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Iuri Falcão AS AÇÕES POSSESSÓRIAS NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS COLETIVOS DE IMÓVEIS URBANOS Salvador 2009

As ações possessórias nos conflitos fundiários coletivos em imóveis urbanos

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Iuri Falcão

AS AÇÕES POSSESSÓRIAS NOS CONFLITOS FUNDIÁRIOS COLETIVOS DE IMÓVEIS URBANOS

Salvador 2009

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APRESENTAÇÃO POLÍTICA DO TEXTO

“O problema da posse não é a tutela dos possuidores e sim a possibilidade de acesso a ela

por todos (Hernandes Gil)”

Diante da necessidade de elaborar um texto monográfico como requisito para graduação em curso de especialização em processo civil, resolvi construir uma espécie de “”“Manual””” de defesa em caso de ocupações populares em áreas urbanas, que espero que sirva como “guia” para os novos advogados populares, que, assim como eu, estão comprometidos com a defesa dos direitos mais básicos de nosso povo.

Por ser advogado de Movimentos Populares, utilizei as defesas que construí

em processos reais, alem de outras elaborações de colegas e organizações estudantis na defesa de ocupações urbanas para a elaboração da monografia. Entretanto, por ser tão ligado à prática, ele traz muitos elementos da realidade prática e normativa do Estado da Bahia e da cidade de Salvador, apesar de poder ser utilizado em processos em qualquer canto do país.

Como o objetivo do texto é ser uma ferramenta, um instrumento na luta do

povo, caso sejam detectados problemas, incoerências ou sejam editadas novas leis, ou mesmo identifiquem interpretações progressistas das normas possessórias, já utilizadas no foro por advogados populares, mas que não estejam presentes no texto, peço humildemente que enviem para meu e-mail – [email protected] para complementação e nova distribuição do material.

O texto ficará disponível no blog: http://urbanidade.ceas.com.br/ para ser

utilizado em eventuais peças processuais, solicitando, apenas, quando usado em textos acadêmicos, a citação da fonte.

Espero que a idéia frutifique e que este texto se transforme em uma

ferramenta construída a muitas mãos. Salvador, 01 de novembro de 2009. Iuri Falcão

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RESUMO

A presente monografia tem como principal objetivo demonstrar que, com o advento da Constituição Federal de 1988 e a edição de legislações que tratam de Direito Urbanístico, garantindo o fundamental direito à moradia e à cidade, houve alterações substanciais no procedimento possessório, quando este tratar de conflitos fundiários sobre imóveis urbanos, envolvendo dezenas, centenas e às vezes, milhares de famílias. Para chegar a esta conclusão, iniciamos o estudo com a compreensão das origens da problemática urbana no país e os interesses envolvidos na disputa pelo território urbano. Em seguida, tratamos da posse e da propriedade, com foco na função social destes direitos e o debate sobre o conflito entre propriedade desfuncionalizada e posse com função social. Logo depois, apresentamos uma série de legislações urbanísticas, em nível Federal, Estadual e Municipal, todas elas posteriores ao Código de Processo Civil e, a grande maioria, após o próprio Código Civil de 2002, que reafirmam o direito à moradia e à cidade, a proteção do Estado para as famílias de baixa renda, na busca da efetivação daqueles direitos, bem como o combate à especulação imobiliária. Tais normas de direito material são paradigmas que devem ser observados durante os procedimentos possessórios, tanto quando o Código Civil. Cabe ressaltar que, como a legislação urbanística só se concretiza plenamente se levada ao nível do Município, escolhemos estudar a legislação da cidade de Salvador e, conseqüentemente, do Estado da Bahia. Seguindo adiante, apresentamos os contornos atuais da demanda possessória, da forma que é ensinada pela doutrina pátria, bem como a prática das ações possessórias relacionadas a conflitos fundiários urbanos na Comarca de Salvador. Diante das informações levantadas, passamos a analisar os principais aspectos da tutela possessória que foram modificados pela Constituição e pelas citadas legislações urbanísticas, como forma de garantir os direitos fundamentais dos envolvidos nos conflitos urbanos e que precisam ser absorvidos pelos operadores do direito. Conclui-se o trabalho com a afirmação de um procedimento possessório fruto do Estado Democrático de Direito, que tenha em vista o contexto social que cria a déficit habitacional nas cidades e que leve em consideração, para além do Código de Processo Civil e do Código Civil, a própria Constituição Federal e as legislações urbanísticas recentes. Palavras-chave: Ações possessórias, direito urbanístico, conflitos fundiários urbanos, déficit habitacional, Código de Processo Civil.

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ABREVIATURAS E SIGLAS

CC Código Civil

CF Constituição Federal

CJF Conselho da Justiça Federal

CPC Código de Processo Civil

FEHIS Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social

FMH Fundo Municipal de Habitação de Salvador

FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social

HIS Habitação de Interesse Social

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ONU Organização das Nações Unidas

PDDU Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

PHEIS Política Estadual de Habitação de Interesse Social

RMS Região Metropolitana de Salvador

SEDUR Secretária de Desenvolvimento Urbano

SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social

SSA Cidade de Salvador

STF Supremo Tribunal Federal

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

ZEIS Zona Especial de Interesse Social

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SUMÁRIO

1. - INTRODUÇÃO ....................................................................................... 6

2. - A POSSE E O DIREITO À CIDADE ...................................................... 8 2.1. - A problemática urbana....................................................................... 8 2.2. - O “caos urbano” fabricado.................................................................. 10 2.3. - Posse, propriedade e a função social................................................ 15 2.3.1. - A função social da propriedade................................................... 16 2.3.2. - A função social da posse............................................................. 21 2.4. - O Direito à Cidade, à Moradia e as recentes legislações urbanísticas acerca dos conflitos coletivos urbanos.......................... 25 2.5. - Conflito entre posse com função social e propriedade Desfuncionalizada.............................................................................. 40

3. - O ATUAL CONTORNO DOGMÁTICO E PRÁTICO DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS URBANAS ................................................................

45

3.1. - A prática forense nas ações possessórias......................................... 49

4. - AS NECESSÁRIAS INTERPRETAÇÕES PROCESSUAIS PARA O ENFRENTAMENTO DO CONFLITO POSSESSÓRIO COLETIVO URBANO.................................................................................................

53

4.1. - A comprovação dos requisitos do art. 927 do CPC........................... 53 4.2. - A inclusão constitucional e legal do inciso V no artigo 927 do CPC.. 57 4.3. - O abandono do imóvel e a comprovação dos ônus fiscais............... 61

4.4. - A vedação da exceção de propriedade nas demandas

possessórias...................................................................................... 62

4.5. - A citação dos réus............................................................................. 66 4.6. - Direito de defesa dos ocupantes....................................................... 68

4.7. - Chamamento ao processo dos órgãos estatais responsáveis pela

política urbana................................................................................... 69

4.8. - Necessária Intervenção do Ministério Público em conflitos

fundiários urbanos............................................................................. 71

4.9. - A postura ativa e o dever negocial do Judiciário enquanto órgão do

Estado............................................................................................... 73

4.10. - A apreciação do pedido liminar possessório..................................... 77 4.11. - O procedimento da audiência de justificação prévia......................... 82 4.12. - Vedação ao desforço imediato.......................................................... 84 4.13. - O eventual cumprimento da decisão liminar...................................... 84 4.14. - Direitos do possuidor de boa fé......................................................... 86

5. - CONCLUSÕES....................................................................................... 89

6. - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 93 7. - ANEXO 1: Decisão que utiliza elementos defendidos no texto.............. 97

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1. INTRODUÇÃO

O processo de urbanização se mundializou a ponto de especialistas

afirmarem que em 2007 a população residente na área urbana do planeta

ultrapassou a rural. Para alguns, tal fato “representará um divisor de águas na

história humana, comparável ao Neolítico ou às revoluções industriais” (DAVIS,

2006, p. 13). Esta situação se repete no Brasil, sendo que, tanto em nível mundial

como local, as cidades não se prepararam para tal expansão, ocorrendo o chamado

inchaço urbano.

Em tal situação, ganha relevo a busca pela moradia, entendida como

local onde se protege das intempéries, se mantém as relações privadas e se pratica

atos elementares para a vida, com posse exclusiva daquele espaço pelo grupo social

(família, amigos, etc). Percebe-se que a moradia, mais que um direito, é uma

necessidade biológica humana, que precisa ser suprida de qualquer forma. O

despreparo urbano para a chegada de vasto contingente populacional gerou a falta

de habitação, produzindo situações sociais que forçaram boa parte da população

mais pauperizada a ocupar terrenos e imóveis vazios, como forma de dar vazão à

sua necessidade de moradia.

Com a ocupação, estabelece-se o conflito fundiário urbano, entendido

como a divergência de interesses entre os ocupantes, que dão uma utilidade social a

uma área até então desocupada, e o interesse do proprietário, que deixou o local

vazio, em geral, em busca de lucros auferidos com a especulação imobiliária.

O Estado é chamando a intervir nestas situações por meio do

Judiciário, provocado pelas ações possessórias intentadas pelos proprietários. Estas

ações são processadas a partir de uma visão individualista e patrimonialística do

Código de Processo Civil e culminam, quase sempre, com a expedição do mandado

liminar, sem ouvir os réus, com o despejo forçado das famílias.

Não obstante isto, a Constituição Federal inovou na visão da cidade e

trouxe um capítulo específico para Política Urbana, sendo este inserido na Carta

Magna a partir da luta e organização dos Movimentos Sociais durante a constituinte.

Outras legislações urbanísticas recentes, sendo o Estatuto da Cidade a principal

delas, complementaram o comando urbanístico constitucional e afirmaram o

interesse público sobre o meio ambiente urbano. A CF e estas legislações dos três

níveis garantem o direito à moradia e à cidade a todos, reafirmam o papel do Estado

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na promoção deste direito, em especial à promoção de habitação para a população

de baixa renda, bem como coíbe a prática da retenção especulativa terra urbana.

Tais comandos normativos precisam ser valorados, assim como o próprio Código

Civil, no curso das demandas possessórias, até porque algumas destas legislações

trazem elementos explícitos de direito processual.

O objeto deste texto é justamente o estudo das ações possessórias, em

especial da reintegração de posse, manejadas nos conflitos fundiários urbanos, à luz

da Constituição e destas legislações urbanísticas, impactando no procedimento da

tutela da posse, prevista pelos art. 920 e seguintes do CPC. É necessária uma

reinterpretação de comandos do CC e do CPC e uma valorização maior pelo

Judiciário das normas urbanísticas, que tem o mesmo nível hierárquico e importância

para esta questão que os citados Códigos.

É preciso afirmar que, pela estrutura constitucional do direito à cidade,

cabe à União legislar sobre normas gerais de direito urbanístico, aos Estados

complementar tais legislações, mas é função dos Municípios darem os contornos

específicos e detalhados do alcance da normatização sobre a cidade. Desta forma, a

presente monografia estudou as normas recentes do Estado da Bahia e do Município

de Salvador como forma de fechar o ciclo da análise das normas urbanísticas, tendo

em vista ser nesta cidade e estado onde o autor tem sua vivência profissional.

Partindo desta introdução do tema, este texto monográfico se divide em

três capítulos. No primeiro, é estudada a estruturação do espaço urbano no Brasil,

bem como a posse e o direito à cidade, incluído o direito à moradia, como subsídio

material para a posterior análise processual. No segundo capítulo, é apresentada a

sistemática atual dos processos possessórios coletivos, tendo em vista serem os

recursos processuais mais utilizados nos conflitos fundiários urbanos. No terceiro

capítulo discutem-se as inovações processuais trazidas pela Constituição, Código

Civil e legislações urbanística no processo civil, em especial relacionados às

demandas possessórias. Por fim, temos as conclusões do trabalho, com as

principais questões abordadas pelo texto.

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2. A POSSE E O DIREITO À CIDADE

“O estoque especulativo de terras no Brasil não é delito. Delito, num direito que envelheceu, é

ocupá-la para plantio”[e para moradia] (MARQUES, 1988, p. 11).

2.1. A problemática urbana

O Brasil viveu um dos mais intensos processos de urbanização da

história mundial. Se na década de 1940 pouco mais de 30% da população era

considerada urbana, atualmente, quase 70 anos depois, cerca de 84,5% dos

brasileiros se encontram nas cidades. Foram quase 30 milhões de pessoas que

migraram da zona rural para as cidades apenas nas décadas de 1970 e 1980

(CUNHA, p. 253). É verdade que esses dados precisam ser olhados criticamente,

pois boa parte dos 5.564 municípios do país tem uma predominância rural1.

Entretanto, as 224 maiores aglomerações urbanas, com mais de 100 mil habitantes,

respondem por 60% da população (IBGE, 2009a). Esse é o dado preocupante.

A expansão urbana no país deu-se por diversos fatores: necessidade

de mão-de-obra para a indústria nas cidades, industrialização do campo, extrema

concentração de terras rurais e falta de políticas sérias para manter o pequeno

produtor no campo, constantes conflitos entre latifundiários e posseiros, crescimento

vegetativo, a própria “esperança” de uma vida melhor nos centros urbanos, tudo isto,

em graus diferenciados, colaborou para a expulsão de imensa quantidade de

pessoas do campo em direção à cidade. Este processo ocasionou um êxodo rural

sem precedentes na historia mundial, dada a sua quantidade e no curto espaço de

tempo em que ocorreu.

Na outra ponta, a cidade não foi preparada adequadamente para

acomodar este contingente populacional que nela aportava. Seja pela limitada

possibilidade de geração de postos de trabalho, seja pelas inexistentes, desfocadas

(ou focadas em quem não necessariamente precisava) ou insuficientes políticas

urbanas e habitacionais executadas no período, chegou-se a uma situação de crise

extrema de falta de habitação e de urbanização, que eram (são ainda) resolvidas de

1 Por município com predominância rural entendemos como aquele que, apesar de possuir um centro urbano com relativo povoamento, depende bastante das atividades agroindustriais desenvolvidas em seu arredor, sendo que a população apenas utiliza a cidade para dormitório, desenvolvendo, boa parte de sua população, atividades agrícolas. Em geral, são municípios com cerca de 20 mil habitantes.

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forma autônoma, mas não necessariamente coordenada, pelos próprios moradores.

Neste novo modelo de cidade, o valor da terra urbana foi cada vez mais inflacionado

e especulado, dificultando o acesso, pela via do mercado, de vasta parcela da

população.

A falta de política urbanística e habitacional por um lado e a

mercantilização da terra por outro geraram várias soluções populares. As ocupações

de terra urbana foram incontáveis; diversos cortiços foram constituídos e destruídos

pelo Estado, mas recriados adiante, sem qualquer infra-estrutura digna para a

população; imóveis antigos em locais cada vez mais desvalorizados das cidades (em

geral, antigos centros) foram ocupados; bem como foram erguidas casas em áreas

com risco de desabamento, de proteção ambiental, leito de rios e lagoas, mangues,

etc. Não se pode esquecer dos inúmeros loteamentos ilegais, mesmo com a

criminalização do art. 50 da Lei 6.766/79, que foram adquiridos pela população

pobre, ocasionando problemas constantes com antigos proprietários e órgãos

municipais. A pesquisa Perfil Municipal do IBGE (2009b) mostra que existem

assentamentos irregulares em quase 100% das cidades com mais de 500 mil

habitantes e 80% das cidades entre 100 mil e 500 mil. Mesmo nos municípios de até

20 mil habitantes, 30% possuem assentamentos com esta característica. Chama

atenção o fato de 40,5% de todos os domicílios do Brasil se localizarem em

assentamentos precários2.

A situação atual do país, em termos habitacionais, é um déficit

quantitativo da ordem de oito milhões de unidades e mais de doze milhões de

domicílios possuem deficiências qualitativas (Ministério das Cidades, 2009a), não

sendo consideradas moradias dignas – cerca de 25% das moradias urbanas do país.

Essa tensão habitacional, em especial das famílias que compõem o déficit

quantitativo, é um dos fatores que impulsiona a realização de ocupações de terrenos

urbanos por grandes quantidades de famílias3.

2 “Definição da ONU do que é um assentamento precário: trata-se de um assentamento contíguo, caracterizado por condições inadequadas de habitação e/ou serviços básicos. Um assentamento precário é freqüentemente não reconhecido/considerado pelo Poder Público como parte integrante da cidade. Cinco componentes refletem as condições que caracterizam os assentamentos precários: 1. status residencial inseguro; 2. acesso inadequado à água potável; 3. acesso inadequado a saneamento e infra-estrutura em geral; 4. baixa qualidade estrutural dos domicílios e 5. adensamento excessivo. Em um assentamento precário, os domicílios devem atender pelo menos a uma das cinco condições acima.” (ROLNIK, 2008, p. 23) 3 Para se ter uma noção da enormidade e importância da discussão, basta fazer um simples cálculo: Institutos de Pesquisa e órgão do Estado utilizam o número de 4 pessoas por família como referência para o cálculo populacional. Neste caso, com 8 milhões de unidades habitacionais (famílias), teríamos 32 milhões de pessoas sem moradia e 12 milhões de unidades no déficit quantitativo são 48 milhões

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Como a cidade sempre foi pensada de uma forma segmentada, os

setores elitizados da sociedade sempre se apoderam dos recursos públicos e os

utilizaram na ultraqualificação do ambiente urbano em torno de uma parte do

ambiente urbano, ocupada por este pequeno segmento social, o que ocasiona alto

valor da terra nestas áreas. Para a grande maioria da população, sobrou a

informalidade, as obras pontuais e com forte conteúdo de domestificação clientelista

e a auto-resolução dos problemas, quando possível.

Este processo de amplo crescimento urbano em tão pouco tempo,

aliado à falta ou insuficiência de políticas, que, quando existiam, eram destinadas a

faixas de renda que não necessariamente precisavam deste apoio, deu margem ao

já relatado processo de autoconstrução e expansão para todos os lados da cidade.

Ao mesmo tempo, a constituição de espaços de ultravalorização gera deseconomias

para a cidade, em especial o caótico trânsito nestas áreas, afetando a todos, mas,

em especial, à população que mora distante e precisa se movimentar grandes

distâncias para ir/voltar do trabalho.

Dentro desta realidade, surgem alguns dados inquietantes: Por

exemplo, na Região Metropolitana de Salvador – RMS o déficit habitacional

quantitativo é de 104 mil unidades enquanto existem mais de 114 mil domicílios

vazios (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2005). Logo, existem mais casas

desocupadas na RMS do que famílias necessitando de moradia (e assim o é em

outras regiões do país)! Ademais, percorrendo-se a cidade de Salvador e

principalmente sua Região Metropolitana, percebemos um sem-número de terrenos

vazios, esperando sua valorização. É de se questionar se o tão propalado “caos

urbano” é produto natural de uma fórmula matemática desequilibrada (aumento

populacional em pouco espaço e em pouco tempo) ou fruto de arranjos econômicos,

sociais e jurídicos que forjam esta situação.

2.2. O “Caos Urbano” Fabricado

A dinâmica urbana e os conseqüentes atos coletivos populares de

ocupação de terra precisam ser analisados a partir de aspectos estruturais e

conjunturais que conformam a produção e reprodução das grandes cidades no

Brasil. O mundo jurídico não pode se negar a compreender as raízes destas

de pessoas, perfazendo mais de 80 milhões de brasileiros nestas situações.

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questões, sob pena de aplicar um Direito morto, superficial, enclausurado em sua

própria “cientificidade”, sem utilidade para maioria da população.

Em termos estruturais, é preciso perceber que a cidade nem de longe é

um mero palco, um simples cenário, onde ocorrem outras relações sociais. Ela é, em

sua constituição, expansão e modificações, prenhe de conflitos e interesses sociais,

econômicos e políticos distintos. Neste contexto, o mercado imobiliário está entre os

interesses determinantes para as intervenções urbanas, inclusive impondo sua

agenda para o poder público nos diversos níveis.

Pode-se afirmar que, para o mercado imobiliário, apenas uma parte da

cidade é interessante. Neste setor urbano, os serviços de paisagismo, manutenção

das áreas públicas, iluminação e pavimentação são extremamente eficientes

(MARICATO, 2000, p. 165). É nele que estão concentradas as principais obras

urbanísticas da cidade, onde se localizam as centralidades urbanas e onde o preço

da terra é extremamente proibitivo.

Este mercado é operado por diversos interesses, às vezes,

contraditórios entre si. Entretanto, as construtoras e incorporadoras, principais

agentes deste processo, trabalham somente se tiverem garantida uma rentabilidade

mínima do negócio, que depende bastante dos juros bancários. Como no Brasil as

taxas de juros são altas, a capacidade econômica e de ter acesso ao crédito pela

maioria da população é bastante restrita e os terrenos disponíveis são caros, dada a

especulação dos proprietários (JORGENSEN, 2008, p. 54/55), tem-se um mercado

imobiliário extremamente elitista e voltado para a capacidade econômica de menos

da metade da população (MARICATO, 2000, p. 156/157).

Assim, “para o trabalhador pouco qualificado, é praticamente impossível

pagar o aluguel de um imóvel no mercado formal, que dirá comprar moradia, ou

simplesmente um terreno adequadamente localizado e urbanizado” (JORGENSEN,

2008, p. 55).

Ora, a partir desta estruturação urbana, é fácil perceber que as

ocupações de terra, as favelas e os loteamentos ilegais são as soluções encontradas

por um grande contingente populacional para garantir sua necessidade básica de

moradia. No dizer de Ermínia Maricato:

“A invasão de terras urbanas no Brasil é parte intrínseca do processo de urbanização. Ela é gigantesca... e não é, fundamentalmente, fruto da ação de esquerda e nem de movimentos sociais que pretendem confrontar a lei. Ela é estrutural e institucionalizada pelo mercado imobiliário

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excludente e pela ausência de políticas sociais” (2000, p. 152).

Esta afirmação torna-se mais compreensível quando se analisa os

percentuais dos moradores de áreas que foram ocupadas, em relação à população

total das cidades: 20% da população do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto

Alegre; 28% de Fortaleza e 33% de Salvador. Se acrescermos a estes dados os

moradores de loteamento ilegais, temos mais da metade da população da cidade do

Rio de Janeiro e de São Paulo vivendo nestas condições.

Numa situação como esta, em termos macroestruturais, afirmar que as

ocupações de terra violariam o sistema jurídico é cegar face à realidade social. Caso

isto realmente acontecesse e o Estado reprimisse todas as ocupações, estaríamos

diante de uma situação política que facilmente descambaria para uma guerra civil.

Entretanto, o discurso tradicional dos operadores do direito é da criminalização dos

ocupantes, não percebendo que estes são meras “marionetes” no jogo de cartas

marcadas do próprio mercado imobiliário e é desta forma que se comporta a

interpretação tradicional do processo civil no país.

Tal situação estruturante de cidade “legal”, cercada por ocupações

“toleradas”, é fruto do processo de urbanização no Brasil que, segundo a Profa.

Ermínia Maricato (2000, p. 153/161), apresenta algumas características básicas:

1. Industrialização com baixos salários e mercado residencial restrito, o que

implica que o valor da mercadoria habitação, dado pelo mercado privado, não

é levado em conta na fixação dos preços dos salários. Nem empregados

formais, muito menos os precários, tem acesso ao mercado formal de

habitação e ao financiamento habitacional, tendo em vista que o valor desta

mercadoria não é considerado para o cálculo dos salários. Logo, o próprio

processo de industrialização já pressupunha que a grande parte dos

trabalhadores deveria conseguir sua habitação fora do mercado, dando seu

próprio “jeito”. Frente a esta realidade, o mercado imobiliário se transformou

em elitista e hiper-qualificou apenas parte da cidade.

2. Gestões urbanas têm tradição de investimentos regressivos: Neste sentido, o

poder público atua prioritariamente, e realiza as obras mais custosas,

justamente nestes setores hiper-qualificados das cidades. As obras de infra-

estrutura acabam por servir à valorização fundiária e imobiliária, sendo que os

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proprietários de terras e capitalistas imobiliários são grupos reais de poder nas

realizações orçamentárias. As obras ligadas à circulação, em geral, são mais

imobiliárias que viárias. Não necessariamente estão voltadas para a

necessidade do transporte, mas para abrir frentes do mercado imobiliário4.

3. Legislação ambígua ou aplicação arbitrária da lei. O Estado acaba por não

exercer seu poder de polícia frente às ocupações e “irregularidades” da

moradia popular, pois tem plena consciência do seu papel de qualificador de

apenas uma parte da cidade, ao mesmo tempo em que compreende a

essencialidade do bem “moradia”. Como não há interesse em promover o

direito à moradia à todos, o Estado (e o próprio mercado imobiliário) percebe

que se não tolerar a ocupação de terras, certamente haveria guerra civil. Mas

a tolerância não se dá em qualquer lugar. Nas áreas valorizadas pelo mercado

imobiliário, a lei se aplica (salvo corrupções mais localizadas), sendo as

ocupações populares nestes locais fortemente combatidas e expulsas.

Entretanto, nos setores mais periféricos, sem interesse imobiliário, se faz vista

grossa.

Assim:

“Não é a norma jurídica que se impõe, mas a lei do mercado, apontando que nas áreas inservíveis para o mercado (beira de córregos, proteção ambiental, morros muito íngremes) a lei pode ser transgredida. O direito à invasão é até admitido, mas não o direito à cidade. O critério definidor é o do mercado ou da localização” (MARICATO, 200, p. 161).

