidades graves relacionadas a tentativas hipertróficas de consolidação. Fatores associados à expressão gênica, mecanismos de imunossupressão, atividade inflamatória, diminuição do crescimento cartilagíneo e fenômenos relacionados à glicação não enzimática do colágeno poderiam determinar formas de apresentação e evolução clínica mais ou menos agressivas. O paciente portador de Artropatia de Charcot é categorizado como risco máximo de perda da extremidade, sobretudo se não manejado por profissional intimamente familiarizado e capacitado no cenário de Tratamento do Pé Diabético e Feridas Complexas, ou mesmo no retardo do diagnóstico e início do tratamento apropriado. 1,4,5,6 Artropatia de Charcot com deformidade em mediopé

Artropatia de Charcot com deformidade em mediop逦 · aguda tem o propósito de estabilizar a anatomia óssea, evitando a perda de osso e o processo de luxação e subluxação

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Page 1: Artropatia de Charcot com deformidade em mediop逦 · aguda tem o propósito de estabilizar a anatomia óssea, evitando a perda de osso e o processo de luxação e subluxação

Prof. Dr. Fábio Batista(Professor Afiliado Doutor, Coordenador do Ambulatório de Pé

Diabético do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da UNIFESP – Escola Paulista de Medicina)

Definição

• AArtropatiadeCharcotpodeserconsideradacomoumacondiçãoclínicaneurotraumática,dehiperfluxo,inflamatória,progressivaeincapacitante,caracterizadapordesarranjososteoarticulares,extensadestruiçãoósseaecomplexaalteraçãodaarquiteturaefunçãodotornozeloepé.1,2,6

AnAtomiA

• Anatomicamente,aArtropatidadeCharcotdotornozeloepépodeseracademicamenteclassificada,segundoSanders&Frykberg:1.Antepé;2.Mediopé;3.Retropé;4.Tornozelo;5.ProcessoPosteriordoCalcâneo.4,5,10

PAtogênese

• ANeuropatiaperiféricasecundáriaaoDiabetesMellituséacausamaiscomumdaArtropatiadeCharcot.Contudo,Hanseníase,Alcoolismo,SífilisTerciária,Siringomelia,EscleroseMúltipla,entreoutrasmenoscomuns,tambémpodemserassociadas.

• Mecanismosneurotraumáticos,inflamatórioseneurovascularesparecemestarenvolvidosnapatogêneseehistórianaturaldadoença.1,2,4,5,6

HistóriA nAturAl

• Acombinaçãoentreaausênciadasensibilidadeprotetoradospéseaperdadocontrolevasomotorcomhiperfluxo,associadaàosteoporosehiperêmicaeàcargamecânicarepetitiva,levariaafraturasperiarticularesesubluxações,bemcomoaodesenvolvimentodedeformidadesgravesrelacionadasatentativashipertróficasdeconsolidação.Fatoresassociadosàexpressãogênica,mecanismosdeimunossupressão,atividadeinflamatória,diminuiçãodocrescimentocartilagíneoefenômenosrelacionadosàglicaçãonãoenzimáticadocolágenopoderiamdeterminarformasdeapresentaçãoeevoluçãoclínicamaisoumenosagressivas.OpacienteportadordeArtropatiadeCharcotécategorizadocomoriscomáximodeperdadaextremidade,sobretudosenãomanejadoporprofissionalintimamentefamiliarizadoecapacitadonocenáriodeTratamentodoPéDiabéticoeFeridasComplexas,oumesmonoretardododiagnósticoeiníciodotratamentoapropriado.1,4,5,6

ArtropatiadeCharcotcomdeformidadeemmediopé

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AnAmnese e exAme físico

• OtípicopacienteportadordaArtropatiadeCharcotapresenta-secomDiabetesMellitusdelongaduração,entreaquintaesétimadécadasdevida,geralmenteacimadopeso,compésinsensíveisepulsospodaispalpáveis.Aapresentaçãoclínicaosteoarticularmaiscomumnoenvolvimentodomediopédemonstraocolapsodoarcolongitudinalmedial,equinismodocalcâneoeabduçãodoantepé,podendoounãoestarassociadaàsproeminênciasósseas,úlceras,instabilidade,significativoprejuízofuncionaleinfecçõessecundárias.Nafaseaguda,adoençapodeassemelhar-seaquadrosflogísticos,comoedema,hiperemiaecalorlocal,emgrausvariáveis,podendoounãoapresentarachadosradiográficos.1,2,6

ProPeDêuticA

• Oexameclínicoeojulgamentodoespecialistasãoosrecursospropedêuticosmaisimportanteseefetivosparaoesclarecimentodiagnóstico.