Atuando sobre a estrutura urbana atual, há o elemento conjuntural do

avanço das políticas neoliberais a partir da década de 1980, que traz efeitos

devastadores para os trabalhadores e para a viabilização do direito à cidade, pois

resultam nos processos de: a) ampliação da globalização, da reestruturação

produtiva e da diminuição do Estado, como produtos do neoliberalismo; b)

implementação do receituário das instituições multilaterais (FMI, BID, BIRD) como

redução de gastos do governo, especialmente nas áreas sociais, para gerar

recessão econômica e, a partir daí, equilibrar o balanço de pagamentos externo e

saldar as dívidas com o sistema financeiro internacional; c) incentivo às atividades

4 Em Salvador, viadutos na Av. Tancredo Neves, no final da Av. Luiz Viana Filho, próximo ao aeroporto, obras na Av. Centenário entre outras, que são apresentadas como obras viárias, na realidade são muito mais imobiliárias, apontado para o mercado os espaços de valorização e expansão urbana.

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econômicas voltadas à exportação para gerar superávits na balança comercial, com

reforço do agronegócio e do latifúndio, e acirramento dos conflitos no campo e

expulsão de posseiros, reavivando o êxodo; d) cessação de investimentos públicos

no setor produtivo, aberto para as multinacionais e deixando o país em dependência

maior ainda e finalmente e) privatização generalizada, com perda da capacidade do

Estado de intervir na produção, nos serviços, etc, a fim de barateá-los e torná-los

mais acessível à população (FANINI, 2008, p. 17).

Os trágicos resultados deste processo são a substituição emprego

formal pelo desemprego e/ou emprego informal; a habitação regular por ocupação de

terrenos, muitos impróprios ao uso urbano; o planejamento apenas para um setor da

cidade e ocupação desesperada por quem precisa morar na outra parte; o

crescimento desordenado, criando aglomerados ocupados sem mínima estruturação

viária, desprovidos de espaços de recreação, lazer ou valor paisagístico e com

habitação de baixa qualidade; poucos investimentos em transporte de passageiros e

foco no automóvel para a classe média, expandindo redes viárias e ativando o

mecanismo de valorização imobiliária, através de dinheiro público; baixa qualidade

da educação aliado ao desemprego, gerando exército de mão-de-obra farta e

(des)qualificada e facilmente reposta, justamente o interesse do tráfico, tornando

áreas periféricas mais violentas que locais em guerra. (FANINI, 2008, p. 17).

De tudo que foi exposto, percebe-se que este tão propalado “caos

urbano” nada mais é que o funcionamento “normal”, natural, dos mecanismos que

tornam a cidade um grande negócio, agudizados pela ação devastadora da

globalização/neoliberalismo. As afirmações, muito comum na imprensa e no senso

comum, de que esse “caos” e o “crescimento descontrolado” das cidades se dariam

por falta de planejamento urbano servem apenas para dissimular os conflitos sociais

e os reais motores deste “caos”. A década de 1970 foi prenhe na realização de

diversos planejamentos para a cidade brasileira, nos diversos níveis, especialmente

federal. Entretanto, foi durante este período de ampla produção de planos e

planejamentos que as cidades brasileiras mais cresceram... fora da lei e dos planos,

com ampliação das ocupações urbanas. Estes planos, na realidade, cumprem a

função de plano-discurso, para esconder as contradições sociais, sendo que a

população que é obrigada a ocupar a terra urbana é considerada apenas na

justificativa dos mesmos, que servem apenas para garantir os interesses do mercado

imobiliário. Quando a “preocupação” social colocada no plano ensaia ser

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implementada, ele deixa de ser interessante para os setores que controlam a cidade

e já não é mais cumprido (MARICATO, 2000, p. 139).

É frente a esta situação estrutural de cidade como “propriedade

privada” do mercado imobiliário (e não como locus da cidadania), sob as bênçãos do

Estado, e da conjuntura de globalização excludente que o direito deve produzir

respostas para os conflitos sociais envolvendo famílias que ocupam terras urbanas,

de forma a dar efetividade a Justiça.

2.3. Posse, propriedade e a função social

Para se discutir a demanda possessória nas ocupações coletivas

urbanas, é necessário se deter, preliminarmente, nos aspectos de direito material

que envolvem o tema, em especial no debate sobre conflito entre posse e a

propriedade urbana e sua nova leitura a partir do texto constitucional de 1988, do

novo Código Civil e das recentes legislações urbanísticas. Entretanto, não se

adentrará nas clássicas conceituações e classificações da posse e propriedade,

tomadas como pressupostos, devendo, para maiores esclarecimentos, serem

consultadas obras de manuais de Direito Civil5. Não obstante, em várias passagens

desta obra abordaremos os reflexos das classificações em relação à tutela

possessória e aos conflitos coletivos urbanos.

Demais disso, não se adentrará na histórica discussão acercam das

divergências entre as duas tradicionais correntes sobre posse, representadas por

Savigny e Ihering. Neste sentido, é brilhante a exposição de Nilson Marques acerca

do tema:

“As idéias que aqueles juristas alemães passaram [Savigny e Ihering] e que ainda são as únicas idéias que se ensinam nas Faculdades de Direito, dizem respeito a um outro tempo e uma outra sociedade. É até absurdo, nós, brasileiros, esquecermos nossa história de povo colonizado, de nações indígenas exterminadas, de três séculos de escravismo, e nos basearmos em regras jurídicas de europeus do século dezoito!” (1988, p. 13)

No mesmo sentido se posiciona Jáques Távora Alfonsin:

5A exemplo dos Manuais: “Direitos Reais” do prof. Orlando Gomes, “Direitos Reais”, dos professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald e “Direito Civil: direitos reais” do prof. Silvio de Salvo Venosa.

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16

“Por mais respeito que as fontes romanas do nosso Direito mereçam, é o caso de se perguntar se os posicionamentos de Ihering e Savigny sobre as mesmas, esgotaram as possibilidades de explicação jurídica da posse, ou se as radicais mudanças históricas havidas desde então, tanto sobre as coisas possuídas, como sobre os sujeitos (aí incluída a multidão dos que não possuem...), não comportam releitura interpretativa de um fenômeno como o da posse, cuja densidade fática e jurídica ninguém contesta” (2002, p. 12).

O tema da posse e da propriedade passou – e ainda passa – por

profundas mudanças nos debates jurídicos. O advento da Constituição de 1988, que

positivou a fórmula da função social da propriedade no art. 5°, XXIII, a partir de

discussões que já vinham sendo travadas desde o início do século pelo mundo

afora, foi apenas mais um passo da afirmação desta discussão em solo brasileiro.

2.3.1. A função social da propriedade

O nascimento da compreensão do direito de propriedade enquanto

absoluto e individualista surge com o Código Napoleônico de 1804, no intuito de

combater o absolutismo e o antigo regime e sedimentar os ideais liberais da

Revolução Francesa. A defesa do direito individual contra o despotismo do Estado é

a marca mais clara do período. Não obstante, 200 anos depois, houve muitas

modificações na organização e nas necessidades sociais, transformando-se o que

era revolucionário naquele período em um estorvo e poço de conservadorismo

atualmente. Para fazer frente a esta concepção do direito de propriedade, foi

desenvolvida a idéia da função social.

Orlando Gomes identifica os primórdios da concepção de função social

em Leon Duguit, uma vez que para este autor, o proprietário deve-se comportar e ser

considerado, quanto à gestão de seus bens, como um funcionário.

“a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza imobiliária e mobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social...” (DUGUIT, apud GOMES, 2004, p. 126)

A Constituição Alemã de Weimar, em 1919, já trazia no art. 153 a

garantia da propriedade, desde que cumprisse os limites da lei e que haveria

desapropriações sem indenizações, afirmando que “a propriedade obriga e o seu

uso e exercício devem representar uma função no interesse social” (MARÉS, 2003,

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17

p. 85). É considerada a primeira disposição positivada da função social. Outras

Constituições, como a de 1917 no México, considerada a primeira “Constituição

social do mundo” e a de 1918 na URSS (que abolia a propriedade privada da terra

em seu artigo primeiro), dispuseram acerca das limitações (ou abolição) do direito de

propriedade, colocando-a sob o jugo do interesse coletivo.

É preciso ficar claro as motivações e interesses na formulação do

conceito de função social da propriedade. Como afirma Orlando Gomes, a função

social da propriedade nada tem a ver com concepções socialistas, pois, para estes a

função social “mais não serve do que para embelezar e esconder a substância da

propriedade capitalística”, pois “legitima o lucro ao configurar substância da atividade

de produtor de riqueza, do empresário, do capitalista, como exercício de uma

profissão no interesse geral” (GOMES, 2004, p. 127). A função social seria um

conceito ancilar no regime capitalista, como forma de justificar a existência da

propriedade privada. Neste sentido, a Encíclica Papal Rerum Novarum de 1891 já

traz uma crítica à exacerbada miséria trazida pelo capitalismo liberal, mas tem sua

função principal na construção de um modelo “social” de propriedade privada, como

forma de barrar o avanço do socialismo. O Estado do Bem-Estar Social, criado após

a crise de 1929 como forma de fazer concessões aos trabalhadores e evitar o

socialismo, com sua intervenção econômica e garantia de uma rede de proteção

social, é quem consolida e auxilia a difundir as idéias da função social da

propriedade.

Enquanto isto, o direto brasileiro se manteve praticamente impermeável

às considerações de relativização do liberalismo clássico - aqui agudizado e bastante

piorado dada a simbiose impensável entre a doutrina liberal com o conservadorismo

tradicionalista do latifúndio. A elaboração do Código de 1916 teve como referência o

homem, branco, proprietário (especialmente latifundiário), chefe da família. Nada

mais natural que aquele Código fosse patrimonialista – a defesa do patrimônio é

fundamental, acima da vida de outrem, em alguns casos – e individualista – visava

proteger justamente aquele indivíduo-modelo da ação do Estado e do outros,

especialmente os não-proprietários. Para o Código, a propriedade era absoluta,

sagrada, fixando os marcos do pensamento jurídico nacional da época, com ranços

coronelistas, que dominou a interpretação da propriedade durante praticamente todo

o século XX no país. A posse era desmerecida, dependente da propriedade e serva

desta, sendo, na realidade, uma sentinela avançada na defesa da pedra de toque do

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18

direito: a propriedade.

Em tal sistemática jurídica, o conflito entre posseiros e proprietários,

quando chegavam aos Tribunais, eram resolvidos, em geral, a favor do proprietário,

mesmo não sendo o domínio a relação jurídica discutida em juízo. Mas isto ocorria

apenas quando o conflito chegava ao Judiciário. Na grande maioria das vezes, o

latifundiário expulsava diretamente os posseiros, tirando-lhes a vida quando exibiam

alguma oposição, tudo isto “apoiado” pelos valores sociais e jurídicos de então, de

absolutização da propriedade.

Entretanto, os avanços das relações sociais, a organização e

politização dos trabalhadores rurais e urbanos, e mesmo as exigências de

produtividade de um capitalismo “modernizado”, impulsionaram sensíveis mudanças

na interpretação e na positivação da propriedade, da posse e do conflito entre eles.

Para iniciar a discussão, é preciso uma compreensão ética e

econômica da terra, objeto de posse ou propriedade. É preciso afirmar que a terra

não é um bem reprodutível e é fundamental para a existência humana, pois é dela

que vem o alimento e sobre ela que estruturamos nossas relações sociais. “É pela

utilização da terra que o homem logrará atender necessidades vitais”, assim como é

“fonte de vida e cultura de cada povo e, desta forma, garante a segurança alimentar

e a felicidade dos trabalhadores” (MARÉS, 2003, p. 89). Assim ao lidarmos com este

bem tão preciso e fundamental, é preciso ter em vista sua essencialidade para todos

os serem humanos, e com base neste valor a visão jurídica sobre ele deve ser

trabalhada. Até porque “a terra não pede títulos e documentos para entregar seus

frutos, basta plantar ou coletar” [ou ainda construir, numa visão urbana não abarcada

pelo autor] (MARÉS, 2003, p. 72).

Seguindo a mesma linha, Jaques Távora Alfonsin afirma:

“Indispensável fonte de vida para as pessoas, os animais, as plantas,

não deixa de ser estranho o fato de quem, em véspera de se trocar de século, a maior parte da humanidade ainda esteja refém de um tipo de distribuição do espaço territorial que reconhece o “direito” de uma só pessoa decidir-lhe o destino, mesmo que esse não consulte qualquer conveniência para os seus semelhantes, ou até posse lhes acarretar prejuízo e morte.” (2000, p. 219)

A Constituição Federal de 1988 garante a propriedade privada no caput

do art. 5º e no inciso XXII. Não obstante, no inciso XXIII do mesmo artigo, afirma que

a “propriedade atenderá sua função social”. A compreensão do significado e da

extensão deste preceito é fundamental para entendermos o tema aqui discutido.

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Parte considerável da doutrina e do Judiciário mantém-se presa à velha

conceituação da propriedade como absoluta. Para estes, a função social é apenas

um elemento acessório da propriedade, que, em não sendo cumprida, depende da

ação positiva do Estado para sua sanção. Nesta interpretação, a função social seria

um mero privilégio concedido ao proprietário. Se não cumprir, é simplesmente

admoestado pelo Estado, mas não perderia a propriedade ou receberia o valor da

desapropriação, mantendo integro o seu patrimônio (MARÉS, 2003, p. 112/113). A

desapropriação, na realidade, serviria como uma remuneração ao ilícito e não coíbe

o mau uso de um bem não reprodutível.

Existem, entretanto, duas visões críticas ao pensamento conservador.

Para uma delas, a propriedade não “TEM” uma função social. Ela “É” uma função

social. Esta função seria parte da essência, do conceito mesmo de propriedade,

resultando em algo substancialmente diferente, caso sua função fosse retirada. Da

propriedade pode-se retirar algumas faculdades (uso, gozo, fruição e reaver de quem

injustamente possua) e mesmo negociá-las, o que não descaracterizaria o instituto.

Entretanto, a propriedade sem função social não seria propriedade, mas outro

instituto jurídico, com nova conceituação e resguardado por outro tipo de proteção

(TORRES, 2007, p. 260/261).

Esta nova visão do direito de propriedade gera um novo conceito para o

instituto jurídico:

“O detentor do título de propriedade tem a faculdade de usar, gozar

e dispor da coisa, mas se não o faz, de tal forma que a coisa cumpra a função social constitucionalmente, não tem o direito de reavê-la de quem a possua ou detenha e que esteja dando o cumprimento da função social. Isto porque o sistema constitucional exige esse cumprimento e o direito de reaver somente se apresenta contra quem injustamente detenha a coisa. Quem dá cumprimento à função social da terra, não a detém injustamente, ao contrário, está cumprindo a justiça da lei” (MARÉS, 2003, p. 128).

Para a outra visão, há uma distinção entre momento estático

(estrutural, situação jurídica do proprietário, direito subjetivo, poder) e dinâmico

(funcional, utilização ou atividade, função, dever) da propriedade, sendo que a

função social incidiria no dinamismo do direito de propriedade (BEKER, 2009).

Ambas as posições, no entanto, prevêem a perda ou restrição do direito

de propriedade para quem não cumpre a função social, o que é seguido por uma

série de autores nacionais e internacionais, tais como Stefano Rodotá, Salvatore

Pugliati, Orlando Gomes, José Afonso da Silva, Fábio Konder Comparado, o atual

Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Roberto Grau, Fernando da Costa

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20

Tourinho, Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino, Lênio Streck, entre outros.6

Objeções variadas são feitas a estas interpretações, como a de que se

estaria suprimindo a própria garantia do direito de propriedade e a vedação do

confisco do art. 150, IV da CF/88 e mesmo o fato de doutrina e jurisprudência mais

conservadora não aceitarem a aplicação das normas constitucionais às relações

privadas, como se o texto constitucional fosse voltado apenas para os legisladores

(BECKER, 2009). Entretanto, não é aceitável que se invoque a própria lei que não foi

cumprida (a CF) para se defender um ato ilícito nela tipificado. Não teria direito à

proteção o proprietário enquanto não cumpre a função prevista na Carta Magna.

(MARÉS, 2003, p. 117). Além disto, cada vez mais se discute a eficácia horizontal e

vertical da Constituição e dos direitos fundamentais, fazendo-a incidir, também, nas

relações privadas.

Desta forma:

“Cumprirá o proprietário com a função social quando sua atuação atenda a um só tempo as atribuições sociais e econômicas do bem. O social e o econômico fazem parte da função social inerente ao bem objeto de direito. Não é suficiente para a sociedade contemporânea dar proteção ao proprietário pela existência pura e simples do título” (TORRES, 2007, p. 346/347).

Esta obrigação constituinte do direito de propriedade é, inclusive, o

entendimento do Código Civil, em seu art. 1.228, §1º, quando preceitua que:

“Art. 1.228, §1º: O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas sociais e de modo que sejam preservadas, de conformidade com o estabelecido em legislação especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, em como evitada a poluição do ar e das águas”

No mesmo sentido, o Código Florestal, em seu art. 1º, § 1º, desenvolve

o conceito de uso nocivo da propriedade, quando, por ação ou omissão, se atuar

contrariamente ao disposto na Lei. Tal raciocínio implica na quebra do modelo de

propriedade absoluta, tendo em vista o interesse público que recai sobre a proteção

florestal. Mutatis mutantis, o art. 1º, parágrafo único da Lei 10.257/2001, o Estatuto

da Cidade, traz a garantia do espaço urbano para todos, também chamado de meio

ambiente urbano, tendo também a característica de ser “norma de ordem pública e

6 Em seu livro, Marcos Alcindo de Azevedo Torres (2007, p. 264/272) cita 22 autores de renome que defendem estas teses.

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21

interesse social, que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,

da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

Logo, as ações e omissões da propriedade urbana podem também ser consideradas

como uso nocivo da propriedade. Tais normas significam a implementação concreta

do princípio da função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico.

Há ainda que se relembrar a lição de Fábio Konder Comparato, que

afirma que nem toda propriedade pode ser considerada direito fundamental. É

preciso avaliar isto em concreto, vez que “seria evidente contra-senso que essa

qualificação fosse estendida ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de uma

gleba urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de

moradia popular”. Afirma ainda o ilustre professor que é preciso, enfim, reconhecer

que a propriedade-poder, sobre não ter a natureza de direito humano, pode ser uma

fonte de deveres fundamentais, ou seja, o lado passivo de direitos humanos alheios.

O descumprimento destes deveres fundamentais implica em lesão ao direito

fundamental de acesso a propriedade por todos. (2000, p. 140/145).

De tudo que foi dito, conclui-se que, para que a propriedade seja

garantida judicialmente, é preciso que ela esteja cumprindo sua função social, o que,

em geral, não acontece nos locais ocupados nos conflitos urbanos.

2.3.2. A função social da posse

Não é apenas a propriedade quem deve cumprir uma função. Partindo-

se de uma compreensão mais ampla do fenômeno jurídico, é preciso ir além da

interpretação literal e não-sistemática do Direito e perceber que também a posse

deve cumprir sua função social.

Há que se reconhecer, em primeiro lugar, que existe uma interpretação

legalista e tradicional da posse e da propriedade no Direito, e uma outra visão

constitucional, inovadora, de tais institutos. A posse, mero ato-fato segundo a

interpretação tradicional, hoje é direito constitucional extraído dos preceitos de

usucapião extraordinária da Carta Magna. A propriedade, mero direito de usar, gozar

e dispor de forma exclusiva e absoluta da coisa segundo a interpretação tradicional,

hoje é direito de exercer os atributos da propriedade de forma e cunho social.

O Código Civil define a posse em seu art. 1.196, a partir da pessoa do

possuidor, caracterizado como todo aquele que tem de fato, o exercício, pleno ou

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22

não, de algum dos poderes inerente à propriedade. Neste sentido, andou mal o

Código ao manter a posse definida a partir da propriedade. Na realidade, a posse

ganhou contornos constitucionais próprios e melhor seria defini-la como um estatuto

específico.

De acordo com o entendimento do Prof. Cristiano Chaves de Farias e

Nelson Rosevald:

“Daí a necessidade de alcançarmos a posse como um fato social indissociável de uma função social própria e autônoma ao direito de propriedade. A posse caracteriza-se por uma apropriação econômica e social consciente sobre um bem, voltada a uma finalidade individual que representa, em última análise, a própria finalidade coletiva, ao propiciar o direito fundamental social de moradia (art. 6º da CF)” (2008, p.50).

Desta forma, cabe a afirmação de que a posse é uma relação de fato

juridicizada, sendo que a manutenção da relação de fato é a condição do direito à

proteção. É um instituto jurídico próprio, autônomo da propriedade, baseado no

poder de fato que produz utilidades, cumprindo sua função social.

Em verdade, tomando as divergências doutrinárias sobre o tema, o

citado autor propõe uma visão tripartite da natureza da posse enquanto direito

subjetivo, real ou obrigacional, que é útil à análise trazida neste texto. Ele vê a posse

de maneira plural e dimensionadas de três maneiras: a) Proprietário é possuidor do

bem, aqui incidido a visão tacanha do art. 1.196 do Código Civil; b) A posse fruto de

um contrato, como a locação, comodato, promessa de compra e venda, sendo o

contrato o elemento jurídico determinante da relação, pois é ele quem atribui a posse

ao locatário, comodatário e promitente comprador, e por fim; c) A posse que emana

de uma situação fática e existencial, apossamento e ocupação da coisa. Neste ultimo

modelo fático é que se encontra a função social da posse e é a partir de situações

deste porte que surgem os conflitos fundiários urbanos (FARIAS e ROSENVALD,

2008, p. 36/37).

Uma segunda questão que se põe e que também exige uma

observação pelos aplicadores do Direito é a dimensão sociológica da posse. É

preciso observá-la como um valor jurídico superior à propriedade. A propriedade

enquanto figura abstrata, formal – poder de direito – se contrasta com a posse –

poder de fato – que é algo muito mais concreto, decorrente da necessidade de ter

uma moradia ou uma terra para nela trabalhar e dela retirar o sustento.

Isso significa que a propriedade se estabelece através de uma relação

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23

jurídica formal, através da formalização de uma escritura, de um contrato de compra

e venda, etc. enquanto que a posse surge da necessidade de morar, de produzir, de

dar utilidade econômica a determinada coisa. Por isso mesmo, ela deve ser

observada como um bem jurídico de maior valor, que visa atender a necessidades

sociais e a direitos humanos básicos, e, por conseguinte, dela deve-se exigir uma

utilização efetiva, um rígido atendimento de sua função social.

Não é dado ao direito assegurar a posse daqueles que dela não fazem

uso, que nela não produzem e nem retiram frutos econômicos, em detrimento de

famílias que carecem de habitação e que, naquela posse, poderão atender a amplas

finalidades sociais. Assim, é preciso observar a função social da posse, para que se

evite o abuso de direito previsto no artigo 187 do Código Civil.

Neste sentido:

“o inc. XXIII do art. 5 da CF na verdade dá à posse nova configuração. A posse não mais se limita à inócua e socialmente irrelevante colocação de má cerca em um solo urbano ou rural; é posse juridicamente relevante aquela que se caracteriza pelo exercício fático de atividade socialmente relevante. Muito embora atos como o de cercar caracterizem atos possessórios, tais atos, quando em confronto com os de quem deu à propriedade efetiva destinação social, são insuficientes para caracterizar posse juridicamente tutelada, ou melhor, em tal hipótese, a posse socialmente irrelevante não se juridiciza, eis inincidência do art. 5° XXIII da CF” (TARS 4ª Câm. Civ. Mandado de Segurança N° 195050976, JULG. 29.06.1995. Rel. p/ acórdão juiz Moacir Haeser. Ementa do voto vencido juiz Márcio Puggina)

Admitida a necessidade de observar a função social da posse, o seu

parâmetro, nas palavras do professor e advogado popular Nilson Marques, é o

trabalho e a legitimidade da ocupação. A legitimação da posse deve ser dada pela

necessidade de uso, gozo e fruição de determinada coisa, uma vez que:

“Comer, vestir-se, recrear não podem ser privilégios de cinco por cento de uma população, porque isto é injusto. Não pode ser injusta a posse que se baseia nessa necessidade elementar. Ou a ponte ou viaduto devem ser a morada de um pobre?” (MARQUES, 1988, p. 20)

Visto por esta forma, a posse suscitada pelos proprietários de imóveis

abandonados, ou seja, sem cumprimento da sua função social, não deve ser

superior à posse exercida pelas famílias que os ocupam, quando destinam os

imóveis à moradia e ao trabalho, afirmando tal posse ser necessária, legítima e,

portanto, legal, visto que atende à sua função social.

Não há que se falar de violência, clandestinidade ou precariedade da

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24

posse dos ocupantes, de forma a não autorizar a sua aquisição, nos termos do art.

1.208 do Código Civil. Em geral, as ocupações urbanas são feitas em terrenos ou

imóveis vazios, abandonados pelos seus proprietários, à espera da valorização

especulativa da terra, o que claramente configura um ato ilícito. Não há violência na

ocupação, quando se penetra em imóvel abandonado, pois não há contra quem a

eventual violência se realizar. Deve se ressaltar que a violência se interpreta

restritivamente, não configurando-a em relação a cercas e cadeados. Não se pode

falar em clandestinidade, pois clandestino é o que se adquire às ocultas. A posse dos

ocupantes, em geral, é pública e contínua, sendo conhecida de todos os moradores

ao redor da região do imóvel ocupado e muitas vezes publicizada pela mídia. Logo,

realizada a ocupação, estamos diante do plena situação de posse dos ocupantes,

sendo esta justa e de boa-fé, diga-se, pois não há qualquer dos vícios apontados

pelos arts. 1.200 e 1.201 do CC.

A existência dos conflitos fundiários, com o exercício da posse por

grupos que buscam seu mínimo existencial, faz nascer a nova categoria para a

posse: posse necessidade (além da justa/injusta; velha/nova; de boa ou má-fé). Esta

nova categoria:

“está ligada umbilicalmente à satisfação das necessidades mais elementares das pessoas, cujo exercício se impõem, independentemente dos juízos de valor que sobre ela possam ser feitos, desafiando padrões, modelos, rubricas e conceitos jurídicos, compreensíveis do objeto, do sujeito do direito, a eficácia jurídica erga omnes de um título de propriedade vazio, opõe-se uma eficácia fática de uma posse não-formalmente titulada, mas cheia, e cheia de um direito elementarmente ligado à vida, como o de comer e o de morar.” (ALFONSIN apud TORRES, 2007, p. 384).

Seguindo-se o ensinamento de Gustavo Tepedino (apud TORRES,

2007, p. 50), tem-se que a proteção da posse, que é:

“a expressão da atividade privada, exercida independentemente e em face do domínio alheio, justifica-se pela função social da livre iniciativa de seu titular, de acordo com interesses de que é portador – habitação, trabalho, educação de seus filhos, formação da família- que deverão estar comprometidos indissociavelmente com a tutela da dignidade da pessoa humana.”

Conclui-se, portanto, pela existência da função social da posse,

devendo esta ser aferida quando do confronto das posses em conflito fundiário

urbano.

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2.4. O Direito à Cidade, à Moradia e as recentes legislações urbanísticas

acerca dos conflitos coletivos urbanos.

O inchaço urbano que ocorreu no Brasil e os mecanismos excludentes

que agem no meio urbano, como demonstrados acima, fizeram surgir uma série de

problemas que foram rotulados como “a questão urbana”. Problemas ambientais, de

trânsito, planejamento urbano, e em especial, habitacional, tornaram-se pontos

nevrálgicos e foram bandeiras de luta para diversos movimentos sociais, populares

em especial. A necessidade óbvia e a pressão popular, respaldada pelo apoio de

intelectuais ligados às ares de conhecimento do urbano (arquitetos, engenheiro,

urbanistas, geógrafos, juristas, entre outros), forçou a edição de várias leis que

tratam a cidade como um todo e que garantem o urbano, de forma digna, para os

seus habitantes.

Este processo ficou conhecido como a luta pela Reforma Urbana, e foi

iniciado na década de 1960, mas desestruturado com o golpe militar de 1964.

Apenas no início da década de 1980 ele foi retomado com muita força, obteve um

papel de destaque na Constituinte e continua até hoje, reforçado pela grande

quantidade dos nascentes Movimentos Sem Teto nas maiores metrópoles e mesmo

em cidades do interior do país. Estes grupos de pressão têm como bandeiras

principais o direito à cidade e à moradia.

O direito à cidade foi definido pelo Estatuto da Cidade, em seu art. 2°, I

como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura

urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as

presentes e futuras gerações.

O direito à moradia, por sua vez, integra o direito à subsistência, que é

expressão mínima do direito à vida. Mas, antes do direito de morar, vem o direito de

simplesmente estar: ninguém subsiste a não ser em algum lugar. O direito de

deslocar-se (art. 5º, LXVIII, da Constituição Brasileira) e o direito de ter casa – asilo

inviolável do indivíduo (art. 5º, XI), resguardado da sua intimidade (art. 5º, X) –

decorrem do direito de estar: o de ocupar um espaço, indissociável da existência

física. (CUNHA, 2000, p. 268/269)

O primeiro devedor da moradia é o Estado porque: a) compete-lhe

implantar adequado ordenamento do solo, da habitação e de recursos para

habitação; b) porque é seu fim precípuo a organização da sociedade, segundo o

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26

interesse geral; c) porque possui terrenos e recursos, ou dispõe de meios para

mobilizá-los; d) porque é quem pode indenizar o particular nos casos em que, para

satisfazer aquele direito, o sacrifício individual do particular vá além do razoável

(CUNHA, 2000, p. 273).

A moradia é um direito humano fundamental. Não foi originalmente

previsto no caput do artigo 6o da Constituição, mas a pressão social garantiu a sua

inclusão no texto, a partir das modificações trazidas pela Emenda Constitucional nº

26 de 2000. Além disto, na previsão do poder de compra do salário mínimo, está

determinado que o mesmo deve abranger a moradia (art. 7°, IV, mas como vimos

acima, não é cumprido). Entretanto, a sua constitucionalização não se limita a este

artigo. A CF, em seu art. 5º, §2º, consagra que os direitos e garantias nela expressos

"não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Portanto, a Carta Magna consubstancia no rol dos direitos fundamentais, aqueles

enunciados nos tratados internacionais, incluindo os direitos humanos.

O direito humano fundamental à habitação digna consta de diversos

tratados assinados e ratificados pelo governo brasileiro como: a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV, item 1); o Pacto Internacional

de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais de 1966, Artigo 11(1)7; a Convenção

Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de

1965, Artigo 5(e)(iii); a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial de 1978, Artigo

9(2); a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a

Mulher de 1979, Artigo 14(2)(h); Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989,

Artigo 27(3); a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976,

Seção III(8) e capítulo II(A.3); a Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

de 1992, capítulo 7(6) e a Agenda Habitat de 1996 (OSÓRIO, 2009).

De acordo com o entendimento do Comitê dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais da ONU, o direito à moradia deve estar vinculado integralmente a

outros direitos humanos, entendido, assim, como direito à moradia adequada, e não

simplesmente como um teto sobre a cabeça das pessoas, numa interpretação

estreita ou restritiva; tampouco a habitação pode ser considerada como um mero

produto. As Nações Unidas criaram a UN-HABITAT em 1978, espécie de agência

com o objetivo de auxiliar no processo de urbanização através de programas de

7 O Brasil ratificou também o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em 1992.

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assentamentos humanos, que tem por base várias declarações da organização,

como a Declaração de Vancouver para Assentamentos Humanos, a Agenda do

Habitat, a Declaração de Istambul para Assentamentos Humanos, a Declaração das

Cidades e Outros Assentamentos Humanos no Novo Milênio e a Resolução 56/206

da ONU. Em todas elas está presente a preocupação com os despejos forçados da

população mais pobre, sendo o Brasil signatário de todas elas, adentrando no

sistema constitucional do país, por força do citado art. 5°, §2º da CF.

Além disto, como já dito, a questão urbana ganhou um capítulo próprio

na Constituição, a partir da pressão feita pelos grupos acima referidos. O Capítulo da

Política Urbana, inserto no Título da Ordem Econômica e Financeira traz vários

elementos que condicionam a aplicação do direito à cidade e à moradia, bem como

impõem obrigações a serem respeitadas pelos diplomas processuais.

No artigo 182 da CF é prevista a competência do Poder Público

Municipal para executar a política de desenvolvimento urbano, tendo por base

legislação geral federal, a fim de ordenar o pleno desenvolvimento das funções

sociais das cidades e garantir o bem-estar de seus habitantes. O artigo ainda traz,

em seus parágrafos, a obrigatoriedade do plano diretor, como o instrumento básico

da política de desenvolvimento urbano de expansão urbana, sendo que a

propriedade urbana cumpre a função social quando está de acordo com as

definições do plano diretor. Traz ainda a obrigação do aproveitamento pleno do solo

urbano e a cominação da desapropriação-sanção, caso não se cumpra os requisitos.

Logo, é o plano diretor local quem definia os casos em que a propriedade urbana

esteja ou não cumprindo sua função social.

O Capítulo ainda tem o artigo 183, que dispõe sobre o usucapião

constitucional para fins de moradia, dando realce e constitucionalidade à função

social da posse, o que serve como referência para a afirmação do novo contorno e

importância dada a posse pela Carta Magna.

A partir destes comandos constitucionais é preciso que, na

interpretação das normas processuais, os operadores do direito estejam atentos à

garantia do direito à moradia, bem como devem observar o cumprimento da função

social da propriedade urbana no caso concreto, tomando os planos diretores da

cidade como marco da análise.

Vale ressaltar ainda que o art. 23 da CF estabelece como competência

comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promoverem

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programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de

saneamento básico (inc. IX). O conflito fundiário, como visto, se dá justamente pela

falta de provisão habitacional para um segmento da população. Por outro lado, a CF

obriga os três entes justamente a satisfazerem tal necessidade. Logo, o conflito

existe pelo descumprimento da Constituição por parte do Estado. Fica, assim,

caracterizada a relação entre os conflitos fundiários e os três entes de governo, em

especial o Município (art. 182, caput), com o dever de intervirem nos conflitos

fundiários que versam justamente sobre a posse da terra para fins de moradia, não

significando isto uma atitude de “generosidade” ou de “favor”. É obrigação

constitucional.

Para regulamentar o Capítulo da Política Urbana da CF e definir, em

termos gerais, a política urbana no país, foi editada a Lei Federal 10.257, em 10 de

julho de 2001, o Estatuto da Cidade. O objetivo desta lei é estabelecer normas de

ordem pública e interesse social para regular o uso da propriedade urbana em prol

do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio

ambiental. Desde logo se vê que o Estatuto da Cidade pretende condicionar o uso da

propriedade urbana em favor dos interesses comuns.

Com relação à política urbana – art. 2º –, o Estatuto traça ambicioso

objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da

propriedade urbana, trazendo diretrizes relevantes para o estudo aqui realizado, a

exemplo da garantia do direito à cidade e os seus sucedâneos a todos os habitantes

da cidade e para as próximas gerações (inc. I), a cooperação entre governo,

iniciativa privada e sociedade civil no processo de urbanização, atendendo o

interesse social (inc. III), correção de distorções do crescimento urbano (inc; IV),

controle do uso do solo a fim de evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos

e a retenção especulativa da terra (inc. V, “a” e “e”) entre outros. Ainda no art. 2º,

está estipulada a diretriz da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da

urbanização (inc. IX) e a regularização fundiária e urbanística das áreas ocupadas

pela população de baixa renda (inc. XIV). Como se verá adiante, estas diretrizes não

são apenas exortações, sem conteúdo vinculante para o Estado. Ao contrário, elas

são base da política urbana e vinculam a ação do Executivo dos três níveis, a

interpretação dos conflitos urbanos por parte do Judiciário e a elaboração de novas

legislações pelo Legislativo, tendo em vista que o Estatuto visa regulamentar norma

constitucional.

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O Estatuto da Cidade, em seu art. 3º, traz a competência da União

relativa à política urbana, como legislar sobre normas gerais de direito urbanístico

(inc. I), promoção de programas habitacionais e melhoria das condições de

habitabilidade e saneamento básico (inc. III) e institui diretrizes para o

desenvolvimento urbano, inclusive habitação (inc. IV). Tais normas são importantes,

pois os conflitos fundiários urbanos envolvem população de baixa renda que buscam

justamente o seu direito à cidade e à moradia, por meio das ocupações. Como

promover a política urbana mais geral e a construção de unidades habitacionais

também é papel da União, pode-se dizer que existe interesse Federal nestes

conflitos ou, ao menos, que a União tem obrigação de intervir neles a fim de se

buscar solução negociada para o conflito.

A Lei 10.257/2001 ainda traz uma série de instrumentos da política

urbana (art. 4º) que podem ser utilizados para a consecução dos objetivos legais.

Muitos destes instrumentos podem ser manuseados pelos três entes estatais, em

especial pelos municípios, para auxiliar na resolução dos conflitos fundiários entre os

ocupantes e o suposto proprietário dessa área. Dentre os instrumentos, destaca-se a

desapropriação, a instituição de zonas especiais de interesse social, concessão de

direito real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia, usucapião

especial de imóvel urbano, operações urbanas consorciadas, regularização fundiária

e assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos menos

favorecidos (inc. V, alíneas a, f, g, h, j, p, q, r). Aqui estão instrumentos concretos que

pode o Executivo utilizar – ou ser compelido pelo Judiciário a utilizar, tendo em vista

o poder-dever na gestão da política urbana e a necessidade de se preservar direitos

fundamentais envolvidos nos litígios urbanos – para solucionar conflitos fundiários

coletivos.

O papel político-jurídico e as regras gerais de elaboração e conteúdo

do Plano Diretor estão discriminados no Estatuto da Cidade, entre os art. 39 e 42 da

lei. Deve-se ressaltar que:

“art. 39: a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências de ordenação da cidade, expressa no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”

Um dos papeis fundamentais do Plano Diretor é justamente o de

regular a propriedade urbana para que ela sirva à comunidade. Neste artigo, estão

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estampadas as preocupações sociais descrita nos tópicos anteriores, relativas à

irreprodutibilidade da terra e da garantida do direito à cidade para todos. Vê-se que

uma propriedade vazia não condiz com o prescrito neste artigo, em especial em sua

parte final.

Sem dúvidas, o Estatuto da Cidade é a principal legislação urbanística

no direito brasileiro. Existem legislações que tratam o ambiente urbano de forma

extremamente técnicas, a exemplo da Lei 4.591/648, que dispõe sobre os

condomínios em edificações e as incorporações imobiliárias, a Lei 6.766/79, que

trata do parcelamento do solo, entre outras, mas que não trazem a lógica da garantia

do direito à cidade9. Entretanto, outras legislações federais podem ser utilizadas

como parâmetro no tratamento processual dos conflitos fundiários urbanos.

A criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social -

SNHIS, pela Lei 11.124/2005, é um marco na responsabilização do Estado por

prover a moradia da população de baixa renda. Significa a regulamentação do citado

art. 23, IX da CF, pois os Estado, o Distrito Federal e os Municípios podem ingressar

no Sistema, desde que preencham alguns requisitos. Para fins deste trabalho, dentre

os objetivos da lei, os que ganham maior relevo são: a viabilização para a população

de menor renda do acesso à terra urbanizada e à habitação digna e sustentável, e a

implementação de políticas e programas de investimentos e subsídios, promovendo

e viabilizando o acesso à habitação voltada à população de menor renda (art. 2°, I e

II).

A Lei prevê ainda os seguintes princípios para o SNHIS: moradia digna

como direito e vetor de inclusão social e a função social da propriedade urbana a fim

de se coibir a especulação imobiliária e se permitir o acesso à terra urbana e ao

pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade (art. 4º, I, b e

d), bem como a diretriz de priorizar a população de menor renda para planos,

programas e projetos habitacionais no âmbito federal, estadual, do Distrito Federal e

municipal (art. 4º, II, a)

Por fim, a Lei do SNHIS cria o Fundo Nacional de Habitação de

Interesse Social – FNHIS, o que é seguido por Estados e Municípios que se

integrarem ao Sistema, cada um com seu Fundo de Habitação. O FNHIS está

8 Discute-se se esta Lei foi ou não revogada, tendo em vista que o Código Civil, nos artigos 1.331 a 1.358 dispõe sobre a matéria. 9 Já se encontra na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei - PL 3.057/2000 e 20/2007 para alterar a lei do parcelamento do solo, e adequá-la aos novos ventos democráticos do direito urbanístico, tendo sido o PL aprovado na Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara.

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vinculado aquisição, construção, conclusão, melhoria, reforma, locação social e

arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e rurais, produção de

lotes urbanizados para fins habitacionais e urbanização, produção de equipamentos

comunitários, regularização fundiária e urbanística de áreas caracterizadas de

interesse social (art. 11, I, II e III). Tem-se aí a fonte de recursos onde o Judiciário

pode obrigar o Executivo a cumprir sua competência constitucional (art. 23, IX, CF).

Com certeza, não será por falta de fundos que o direito à cidade e à moradia será

negado à população pobre e que é parte em conflitos fundiários.

Como já afirmado, sendo os litígios pela terra urbana ocasionados

justamente pela ausência de cumprimento de seu dever, não pode o Estado

argumentar ausência de legislação ou regulamentação infra-constitucional tratando

da obrigação de prover unidades habitacionais para a população de baixa renda. Os

comandos da Lei 11.124/2005 tornam explícitos este dever, jogando ainda mais toda

e qualquer responsabilidade pelos conflitos urbanos para as mãos do Estado.

Os procedimentos administrativos e judiciais para a regularização

fundiária em imóveis da União foi mais bem definidos pela Lei 11.481/2007. Ela

altera uma série de outras legislações federais com o objetivo de possibilitar e

facilitar o acesso dos imóveis não utilizados pela administração e que não sejam de

interesse da defesa nacional e da proteção do meio ambiente, para fins de habitação

de interesse social e regularização fundiária, privilegiando a população com renda

inferior a cinco salários mínimos. É a busca da efetivação do direito humano à

moradia nos imóveis públicos federais.

Em termos processuais, esta lei permite a alienação de imóveis do

Fundo do Regime Geral de Previdência Social desnecessários ou não vinculados às

atividades operacionais, com a suspensão de processos de reintegração de posse

em imóveis ocupados quando houver anuência do ente competente na alienação

(arts. 14, 15 e 20). Esta norma tem sua origem na política prevista no próprio SNHIS

que prioriza os imóveis vazios públicos para a produção de unidades habitacionais

(art. 4º, II, c da Lei 11.124/2005). É possível interpretar este comando de forma

extensiva, a partir da responsabilização do Estado prevista pela CF, Estatuto da

Cidade e na Lei do SNHIS, o que possibilitaria o dever da administração pública

suspender as ações de reintegração de posse em áreas da União, quando houver

interesse da própria União ou de outros entes estatais para realizar unidades

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habitacionais10.

A Lei 11.977, de 07 de julho de 2009, que criou o Programa Minha

Casa, Minha Vida, e que tratou também da regularização fundiária em áreas

urbanas, é outro instrumento jurídico que traz importantes legislações urbanística.

Por um lado, foram aportados mais de 2,5 bilhões de reais para subvencionar a

moradia de quem tem menor renda (art. 4º), tendo o Judiciário mais segurança para

exigir do Executivo a indenização pela desapropriação ao proprietário do imóvel

onde ocorre o conflito fundiário.

Entretanto, a lei traz importantes normas para garantia do direito à

moradia e o direito à cidade, com novos instrumentos jurídicos que devem ser

valorizados pelo Judiciário. A regularização fundiária é definida como um conjunto de

medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de

assentamentos urbanos e a titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito

social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade

urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 46).

A norma elenca princípios norteadores da regularização fundiária tais

como ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com

prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado

de habitabilidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social

e ambiental; a articulação com as políticas setoriais de habitação, de meio ambiente,

de saneamento básico e de mobilidade urbana, nos diferentes níveis de governo e

com as iniciativas públicas e privadas, voltadas à integração social e à geração de

emprego e renda; e o estímulo à resolução extrajudicial de conflitos (art. 48, I, II e

IV). Vê-se que a busca pela resolução extrajudicial, com a permanência dos

ocupantes na área já é um comando legal obrigatório em todo país, vinculando o

próprio Judiciário.

A lei traz ainda dois novos instrumentos jurídicos, a demarcação

urbanística, que é um procedimento administrativo para demarcar imóvel de domínio

privado, definindo seus limites, área, localização e confinantes, a fim de identificar

seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses (art. 47,

III), e a legitimação da posse, que significa o ato do Poder Público destinado a

10 O autor é advogado do Movimento Sem Teto da Bahia e vivencia uma situação como esta. O Movimento ocupou em 2007 um terreno da extinta Rede Ferroviária Federal e sofreu ação de reintegração de posse por parte da União. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Governo do Estado demonstrou interesse no imóvel e o processo está suspenso, a pedido da Gerência do Patrimônio da União, até que sejam finalizadas as tratativas entre a União e o Governo do Estado.

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conferir título de reconhecimento de posse de imóvel objeto de demarcação

urbanística, com identificação dos ocupantes e do tempo e natureza da posse (art.

47, IV). Esta legitimação da posse pode ser registrada em cartório, com título de

legitimação de posse concedido aos ocupantes pelo Poder Público (art. 58). Uma

vez registrada, constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de

moradia (art. 59) e após cinco anos da averbação, pode ser requerido ao oficial de

registro de imóveis a conversão direta em propriedade (art. 60). Criou-se, então,

instituto jurídico que valoriza a posse urbana desde seu surgimento, convergindo

para o usucapião de forma administrativa, respeitando os critérios fixados pelo art.

183 da Constituição. É um novo capítulo para o fortalecimento e legitimação da

posse urbana em nosso país, que precisa ser acompanhado pelo Judiciário.

Em termos federais, ainda temos a Medida Provisória 2.220/2001, que

regulamentou a concessão especial de uso para fins de moradia, que aplica norma

similar ao art. 183 da CF, mas para imóveis públicos. Seu objetivo é regulamentar o

direito subjetivo à concessão para todos aqueles que tinha posse de área pública até

31 de junho de 2001, de acordo com os critérios trazidos na MP e que são similares

aos constitucionais, valorizando-se também posse da população de baixa renda em

áreas públicas.

Ainda em nível federal, é necessário ressaltar a existência de um grupo

de trabalho de conflitos fundiários urbanos dentro do Conselho das Cidades,

vinculado ao Ministério das Cidades. Este grupo realizou o Seminário Nacional de

Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, entre os dias 06 e 08 de

agosto de 2007, que serviu de base para a proposta preliminar de Política Nacional

de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, ainda não encaminhada

para o Legislativo. Esta proposta conceitua o conflito fundiário urbano, em seu art. 1º,

§ 2º, como

“a disputa coletiva pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como o impacto por empreendimentos de grande porte envolvendo famílias de baixa renda que necessitem da proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade

O texto se baseia na idéia de que “a garantia do direito humano à

moradia adequada é componente fundamental para o cumprimento da função social

da propriedade urbana e da cidade, bem como para o direito à cidade” (art. 1ª, § 1º).

A Proposta traz uma série de procedimentos de cunho processuais, que devem ser

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inseridas no trato do conflito fundiário, a exemplo da intervenção do Ministério

Público, acionamento da Defensoria Pública para proteção do direito à moradia e

acesso à terra, a comprovação da regularidade jurídica e tributária do imóvel e a

instituição da vistoria/inspeção judicial como procedimento obrigatório, entre outros

que serão melhor analisados no adiante.

Por fim, a Portaria nº 587, de 01 de dezembro de 2008 do Ministério

das Cidades, estabelece o procedimento para tratar dos conflitos fundiários urbanos

que forem apresentados ao Ministério. A principal atuação do Ministério é no sentido

de articular dispositivos institucionais e políticas públicas para a promoção da

solução pacífica dos litígios pela posse da terra urbana. Vê-se que o Governo

Federal já reconheceu seu papel como mediador dos conflitos fundiário, criando,

inclusive, grupo de trabalho e procedimento interno para a resolução dos mesmos.

Mas não são apenas legislações federais que cada vez mais

incorporam a prevalência dos direitos humanos, entre eles a moradia, sobre os

direitos patrimoniais clássicos. Existem leis Estaduais e Municipais11 que seguem o

mesmo caminho, como veremos abaixo.

A Lei Estadual da Bahia nº 8.538, de 20 de dezembro de 2005, em seu

art. 3°, cria a Secretaria de Desenvolvimento Urbano – SEDUR, que tem por

finalidade formular e executar a política estadual de desenvolvimento urbano, de

habitação, de saneamento básico e de assistência técnica aos municípios, criando

também a Superintendência de Desenvolvimento Urbano e Habitação, com o

objetivo de coordenar, promover, elaborar estudos, programas e projetos, visando à

formulação, à execução e ao monitoramento da política estadual de habitação, assim

como fomentar o aperfeiçoamento da infra-estrutura urbana do Estado, com

observância às políticas nacionais para os setores de habitação e desenvolvimento

urbano. Portanto, o Estado da Bahia possui, legalmente, órgãos próprios para tratar

da questão da moradia e do desenvolvimento urbano.

A Lei baiana nº 11.041 de 07 de maio de 2008 institui a Política e o

Sistema Estadual de Habitação de Interesse Social no Estado - PHEIS12, e tem

11 Neste caso, como já afirmado na apresentação, por ter a atuação jurídica em Salvador, o autor se limita à análise de legislações do Estado da Bahia e do Município de Salvador, sabendo-se que, desta forma, localiza a validade dos argumentos jurídicos aqui levantados apenas para esta cidade. 12 Esta lei, em seu art. 2º define o que significa para o Estado da Bahia o que seria a moradia digna e a regularização fundiária: IV - Moradia Digna: aquela que ofereça condições de salubridade, segurança e conforto aos seus habitantes, acesso aos serviços básicos, e que esteja livre de qualquer discriminação no que se refere à habitação ou à garantia legal da posse;

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objetivos relevantes para o estudo aqui desenvolvido. A lei pretende assegurar o

respeito e a proteção do direito à moradia digna e sustentável, o acesso à terra

urbanizada e titulada para a população de baixa renda urbana e rural e para as

populações tradicionais (art.3º, I), bem como implementar políticas e programas de

investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à moradia voltada à

população de baixa renda urbana e rural e populações tradicionais (art.3º, III).

Além disto, no desenvolvimento da PEHIS, deverão ser observados

princípios como a garantia da moradia digna como direito fundamental e vetor de

inclusão social (art.4º, II), a função socioambiental da propriedade urbana e rural (art.

4º, IV) e a justiça social, em especial nas situações de conflitos socioambientais (art

4º, V).