• Examesdeimagem(Radiografias,RessonânciaMagnética(RM),TomografiaComputadorizada-3D(TC-3D),PET-CT,Ultrassom-DopplereMapeamentoÓsseo)podemcomporoarsenalpropedêuticoarmado.Contudo,paraevitaratrasonodiagnósticoecursodotratamentoadequado,oquepoderiacontribuircomumresultadofuncionalindesejado,essesexames,quandonecessários,devemser,preferencialmente,solicitadoseinterpretadospeloespecialista.4

• Propomosumestadiamento cíclico-evolutivo (Estádios A,B,C,D,E e CI)marcadoporcaracterísticasclínicasevolutivasdopédeCharcot,associadoariscocrescentenãolineardeameaçadaextremidade(sobretudodiantedeummanejoinapropriado),quepormeiodeumjulgamentoclínicoconcisoeexperiente,avaliandoopacientecomoumtodoeobtendoapoiodosrecursosdiagnósticosarmadosoportunos,proporcionaodirecionamentoterapêuticomaisapropriado:4

Estádio A – Forma Aguda sem Ferida-Marcadopelapresençadeatividadeneurovascular,clinicamentedemonstrávelporgrandeedemadoseguimentoafetado,hiperemia,calorlocalegraveimpotênciafuncional.

-Odiagnósticodiferencial,comTromboseVenosaProfunda,Infecção,FraturaseDistrofiaSimpático-Reflexa,deveprontamenteserelucidado,afimdeevitaromanejoiatrogênicodaenfermidade.

-Radiografiascomcarga,sugerindotumefaçãodaspartesmolesoueventualmenteachadossugestivosdedesarranjososteoarticularesdecorrentesdeformacrônicareagudizada;Cintilografiaóssea,sugerindoaumentodaconcentraçãodorádio-fármacoeexamesséricos-urinários,sugerindograndeinstabilidademetabólica,devemfortalecerodiagnóstico.

-RiscodeAmputaçãoEstimadode5%–10%. Estádio B – Forma Aguda com Ferida-AssumeascaracterísticasdoestádioA,porémcomplicadocomapresençadeúlceraneuropáticaaguda.

-RiscodeAmputaçãoEstimadode15%–20%. Estádio C – Forma Crônica sem Ferida-Deformidadesestabelecidaseestruturadas,comumenterígidas,commínimaounenhumaatividadeneurovascularvigente.AsradiografiascomcargadescrevemgravesdesarranjososteoarticulareseaTomografiaComputadorizadacomreconstrução3Dapresentacaracterísticasimportantesparaoeventualplanejamentocirúrgicoreconstrutivo.

-RiscodeAmputaçãoEstimadode30%–45%.

ARTROPATIADECHARCOTCOMDEFORMIDADEEMMEDIOPÉ•MedicinaeCirurgiadoTornozeloedoPé

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Estádio D – Forma Crônica com Ferida-AssumeascaracterísticasdoestádioC,porémcomplicadocomapresençadeúlceraneuropáticacrônica.

-RiscodeAmputaçãoEstimadode50%–60%. Estádio E – Pé de Charcot Séptico-Apresentacaracterísticasclínicas,laboratoriaiseimagenológicas,locaisesistêmicas,compatíveiscomumprocessosépticoematividade.Podeassumirqualquerumadasformasclínicasdescritas.ARMeaCintilografiaósseacomLeucócitosmarcados,emaisrecentementeoPET-CT,podemcontribuirparaoesclarecimentodiagnóstico.Porém,achadosnãoconclusivosnãoafastamodiagnóstico,oqualdeveserguiadopelojulgamentoclínicodoprofissionalexperiente;abiópsiacirúrgicaéogoldstandardparaodiagnóstico.Exameslaboratoriaisnãotãoalteradostambémnãoafastamodiagnósticodeumpédiabéticoséptico.

-Frequentementeassociadoaúlcerasdemaiordiâmetroeprofundidade,alémdeelevadopadrãoexsudativo.

-RiscodeAmputaçãoEstimadode65%–85%. Charcot Iatrogênico (CI)-ArtropatiadeCharcotdesenvolvidaapartirdeintervençãoclínicaoucirúrgicainapropriada.Frequentemente,demonstrávelnoequívocodiagnóstico,noatrasodainstituiçãodasmedidasterapêuticasadequadasenasreconstruçõescirúrgicasinsuficientesdasfraturasdopéetornozelodiabéticos,inicialmentesemCharcot.

-RiscodeAmputaçãoobedeceàgradedeRiscoEstimadodosEstádiosA–E.

DiAgnóstico DiferenciAl

• Fraturas,Infecção,TromboseVenosaProfunda,GotaeDistrofiaSimpáticoReflexapodemcomporoquadrodiferencialmaisfrequente.1,4

trAtAmento não cirúrgico

• Otratamentodeveserindividualizadoe,classicamente,nafaseaguda,podereunirtécnicasconservadoras,sejapormeiodegessodecontatototal.clássicooumodificado(bivalvado);ortetizaçãoapropriada(“InstantTotalContactCast”clássicooumodificado);controlemetabólicododiabeteseusodeneuro-imunomoduladores,calcitoninaintranasale/oubifosfonadossistêmicos,quandocriteriosamentebemindicados.1,2,4,5,6,7,8(Figura 1)

F I G U R A 1 |Instant Total Contact Cast

ARTROPATIADECHARCOTCOMDEFORMIDADEEMMEDIOPÉ•MedicinaeCirurgiadoTornozeloedoPé

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trAtAmento cirúrgico

• Umaabordagemmultidisciplinarcomprometidafaz-senecessária,rapidamenteepreviamenteaomanejocirúrgico.Comumente,requerdoisoutrêsdiasdepreparointensivonopré-operatório.