A Lei ainda traz diretrizes importantes a serem seguidas na

estruturação, organização e atuação da PHEIS, tais como a implementação de

planos, programas e projetos habitacionais para a população de baixa renda

articulados nos âmbitos federal, estadual, municipal e dos territórios de identidade

(art. 5º, I), a implantação de instrumentos de acesso à terra urbana e rural

necessários aos programas habitacionais de acordo com o pleno desenvolvimento

das funções sociais da propriedade (art. 5º, IV), incentivo à implementação dos

institutos jurídicos que regulamentam o acesso à moradia e garantam a segurança

da posse (art. 5º, VII).

Entretanto, a diretriz que interfere mais imediatamente sobre os

conflitos fundiários é a que prevê a adoção de institutos jurídicos e procedimentos

voltados para a prevenção, mediação e conciliação nas situações de conflitos

fundiários (art. 5º, XV).

A citada Lei Estadual ainda prevê eixos estratégicos como a integração

urbana de assentamentos precários, mediante ações de urbanização e regularização

fundiária, bem como a promoção de melhorias habitacionais nas zonas urbana e

rural (art. 6º, I) e a provisão ou produção de habitações, visando a reduzir o déficit

habitacional no Estado da Bahia, assim como a atender a demanda habitacional

derivada do crescimento populacional (art.6, II). Com esta Lei, o Estado da Bahia

regulamenta a sua obrigação constitucional, prevista no art. 23, IX.

V - Regularização Fundiária: intervenção pública que envolve aspectos jurídico, urbanístico, físico e social, promovida em colaboração pelos três entes federativos com a efetiva participação da sociedade civil, que busca o reconhecimento de direitos e situações consolidadas das populações de baixa renda, com objetivo de promover a segurança da posse e a integração sócio-espacial, articulando-se com as políticas públicas de desenvolvimento urbano.

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Ainda há que se ressaltar que, no artigo 20 da mesma Lei Estadual,

está previsto que os recursos do Fundo Estadual de Habitação de Interesse Social –

FEHIS serão aplicados em ações vinculadas aos programas de habitação de

interesse social que contemplem a organização e manutenção de sistemas de

informações sobre déficit, condições habitacionais, irregularidades urbanísticas e

fundiárias, e de conflitos e violações ao direito à moradia (inc. X) e o atendimento

habitacional para grupos sociais que necessitem ser removidos de suas por decisões

administrativas ou judiciais em áreas urbana ou rural contendo conflitos de direito de

posse e de moradia (inc. XII, c).

Como precursor deste instrumento, foi criado o Grupo de Trabalho

Multidisciplinar de Mediação e Prevenção de Conflitos Fundiários Urbanos no âmbito

da SEDUR, por meio da Portaria n° 55 de 01 de agosto de 2007. Este grupo tem

como objetivo estimular a composição entre órgãos governamentais, proprietários,

famílias de baixa renda para se chegar à solução pacífica dos conflitos, bem como

acompanhar os casos e sugerir medidas para o cumprimento das decisões judiciais,

com respeito aos direitos humanos e sociais que atua na prevenção e mediação de

conflitos (art. 2°, I, II e III). A intervenção deste grupo em conflitos na Bahia reduziu

bastante a ocorrência de despejos forçados e possibilitou a ocorrência de acordos

entre os ocupantes e os proprietários, a fim de garantir o direito à moradia.13

A apresentação do extenso rol de legislações urbanísticas, mesmo que

possa gerar um cansativo trabalho de leitura, se mostra importante para ambientar o

leitor com uma temática que, mesmo tendo o mesmo nível hierárquico e sendo mais

recente que o Código Civil e o CPC, é ignorada por boa parte dos operadores do

direito. As normas federais e estaduais trazem, em geral, princípios, que tem força

normativa e obrigam, mas, como já dito, o regramento urbanístico só se concretiza

ao nível municipal (art. 182, caput, CF). Assim, para detalhamento do estudo ser

levado a cabo, é preciso analisar a legislação municipal de Salvador, como a Lei

Orgânica da cidade e, em especial, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano -

PDDU e concretizar os comandos normativos relacionados acima.

A Lei Orgânica de Salvador prescreve que ao município, em comum

com o Estado e a União, promover programas de construção e melhoria de unidades

e o saneamento básico, bem como combater as causas da pobreza e os fatores de 13 Para um relato desta experiência na Bahia, ver o artigo: Por uma nova práxis de proteção do Direito Humano à moradia: a experiência do Estado da Bahia na mediação de conflitos fundiários urbanos, escrito por Bruno Barbosa Heim, disponível em: http://www.nepe.ufsc.br/controle/artigos/artigo57.pdf

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marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (art. 8°,

VIII e IX).

O PDDU de Salvador, Lei Municipal 7.400/2008, foi aprovado em

sessão extremamente conturbada na Câmara, com 36 horas de duração, e sob forte

acusação de não ter contemplado a participação popular, ao tempo que teria

beneficiado principalmente o mercado imobiliário. Existe ação na Justiça Federal

contestando a validade do plano, sendo que 48 de seus artigos tiveram sua vigência

suspensa por decisão liminar.

Não obstante, o Plano traz, em seu art. 7º, os princípios que norteiam a

política urbana de Salvador, qual seja a função social da cidade, a função social da

propriedade imobiliária urbana, o direito à cidade sustentável e a eqüidade social

(inc. I a IV) e define o que é função social na cidade. Esta corresponde ao direito à

cidade para todos, o que compreende os direitos à terra urbanizada, moradia,

saneamento básico, segurança física e psicossocial, infra-estrutura e serviços

públicos, mobilidade urbana, ao acesso universal aos espaços e equipamentos

públicos e de uso público, educação, ao trabalho, cultura e lazer, ao exercício da

religiosidade plena e produção econômica (art. 7º, §1º). Já a cidade sustentável seria

a que propicia o desenvolvimento socialmente justo, ambientalmente equilibrado e

economicamente viável, visando a garantir qualidade de vida para as gerações

presentes e futuras. (art. 7º, §3º)

Entretanto, o elemento normativo mais importante para o presente

estudo encontra-se no §2º do art. 7º do PDDU de Salvador, quando define os usos

que a propriedade imobiliária urbana deve ter para que seja considerada cumpridora

de sua função social, em atendimento às funções sociais da cidade e respeitadas as

exigências fundamentais do ordenamento territorial estabelecidas no Plano Diretor.

São eles: I - habitação, principalmente Habitação de Interesse Social, HIS; II -

atividades econômicas geradoras de oportunidades de trabalho e renda; III - infra-

estrutura, equipamentos e serviços públicos; IV - conservação do meio ambiente e

do patrimônio cultural; V - atividades de cultos religiosos; VI – atividades do terceiro

setor.

Com esta norma, fecha-se a compreensão da função social da

propriedade urbana, pelo menos em na cidade Salvador. Manter propriedade vazia,

sem qualquer dos usos acima listados, implica em não cumprir sua função social,

arcando com o ônus de todas as sanções e perdas de garantias listadas nas

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Constituição e nas normas Federais e Estaduais apontadas. Neste caso, uma vez

ocorrendo a ocupação popular, com apossamento da área, não poderá o proprietário

descumpridor da Constituição, das Leis Federais, das Leis Estaduais, das Leis

Municipais, invocar proteção possessória. Ao revés, é a posse das famílias de baixa

renda que vem sendo valorizada pelas legislações urbanísticas, pois é uma posse

que cumpre uma função, pois promove a habitação de interesse social (art. 7, I do

PDDU-SSA), devendo o Estado, incluindo o Judiciário, buscar fórmulas que venham

a dar solução adequada ao conflito social.

Além deste artigo específico, o PDDU de Salvador traz um Título inteiro

destinado à habitação e, em especial à Habitação de Interesse Social – HIS. Nele

está prevista a moradia digna como um direito social, vetor de inclusão, e cujo

equacionamento do problema habitacional deve ser efetivado à luz das funções

sociais da cidade e da propriedade, tendo o poder público papel fundamental em

assegurar o acesso à habitação com população com renda insuficiente para adquirir

a moradia digna (art. 58, I, II e §1º).

Neste sentido, há a responsabilização do Poder Público Municipal em

viabilizar o acesso à terra urbanizada, à moradia digna e sua posse, aos serviços

públicos essenciais e aos equipamentos sociais básicos à população de menor

renda (art. 59, I), com a Política de Habitação de Interesse Social do município tendo

o papel de produzir unidades habitacionais, urbanizar áreas ocupadas precariamente

e requalificar edificações ocupadas por cortiços e moradia coletivas, realizando a

regularização fundiária destas áreas e melhorando as condições de habitabilidade

(art. 65, I, II, II, IV e V).

Deve ainda o Governo Municipal utilizar as Zonas de Especial Interesse

Social para incentivar a utilização de imóveis não utilizados e subutilizados para

programa habitacionais de interesse social (art. 79, III).

É relevante trazer à discussão o Decreto Municipal nº 17.105 de 22 de

dezembro de 2006, que regulamenta o Fundo Municipal de Habitação - FMH,

instituído pelo art. 5º da Lei Municipal n° 6.099 de 20 de fevereiro de 2002. No art. 3º,

I do Decreto, fica estabelecido que o FMH tem por objetivo centralizar recursos

destinados à PHIS para contribuir com a redução do déficit habitacional e melhoria

das condições habitacionais de assentamento populacionais de baixa renda, através

do custeio da produção e comercialização de unidades habitacionais, lotes

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39

urbanizados e sua infra-estrutura básica, bem como a recuperação e melhoria das

condições de vida nos assentamentos precários.

Diante de todas estas legislações, estamos frente à plena garantia legal

e constitucional do direito humano à cidade e à moradia, com a existência de Fundos

Federal, Estadual e Municipal para custear a produção das unidades habitacionais,

incluído ai a compra e/ou desapropriação do terreno. Outros diversos instrumentos

urbanísticos que podem ser usados na solução dos conflitos fundiários também

estão disponíveis para os Executivos dos três níveis e tornam-se poder-dever, a ser

exigido no Judiciário, dada a proteção do direito à moradia e à cidade. A conclusão

que se tem é de que existe farta legislação material garantidora destes direitos e de

grandes fontes de recursos para executá-los. Falta, entretanto, conhecimento do

Judiciário para manejar este tipo de informação quando chamado a resolver os

conflitos possessórios.

Para além das legislações nos três níveis, existe uma grande

quantidade de documentos elaborados por organizações da sociedade civil, que

tratam da garantia do direito à cidade e à moradia. Tais documentos, fruto de

debates e formulações coletivas, devem ser levados em consideração caso

realmente vivamos em uma sociedade democrática e que se vale da pluralidade

argumentativa, que ouve ambos lados envolvidos, para chegarmos às definições.

Seguindo-se este procedimento, foge-se às idéias prontas – e ultrapassadas,

inclusive legalmente – de defesa cega da propriedade.

Enquadram-se neste tipo de documento a Plataforma Brasileira para

Prevenção de Despejos produzindo por “organizações da sociedade civil,

movimentos sociais, redes, organizações governamentais e não governamentais,

nacionais e internacionais”, com o fito de incentivar políticas públicas, indicativos de

interpretação judicial e mudanças legislativas para prevenirem despejos no Brasil e

garantir os direitos humanos das comunidades excluídas.

A Plataforma e dividida em um capítulo para as medidas de prevenção,

com propostas de cunho políticos-jurídicos para evitar a ocorrência de conflitos

fundiários e despejos forçados e outro capítulo sobre a proteção jurídica, processual

e administrativa contra despejos, que se aproxima mais do tema discutido neste

trabalho. Nele são apresentados fortes argumentos jurídicos, possíveis de serem

utilizados de imediato, sem qualquer necessidade de mudança legislativa, no

tratamento processual dos conflitos fundiários. A Plataforma exorta a aplicação do

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40

princípio da precaução pelo Judiciário, entendido como “a necessidade de se

prevenir situações de risco ou conflito que possam produzir danos sérios ou

irreversíveis, requerendo a implementação de medidas que possam evitar estes

danos” (2009). As propostas trazidas pela Plataforma serão detalhadas abaixo.

Existem, ainda, a “Carta de Recife por um Brasil sem Despejos”,

elaborada pelo Fórum Nacional de Reforma Urbana e pelo Fórum Estadual de

Reforma Urbana de Pernambuco, em conjunto com movimentos sociais urbanos e

rurais e a “Carta da Região Metropolitana de Salvador pela resolução de conflitos

fundiários urbanos, contra os despejos forçados e as violações do direito humano à

moradia adequada e pela democratização do acesso à terra”. Ambas reforçam a

necessidade de se buscar formas pacíficas e negociadas para os conflitos fundiários,

realçando a prevalência dos direitos humanos sobre os direitos patrimoniais e a

necessidade de cumprimento da unção social da terra e da propriedade,

entendendo-se a moradia como direito humano fundamental. Detalhes processuais

propostos por estas cartas serão também expostos no abaixo.

2.5. Conflito entre posse com função social e propriedade desfuncionalizada.

Em termos de direito material, a discussão acerca das ocupações

coletivas urbanas e o conflito social que daí nasce, se relaciona, em geral, a ação de

trabalhadores em busca de efetivação do um direito constitucional fundamental à

moradia e à cidade, através do apossamento de uma área, a qual não foi dada

qualquer função social pelo suposto proprietário. Há o conflito entre a posse com

função social e a propriedade desfuncionalizada e acerca desta tensão é que se

desenvolverá os raciocínios processuais desta obra.

A doutrina mais avançada entende a função social da propriedade

como quinto elemento constitutivo do direito de propriedade, além do direito de usar,

gozar, dispor e reaver de quem injustamente a possua. É neste combate diuturno

contra o flagelo da propriedade absoluta, que tanto ceifa a garantia de diversos

direitos humanos das populações excluídas em nosso país, que são formuladas

novas interpretações onde os direitos humanos tem mais densidade interpretativa

que os direitos das coisas. Entretanto, a visão mais conservadora sempre se apega

a vírgulas, advérbios e aparentes contradições entre princípios para manter, mesmo

que combalida, a visão absoluta do direito de propriedade (MARÉS, 2003, p. 13).

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41

Urge entender a propriedade como um direito que deve estar submisso

ao interesse público e social. O cativeiro da terra, que foi instaurado com a Lei de

Terras em 1850, após a proibição do tráfico de escravos, justamente para que o povo

negro não tivesse acesso a esta, transformando a terra em mera mercadoria, deve

ser substituído pela compreensão da essencialidade do uso da terra para a

sobrevivência humana, para a garantia de direitos humanos fundamentais, como a

alimentação, moradia, trabalho, entre outros, que não são atualmente, nem de longe,

de exercício real por todos os cidadãos.

Um pedaço de terra que não está cultivado ou construído atinge os

valores mais básicos da sociedade, devendo esta omissão ser severamente punida.

Ao revés, aquele que utiliza este mesmo pedaço para garantir a produção de bens

necessários a sua subsistência e a de outras pessoas, ou transforma o local em seu

espaço de moradia, ou ainda desenvolve uma atividade laborativa, deve ser

premiado pela ordem jurídica, tendo em vista que deu um uso social ao que estava

abandonado.

Terra privada que não está em uso não cumpre sua função social, pois

toda terra é destinada a um uso. A propriedade que não cumpre sua função é uma

espécie de coisa de ninguém, desapropriável, mas ocupável, por quem puder fazê-la

útil à sociedade (MARÉS, 2003, p. 125). “Disso decorre que se uma determinada

propriedade não cumpre a função social, perde seu título justificativo” (TEPEDINO e

SCHREIBER, 2002, p. 123).

Neste sentido, uma vez em confronto o domínio de um desidioso

proprietário urbano com a posse cumpridora da função social, não pode restar

dúvida de que é a esta última que deve ser garantida a permanência no bem, por ser

melhor para a convivência social. Neste sentido:

“o descumprimento do dever social de proprietário significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade. Nesta hipótese, as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente a de exclusão de pretensão possessória de outrem, devem ser afastadas. Como foi adequadamente salientado na doutrina alemã, norma de vinculação social da propriedade não diz respeito, tão só, ao uso do bem, mas à própria essência do domínio. (COMPARATO, apud FARIAS e ROSEVALD, 2008, p. 206)

Ou ainda:

“a propriedade dotada de função social, que não esteja a cumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ou seja, já não haverá mais

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fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular do bem que não está a cumprir sua função social.... A hipótese se um mínimo de coerência nos for exigido, há de conduzir à perda e não a essa estranha ‘desapropriação’” (GRAU apud TORRES, 2007, p. 268)

Não obstante, nota-se bastante em decisões liminares de reintegração

de posse que não estaria a cargo do Judiciário enfrentar a questão social. Este seria

o papel do Executivo. Esta atitude de “lavar as mãos”, tal qual Pilatos, é a própria

morte do Judiciário enquanto poder responsável por aplicar a lei com Justiça. Ou, no

mínimo, uma saída aparentemente neutra para, na verdade, escamotear a afeição

pela tese dogmática da propriedade absoluta. Isto porque, como visto nas inúmeras

legislações urbanísticas acima listadas, mecanismos legais, quase todos eles

posteriores ao Código Civil (inclusive no próprio Código que, em tese, é uma ode à

propriedade), colocam ferramentas e instrumentos que podem ser manuseados na

busca de uma solução negociada para o conflito pelo próprio Judiciário.

É brilhante o ensinamento de Laércio Becker, quando afirma que o

Poder Público que não realiza a Reforma Urbana e proprietários que não observam a

função social da propriedade violam diariamente o direito à moradia dos sem-terra [e

dos sem-teto] e isso não configura fato jurídico, sequer na espécie de ato ilícito

(TORRES, 2007, p. 420). Por outro lado, não faltam ações criminais contra

lideranças dos movimentos sociais e perseguição administrativa e judicial a estas

organizações e aos grupos que lhes dão apoio. Para alguns, não crime é especular

com a terra, e sim lutar para que seja posto em prática os direitos humanos

fundamentais, garantidos pela constituição, pelo direito internacional e por farta

legislação urbanística. Tal inversão, com claro viés político, não é admitida por nosso

ordenamento jurídico.

O conflito entre posse com função social versus propriedade

desfuncionalizada não pode ser resolvido apenas com base no Código Civil, mas

tendo em mente, de forma fundamental, a Constituição Federal e os tratados

internacionais, bem como a compreensão de que os direitos coletivos se sobrepõem

aos direitos individuais em nosso ordenamento. No texto constitucional, tem-se o

direito de propriedade na mesma hierarquia que o direito de moradia, a vida, ao

lazer, e ambos inferiores à dignidade da pessoa humana, que, neste caso, dá

densidade ao direito à moradia no confronto com a propriedade. É impressionante o

fetichismo do direito de propriedade no senso comum dos juristas, visto naturalmente

superior a tudo e a todos. É este direito quem o raciocínio jurídico “senso comum”

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43

busca imediatamente defender quando em confronto com qualquer outro, mesmo

não tendo respaldo da Constituição. Obviamente, estamos diante de um

condicionamento ideológico que precisa ser superado no meio jurídico.

Segundo ensinamento de Marcos Torres, a exclusão, na propriedade

desfuncionalizada, da proteção possessória, uma vez que posse não existe, e do

direito de reivindicação, pois não há injustiça na posse de quem está na área e

cumpre a função social, atende a uma série de comandos jurídicos, listados pelo

citado autor. Este entendimento vai ao encontro do princípio da proporcionalidade,

tanto em razão da adequação – meio utilizado é apropriado para os objetivos que

almeja, da necessidade – não há outra medida menos gravosa, como da restrição

bem ponderada – sendo o resultado obtido através da distribuição equânime dos

ônus sociais; é instrumento correto para consecução de um fim baseado no interesse

público – a manutenção das famílias no local ocupado; atende ao princípio da

concordância prática ou harmonização, com o juízo de ponderação que preserva e

concretiza os direitos e bens constitucionalmente protegidos, harmonizando direitos

fundamentais; possibilita a ponderação entre interesses individuais e da comunidade;

reconhece maior densidade ao princípio da dignidade da pessoa humana, utilizado

como molde para o juízo de ponderação, optando-se por aquele direito que dá maior

concretude a este princípio; reconhece a competência do Poder Judiciário para

resolver conflitos que aprecia, deixando de aplicar tutela jurisdicional à propriedade

que não atenda às exigências Constitucionais e ao fato de que toda atividade

econômica deve guardar relação com os princípios fundamentais da República,

dentre eles a dignidade da pessoa humana (2007, p. 417/418).

Em resumo:

“Quando protejo a posse com função social, estou protegendo a vida, a saúde, a segurança, enfim, a dignidade da pessoa humana, e contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e solidária; para erradicação da pobreza e eliminação da marginalização, reduzindo as desigualdades sociais, garantindo o desenvolvimento nacional. Protege-se nesta hipótese o SER e dá-se cumprimento ao mandamento constitucional da função social da propriedade (aqui englobando a posse como relação econômica e no contexto do inc. XXII do art. 5° da C.F.) e atende-se aos anseios da sociedade politicamente organizada.

Quando protejo a titularidade desfuncionalizada, estou protegendo o TER, o interesse individual em detrimento do interesse coletivo. Protege-se o egoísmo, contribui-se para a sociedade injusta e não solidária, para a manutenção da pobreza da maioria, mantém-se a marginalização e obstaculariza-se o desenvolvimento nacional. Dito de outro modo, infrinjo a um só tempo através de uma única conduta omissiva, diversos princípios constitucionais e tal atitude não pode ser reconhecida como legítima no Estado Democrático de Direito que constitui o Brasil nos termos do art. 1º da

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Constituição Federal” (TORRES, 2007, p 416).

A solução jurídica apontada para o caso de conflito entre propriedade

desfuncionalizada e para posse com função social é a negação da proteção

possessória (pois não há posse), nem reivindicatória (pois não há pose injusta) para

o proprietário, com o aguardo do prazo do usucapião para que aquela posse, já

garantida e reconhecida, torne-se propriedade plena (FARIAS e ROSENVALD, 2008,

p. 425).

No curso do texto, estudaremos mais especificamente as

conseqüências deste entendimento nas ações relacionadas aos conflitos fundiários

urbanos.

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3. O ATUAL CONTORNO DOGMÁTICO E PRÁTICO DAS AÇÕES

POSSESSÓRIAS URBANAS

Discute-se em doutrina o fundamento para a proteção possessória.

Orlando Gomes apresenta as divergências entre teorias absolutas, que não vinculam

a posse a outro direito, e relativas, que referem a proteção da posse à defesa de

outro direito ou da ordem jurídica maior (GOMES, 2004, p. 90). Este debate tende a

perder força pela vitória das teorias que concebem a tutela da posse independente

da proteção a qualquer outro direito. Segundo os Professores. Cristiano Chaves de

Farias e Nelson Rosenvald (2008, p. 109):

“A posse é um modelo jurídico autônomo à propriedade, sendo que a razão de seu acautelamento pela ordem jurídica provém primordialmente do valor dado ao uso dos bens dado através do trabalho e de seu aproveitamento econômico. O não uso de um bem representa inegavelmente um dano social.”

E mais adiante.

“A ordem jurídica acautela o possuidor como forma de preservação do seu elementar direito ao desenvolvimento dos atributos de sua personalidade, pois o uso e a fruição de bens têm em vista a satisfação das necessidades essenciais e acesso aos bens mínimos pela pessoa ou entidade familiar”.

Assim, a posse é defendida enquanto fato, sem necessariamente se

referir a algum direito subjetivo (ALVIM, 2007, p 375). A proteção possessória tem

como fundamento o fato jurídico posse, sendo esta a causa de pedir e o pedido. Se o

pedido tiver a propriedade como fundamento, estamos diante de ação petitória.

(NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 989).

As ações possessórias estão inscritas no Livro dos Procedimentos

Especiais do Código de Processo Civil, dos arts. 920 ao 933. Entretanto, para

compreender o sentido dos comandos normativos, não basta apenas a leitura direta

da norma. A lei não é uma “geração espontânea”, fruto de idéias repentinas dos

legisladores. Ela representa interesses e aspirações dos grupos sociais dominantes

ao tempo de sua criação ou que melhor se organizaram para colocar em prática

determinada visão de mundo naquele momento histórico. Além disto, a interpretação

posterior da norma fica ao sabor dos movimentos de interesses que governam as

relações em sociedade. Tal assertiva é fundamental para entender o atual Código de

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Processo Civil. Mesmo com todas suas reformas e com o advento da CF/88, a sua

origem, o berço do CPC é datado dos momentos de maior repressão do período da

ditadura militar brasileira, em 1973, absorvendo, obviamente, elementos deste

contexto. Temos, portanto, um código processual com a marca da repressão, sendo

que esta situação deve ser levada em conta quando da interpretação no momento

atual, do Estado Democrático de Direito, pelo menos no papel.

Partindo deste pressuposto, pode-se afirmar que o individualismo, o

autoritarismo e o patrimonialismo, marcas indeléveis daquele momento histórico,

foram transplantados também para os procedimentos possessórios. Daí porque,

como veremos adiante, estes não tem a mínima estruturação para abarcar conflitos

de cunho coletivo, com respeito aos direitos constitucionais e urbanísticos dos

envolvidos. Em uma fria análise das ações possessórias, percebe-se sua vocação

para resolução do conflito entre “A”, proprietário, em face de “B”, também

proprietário.

A rigor, o procedimento possessório é de rito ordinário em sua maior

parte. A especialidade desta demanda encontra-se na sumariedade do procedimento

inicial, com a aceleração da cognição nos primeiros momentos da causa, tendo seu

auge na concessão ou não da liminar inaudita alteras pars, uma vez comprovado os

requisitos do art. 927 do CPC ou, caso não comprovado, a realização de audiência

de justificação de posse, com o objetivo de o autor fazer prova dos requisitos do

citado artigo (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 991). A partir disto, segue-se o rito

ordinário.

As ações possessórias, conhecidas como interditos, são tipificadas:

Reintegração de posse, utilizada quando o possuidor foi esbulhado do imóvel,

“injustamente desapossado da coisa por terceiro”; manutenção de posse, sempre

que o possuidor tiver sua posse turbada, “qualquer ato de terceiro que embarace o

livre exercício de sua posse” e, por fim, o interdito proibitório, quando houver fundado

receio de molestação da posse, ou seja, “sempre que se queira impedir a

concretização da turbação ou do esbulho” (MARCATO, 2005, p. 152). Todos os três

interditos são freqüentemente manejados pelos proprietários nos conflitos fundiários

urbanos, daí a necessidade de estudá-los neste trabalho.

A tutela possessória possui algumas características importantes, que as

diferem de outros procedimentos. Nos termos do art. 920 do CPC, os interditos são

fungíveis entre si. Por exemplo, o ingresso de interdito proibitório, quando se teme a

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violação da posse, não obsta a análise do pleito, caso haja efetiva turbação da posse

ou mesmo seu completo esbulho. Neste caso, o provimento judicial deve ser aquele

efetivo para o momento concreto, real, em que se encontra ao tempo da decisão, e

não ao tempo do ingresso da demanda. Para tanto, não obstante, é preciso que o

autor comunique tal situação ao juízo, provando a prática efetiva da turbação ou

esbulho. Segundo Antônio Carlos Marcato, “o que importa, pois, para a concessão

da tutela adequada a que alude o art. 920 do CPC” é que “a causa de pedir seja,

genericamente, a ofensa ao direito de posse do autor, e, ainda, que este tenha

postulado a concessão da tutela possessória” (2005, p.152).

Outro elemento distintivo da demanda possessória é a cumulação de

pedidos limitada à cognição da demanda, segundo o art. 921 do CPC. Além da tutela

da posse, é lícito ao autor cumular pedido de condenação em perdas e danos,

cominação de pena para nova turbação ou esbulho, e desfazimento de construção

ou plantação feita em detrimento da posse. Outras solicitações devem ser realizadas

através de ação autônoma, que não os interditos.

Por outro lado, as possessórias são marcadas por sua natureza

dúplice. O réu, sentindo-se também ofendido em sua posse pelo autor, pode deduzir

pedido de tutela possessória contra o requerente, nos termos do art. 922 do CPC,

sendo desnecessário ingressar com reconvenção em autos apartados. Entretanto,

tais pedidos também estão limitados à margem cognitiva do art. 921. Havendo

pretensão que extrapole os limites do referido artigo, deverá o réu valer-se da

reconvenção (MARCATO, 2005, p. 154).

As ações possessórias mantêm sua especialidade, em termos de

procedimento, apenas quando intentadas no prazo de ano e dia da efetiva ocorrência

da turbação ou esbulho. Esta é considerada a ação de força nova. Ao revés, quando

intentadas após este prazo, há a presunção de passividade do autor e sedimentação

da posse do réu, devendo-se processar de acordo com as normas do procedimento

comum. Estas regras estão previstas no art. 924 do CPC. O termo a quo para a

contagem deste prazo é a data da ocupação, sendo o termo final o do ajuizamento

da lesão (ALVIM, 2007, p. 403).

O art. 925 é a marca do individualismo e patrimonialismo presente na

demanda possessória. Segundo ele:

“Art. 925. Se o réu provar, em qualquer tempo, que o autor provisoriamente mantido ou reintegrado na posse carece de idoneidade

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financeira para, no caso de decair da ação, responder por perdas e danos, o juiz assinar-lhe-á o prazo de cinco dias para requerer caução, sob pena de ser depositada a coisa litigiosa”.

A posse é vista como mero direito patrimonial em disputa entre dois

indivíduos proprietários, sendo que um deles quer aumentar seu patrimônio às

custas da posse do outro. Imagine-se que os autores da ação de reintegração ou

manutenção sejam ocupantes de baixa renda, há mais de ano e dia na área, e

sofram tentativa violenta de retomada da área pelo proprietário. Mesmo que

mantidos provisoriamente na área, os ocupantes não teriam condições de prestar a

caução e sequer terão direito à especialidade do procedimento possessório, que

significa a retomada da posse do bem de forma rápida. Esta possibilidade de retorno

à situação anterior, a sua valoração enquanto mercadoria e a possibilidade de

garantia, tendo por referência o dinheiro, são marcar dos bens patrimoniais. Mas e

quando se lida não apenas com patrimônio, e sim com direitos fundamentais? Como

realizar depósito judicial da moradia das pessoas? Como interpretar, com este

mesmo procedimento, o conflito entre “A”, proprietário desidioso contra 1.000 “B”s,

que deram uma função social ao local e estão exercendo seus direitos fundamentais,

e não meramente patrimoniais? São questões que o procedimento especial

possessório interpretado de forma estrita não consegue responder.

O foro da situação da coisa é o competente para processamento do

feito possessório, de acordo com art. 95 do CPC. Vale ressaltar que os Juizados

Especiais, por força do arts. 3º, IV e 4º da Lei 9.099/95, possuem competência para

o processamento e julgamento de demandas possessórias, desde que o bem imóvel

tenha o seu valor dentro da sua alçada de quarenta salários mínimos.

Os procedimentos da reintegração e da manutenção de posse são

regulados pelos mesmos comandos normativos. Na petição inicial da ação, além dos

requisitos previsto no art. 282, o autor deve comprovar os requisitos do art. 927 do

CPC: a sua posse (inc. I), a turbação ou o esbulho promovido pelo réu (inc. II), a data

do esbulho ou turbação (inc. III) e a continuidade na posse, de forma turbada ou a

perda da posse pelo esbulho (inc. IV).

É sobre este artigo que aparecem os maiores debates, quando se

coteja o procedimento possessório individualista com os conflitos fundiários urbanos.

Na quase totalidade dos conflitos, as famílias ocupantes adentraram em um terreno

vazio, com mato alto ou em prédio há muito tempo abandonado. Não obstante isto,

os proprietários conseguem liminares em prazo recorde, às vezes no mesmo dia em

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que é intentada a ação, utilizando-se do registro de propriedade, muitas vezes, como

única prova da posse do bem14. Ora, o próprio procedimento possessório em seu art.

923, proíbe a exceção de propriedade sobre o bem. O § 2º do art. 1.210 extinguiu de

vez a possibilidade da discussão sobre o domínio em sede de possessória, não mais

se aplicando a súmula 487 do STF15 para o juízo possessório (NERY JÚNIOR e

NERY, 2006, p. 992). Em situações como esta, não dever-se-ia expedir decisão

liminar, pois o registro de propriedade não faz prova da posse, máxime em um

conflito possessório urbano. Se o proprietário realmente tivesse posse do bem, muito

dificilmente poderia ter havido a ocupação do mesmo.

Além disto, a prova da data do fato na inicial muitas vezes é fixada, e

pior, acatada pelo Judiciário, através de boletim de ocorrência policial. Não obstante

isto, o boletim é uma prova emprestada do processo penal, mas que não passou

pelo crivo da parte contrária, o que vem a violar o direito contraditório, esculpido no

art. 5°, LV da CF.

Diz o art. 928 do CPC que, estando a inicial devidamente instruída com

as comprovações do art. 927, o juiz deferirá mandado liminar de manutenção ou

reintegração de posse, sem ouvir o autor. Caso não comprovado, deverá ser

designada audiência de justificação prévia para o requerente provar o alegado, com

citação do réu para comparecer à audiência. É a prova cabal de que se trata de um

procedimento pensado para demanda individual. Comprovada, mesmo que

superficialmente a posse, poderia ser deferida desde logo a liminar. Na realidade,

esta é toda a especialidade do procedimento possessório.

Concedida ou não a liminar, o processo segue pelo rito ordinário,

deixando de existir qualquer especialidade do procedimento. De fato, a liminar, seja

pela via direta ou pela via da audiência de justificação, é o principal elemento da

demanda possessória. Tanto que na prática forense, em conflitos fundiários urbanos,

depois de conquistada a liminar, a maioria dos proprietários desistem da ação.

3.1. A prática forense nas ações possessórias

O procedimento possessório vem sendo utilizado de diversas maneiras

14 Tal expediente é muito observado na rotina forense do autor da presente monografia, bem como pode ser vista em relatos de autores sobre as ações possessórias, a exemplo de Misael Montenegro Filho, pág 26. 15 Súmula 487 do STF: “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”.

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na prática forense. Acompanhando estudo de Valdemiro Xavier dos Santos Júnior,

com o título “Reintegração de posse e novos marcos do direito urbanístico”,

apresentaremos algumas conclusões do autor sobre nove processos que se referem

a grupos de Movimentos Sem Teto, na cidade de Salvador, assim como a prática do

autor do presente texto, que é advogado do Movimento Sem Teto da Bahia desde

2006.

O estudo de Valdemiro Xavier segue a análise formal das decisões

proferidas em demandas possessórias, com o objetivo de mostrar: o nível de

freqüência de componentes comunicativos repetitivos nas diversas decisões; a

busca de estruturas profundas, que seriam os silêncios nos discursos; e o

levantamento dos modos de argumentar dos magistrados. Já para a interpretação

das decisões, o autor utilizou a técnica do stand point epistemology, que “tenta

enxergar e descrever a forma do outro considerar a questão, tendo como parâmetro

a boa vontade de escutar o outro com atenção e simpatia” (SANTOS JÚNIOR, 2006,

p. 92) e do questionamento próprio, que implicaria em revelar o oculto e, através da

ação desconstrutiva e da síntese criativa formular sua interpretação sobre o fato”.

Segundo o estudo, os termos que mais aparecem em todas as

decisões judiciais são “invasão” (cinco) e esbulho (seis). Este último guarda relação

com a própria técnica jurídica, o que aparentemente justificaria seu uso. O primeiro,

não obstante, demonstra o preconceito judicial contra a ação dos movimentos

sociais. Não existe invasão, pois somente se invade o que está em uso. Nos casos

envolvidos, estamos diante de ocupações de terra urbana vazia (SANTOS JÚNIOR,

2006, p. 94).

Outro elemento interessante trazido pelo autor é que, dentro da análise

das estruturas profundas, o próprio movimento social sequer é considerado em oito

das nove decisões.

“As referências em relação ao ‘outro’ na relação processual é sempre do ponto de vista da invasão e do ilícito, não se preocupando em investigar ou discorrer sobre quem são os integrantes do Movimento Sem Teto... não reconhecendo quem é o outro, não se reconhece também o direito inerente ao outro, pois este é somente visto do ponto de vista do proprietário” (SANTOS JÚNIOR, 2006, p. 94).

Em relação à forma de argumentação, todas as decisões seguiram a

lógica formal, tendo como parâmetro de silogismos os dispositivos

infraconstitucionais do CPC, em seus art. 926 e 928. Desta forma, os argumentos

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constitucionais e das legislações urbanísticas passam ao largo do Judiciário.

Em matéria de prova, quatro decisões foram fundamentadas em

reportagens veiculadas pela mídia, uma através de fotografia, uma através de prova

testemunhal, e outra por prova não apontada na decisão. Duas ações não lograram

a liminar, por fragilidades nas provas. Em nenhum dos casos houve inspeção judicial

ao local, bem como seis das sete decisões liminares solicitaram o uso da força

policial para realizar a reintegração (SANTOS JÚNIOR, 2006, p. 96).

Apenas duas decisões trataram dos direitos dos não-proprietários. Uma

dispensou proteção aos menores envolvidos no conflito e a outra utilizou o

argumento levantado pelo proprietário da existência de imóveis construídos no local,

para demonstrar a urgência da liminar, como motivação para exigir a audiência de

justificação, considerando o direito da moradia dos ocupantes.

Em relação ao stand point epistemology, segundo conclusão do autor:

“a propriedade privada é um bem a ser protegido pela ordem jurídica civil (utilização excessiva do Código de Processo Civil como argumento jurídico válido). Aqueles que violam esse direito são invasores, o simples fato do esbulho por si só evidencia o ilícito, independente de quem sejam. Para estes casos, o uso da força policial é válido e a melhor maneira de uma solução e a utilização da coerção policial...” (SANTOS JÚNIOR, 2006, p. 97)

Acerca do questionamento próprio, segundo o referido autor, os

magistrados seguem a mesma linha de sacralização do direito de propriedade, com

invisibilidade tanto dos ocupantes quanto da Constituição Federal e das legislações

urbanísticas, em especial do Estatuto da Cidade. A solução para o conflito continua

sendo a polícia, não havendo espaço para o debate dentro da reintegração de posse

(SANTOS JÚNIOR, 2006, p. 98).

Em relação à prática forense do autor do presente texto, chama a

atenção o fato acima apontado da ausência de conhecimento e de relevância jurídica

sobre a Constituição e as legislações urbanística que se referem o direito à cidade

por parte dos juízes. A visão civilística de mundo destes magistrados parece colocar

o Código Civil e o Código de Processo Civil como o centro do universo jurídico, não

considerando a sequer a existência de outras normatividades.

Não obstante, apesar de o autor ter atuado em processos aonde a

liminar de reintegração de posse foi concedida no mesmo dia em que a ação foi

ingressada na Justiça, a prática tem demonstrado algumas mudanças no destino dos

conflitos fundiários urbanos.

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52

Esta mudança, infelizmente, não diz respeito à compreensão do

Judiciário e dos juízes acerca da Constituição e do Direito à Cidade. Na realidade, a

existência dos referidos Grupos de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários,

no âmbito do Governo Federal e Estadual, fazendo as vezes da trabalho da

Ouvidoria Agrária Nacional no meio rural, tem auxiliado na composição entre

Prefeituras, o Estado, os proprietários e os ocupantes, em geral, ao largo do

Judiciário, que acaba mais atrapalhando que auxiliando na resolução do conflito,

dada a sede de cumprir as decisões liminares. Mesmo nas ações em que o

Judiciário suspende o feito pela possibilidade de composição, o argumento utilizado

foi o de que o cumprimento da liminar significaria custos, provavelmente inúteis após

o acordo, para o Estado. A garantia do direito dos ocupantes sequer foi valorizada.

Diante de tudo que foi dito, é fundamental que se interprete os

procedimentos do Código de Processo Civil com a inclusão dos ditames

constitucionais e das legislações urbanísticas nos conflitos fundiários urbanos, como

forma de estruturar o Judiciário para a busca de soluções para os conflitos, que não

passe pelo uso da polícia. É isto que estudaremos no capítulo seguinte.

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53

4. AS NECESSÁRIAS INTERPRETAÇÕES PROCESSUAIS PARA O

ENFRENTAMENTO DO CONFLITO POSSESSÓRIO COLETIVO URBANO

“Os despejos são realizados em sua grande maioria baseados em decisões judiciais, em

ações de reintegração de posse ou reivindicatórias de propriedade, que desconsideram a legislação internacional e constitucional que garantem o direito à moradia e os direitos humanos. Essas

decisões, em geral baseadas no Código Civil e no Código de Processo Civil, não reconhecem a natureza coletiva dos conflitos e o estado de necessidade social das comunidades e perpetuam a

visão do direito de propriedade absoluta sem a contraposição aos direitos (moradia adequada, alimentação, trabalho, saúde, crianças e idosos) das comunidades a serem despejadas”.

(Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos)

A garantia do direito à moradia e do direito à cidade, trazidas pela

Constituição Federal de 1988, pelo Código Civil e pelas diversas legislações

urbanísticas relatadas, necessariamente trazem modificações na forma de

compreender e de processar os conflitos fundiários urbanos coletivos. O CPC

precisa abranger e interpretar estes direitos, de forma a dar-lhes efetividade plena,

sob pena de inconstitucionalidade ou derrogação, tendo em vista que estamos diante

de legislações de grau hierárquico superior ou temporalmente mais recentes, bem

como mais legítimas, pois representam com maior sintonia os anseios atuais da

sociedade. Nunca é demais relembrar que o CPC data de 1973, no auge da

repressão da ditadura militar no Brasil.

Tendo toda a discussão acima levantada como parâmetro, passamos

para a análise de pontos e questões processuais que devem ser revistas ou

contempladas, a partir das transformações trazidas pelas normas acima relatadas.

4.1. A comprovação dos requisitos do art. 927 do CPC.

A imediata concessão da medida liminar é o intento maior de todo autor

que ingressa no Judiciário com uma demanda possessória. Para tanto, é preciso

comprovar os requisitos do art. 927 do CPC. Entretanto, a praxe forense indica uma

série de equívocos no trato da comprovação dos requisitos do citado artigo, bem

como das provas produzidas pelo autor, mas que são admitidos pelos magistrados.

Dentre os requisitos para concessão da liminar, tem-se a necessidade

de comprovação da posse da área em litígio antes da ocorrência do esbulho ou

turbação. Para tanto, o autor precisa trazer aos autos documentos que façam prova

da existência anterior de seu direito.

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54

O exercício da posse "exige um comportamento possessório, tal como

exercita o proprietário”, sendo que “o mero fato de alguém ser proprietário (mas não

tendo nunca posse), essa carência de posse não o habilita à ação possessória”. “No

caso da reintegração de posse, é necessário que o autor tenha, efetivamente, posse

da coisa; ou mais precisamente, que tenha (ou tenha tido), posse física da coisa,

salvo se a ação for movida por possuidor indireto” (ALVIM, 2007, p. 408/409).

Assim, exige-se que o proprietário realize atos de posse no local, como

destinação econômica ou social, conservação da coisa, proteção do bem, vigilância

entre outros. Entretanto, as ocupações coletivas urbanas ocorrem em áreas vazias,

até porque se estivessem em efetivo uso, haveria impeditivo lógico para o ingresso

na área. Os ocupantes não são hordas de bárbaros que entram violentamente em

imóveis alheios, independente de seu uso e de quem esteja neles, como querem nos

fazer crê os veículos de comunicação, controlados pelos mesmos interesses que

gerem o mercado imobiliário. Ao contrário, são famílias pobres, produto da

desigualdade social e da engrenagem de criação da exclusão social urbana, como

visto no início deste texto. Diante de um terreno ou um imóvel vazio por anos, às

vezes décadas, e estando em dificuldade para garantir seu direito fundamental à

moradia e de sua família, não cumprindo o Estado seu papel de prover moradia,

resta apenas a ocupação da área vazia para dar vazão à sua necessidade e de sua

família.

“Quando do estudo dos vícios objetivos da posse, procuramos demonstrar que, ao contrário do que ocorre na invasão de imóveis ocupados, a ocupação de bens abandonados não qualifica a posse como injusta, pois não é possível se considerar como esbulhado um bem que não recebe destinação econômica ou ao menos sirva como moradia” (FARIAS e ROSENVALD, 2008, p. 122).

Em situações como esta, a comprovação trazida pelo proprietário de

sua posse se resume, em geral, a apresentação do domínio do imóvel. Entretanto,

como veremos adiante, a exceção de propriedade é vedada no juízo possessório.

“Reintegração de posse. Para procedência da possessória, é necessária a prova não apenas do domínio, mas também do exercício efetivo da posse sobre a totalidade do imóvel. Recurso Provido” (1º Grupo Cível TARGS, por maioria. Embargos infringentes n° 100287119).

“Não basta ao autor provar que tem direito à posse, como mero

reflexo do seu título aquisitivo do domínio ou mesmo da posse, mas, imperiosa e necessariamente, que a exercia de fato sobre a área certa e determinada da qual veio a ser despojado. Não tem direito subjetivo material

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à restituição da posse quem não a exercia, real e concretamente, mas, apenas ideal e devaneadoramente. O título ou documento de aquisição de posse por si só, não prova que o adquirente a exerça efetivamente. Ter direito à posse não é o mesmo que possuir. (ac. unân. da 2ª Câm. Do TJMT de 01/06/84, na Apel. n° 10.817, Rel. Des. Atahíde Monteiro da Silva).

“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO INSTRUMENTAL COM PEDIDO

DE EFEITO SUSPENSIVO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – PROVA DA POSSE DO AUTOR/AGRAVADO – NÃO COMPROVAÇÃO – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFORMADA – AGRAVO PROVIDO – UNANIMIDADE. A ausência de prova acerca da posse defendida pelo autor agravado inviabiliza a invocação de qualquer ação possessória. Agravo provido. Unanimidade.”(TJMA – AI 008174/2002 – 3a Câmara Cível – Rel. Des. Cleonice Silva Freire – 12.09.2002)

A prova da posse é constitutiva do direito do autor da ação, sendo seu

ônus prová-la (art. 333, I, CPC). De acordo com entendimento esposado neste texto,

a posse é a apropriação econômica e social consciente sobre um bem. Desta forma,

para que cumpra os requisitos do art. 927, I, é necessário que o autor demonstre que

possuía essa relação direta ou indireta com o imóvel, seja contratual ou factual, mas

que ensejasse a efetiva posse da área. A propriedade induz a posse, mas é uma

indução relativa e a posse e o processo possessório se referem à concretude e não

ao direito, devendo ser tal presunção comprovada. Como a exceção do domínio é

vedada (o que legalmente impede tal presunção no juízo possessório), é preciso que

o autor faça prova da efetiva posse da área por outros meios, como fotos e vídeos da

real utilização do imóvel, contratos que demonstrem a execução de atividades na

área, entre outras fórmulas.

Na realidade, ao contrário do que a praxe jurídica vem entendendo, a

própria ocorrência da ocupação, ao invés de violar presumida posse, induz

justamente o contrário: a presumível desídia da posse no local, com abandono da

área, o que serviu como um dos motivadores para a ação popular.

O próprio Código Civil traz a valorização da figura do possuidor, no

caput art. 1.276 do CC. Ele permite a arrecadação Municipal de bens abandonados

pelos proprietários, desde que não haja possuidor na área. Possuidor entendido

como aquele que deu uma real utilidade econômica ou social ao local. Este

possuidor é o protegido pelo Código, e não o relapso proprietário que, como o

complemento deste mesmo artigo diz, deve ser punido com a perda do bem para o

ente público.

Não comprovando a sua condição de possuidor, falta ao autor interesse

processual, que é condição básica da ação e fundamento da ação (CPC 282, III).

Neste caso, deve o processo ser extinto sem exame do mérito, conforme art. 267, VI

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do CPC.

Com relação à data do esbulho ou turbação (art. 927, II), muitos

proprietários utilizam imagens da ocupação veiculadas pela imprensa, mas que

demonstram apenas a ocorrência do fato e não precisaram exatamente quando o

fato ocorreu. Pior, são registrados boletins de ocorrência como forma de provar a

data do fato. Como ensina Misael Montenegro Filho:

“para a admissibilidade da prova emprestada, exige a doutrina, com aval da jurisprudência, que a prova em análise tenha sido retirada de uma ação judicial de contraditório preestabelecido, com formação regular, sem qualquer pecha processual e constitucional...” (2004, p. 74).

O boletim de ocorrência é o primeiro passo do inquérito policial, que

tem como característica a ausência de contraditório pleno. Não pode, desta forma,

ser valorizado como prova em um procedimento que tem uma cognição inicial

açodada, justamente sem a ouvida do réu. No boletim, o autor pode inserir as

informações que bem lhe aprovier, principalmente em relação a datas e fatos que

não se tem como demonstrar a ocorrência. Demais disto, como já assentou

jurisprudência do STJ, não há qualquer delito na prática da ocupação de imóveis

vazios para a reforma agrária, tendo em vista se caracterizar como forma de pressão

popular, sendo que o mesmo entendimento pode ser utilizado na ocupação urbana16.

Assim, o boletim de ocorrência não deve ser valorado como prova idônea pelo

magistrado, por não possuir o crivo do contraditório, essencial em qualquer processo

judicial.

“Diga-se ainda que apresentação de queixa à Política, não é, em si mesma e isoladamente, prova idônea para que seja concedida liminar. Da mesma forma que alegações atinentes ao domínio são inidôneas, como já se disse, para a concessão da posse, a fortiriori, o são para concessão da liminar” (ALVIM, 2007, p. 412)

16 HC - CONSTITUCIONAL - HABEAS CORPUS - LIMINAR - FIANÇA - REFORMA AGRÁRIA - MOVIMENTO SEM TERRA - Habeas corpus é ação constitucionalizada para preservar o direito de locomoção contra atual, ou iminente ilegalidade, ou abuso de poder (Const. , art. 5o, LXVTID. Admissível a concessão de liminar. A provisional visa a atacar, com a possível presteza, conduta ilícita, a fim de resguardar o direito de liberdade. Fiança concedida pelo Superior Tribunal de Justiça não pode ser cassada por Juiz de Direito, ao fundamento de o Paciente haver praticado conduta incompatível com a situação jurídica a que estava submetido. Como executor do acórdão, deverá comunicar o fato ao Tribunal para os efeitos legais. Não o fazendo, preferindo expedir mandado de prisão, comete ilegalidade. Despacho do Relator, no Tribunal de Justiça, não fazendo cessar essa coação, por omissão, a ratifica. Caso de concessão de medida liminar. Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático. Grifos Nossos. (STJ, 6ª Turma, HC 5.574/SP, Rel. Min. Juiz Vicente Cernicchiaro – grifo nosso).

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57

Outro artifício utilizado pelos proprietários é o uso de declarações de

pessoas, afirmando os elementos do art. 927, em benefício do autor. Tal expediente

é usado justamente para tentar convencer o magistrado e evitar a ocorrência da

audiência de justificação. Não obstante isto, além de não passar pelo crivo do

contraditório, tal proceder demonstra a necessidade da audiência de justificação,

para que estas testemunhas sejam ouvidas com o compromisso do art. 415 do CPC

e para que seja garantida a contradita do art. 414 do mesmo diploma legal, por parte

do réu.