• Omanejocirúrgico,usualmente,sedápormeiodereconstruçãoourealinhamentoarticular,utilizando-seplacaseparafusos,hastesintramedulares,parafusoscanuladosoufixadoresexternos.Deformidadeósseaprogressivaemarcanteturnoverósseo(peloprocessoinflamatórioativo),associadosàneuropatia,têmaumentadoodesafionotratamentocirúrgico.ExostectomiaseAlongamentosTendíneospodemsernecessários.1,2,4,7,8,9(Figura 2)

• Técnicasdesuperconstrução,queaumentamopoderdefixação,comoafusãoqueseestendealémdazonaafetadaeatravessaporarticulaçõesnãocomprometidas;ressecçõesósseasbemplanejadas,quereduzemcompletamenteadeformidade;osteossínteserígida,bemtoleradapeloenvelopedepartesmoles;eaparelhamentoapropriado,paramaximizarafunçãobiomecânicadosegmentoafetado,têmsidocadavezmaisdiscutidaseaplicadas(FaseCrônicadadoença).1,2,4,5,6,8

• Entrealgunscirurgiõesdepédiabético,aintervençãocirúrgicadaArtropatiadeCharcotagudatemopropósitodeestabilizaraanatomiaóssea,evitandoaperdadeossoeoprocessodeluxaçãoesubluxaçãoarticular,alémdeacelerararesoluçãodoprocessoinflamatóriovigente.Temosdadopreferênciaàfixaçãoexternaneutra,cominstrumentalcircular,envolvendoopé,otornozeloeaperna.3 (Figura 3)

F I G U R A 2 |Exostectomia plantar indireta.

F I G U R A 3 |Fixação externa neutra.

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Pós-oPerAtório

• Operíodopós-operatórioébastantecriterioso.FrequentementesãoutilizadosgessodecontatototalmodificadoeórtesesdotipoClam ShellouCrow.Cumplicidade,disciplinaeinteratividadeporpartedopaciente,dosfamiliaresedocirurgiãoéumaexigência.Palmilhasecalçadoscustomizadostambémsãoadotadosnomomentooportuno.1,2,3,4,6,9(Figura 4)

resultADos

• Oobjetivodomanejoéorealinhamentoarticular,comaobtençãodeumpéplantígrado,estável,funcional,livredelesõesequepossaseraparelhado,sobmolde,deformasatisfatória.Oseguimentoédesenvolvidoporequipetreinada,multiprofissional,mantendoadequadocontrolemetabólicoeglicêmico,otimizaçãodeestratégiasdeprevençãoeeducação,alémdeadequadomanejofisioterápico,adequandofunção,equilíbrioepropriocepção.4,5

comPlicAções

• Infecção,perdadasíntese,reulceração,deformidadesresiduais,prejuízofuncional,necrose,deiscênciaeamputaçãoconstituemascomplicaçõesmaiscomunsnomanejodaArtropatiadeCharcotdoMediopé.1,3,4

referênciAs

1. BatistaF.NeuroartropatiadeCharcot.EducContinSaúdeeinstein.2012;10(2):55-7.2. BatistaF,MonteiroAC.Tratamentocirúrgicodaneuro-artropatiadeCharcot:apresentação

detécnicaseresultadospreliminares.DiabClin.2003;7(5):358-66.3. BatistaF,PinzurMS.AcuteCharcot’JointsinDiabetics:SurgicalApproach.TobilloyPie

2014;6(2):57-62.4. BatistaF.UmaAbordagemMultidisciplinarsobrePéDiabético.1ed.SãoPaulo:Andreoli;

2010.P.15-368.5. BatistaF.DiabeticFootManagementAroundtheWorld:ExpertSurgeon’sPointof View.

1ed.SãoPaulo:Andreoli;2012.P.9-228.

F I G U R A 4 |Órtese tipo “Clam Shell”.

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6. BatistaF.ArtropatiadeCharcot:Atualização.TerMan2010;8(37):241-4.7. BrodskyJW,RouseAM.Exostectomyforsymptomaticbonyprominencesindiabetic

charcotfeet.ClinOrthopRelatRes1993;(296):21-6.8. PinzurMSetal.Atreatmentalgorithmforneuropathic(Charcot)midfootdeformnity.Foot

Ankle1993;14(4):189-97.9. PinzurMS.Ringfixationincharcotfootandanklearthropathy.TechFootAnkleSurg2006;

5(2):68-73.10.SandersL,FrykbergR.TheCharcotFoot.In:BowkerJHPfeiferMA,editors,Levinand

O’Neal’sTheDiabeticFoot.7thed.Philadelphia:MosbyElsevier;2007.P.257-83.

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