Em nosso entender, como exporemos abaixo, em caso de conflito

fundiário urbano, a decisão liminar não deve ser deferida em hipótese alguma, pelo

argumento dos direitos humanos essenciais envolvidos, bem como do interesse

público evidente, seguindo a mesma mens legis do parágrafo único do art. 928.

Entretanto, caso se entenda pela possibilidade, é preciso que os requisitos do art.

927 sejam de fato cumpridos, não apenas superficialmente, dada a gravidade da

decisão, mas de forma profunda. Em havendo a mínima dúvida acerca dos

preenchimentos dos requisitos, deve-se o magistrado marcar audiência de

justificação. “É essencial, no entanto, que se comprove os requisitos do art. 927,

Código de Processo Civil, para concessão de liminar. Se houver controvérsia,

conducente a uma inconclusão por parte dos juizes, não se deve deferir o pedido

liminar” (ALVIM, 2007, p. 410).

Neste sentido,

AGRAVO DE INSTRUMENTO – REINTEGRAÇÃO DE POSSE –

LIMINAR INDEFERIDA – NÃO COMPROVAÇÃO DA COEXISTÊNCIA DOS REQUISITOS ELENCADOS NO ARTIGO 927 DO CPC – A concessão de medida possessória initio litis é faculdade que se insere no poder que a lei confere ao juiz, desde que convencido da configuração dos pressupostos do artigo 927 do CPC, para os efeitos de restaura-se situação anterior modificada pelo esbulho. Dentre os quatro dados probatórios, elencados pelo art. 927, os dois mais importantes são a prova da posse e a data da turbação ou do esbulho, porquanto se revestem de maior decisividade para a instrução. As declarações extrajudiciais, prestadas por testemunhas, não se prestam para ensejar concessão de liminar, em ação possessória. (TAMG – AI 0351064-9 – (50055) – Divinópolis – 6ª C. Cív. Relª Juíza Beatriz Pinheiro /caíres – J. 10.10.2001)

4.2. A inclusão constitucional e legal do inciso V no artigo 927 do CPC.

Como visto, as legislações urbanísticas são construídas tendo um dos

objetivos expressos o de impedir a especulação imobiliária nas áreas urbanas. Desta

forma, na ocorrência de conflitos fundiários urbanos, o proprietário deve comprovar

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58

não apenas a sua posse, mas, principalmente, que a mesma cumpria a sua função

social.

Mesmo que se considere que a apresentação do título de propriedade

induziria a posse, sendo tal presunção utilizada como elemento que autorizaria a

expedição de mandado liminar, é preciso que o autor da possessória demonstre que

cumpria, ao tempo da ocupação, a função social desta suposta posse. Estamos

diante do que a doutrina progressistas vem considerando como o inciso V do art. 927

do CPC, trazido pelos comandos constitucionais e pelas normas urbanísticas.

Nas palavras do jurista Laércio Alexandre Becker:

“...o art. 5º, no qual está inserido o inciso XXIII (o da função social da propriedade), apresenta um §1º no qual se lê claramente que ‘as normas definidoras de garantias e direitos fundamentais têm aplicação imediata’.

Ora, o inciso XXIII afirma categoricamente que ‘a propriedade atenderá a sua função social’. Em tese, portanto, isso seria o suficiente para sua exigência como um verdadeiro inciso V no art. 927 do CPC” (2009).

O professor Fredie Didier Júnior esposa entendimento semelhante:

“… a consagração constitucional da função social da propriedade,

como princípio que estrutura a ordem econômica brasileira e como um direito fundamental, tornou imperiosa a reestruturação do regramento infraconstitucional da tutela da posse. É preciso, a partir de então, exigir como pressuposto para a tutela da posse a demonstração de cumprimento da sua função social.

Trata-se de pressuposto implícito, decorrente da eficácia direta e imediata do princípio constitucional da função social da propriedade” (2009).

A função social da posse é a concretização da função social da

propriedade. Esta só pode existir por meio da execução daquela. Apenas através do

efetivo apossamento do imóvel é que o proprietário pode iniciar os atos tendentes ao

cumprimento da função social do mesmo.

A inserção da função social da propriedade como um direito e dever

fundamental tem efeitos práticos importantes para o processo civil, em especial para

as possessórias. Um deles decorre de os direitos e garantias fundamentais serem

cláusulas pétreas, como determina o Art. 60, §4º, IV da CF. Isto revela a intenção do

legislador constituinte de tratar esse direito como extremamente importante e colocá-

lo como elemento integrante do direito à propriedade não podendo ser excluídos do

ordenamento pátrio.

Um outro efeito prático é que os direitos e garantias individuais têm

aplicação imediata (CF, art. 5º, § 1º), sendo dever do proprietário cumprir o previsto

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no inc. XXII, independentemente de qualquer norma complementar ou ordinária que

regulamente a determinação constitucional.

Pode-se afirmar, então, que, fixada a função social da propriedade

entre os direitos e garantias individuais, o legislador constituinte originário definiu-a

como dever imediato e irrevogável do proprietário, como observado.

Em se tratando de imóvel em litígio fundiário urbano, quando o mesmo

não cumpre a sua função social, pois o autor não trouxe ao processo prova alguma

do cumprimento deste dever constitucional, e a própria ocupação, como já dito, induz

justamente o desleixo com o imóvel, não pode ser concedida a proteção possessória

para o proprietário, pela falta de comprovação do requisito implícito do art. 927,

autorizador da expedição de mandado liminar.

Especificamente em Salvador, quando o imóvel encontra-se

abandonado, há óbvio descumprimento da imposição legal, já que não atende a

nenhum dos usos previstos pelo art. 7° do PDDU do Município, que está respaldado,

neste ponto, pelo art. 182, §2º da CF.

Ademais, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, VI, “a” e “f”, diz que:

“Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...)

VI – ordenação e controle do uso do solo de forma a evitar: (...) a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; (...) f) a deterioração das áreas urbanizadas;”

Por fim, vale recordar que o Direito brasileiro coíbe a

especulação imobiliária, nos termos do art. 4°, I, d da Lei 11.124/2005:

“Art. 4o A estruturação, a organização e a atuação do SNHIS devem observar: I – os seguintes princípios: d) função social da propriedade urbana visando a garantir atuação direcionada a coibir a especulação imobiliária e permitir o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade;”(grifo nosso)

Sendo assim, é possível afirmar que a propriedade e a posse que não

cumprirem a sua função social não terão garantia constitucional, e a seu proprietário

não estará assegurada a defesa de posse por meio de ações possessórias, já que,

como fora observado, o direito à propriedade está intrinsecamente atrelado ao dever

do cumprimento da sua função social. Significa a inclusão de um inciso V no CPC,

sendo este mais um fundamento jurídico a ser apresentando na inicial dos interditos,

sob pena de ser considerada inepta a inicial (282, III).

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Na ação possessória, o descumprimento da função social desqualifica

a posse e a propriedade e impede a concessão da proteção possessória a quem

quer que a requeira. Alguns doutrinadores assim se posicionam:

“Isto posto, é defensável concluir que é incongruente com a norma constitucional e a mens legis deferir proteção possessória ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente sua função social, inclusive (e especialmente) no tocante ao requisito da exploração racional. A liminar que seja deferida concedendo a reintegração de posse de imóvel nessa condição pode até atender a dogmática do Código Civil, mas se choca de frente com o novo texto constitucional” (FACHIN, 2000, p. 285).

“Quem não cumpre a função social da propriedade perde as

garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes à propriedade, como o desforço imediato e as ações possessórias. A aplicação das normas do Código Civil e do Código de Processo Civil, nunca é demais repetir, deve ser feita à luz dos mandamentos constitucionais, e não de modo cego e mecânico, sem atenção às circunstâncias de cada caso, que podem envolver o descumprimento de deveres fundamentais” (COMPARATO, 2000, p. 146)

“Só se legitima perante o ordenamento jurídico a propriedade que

cumpre a função social. A propriedade que descumpre a função social não pode ser objeto de proteção jurídica. Não há fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular da propriedade que não está a cumprir sua função social” (CARTA DE RIBEIRÃO PRETO, 2002, p. 360)

Pode-se concluir que o direito à propriedade está condicionado ao

exercício da sua função social. Como já afirmado acima, havendo conflito entre

posse com função social dos ocupantes e propriedade desfuncionalizada, deve o

magistrado proteger a primeira, por ser constitucional e legalmente tutelada, bem

como ser socialmente mais relevante.

Apesar da já existência real do inciso V, como forma de por fim ao

debate e convencer os magistrados positivistas, a proposta do Ministério das

Cidades para criação da lei da política nacional de prevenção de conflitos fundiário

urbanos assegura a função social de propriedade como premissa para decisões de

ações de reintegração de posse, como forma de compatibilizar o CPC e o Estatuto

da Cidade. Ressalte-se, entretanto, que implica apenas em verbalizar o que já existe

para exterminar de vez qualquer discussão.

Além disto, a mesma proposta traz mais dois requisitos para a

concessão da liminar: a comprovação da regularidade jurídica e tributária do imóvel

em litígio e a vistoria/inspeção judicial como procedimento obrigatório.

Por fim, a Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos, traz em

seu bojo a necessidade do autor para comprovar a posse alegada, vedando a

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concessão de mediada liminar se não ficar comprovado o cumprimento da função

social da propriedade (2009).

4.3. O abandono do imóvel e a comprovação dos ônus fiscais.

O art. 1.275, III do Código Civil elenca o abandono do imóvel como uma

das formas de perda da propriedade. O caput do art. 1.276 e o seu § 2.º detalham o

procedimento para perda da propriedade por abandono, colocando os requisitos para

tal, sendo que a intenção de não mais conservar o imóvel em seu patrimônio é

presumível de forma absoluta quando o proprietário deixar de satisfazer os ônus

fiscais. Neste caso, ele pode ser arrecadado pelo Município e, três anos depois,

passar à propriedade da municipalidade. Além da forma absoluta prevista em lei, o

abandono da coisa em área urbana, sem cuidados com a estrutura física, proteção,

limpeza etc do imóvel, pode indicar, de forma relativa, a intenção de abandonar,

cabendo a intervenção judicial neste caso.

De toda sorte, como já dito e repetido, as ocupações urbanas ocorrem

em imóveis com o perfil trazido pelo art. 1.276. Terrenos ou prédios vazios,

abandonados, com mato alto ou estrutura deteriorada e que em geral possui anos de

débito fiscal com o Município. Ainda assim, estando o imóvel em flagrante ilegalidade

com as normas urbanísticas e tendo o proprietário, inclusive, já perdido o imóvel para

a municipalidade, a medida liminar muitas vezes é concedida.

Este artigo do Código Civil, ao ver de muitos doutrinadores, criou um

inciso VI para o art. 927 do CPC. Para comprovar que ter direito a liminar

possessória deve comprovar os requisitos de I a IV prescritos no citado artigo, a

função social da posse, inciso V implícito previsto na CF, bem como a regularidade

fiscal do imóvel, o que seria um primeiro indício de que o imóvel tem alguma utilidade

para a sociedade, sendo este o inciso VI.

Tal proposta se harmoniza com as normas urbanísticas relatadas, que

impendem a constituição de espaços de especulação imobiliária na zona urbana17.

Ressalta-se que o abandono de bens imóveis dentro da cidade causa inúmeros

transtornos à comunidade que o cerca. Uma vez abandonado o imóvel por um longo

período de tempo, o local passa a ser utilizado como ponto de venda de

17 O Estatuto da Cidade, norma geral de execução da política urbana (art. 1.º), condena expressamente este tipo de utilização do solo em seu art. 2.º, VI, e, bem como a Lei 11.124/2005, art. 4, I ,d, como já apontado.

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psicotrópicos, como ponto de proliferação de ratos, insetos, acúmulo de água que

causam surtos de dengue na região, e outras doenças. Um imóvel neste estado, não

aponta uso algum – muito pelo contrário, indica seu mais absoluto abandono.

Em segundo lugar, um imóvel em tal estado nada se pode gozar. Não

está em condições de ser alugado, cedido, emprestado, ou de qualquer outro ato de

gozo do imóvel; não gera qualquer tipo de utilidade econômica, não se qualificando

como nenhum dos usos do art. 7° do PDDU de Salvador. Não há, concretamente,

cumprimento da função social por este espaço.Imóveis em tal situação servem

apenas para a especulação imobiliária. É forçoso se concluir pelo evidente

abandono, nos termos do CC.

O ordenamento jurídico pátrio garante primordialmente o direito

fundamental à moradia, contra a propriedade urbana subutilizada ou não utilizada,

deixada sem função social para fins de especulação. No conflito de interesses entre

a especulação imobiliária - forma utilizada pelos proprietários para obtenção de

lucros às custas da valorização da área, ocasionada por intervenções públicas ou de

outros particulares na região - e o direito fundamental à moradia garantido pela

Constituição Federal e pelas normas de Direitos Humanos firmadas pelo Brasil,

prevalece o direito à moradia.

4.4. A vedação da exceção de propriedade nas demandas possessórias.

Devido à grande quantidade de decisões liminares que nos deparamos

na prática forense, que tomam como prova unicamente a presença do registro de

propriedade nos autos, é necessário aprofundar mais a discussão acerca da

vedação da exceção de propriedade no juízo possessório.

O positivismo legalista não é simplesmente uma conduta burocrática de

aplicar a lei cegamente, fechando os olhos para toda e qualquer conseqüência

social. Como qualquer outra corrente do pensamento, ela é fundamentada por uma

postura ideológica subjacente. Afirmar-se isto, pois, quando concedem as liminares

de reintegração de posse, alguns juízes costumam apresentar como argumento de

que sua responsabilidade é cumprir estritamente a lei, e não promover o direito à

moradia. Entretanto, o que está subjacente neste discurso é a promoção da lei, com

um condicionante: a lei promovida é aquela que protege a propriedade privada.

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63

Ora, o próprio Código Civil, em seu art. 1.210, § 2°18 proíbe a exceção

de domínio em juízo possessório. Segundo o Prof. Misael Montenegro, o teor do

citado artigo encerra qualquer possibilidade de discussão petitória na tutela da

posse, derrogando, segundo ele, a Súmula 487 do STF (2004, p. 149).

A vedação da exceção de domínio é uníssona na doutrina, apesar de

aplicada sub-repticiamente na jurisprudência, em especial do primeiro grau.

A posse, como se disse, é protegida como defesa de uma situação de

fato. Esta assertiva, tanto mais se evidencia, a partir do que consta no §2°, do art. 1.210 do Código Civil, a mostrar, que no plano do juízo possessório está estabelecida a impenetrabilidade em relação à alegação de domínio ou de outro direito (o que já era tradição recente de nosso direito) (ALVIM, 2007, p. 388 – grifo nosso).

“A independência entre os juízos possessórios e petitórios está em

consonância com a cláusula geral da função social da propriedade. O ordenamento dá ao fato jurídico da posse proteção distinta da que permite à propriedade” (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 992).

Ou seja, existe legislação positivada que proíbe que se leve em conta

apenas o registro imobiliário como prova neste tipo de ações, uma vez que o mesmo

é hábil apenas para comprovar, de forma relativa, a propriedade do bem. Mas muitos

magistrados positivistas deixam de sê-lo apenas neste momento, para manter a

posição ideológica de defesa cega da propriedade, e concedem liminares com base

unicamente na prova do título.

O CPC, no art. 92319, impede que autor ou réu ingressem com ação

petitória enquanto não houver deslinde da ação possessória, privilegiando a

autonomia da posse em relação à propriedade, constituindo verdadeiro pressuposto

processual negativo para o ingresso da ação reivindicatória (ALVIM, 2007, p. 388).

Com esta norma, o diploma processual também se filia à distinção entre juízo

petitório e possessório.

A Jurisprudência de segundo grau também se posiciona neste sentido:

“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POSSESSÓRIA. EXCEÇÃO

DE DOMÍNIO. ART. 505 DO ANTIGO CÓDIGO CIVIL. DERROGAÇÃO. ART. 923 DO CPC. LEI N. 6.820/80. SÚMULA N. 83/STJ. AGRAVO REGIMENTAL. IMPROVIMENTO.

18 Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 2o Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa. 19 Art. 923. Na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação de reconhecimento do domínio.

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64

I. A segunda parte do art. 505 do antigo Código Civil foi derrogada pelo art. 923 do CPC, na redação a ele dada pela Lei n. 6.820/1980. Precedentes do STJ. II. “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.” (Súmula n. 83/STJ) III. Agravo improvido.” (AgRg no RESP 265156 / SP, AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2000/0064212-6. Relator Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR) “Conforme preconizado à unanimidade pelo IV Encontro Nacional de Tribunais de Alçada, para concessão de liminar nas possessórias não bastam documentos relativos ao domínio, impondo-se, via de regra a audiência de justificação prévia para autorizar o adiantamento da prestação jurisdicional. Agravo provido para cassar-se a liminar, face à insuficiência da prova documental produzida.” (AI 191147859 – 4ª Cam. Cív. – Porto Alegre – Rel. Dr. Márcio Oliveira Puggnia – j. em 12.12.1991.

Tal preceito justifica-se sob o argumento de que a ação possessória

perderia o sentido, caso pudesse o proprietário fazer uso do seu título durante o

processo. Bastaria que o mesmo importunasse a posse de outrem e, ao ter contra si

movido um interdito, responderia a ação juntando a comprovação do domínio e

fatalmente teria deferida para si a posse (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 992). Da

mesma forma, bastaria ao mesmo proprietário importunador da posse alheia

ingressar com ação reintegratória para ter guarida em seu exercício arbitrário das

próprias razões.

A fundamentação da ação possessória tendo apenas como prova o

título de propriedade resulta, na realidade, em dificuldades processuais para o

próprio autor. Se o fundamento da reintegração de posse é a posse física do bem,

conforme ensinamento do Prof. Arruda Alvim já apontado, e a da reivindicatória é

justamente a ausência de posse anterior (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 993), o

ingresso de possessória fundada apenas no dispensável título de propriedade, prova

essencial para reivindicatória, implica em confissão indireta de que não era possuidor

da área ao tempo do suposto esbulho, não fazendo jus à tutela dos interditos.

Na realidade, seguindo os ensinamento dos Profs. Nelson Nery Júnior

e Rosa Maria de Andrade Nery

“a discussão da propriedade e ação possessória (exceptio proprietatis) sempre foi um falso problema, que só existiu pelo desconhecimento da melhor técnica do direito processual civil: a) o autor cumulava causas de pedir incompatíveis entre si (posse e propriedade); b) o juiz deixava de mandar emendar (CPC 284) e, posteriormente, de indeferir (CPC 295) a petição inicial da possessória ajuizada com cumulação proibida de causas de pedir; c) a partir do sistema do CPC, a polêmica doutrinária e jurisprudencial que existiu em torno da exceptio dominii era desnecessária e supérflua, porque o sistema já continha mecanismos técnicos para impedir

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65

que fosse alegada a propriedade como fundamento da proteção judicial da posse (CC 1916 505; 923). (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 993).

Apesar da doutrina clara de processualistas clássicos e bastante

estudados nas Faculdades de Direito, pululam aos montes na prática forense o

deferimento de liminares com fundamento no título de propriedade, algumas vezes

apresentado a propriedade como o fundamento mesmo da decisão, em completa

atecnia, que só se vislumbra, como dito, quando se está a defender a propriedade.

Para a defesa dos direitos fundamentais de multidões, por outro lado, a antiga

interpretação da lei civil (até porque o novo Código também traz a cláusula da função

social, como visto) é aplicada literalmente, não se respeitando sequer os comandos

constitucionais ligados à função social da propriedade20.

Deve-se ressaltar que não é cabível a fungibilidade entre ação

possessória e petitória. Neste sentido, alguns autores argumentam, com base no

princípio da instrumentalidade das formas e da celeridade processual, da conversão

do processo possessório em petitório, caso o proprietário apresentasse em juízo

apenas o título de domínio. Tal posição, entretanto, não prospera. A causa de pedir

que fundamenta tais ações é absolutamente diversa, bem como também é diferente

o procedimento a que estão sujeitas. Caso o autor ingresse com possessória, tendo

como prova apenas o registro de propriedade, estamos diante, na realidade, de uma

verdadeira ação petitória que pretende se valer da cognição acelerada da tutela da

posse. A interpretação da fungibilidade deve ser restritiva, por se tratar de exceção

processual, impedindo a conversão da possessória em petitória (NERY JÚNIOR e

NERY, 2006, p. 992). Neste caso, deve a ação ser extinta por falta de interesse de

processual nos termos do art. 267, IV do CPC, devendo o autor ser condenado ao

pagamento das custas e honorários advocatícios (art. 28 CPC). Acompanha estes

entendimento o Enunciado 78 da jornada de Direito Civil promovido pelo Centro de

Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.

“Enunciado 78 – Art. 1.210: Tendo em vista a não-recepção pelo novo Código Civil da exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º) em caso de ausência de prova suficiente para embasar decisão liminar ou sentença final

20 As palavras do Prof. Laércio A. Bercker, corroboram tal percepção: “a função social da propriedade urbana, porque prevista na Constituição, recebeu inúmeros ensaios e elogios da doutrina. Entretanto, não passam de retórica. Nem a doutrina nem a jurisprudência tem se lembrado desses dispositivos constitucionais no momento de teorizar sobre as condições de concessão da tutela reivindicatória e possessória. (2009)

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66

ancorada exclusivamente no ius possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso.” (2009, p. 11-12)

Anteriormente, a doutrina e a jurisprudência aceitavam que, caso a

divergência possessória se baseasse em alegação de direito de propriedade de

ambas partes, o magistrado estava autorizado a conceder liminar para aquele que

manifestamente era proprietário, tanto que se editou a referida súmula 487 do STF.

Não obstante, argumenta-se que a não repetição do preceito final do antigo art. 505

do CC de 1916 pelo atual art. 1.210, § 2° do Código de 2002 encerrou de vez esta

possibilidade. Não existe mais qualquer espaço para a exceção do domínio no juízo

possessório. Este é o entendimento dos Enunciados 79 da referida jornada de

Direito Civil, que afirma: “Enunciado 79 – Art. 1.210: A exceptio proprietatis, como

defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002,

que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório” (2009,

p. 12). Desta forma, a súmula 487 do STF ou foi derrogada ou restringe-se apenas

ao juízo petitório, a depender do intérprete, não se aplicado, de qualquer sorte, ao

juízo possessório.

4.5. A citação dos réus.

Com relação à citação nos procedimentos multitudinários, admite parte

da doutrina e jurisprudência que a comunicação a um ou alguns dos réus já seria

suficiente para perfectibilizar a citação, sob o argumento de que a comunicação

pessoal de centenas ou milhares de inviabilizaria o processo (NERY JÚNIOR e

NERY, 2006, p. 989). Interessante que não se faz qualquer concessão ao

procedimento codificado para garantir os direitos fundamentais e urbanísticos desta

multidão. Entretanto, parte dos juristas admitem violar direitos desta multidão,

passando por cima dos arts. 10, § 2º, 215, e do 282, II do mesmo CPC, que se quer

apressadamente cumprir.

Em uma ocupação urbana, cada “barraco” constitui, na verdade, a casa

de cada uma daquelas famílias, sendo esta protegida como asilo inviolável do

indivíduo, nos termos do art. 5°, XI da CF. Logo, cada família guarda sua

individualidade, seu direito à moradia, tratando-se de um direito individual

homogêneo. Assim, deve o autor promover a qualificação completa de todos os

ocupantes, sob pena de violar o art. 282, II do CPC e tornar a inicial inepta, bem

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67

como requisitar a citação pessoal e de todos as famílias ocupantes, caso contrário

haveria violação do art. 214 do CPC, e incidindo no art. 247 do mesmo diploma legal.

Eventual decisão liminar ou sentença que não tenha formado o pólo

passivo com outros ocupantes, não tem o condão de atingi-los:

O que se deve, todavia, ter presente, é que no caso de esbulho por mais de uma pessoa, estando mais de uma na posse, e, não produzindo efeitos a sentença em relação àquele que não foi citado, parece ser o caso de litisconsórcio necessário, diante do critério de inutilidade da sentença de procedência que possa vir a ser proferida, se somente um dos esbulhadores houver sido citado. (ALVIM, 2007, p. 337, nota 18 – grifo nosso)

Segundo o parecer do Ministério Público Estadual em ação de

reintegração de posse, de autoria da Dra. Cleide Ramos Reis, embasado em

doutrina pátria que afirma a necessidade da individualização das partes para

perfectibilizar a legitimidade para a causa:

“O manejo do interdito possessório não permite a propositura contra RÉUS INCERTOS E DESCONHECIDOS (sic), como ocorre na ação de usucapião. Tanto é assim que em nenhum dispositivo legal que rege as possessórias se faz menção a réus incertos e desconhecidos.”(2005, p. 126)

Entretanto, o Judiciário, tão legalista para negar a Constituição e os

direitos humanos fundamentais para os ocupantes, é flexível com o art. 282, II do

CPC, para aceitar “fulano de tal”, “Pedro do PT”, “José da Silva” e “outros” no pólo

passivo, fazendo com que sua liminar seja cumprida para um número incerto de

réus, cabendo ao oficial de Justiça, à polícia e ao proprietário decidirem sobre quem

deve ou não ser retirado da área21 e dos arredores.

Sérgio Sérvulo da Cunha assim se refere às decisões judiciais que

determinam a desnecessidade de citação de todos os ocupantes.

“elogiáveis, sob certos aspectos, a habilidade com que, nesses casos, foram desatados os nós formais. Essas decisões mostram que os magistrados são capazes de desobedecer à lei, para alcançar objetivos superiores no processo. Elas mostram também, uma sensibilidade incomum aos problemas das partes” (2000, p. 256).

Entretanto, tal “sensibilidade” judicial não é aplicada para garantir o

21 Muitas vezes, as ocupações em litígio são em áreas contíguas de ocupações anteriores, e os proprietários utilizam a “carta branca” dada pelo Judiciário para retirarem toda e qualquer pessoa que lhes interesse, tomando posse, inclusive, de terreno alheio, por meio deste expediente.

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68

fundamental direito à moradia, à cidade e a dignidade de centenas de pessoas, mas

simplesmente para proteger o direito de propriedade.

Não obstante isto, já há decisões judiciais que não aceitam a ausência

de qualificação neste tipo de demanda:

“Inadimite-se no ordenamento jurídico processual brasileiro, ante os termos claros do art. 282, II, do CPC, litisconsórcio passivo implícito. O simples interesse, na área do Direito Material, afora as hipóteses do art. 74 do CPC, não transforma necessariamente o interessando em litisconsorte passivo. (Ac. unân. da 2ª Cam. do TRGS de 30.10.1986, no AI 186.056.321, Rel. Juiz Castro do Nascimento).

Ademais, de acordo com o art. 10, §2º do CPC, é preciso que os

cônjuges dos réus sejam também citados pessoalmente para o regular procedimento

da ação, tendo em vista que a ocupação da área e a construção da residência da

família, em geral, é realizado por ambos os cônjuges. Não se verificando tal

obrigação processual, estamos diante de uma nulidade.

A Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos também se

posiciona pela necessidade de citação de todas as pessoas afetadas pela ação

judicial, inclusive os cônjuges, como forma de assegurar a ampla defesa (2009).

4.6. Direito de defesa dos ocupantes

Estando caracterizado o conflito possessório, com a busca da

população de baixa renda do exercício de seus direitos fundamentais, o mínimo

existencial, é necessário instalar-se um processo dialógico para solucionar a

demanda, e não apenas acabar o conflito de forma artificial, por meio da liminar.

Neste sentido, é fundamental que os ocupantes sejam acompanhados

por assessoria jurídica que os informe de seus direitos, bem como atue efetivamente

na proteção processual dos mesmos.

Todos os documentos da sociedade civil analisados, assim como a

proposta de lei para mediação de conflitos fundiários, apontam para a necessidade

de intimação da Defensoria Pública dos Estados ou da União, conforme o caso, para

que acompanhem o processo e procedam a efetivação do devido processo legal,

contraditório e ampla defesa, princípios processuais constitucionais, sem os quais há

nulidade de toda a querela. Tal intimação deve ser feita mesmo que os ocupantes

tenham advogado nos autos, tendo em vista a cada vez maior importância das

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69

Defensorias para a consolidação do Estado Democrático de Direito e,

principalmente, pelo fato de que, como se tem observado reiteradamente, advogados

inescrupulosos tem se aproveitado da situação delicada e de urgência das famílias

para cobrarem valores exorbitantes para aquela comunidade, ou mesmo realizando

a defesa inicial no processo, com vista a formar “curral eleitoral” para futuras

eleições. Depois de passado os primeiros momentos, são recorrentes o abandono e

o descaso destes profissionais com as causas. Daí a necessária intimação da

Defensoria Pública sobre o conflito, para que haja relação entre os defensores e os

ocupantes, a fim de se impedir a aproximação de oportunistas nestes processos.

Mais uma vez, para oportunizar o trabalho dos defensores, é preciso se

evitar o açodamento que representa a medida liminar em conflitos fundiários

urbanos.

4.7. Chamamento ao processo dos órgãos estatais responsáveis pela

política urbana

De acordo com farta legislação urbanística dos três níveis de governo,

bem como a competência estabelecida no art. 23, IX da CF, a provisão de moradia

para o povo brasileiro é DEVER do Poder Público, em especial para aqueles que são

pauperizados pelo sistema econômico predatório em que vivemos. É por isto que os

Governos mantém linhas de subsídio para a habitação em geral e programas de

construção de unidades habitacionais para a população de baixa renda. Visa-se

garantir a essencial necessidade humana de se abrigar contra as intempéries e

manter suas relações privadas, que é a moradia.

Entretanto, o Estado brasileiro não tem cumprido perfeitamente esta

obrigação legal, haja vista o déficit habitacional de cerca de oito milhões de moradias

no país. Como já dito, para poder exercer seu direito fundamental de moradia, em

terrenos vazios, que servem apenas para a especulação imobiliária, legalmente

combatida, como também já observado, é que ocorrem as ocupações. Vendo a

situação por este ângulo, percebe-se facilmente que não se trata de um problema

simplesmente privado entre o proprietário desidioso e centenas de famílias

“invasoras”. A ausência da atuação estatal é quem cria a situação e ele deve ser

chamado ao processo para ajudar a resolvê-la.

Neste sentido, foram apresentadas neste texto as legislações que

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70

estruturam o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, SNHIS, que abarca

tanto a União, o Estado da Bahia e a cidade de Salvador, todas gerando obrigação

dos entes em reduzir o déficit habitacional. A União e o Estado da Bahia foram mais

adiante e criaram, como visto, grupos de trabalho para mediação de conflitos

fundiários urbanos, adiantando-se para demonstrar que têm interesse em intervir nas

referidas lides.

Tendo em vista isto, há evidente interesse da Prefeitura Municipal,

Estado e, em nível geral, da União, na resolução do conflito. Estes órgãos possuem

órgãos específicos para a provisão de unidades habitacionais e devem ser

chamados ao processo para buscarem soluções para o litígio.

Tal expediente vem sendo usado com sucesso nos processo de

mediação envolvendo os Movimentos Sociais, os supostos proprietários, Prefeituras,

órgão do Estado, com apoio, em alguns casos, do órgão mediador nacional. São

exemplos deste procedimento de negociação as ações que tramitam perante a 5ª

Vara da Fazenda Pública da Comarca de Salvador, sob o nº. 136.4028-6/2007; na

19ª Vara Cível, sob o nº 121.33060-9/200622 e 2007.33.00.006760-2, 11ª Vara

Federal da Seção Judiciária da Bahia. Nelas, o processo foi suspenso para que se

pudesse realizar a composição entre o proprietário, as famílias ocupantes e as

Prefeituras Municipais ou o Estado da Bahia. Em nenhum deles houve a

necessidade de uso da força policial e a situação social trazida ao Judiciário foi de

fato resolvida, e não empurrada para debaixo do tapete positivista, que é o que

ocorre quando ser concede a liminar para desocupação das áreas.

Há registro, inclusive, da suspensão provisória do processo, sem a

ouvida do autor, tendo em vista a juntada aos autos de atas de reuniões, decretos de

desapropriação e outros documentos que comprovam o interesse de algum ente do

Estado na área. Isto ocorreu nos processos n° 1591457-4/2007, que tramita na 4ª

Vara Cível da Comarca de Salvador e 1806881-1/2008, que tramita perante a Vara

Cível de Camamu. Em ambos os casos, o processo foi suspenso por 30 dias, pois

havia comprovações de que estava em curso negociação sobre a área. Este prazo

foi fundamental para a posterior resolução do conflito, com a ocorrência do processo

de desapropriação pelo Estado da Bahia e pela Prefeitura de Camamu,

respectivamente, este último ainda em curso.

22 Um relatório domais detalhado deste processo de negociação pode ser acessado em: http://www.sedur.ba.gov.br/pdf/termo.acordo.tubarao.pdf

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71

No multicitado parecer da Promotora Cleide Ramos Reis, tratando de um

conflito fundiário rural, tem-se um exemplo do dever de ampliação do litígio por parte

do Magistrado. A promotora solicita a expedição de ofício para 14 órgãos públicos e

entidades da sociedade civil, como forma de trazer ao processo todos os atores

sociais com possível interesse no conflito, que podem auxiliar na busca de uma

solução negociada. Há também providências mais formais que devem ser tomadas,

a exemplo da citação do cartório de imóveis, quando o título de propriedade for

trazido ao processo, para que se proceda a pesquisa da cadeia sucessória e exare a

certidão de inteiro teor, de forma a evitar grilagens de terra, comum no ambiente rural

brasileiro, mas também presente nos conflitos urbanos (2005, p. 132/134).

A Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos também coloca

como necessária a intimação do órgão responsável pela política habitacional e

fundiária da Prefeitura, Estado e União e do Ministério Público, quando houver

interesse ou competência destes órgãos na matéria, o que é o caso do conflito

fundiário urbano.

4.8. Necessária Intervenção do Ministério Público em conflitos fundiários

urbanos.

O Ministério Público também deverá ser chamado a intervir nos litígios

urbanos, tendo em vista que o conflito possessório não se restringe aos interesses

contidos nos direitos de propriedade, perpassando, como vem sendo demonstrado,

por questões referentes ao interesse social e a direitos fundamentais de uma

coletividade. Destarte, faz-se mister atentar para o disposto no artigo 82, incisos I e

III do CPC:

“Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I - nas causas em que há interesses de incapazes; III - nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.”

A mens legis que instrui a presença do MP no conflito agrário é a

mesmo que fundamenta o conflito urbano, uma vez que a Constituição Federal o

incube da defesa do regime democrático e dos interesses sociais, coletivos e

individuais indisponíveis. Com a publicação do Estatuto da Cidade e a maior

evidência destes conflitos, é natural se equiparar o conflito urbano ao agrário,

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72

cabendo maior atenção do Estado ao mesmo. De qualquer forma, nas ocupações

urbanas, há evidente interesse público na medida em que o conflito envolve o direito

constitucionalmente garantido à moradia de dezenas ou centenas de famílias,

cabendo a intervenção do órgão ministerial pelo comando final do inciso III.

Por outro lado, como envolve grande quantidade de famílias, a

presença do MP no processo se faz obrigatória pela existência do interesse direto de

menores incapazes no litígio, bem como a presença de idosos, nos termos do art. 1º

da Lei 10.741/2003, que prevê a intervenção ministerial na proteção do idoso em

situação de risco (art. 74, II, final).

Cabe ressaltar, que a não provocação da intervenção do Ministério

Público, macula de vício da nulidade todos os atos que deveriam ser praticados com

sua a presença, nos termos do artigo 246 do CPC, sendo este o entendimento maior

da jurisprudência:

“Nesse contexto, a presença e a participação do Ministério Público em demandas dessa natureza são imperiosas, na medida em que a visão dimanada desse órgão oportunizará no feito a defesa de direitos e interesses outros, não apenas aqueles contidos na estrita relação processual que vincula possuidores e proprietários. A Constituição Federal, aliás, dotou o Ministério Público de funções maiores e de alta relevância na proteção do interesse público. Esse interesse está, como em poucos casos, eloqüentemente presente na espécie. Tão imperiosa e valiosa é a presença do Ministério Público que deve ser ele convocado desde o início da demanda, para que, desde logo, esteja ela, lide, impregnada da visão publicista ao magistrado melhores e mais amplos elementos de convicção para decidir.

Por fim, pedindo vênia para as opiniões contrárias, penso que, posto tecnicamente irretocável, como já foi dito, a decisão recorrida, em razão da densidade social e do relevante interesse público que estão o informar a controvérsia, deve o disposto no inciso III do artigo 82 do CPC receber interpretação ampla e, particularmente, afeiçoada e direcionada à natureza excepcional dos fatos, com vistas a intervenção do Ministério Público.

COM ESSAS CONSIDERAÇÕES, DEFERINDO OS PEDIDOS CONTIDOS NAS LETRAS A) E B), DOU EFEITO SUSPENSIVO AO RECURSO, PARA QUE, CASSANDO A DECISÃO AGRAVADA, SEJA OPORTUNIZADA A INTERVENÇÃO, DESDE LOGO, DO MINISTÉRIO PÚBLICO, NA FORMA PLEITEADA". (AI nº 197144462, Juiz Plantonista Perciano de Castilhos Bertoluci – Porto Alegre, 25 de julho de 1997).”

Assim, a presença do MP nos conflitos fundiários urbanos deve se dar

desde o início da lide, antes mesmo da apreciação da liminar, como forma de

trazer a fiscalização do interesse público para dentro do processo. Como o comando

da função social da propriedade é uma garantia fundamental dos não-proprietários e

um dever fundamental do proprietário, o seu cumprimento importa a toda a

sociedade, caracterizando o interesse público na demanda, a autorizar, além de

Page 73: As ações possessórias nos conflitos fundiários coletivos em imóveis urbanos

73

outros pontos de competência do MP envolvidos, a atuação do órgão ministerial.

Esta idéia de publicização do regime da propriedade privada, pelo

comando constitucional da função social, foi reconhecida na Carta de Ribeirão Preto,

fruto do seminário entre membros do Ministério Público Estadual e Federal (CARTA

DE RIBEIRÃO PRETO, 2002, p. 360).

Na proposta de lei para construção da política nacional de mediação de

conflitos urbanos, está explícita a necessidade de se acionar o MP nas ações de

reintegração de posse, para construir alternativas para o litígio, a fim de proteger o

direito a moradia e acesso a terra urbana.

Além disto, a importância do MP nas disputas de terras urbanas deve-

se à busca do órgão por soluções pacíficas e negociadas do conflito, que venha a

garantir o direito fundamental social da moradia para as famílias envolvidas, sempre

fiscalizando a violação dos direitos humanos e protegendo o interesse dos menores

e idosos.

4.9. A postura ativa e o dever negocial do Judiciário enquanto órgão do

Estado.

A Constituição Federal de 1988 funda um Estado Democrático de

Direito que, em seu preâmbulo, afirma estar comprometido com a solução pacífica

das controvérsias, tanto na ordem interna como internacionalmente.

O Poder Judiciário é parte do Estado brasileiro, e como tal deve se

portar. Os fundamentos, os objetivos, os princípios e as garantias fundamentais

devem ser buscadas, não apenas na criação de leis ou em sua execução. No

julgamento das demandas, deve o Poder, que foi criado para este fim, fazer valer

toda a base que dá origem ao Estado brasileiro.

Este entendimento se aplica, logicamente, aos conflitos fundiários

urbanos. A origem destes conflitos já foi detalhada acima, e é dever do Estado, que

não é sinônimo de Poder Executivo, em promover fórmulas que impeçam a

especulação imobiliária e possibilite a garantia do fundamental direito à moradia. A

decisão típica de Pilatos, que alguns magistrados insistem em adotar, determinando

o uso da tropa de choque para a resolução do conflito social, que, segundo eles não

lhes cabe sequer enfrentar, por ser papel do Executivo ou do Legislativo, implica em

fuga do dever constitucional de zelar pela solução pacífica dos conflitos.

Page 74: As ações possessórias nos conflitos fundiários coletivos em imóveis urbanos

74

Ademais, o próprio CPC obriga o magistrado a buscar a conciliação das

partes, nos termos do art. 448 e 449. Em conflitos fundiários urbanos, a busca da

conciliação deve envolver outros atores, como Ministério Público, Prefeitura, Estado

e União, como visto. Já o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil, pugna pela

aplicação da lei de acordo com os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do

bem comum. Deve o magistrado, portanto, buscar uma composição para o conflito,

explorando as diversas saídas negociadas para a solução do litígio, sem ter que

recorrer à ultima ratio militar sem antes ter utilizado dos meios negociais

apresentados. Trata-se da aplicação in concreto do princípio da precaução, que

afirma a necessidade de se prevenir situações de risco ou conflito que possam

produzir danos sérios ou irreversíveis, requerendo a implementação de medidas que

possam evitar estes danos.

O STJ assim já se pronunciou sobre o tema

“(...)a desocupação, ex abrupto, de expressivo número de famílias

assentadas em área urbana provoca grave perturbação social. Conquanto o Poder Judiciário não possa descurar do direito de propriedade, de um lado, por outra parte deve estar atento aos reflexos no contexto social que suas decisões provocam.

...o imediato desalojamento dos posseiros tem potencial para causar grave perturbação da paz social, da ordem e da segurança públicas(...)” (STJ. Supen. de Seg. 444/ES (96/0003602-0). Pre. Min. William Patterson).

O Juiz deve, então, ao invés de se determinar audiência de justificação,

com o fito de produzir prova que redunde numa liminar que expulsem famílias de um

local abandonado, onde tentavam exercer seu direito fundamental, determinar a

ocorrência de uma audiência de conciliação, verdadeira reunião, convidando os

poderes públicos responsáveis pela política habitacional, o autor da ação,

representação dos réus, o órgão ministerial, a defensoria pública e o conselho

tutelar, como forma de evitar a concessão de medida danosa para grande

quantidade de pessoas.

Segundo a Plataforma Brasileira de Prevenção a Despejos,

apresentada acima, exige-se a:

“22. Atuação do juiz como conciliador e mediador do conflito fundiário, garantindo o devido processo legal e o contraditório (o direito à defesa) para o alcance de solução que assegure às famílias, comunidades, movimentos sociais e/ou grupos vulneráveis, adequado reassentamento, compensação ou indenização” (2009).

É preciso se compreender o conflito possessório urbano como

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75

demanda incomum, por se referir a direitos fundamentais do homem, fruto de um

imenso problema habitacional do país. Para este tipo de demanda, é preciso buscar

a decisão e a condução do processo da forma mais justa. Assim, havendo conflito

entre o direito patrimonial e o fundamental, o magistrado deve estar preparado para o

sacrifício do direito patrimonial.

Segundo Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, cabe ao Judiciário

“deixar de atribuir tutela jurisdicional à propriedade que não atenda aos valores

sociais e existenciais, consagrados na Constituição”. Estamos diante de uma nova

ordem pública em que a proteção da propriedade não pode estar descolada da

proteção de situações jurídicas não patrimoniais, com prioridade axiológica para a

Constituição (2002, p. 116).

Outra postura que deve ser adotada pelos magistrados é a realização

de inspeção judicial na área ocupada, nos termos do parágrafo único do art. 126 da

CF e dos arts. 440 e ss. do CPC. Ali o juiz terá a oportunidade de perceber se a área

cumpria função social antes da ocupação, ou aparentava abandono, não cumprindo

os requisitos constitucionais do art 182, § 2º e do art. 7 do PDDU de Salvador, bem

como do atual cumprimento da função social pelos ocupantes. Poderá constatar a

situação de estado de necessidade de famílias brasileiras, empurradas para a

ocupação pela trágica desigualdade social e mecanismos de expansão urbana,

estudados acima. Tudo isto como forma de garantir o devido processo legal, o

contraditório e a ampla defesa, em circunstâncias tão complexas como os conflitos

fundiários urbanos.

“REINTEGRAÇÃO DE POSSE LIMINAR. AUSÊNCIA DE

AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO PRÉVIA OU DE VISTORIA NO LOCAL. DECISÃO NÃO FUNDAMENTADA. Deve ser cassada a decisão liminar proferida no primeiro grau que, além de desfundamentada, deferiu a reintegração de posse sem a audiência de justificação prévia ou vistoria que as circunstâncias do caso recomendavam (TJ-AM, Secção Única. MS 224/99, rel. Des. Carmo Antônio, j. 25.03.1999).

O Carta de RMS pela resolução pacífica dos conflitos fundiários chama a

atenção para a necessidade de formação de uma cultura diferenciada no Poder

Judiciário, para o atendimento da função social da propriedade e a observação da

garantia dos direitos humanos à população ocupante nos processos de reintegração

de posse e a já citada Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos afirma:

“18. Realização da inspeção judicial no local do conflito pelo juiz da

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76

causa para identificar a natureza da posse exercida pela comunidade ou grupo afetado; o número de crianças, mulheres, idosos e pessoas portadoras de deficiência; e as mediadas mitigadoras ou compensatórias que devem ser adotadas pelo proponente do despejo e/ou pelo poder público competente” (2009).

Por fim, apesar de se tratar de procedimento reivindicatório, o Código

Civil deu poderes especiais para o magistrado intervir em conflitos fundiários urbanos

com a chamada desapropriação judicial, prevista no art pelo art. 1.228, § 4° e 5° do

Código Civil:

“§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.”

Há uma valorização da posse-trabalho, com a concessão ao Judiciário

de uma fórmula para dar fim, com Justiça, a conflitos fundiários, quando preenchidos

requisitos dos citados parágrafos. A nosso entender, o que o Código quis dizer, em

termos de política-jurídica, é que cabe também ao Judiciário resolver os problemas

coletivos que lhes surgem, para a além da defesa cega da propriedade. Que a visão

tradicional e absoluta deste direito já foi relativizada.

A discussão doutrinária acerca da desapropriação judicial segue, com

especial debate sobre o sujeito obrigado a indenizar. Glauco Gumerato Ramos

posiciona-se pelo dever solidário do Estado no pagamento da indenização devida,

uma vez que é o próprio Estado, por meio do Judiciário, quem está promovendo a

desapropriação (RAMOS, 2007, p. 451). Concordamos com a opinião, reforçando o

papel do Estado como responsável pelo pagamento da desapropriação, em especial

o Município, de acordo com o caput do art. 182 da CF, caso o conflito envolva imóvel

urbano e a população seja de baixa renda, o que confirma a necessidade de

chamamento deste ente em caso de conflito fundiário urbano.

Esta nova determinação do Código Civil também é importante, pois

complementa o conceito legal de função social da propriedade previsto no mesmo

art. 1.228, § 1°. A perda do bem, decretada pelo Judiciário, se faz pela posse-

trabalho dos réus da ação de reivindicação, pelo fato de terem realizado obras e

serviços considerados de relevante interesse social e econômico pelo juiz. Ou seja,

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deram uma função social ao bem. A realização destas obras e serviços concretos e a

sua valoração de acordo com o interesse social e econômico formam os critérios

para um conceito legal de função social da propriedade, que se somam aos previstos

no referido pelo § 1°. Visto por outro lado, quando um proprietário não cumpre estes

mesmos requisitos, pode dar margem além da referida desapropriação, à perda da

proteção possessória conforme exposto acima.

Régis Fernandes de Oliveira, então Desembargador do Tribunal de

Justiça de São Paulo, em entrevista concedia ao Jornal Folha de São Paulo em

1991, se posicionou pelo reconhecimento das situações fáticas de interesse social

pelo Judiciário, com a provocação do decreto de desapropriação pelo Executivo.

Caso este poder não o desaproprie, o desembargador já admitia a desapropriação

indireta, realizada pelo Judiciário, com fundamento na Constituição, que foi

positivada pelo art. 1.228 do CC, acima visto.

4.10. A apreciação do pedido liminar possessório.

A aplicação do procedimento de disputa possessória individual não

deve ser o mesmo para o litígio coletivo, tendo em vista a ampliação da

complexidade da questão, o necessário envolvimento de outros atores sociais e a

quantidade de direitos fundamentais envolvidos, constitucionalmente protegidos.

Partindo desta compreensão, e tendo em conta as garantias do direito à

cidade e à moradia trazidas nas fartas legislações urbanísticas, bem como dos

recorrentes ditames legais que visam combater a especulação imobiliária, entende-

se que, havendo conflito coletivo urbano, não deve o juiz, em qualquer hipótese,

conceder a liminar, cabendo-lhe convocar a audiência de justificação prévia, como

forma de ampliar a cognição judicial da situação e de permitir outras formas de

resolução do problema.

Isto não significa a não aplicação do CPC para este tipo de conflito. Ao

contrário, a partir de toda legislação apresentada, percebe-se que o conflito fundiário

não se trata unicamente de uma questão privada e envolve necessário interesse

público. Pugna-se, portanto, pela a aplicação do parágrafo único do art. 928 do CPC,

nas ações possessórias coletivas urbanas.

O Prof. Sérgio Sérvulo da Cunha tem outro forte argumento para o não

deferimento da liminar em litígios possessórios coletivos. Ele afirma que, havendo

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78

direito à subsistência no pólo passivo da ação, mesmo que a inicial seja guarnecida

com prova da posse ou propriedade, não cabe a liminar, pois a mesma frustraria a

argüição da exceção “exceptio vitae sustiendae”, que, como toda exceção, não

fulminaria o direito do autor, mas lhe tiraria a eficácia e, uma vez reconhecida tal

exceção, é dever do Estado indenizar o proprietário e garantir o bem para os

ocupantes. Tal exceção, segundo o autor, deve se processar nos mesmos autos da

possessória. (2000, p. 273).

As liminares possessórias possuem natureza satisfativa, e, segundo o

Prof. José Albuquerque Rocha, citado por Laércio A. Becker (2009), pode ser visto

como inconstitucional neste tipo de caso, por ferirem os princípios do contraditório e

do devido processo legal, previstos no texto constitucional como garantias

fundamentais da pessoa humana. Desta forma, este tipo de cognição sumária deve

ter como referência os princípios da probabilidade (sacrifício do improvável em

proveito do provável), como também da proporcionalidade (avaliação dos interesses

em jogo). Ora, em conflitos fundiários urbanos, envolvendo grande número de

famílias, o cumprimento da função social da propriedade e da posse deve ser

utilizado como mais um critério objetivo a ser utilizado para balizar o princípio da

proporcionalidade (BECKER, 2009), o que dificulta o deferimento do pedido liminar.

Demais disso, a concessão de medida liminar inaudita altera pars é

considerada na doutrina jurídica como uma medida excepcional no processo, dado a

possibilidade maior de se violar princípios gerais do direito, consagrados na

Constituição de 88: o devido processo legal; ampla defesa e contraditório. E tal

incongruência com os direitos fundamentais se amplia quando estamos lidando com

dezenas ou centenas de famílias na parte ré, em geral, mais de mil pessoas

envolvidas.

De qualquer sorte, a decisão do magistrado é baseada em seu livre

convencimento, que tem como norte as provas produzidas pelas partes. É preciso

verificar os incisos implícitos afirmados neste trabalho, bem como a conjuntura social

e os reflexos negativos que podem gerar a concessão da liminar em processo com

grande quantidade de pessoas envolvidas. Aqui cabe a prudência do art. 5° da LICC.

A melhor solução, em todo caso, é a realização de audiência de justificação da

posse, como forma de dar oportunidade para aprofundamento das provas dos

requisitos da liminar, compreensão melhor do conflito e a buscar soluções

alternativas para a melhor preservação dos direitos envolvidos.

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79

O argumento de que a razão de ser da liminar “é exclusivamente a de

propiciar a rápida obtenção do resultado prático do processo, sem qualquer ligação

com o perigo de dano concreto à satisfação do direito” (MARCATO, 2005, p. 159)

não coaduna com um processo coletivo, em que está em jogos direitos

fundamentais, inclusive a vida, dos envolvidos.

Na realidade, a agilidade, característica dos interditos, é justamente o

seu principal problema, quando em uso para solucionar conflitos fundiários coletivos.

Os referidos litígios, como já visto, envolvem direitos fundamentais de ambas partes,

sendo um único direito e individual de um lado e de uma multidão e versando sobre

diversos direitos, de outro, e devem ser resolvidos de acordo com o princípio da

dignidade da pessoa humana. Tudo isto é descartado pela rapidez do procedimento

individualístico. É certo que, numa pendenga entre “A” e “B”, ambos proprietários, tal

procedimento pode ser adotado, sem maiores conseqüências para ambos. Mas,

como já dito, entre “A” e 1.000 “B”s, adotar o mesmo procedimento beira a

insanidade.

O conflito fundiário urbano exige tempo para negociação, de forma que

a melhor solução seja construída com a participação de outros atores sociais, em

especial as Prefeituras Municipais. Estamos diante do direito à cidade e do direito à

moradia, normas esculpidas no Estatuto da Cidade e, como tal, são de interesse

público. O mesmo interesse público que é utilizado pelo próprio CPC no parágrafo

único do art. 928 para impedir liminares sem prévia audiência dos representantes

judiciais das pessoas jurídicas de direito público.

Segundo parecer da Dra. Cleide Ramos Reis:

“Não se pode pensar em reconhecer a posse do autor in limine, em detrimento do direito de MORADIA, DGNIDADE, VESTUÁRIO, ALIMENTAÇÃO, e proteção especial e integral a crianças e adolescentes, consoante asseguram os arts. 6º e 227 da Carta Magna, tampouco desvinculado do sentido da FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE a que alude o art. 186 da Carta Federal” (2005, p. 129).

A doutrina discute se o comando da primeira parte do caput do art. 928

gera um juízo vinculado para o magistrado. Comprovado os requisitos do art. 927, o

juiz é obrigado a conceder a liminar. Segundo nosso entendimento, o magistrado não

está vinculado ao art. 927 do CPC. O juiz possui o livre convencimento extraído do

material probatório produzido pelo autor e da contra-prova trazida pelos réus. E

mesmo que comprovados todos os elementos, o próprio contexto social em que está

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inserido o fato concreto pode ensejar à não concessão da liminar e, ao menos, dar

vazão à realização de audiência de justificação da posse, oportunidade que, além de

aprofundar as provas dos requisitos da liminar, poderá compreender melhor o conflito

e buscar soluções alternativas para a melhor preservação dos direitos envolvidos.

AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – NÃO COMPROVAÇÃO DOS ELEMENTOS NECESSÁRIOS À CONCESSÃO DA MEDIDA POSSESSÓRIA – A decisão liminar é precária e a sua concessão depende, basicamente, da formação do convencimento do julgador responsável pela colheita da prova documental ou em sede de audiência de justificação, inserindo-se a decisão, ainda que indiretamente, no poder geral de cautela do Magistrado. A concessão ou denegação da liminar fica ao prudente arbítrio do juiz, só podendo ser reformada, pelo tribunal, em caso de evidente ilegalidade. (TAMG – AI 0337722-4 – Passos – 3ª C. Cív – Relª Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto – J. 31.10.2001).

Uma vez concedida a liminar, há possibilidade de retratação por parte

do magistrado. Pelo procedimento costumeiro adotado pelos juízes, não levando em

conta os elementos trazidos neste trabalho, a liminar é concedida se o proprietário

comprovar os requisitos do art. 927 do CPC. Desta forma, argumenta a doutrina que

novos elementos podem ser trazidos ao processo que informem a equivocidade da

decisão proferida, com a cassação da mesma. Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa

Maria de Andrade Nery, o juiz pode revogar a liminar e concedê-la, novamente, se for

o caso, ou a propósito do juízo de retratação, se for interposto o agravo (2006, p.

996).

O Prof. Misael Montenegro Júnior coaduna deste entendimento:

“Não existe qualquer razão lógica para determinar que o magistrado, constatando (através da colheita de outras provas) que se equivocou no que se refere ao deferimento da liminar, não possa revogar a decisão antes proferida, devendo ficar atado a uma realidade jurídica que não espelha o panorama fático” (2004, p.172)

Neste sentido,

“Possessória – revogação da liminar. Diante de prova documental

superveniente, é lícito ao juiz revogar a concessão de liminar possessória. Agravo de instrumento desprovido.” (TAPR – AI 0055132-2 – Paranaguá – 3ª Cam. Cív., unân. rel. Juiz Pacheco Rocha, j. 01.12.1992.

É preciso, também, que a decisão seja fundamentada, nos termos do

art. 93, IX da CF. Para tanto, não são suficientes meras afirmações de que os

requisitos do art. 927 estariam preenchidos, como se vê constantemente no foro.

Tratando-se de conflito fundiário urbano, com grande quantidade de famílias

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envolvidas, é preciso fundamentação profunda, referente a todos os incisos do art.

927 do CPC, assim como os implícitos incisos V e VI referidos neste trabalho, para

que o disposto no comando constitucional seja preenchido e a decisão considerada

válida.

Desta maneira, faz-se extremamente necessário o aprofundamento da

produção das provas para o deslinde da situação, conforme jurisprudência:

“POSSESSÓRIA –Reintegração de posse. Liminar. Posse de terras

envolvendo várias famílias de baixa renda. Controvérsia sobre muitas questões subjacentes relevantes, inclusive a situação individual de alguns réus. Necessidade de maior dilação probatória, fim de proporcionar uma análise mais acurada de toda situação. Liminar cassada. Recurso provido para este fim” (1º TACSP – AI 945.033-9 São Paulo – 8ª C. – Rel. Juiz Antônio Carlos Malheiros – J. 06.06.2001)

Conclui-se, por conseguinte, pela impossibilidade da concessão da

medida liminar da reintegração de posse sem a realização da audiência de

justificação prévia, com respaldo da jurisprudência colacionada a seguir:

“Ficando evidenciado que o Autor somente juntou o título de domínio para acompanhar a inicial da reintegratória, e os documentos acostados a este recurso geraram dúvidas quanto a presença dos requisitos do art. 927 do CPC, deve-se dar provimento ao presente agravo, para determinar ao juízo singular a realização da audiência de justificação prévia.” (TJ-BA, 3.ª Câmara Cível, Ac. 1816, AI 34268-7, Rel. Des. Paulo Gomes, j. 26.11.97, provido à unanimidade. Grifo nosso.)

“PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – CONCESSÃO DE LIMINAR – AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO – NECESSIDADE. Para a concessão de liminar em ação possessória faz-se necessário a realização de audiência de justificação prévia, não bastando apenas a apresentação de documentos despidos do crivo do contraditório – Agravo conhecido e provido – Unanimidade.”(TJMA – AI 18.847/2001 – 2a Câmara Cível – Rel. Des.Raimundo Freire Cutrim – 30.04.2002. Grifo nosso)

“A concessão de liminar em ação de reintegração de posse deve vir calcada em um juízo de quase certeza quanto à presença dos pressupostos do art. 927 do CPC. Ausente prova inequívoca dos requisitos para a concessão da medida pleiteada, impõe-se a realização de audiência de justificação prévia, prevista no art. 928 do CPC, a fim de oportunizar a ampliação probatória indispensável ao juízo liminar, até mesmo em razão de se tratar de esbulho recente decorrente de posse nova. Audiência designada, no juízo de origem, para os próximos dias, recomendando aguardar-se decisão decorrente. NEGADO SEGUIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO. (TJ-RS, 18.ª Câm. Civ., AI. 70012279600, rel. Des. André Luiz Planella Villarinho, j. 11.07.2005. Grifo nosso.)

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4.11. O procedimento da audiência de justificação prévia.

A audiência de justificação prévia da posse se constitui numa fórmula

probatória para que o magistrado tenha convicção de que o autor era efetivo

possuidor da coisa ao tempo da suposta turbação, para que não venha a exarar

liminar, ato extremamente gravoso, sem a plena convicção da realidade de fato.

Ademais, é de se observar um princípio básico das possessórias – o quieta non

movere – que aponta a necessidade de manter-se intocada a situação de fato

encontrada pelo julgador até que a instrução processual forneça elementos

suficientes para esclarecer a quem realmente pertence o direito de posse sobre o

bem em questão.

Para que se proceda de forma regular, é fundamental que se proceda a

intimação do réu para que compareça à audiência de justificação. Uma vez existindo

litisconsortes necessários, é obrigatória a sua citação, ou seja, a citação de todos os

ocupantes, à audiência, sob pena de nulidade do ato (ALVIM, 2007, p. 411).

Além da necessidade de se realizar a audiência de justificação, é

preciso acurar acerca do procedimento a ser adotado durante o ato. A prática forense

e parte da doutrina (NERY JÚNIOR e NERY, 2006, p. 996) informam que apenas as

testemunhas do autor devem ser ouvidas na justificação. Isto porque, segundo tal

entendimento, é ônus do autor provar a sua posse, bem como o réu não precisa

adiantar a colheita da sua prova na audiência de justificação, pois geraria prejuízo

para o mesmo, uma vez que não poderia reinquirir as mesmas testemunhas na

audiência de instrução e julgamento na seqüência do processo, gerando preclusão

antecipada para o réu e violação ao devido processo legal, contraditório e ampla

defesa.

Tal entendimento, que aparentemente beneficiaria o réu, mantendo-o

em compasso de espera, aguardando o autor comprovar o que é seu ônus, talvez

tenha perfeita aplicabilidade para litígios individuais, envolvendo sujeitos que podem

arcar com o ônus de se verem sem o imóvel no primeiro momento, e depois

recuperá-lo no curso ou ao final do processo. Isto não se sucede em conflitos

coletivos urbanos. Neles, a ocupação do terreno ou imóvel vazio se faz por estado

de necessidade imediata, para fins de moradia instantânea das famílias, com a

construção do barraco no mesmo momento e realização da “mudança”, com móveis

e utensílios sendo levados imediatamente para o local.

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Neste caso, estamos diante do único local de moradia daquelas

famílias, cuja perda do espaço significa ausência completa de local para onde ir e/ou

ter que retornar para esquemas anteriores de maior precariedade habitacional. Tudo

isto, obviamente viola incontáveis artigos constitucionais, de pactos de direitos

humanos do qual o Brasil é signatário, inúmeras leis urbanísticas, e mesmo normas

morais básicas de convívio e solidariedade social.

Para estes réus, é preciso a todo custo impedir a concessão da medida

liminar, como forma de se manter na área, exercendo seu direito fundamental de

moradia, bem como ter tempo suficiente para envolver órgãos públicos e entrarem

em conversação com o proprietário, como forma de se buscar uma saída negociada

para a questão23.

Com estes pressupostos, fica patente a inconstitucionalidade da não

oitiva de testemunhas dos réus na audiência de justificação. Assim, devem os réus

ser intimados para indicarem suas testemunhas para a audiência de justificação,

podendo também ser ouvidos. Nesta fase processual, o depoimento dos réus e suas

testemunhas devem se focar em ilidir os pressupostos para a concessão da liminar,

em especial a comprovação da posse, nos termos já discutidos neste trabalho, bem

como o não cumprimento da função social da posse, o que impediria a concessão da

medida, por falta de preenchimento do implícito inciso V, do art. 927, como já

relatado.

Tal procedimento precisa ser respeitado, inclusive, para comprovação

da data do suposto esbulho – não há esbulho quando se ingressa em terreno vazio,

como já afirmado alhures. Na prática forense, muitos proprietários valem-se do

testemunho de seus funcionários para fazer afirmações, em audiência de

justificação, de que ocupações com anos de existência possuem meses24, bem

como omitir o descaso com a área e seu real abandono anterior à ocupação.

Estas testemunhas, funcionários do proprietário, têm evidente interesse

23 A existência de ordem liminar, a prática tem indicado, é usada como “trunfo” pelos proprietários no processo de negociação da área. A ordem judicial serve como uma “faca no pescoço” dos moradores e mesmo do Estado quando este quer indenizar a terra, pois é obrigado a pagar o valor que o proprietário quer para área, em geral, muito maior que o valor real da terra. Quando o Estado tenta negociar, os proprietários fazem chantagem e ameaçam pedir o cumprimento da liminar... O Judiciário aqui (e esta tem sido a regra nos conflitos fundiários, quando há negociação), não só protege a especulação imobiliária, como sua ordem liminar “valoriza” o terreno vazio. Aparentemente, não é este o papel constitucional e legal do Poder Judiciário. 24 Em conflitos agrários, é comum áreas que passaram de geração em geração entre pequenos agricultores ter decretada medida liminar contra si, como se posse nova fosse, dada as afirmações proferidas pelos capatazes dos autores, e a ausência do réu ou de suas testemunhas na audiência de justificação.

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na causa. Isto porque seus postos de trabalho dependem diretamente do que eles

articularem no testemunho, uma vez que a subordinação é condição estruturante da

relação de emprego. Para evitar situações como estas, é fundamental que o

magistrado ouça as testemunhas dos réus e mitigue o valor da testemunha

empregada do autor, nos termos do a art. 405, § 3°, IV do CPC.

4.12. Vedação ao desforço imediato

Se o autor não tem como comprovar sua posse, sua função social,

mantém o imóvel abandonado para fins de especulação, ao arrepio da lei, não tem

direito ao desforço imediato previsto no CC, art. 1.210, §1º.

Segundo o Prof. Fernando da Costa Tourinho Neto, o então direito

absoluto da propriedade deve ser interpretado restritivamente, com o advento da

Constituição Federal. Desta forma, uma vez não cumprindo a função social, não teria

direito ao desforço imediato. “A reação, mediante desforço in continenti (CC, art. 502)

do proprietário, que, na verdade, posse da terra não tem, pois como disse, não tem

proteção da norma constitucional, é ilegítima e ilegal” (TOURINHO NETO, 2000, p.

193).

Eventual ação do proprietário neste sentido constitui crime de formação

de quadrilha e dano, entre outros, tendo em vista que reação imediata sequer se

qualifica como pretensão legítima.

4.13. O eventual cumprimento da decisão liminar

Garantido todos os princípios constitucionais e frustradas as formas de

mediação do conflito, não entendendo o Poder Judiciário e/ou o Executivo pela

desapropriação da área, o processo segue para o cumprimento de eventual decisão

liminar ou da sentença.

Neste ponto, a Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos é

bastante precisa, ao indicar uma série de medidas a serem tomadas pelo magistrado

e pelos órgãos públicos durante o cumprimento da ordem:

a) Realização de consultas à população afetada para discutir a

situação, de forma a evitar ou minimizar o uso da força;

b) Concessão de prazo razoável para saída das famílias e notificação

de todos envolvidos;

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c) Facilitação do acesso à informação para os envolvidos, com lapso

de tempo razoável;

d) Intimação do MP, Defensoria, órgão estatal responsável pela política

urbana, Conselho Tutelar e outros órgãos responsáveis por prestar

assistência humanitária;

e) Identificação de todas as pessoas afetadas;

f) Não realização do despejo sob mau tempo, à noite, nos finais de

semana, dias festivos ou santos, salvo se houver consentimento dos

ocupantes;

g) Apontar possibilidade de recursos jurídicos e garantir que a

assistência jurídica continue acontecendo, mesmo após a

ocorrência do despejo.

Uma vez tomadas todas estas precauções, terá o magistrado dado

espaço para a garantia dos direitos humanos e para se evitar desocupações

arbitrárias e violentas.

Outro ponto que precisa ser tratado é o horário do cumprimento da

decisão liminar. Para que a ação policial ocorra em sábados ou domingos, é preciso

autorização expressa do magistrado, nos termos do art. 172, § 2º. Deve-se ressaltar

que se estará derrubando a residência das pessoas, o que exige grande cautela no

cumprimento da ordem.

Ademais, deve o autor requisitar força policial para o cumprimento da

liminar, em sua inicial. Não o fazendo, não pode o Judiciário determinar diretamente

o uso da polícia, tampouco o próprio oficial de justiça requisitar a presença da Polícia

Militar.

O fornecimento dos elementos necessários para que se proceda ao

cumprimento da decisão liminar é dever do autor da ação, com a disponibilização de

caminhões para conduzir o material dos ocupantes para outros locais, nos termos do

art. 19, §2º do CPC. Não promovida tal despesa, a liminar não pode ser cumprida.

Além disto, a Plataforma Brasileira de Prevenção a prevê:

“20. Exigência de que o ente público ou privado promotor da ação de despejo, reintegração de posse ou reivindicatória de propriedade apresente ao juízo estudo de impacto social, ambiental, de vizinhança e/ou econômico, conforme o caso, para determinar os impactos negativos sobre a população afetada no caso do despejo envolver elevado número de famílias, movimentos sociais e/ou grupos vulneráveis vivendo em assentamentos informais, urbanos ou rurais” (2009).

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Outra importante consideração, presente na proposta de política para

mediação dos conflitos fundiários e pelo grupo de trabalho sobre mediação de

conflitos da RMS é o respeito aos direitos humanos e sociais dos envolvidos no

conflito, durante eventual cumprimento da decisão. Muitos foram os casos, e o

cumprimento da liminar na Ocupação Sonho Real em Goiânia, com saldo de dois

mortos e alguns desaparecidos até hoje, mostram que é preciso envolver os órgãos

de Segurança Pública, como as Polícias Civil e Militar e o próprio Judiciário na busca

tanto da resolução negociada do conflito, como nos debates para cumprimento da

liminar que respeite os direitos humanos dos ocupantes.

Por fim, uma situação muito comum na praxe forense é a desídia do

proprietário, uma vez que consegue seu intento maior que é a concessão da liminar.

A partir deste momento, não mais se interessa pela movimentação do processo,

quando não solicita a extinção do mesmo. Percebendo tal situação, deve o

magistrado aplicar os efeitos do art. 267, II ou III e extinguir o processo sem exame

do mérito, determinando o imediato retorno à situação anterior, antes da concessão

da liminar, com uso de força policial para tanto, caso seja necessário. É a pena

aplicável pelo CPC para a desídia processual do autor.

4.14. Direitos do possuidor de boa fé.

A posse realizada em ocupação urbana é justa e de boa-fé, e, caso seja

deferida a proteção liminar pela sentença, os ocupantes fazem jus a todas as

indenizações em Direito admitidas.

Nas palavras de Orlando Gomes (2004, p. 52):

“Posse justa é aquela cuja aquisição não repugna ao direito. Para ter essa qualidade o que importa é a forma de aquisição. (...) Em termos mais concretos, a posse é justa quando isenta de vícios originais. Os vícios objetivos que maculam a posse são: a violência, a clandestinidade e a precariedade”.

Na forma do artigo 1.200 do CC, os elementos que caracterizam a

posse injusta, portanto, são: violência, clandestinidade e precariedade. Orlando

Gomes conceitua a posse violenta como aquela que se adquire pela força, que se

“obtém-se pela prática de atos materiais irresistíveis. Sem a violência física, não há

posse dessa qualidade”. (2004, p. 53)

Nas ocupações urbanas, não se pode falar em posse violenta porque

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87

sequer há contra quem cometer esta violência. Os imóveis ocupados encontram-se

abandonados e os ocupantes, tendo a necessidade biológica da moradia e

conhecendo a situação de abandono, procedem as ocupações pacificamente.

Posse clandestina, nas palavras do mesmo doutrinador, é aquela que

se adquire às escondidas. As ocupações são feitas de forma pública e permanecem

no local de forma ostensiva, sendo conhecida de todos os moradores da região onde

ocorrem, bem como, em geral, fartamente divulgada pela imprensa. Nada é ocultado

daqueles que se dizem proprietários, até porque, os ocupantes sequer sabem da sua

existência.

Por fim, posse precária é aquela que se adquire por abuso de

confiança. Se os ocupantes avaliam que o imóvel foi abandonando, desconhecendo

seu proprietário, também não mantém com ele qualquer tipo de vínculo, não se

caracterizando esse tipo de posse.

A posse dos ocupantes, portanto, é justa. Mas, além de isenta de vícios

objetivos, também o é com relação aos vícios subjetivos. O artigo 1.201, caput, do

CC conceitua a posse de boa-fé. Mais uma vez, Orlando Gomes explica o conceito:

“É de boa-fé a posse se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa, ou do direito possuído. Para que alguém seja possuidor de um bem, preciso é que esteja convencido de que, possuindo-o, a ninguém prejudica. O direito pátrio concebe a boa-fé de modo negativo, como ignorância, não como convicção” (2004, p.54).

Ora, se os imóveis ocupados estão totalmente abandonado é

perfeitamente presumível, diante desta situação, que qualquer pessoa de bom-senso

o considere como o que de fato é: um imóvel vazio, sem dono, aberto para quem

pretenda se apossar dele! Propriedade abandonada é propriedade sem dono; não

existe má-fé quando se ocupa legitimamente propriedade abandonada, garantindo-

lhe função social. É impossível acusar os ocupantes de esbulho, porque falta para

tanto a intenção de esbulhar. Os ocupantes simplesmente adentram em imóveis

visivelmente em desuso e desocupado. Na realidade, não só não prejudicam

ninguém, como beneficiam a sociedade, por darem um uso social a imóveis que

servem, em geral, para a prática de delitos.

Assim sendo, não havendo vícios de ordem objetiva ou subjetiva à

aquisição da posse, os ocupantes são considerados possuidores justos e de boa-fé,

na forma descrita pelos artigos 1.200 e 1.201 do CC.

Em razão disto, havendo a decisão liminar ou a sentença ao final do

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processo, devem ser deferidos todos os direitos garantidos aos possuidores de boa-

fé, como direito aos frutos percebidos, a não responsabilização pela perda ou

deterioração da coisa a que não derem causa, indenização às benfeitorias

necessárias e úteis, fazendo valer seu direito de retenção, devendo o autor pagar o

valor atual da mesma, nos termos dos arts. 1.214, 1.217, 1.219 e 1.222 do CC.

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89

5. CONCLUSÕES

Diante de todo estudo realizado, algumas conclusões são necessárias:

1. O imenso crescimento urbano, associado à atuação do mercado

imobiliário e à conjuntura neoliberal mundial, forjaram um “caos urbanos” fabricado,

que impede o acesso à habitação pelos trabalhados pauperizados pela via do

mercado, obrigado-os a encontrarem soluções próprias para satisfazerem a

necessidade habitacional. Dentre as várias soluções, temos as ocupações de

imóveis vazios, conformando o conflito fundiário urbano;

2. A teoria da função social da propriedade, positivada pelo art. 5º,

XXIII da CF e conceituada pelo art. 1.228, §§ 1º e 4º do CC criam uma obrigação

fundamental para o proprietário. Caso este não a cumpra, estará incorrendo em uso

nocivo da propriedade urbana.

3. A posse ganhou estatuto jurídico próprio a partir do texto

constitucional, obrigando o possuidor a exercer a função social da posse, a ser dada

pelo efetivo aproveitamento social ou econômico do bem, em especial para a

moradia e trabalho e ser esta função levada em conta quando do confronto de

posses em conflito fundiário urbano.

4. A Constituição garante o direito à moradia (art. 6º) e obriga os três

entes estatais a promoverem programas habitacionais (art. 23, IX). Os conflitos

fundiários existem justamente pela falta de cumprimento do dever constitucional por

parte do Estado, o que o obriga a intervir neste tipo de conflito, como forma de

cumprir os comandos constitucionais.

5. Existe farta e detalhada legislação de direito material garantidora do

direito à cidade, do direito à moradia e que obriga os três entes a realizarem

programas de produção de unidades habitacionais, regularização fundiária e

coibirem a especulação imobiliária da terra. Além disto, existem fundo financeiros já

constituídos para arcar com os custos da implementação destes direitos. Falta,

entretanto, conhecimento do Judiciário para manejar este tipo de informação quando

chamado a resolver os conflitos possessórios.

6. Quando em confronto entre o domínio de um desidioso proprietário

urbano com a posse cumpridora da função social de grande contingente de famílias

sem-teto, não pode restar dúvida de que é a este último grupo que deve ser

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garantida a permanência no bem, por ser a posse com função social quem melhor

cumpre o comando do art. 5º, XXIII da CF, não levado em conta pelo proprietário.

Além disto, é a proteção à posse que, neste caso, dá maior densidade ao princípio

da dignidade da pessoa humana, ao cumprimento dos direitos humanos

fundamentais, sendo a melhor solução para a convivência social.

7. O atual procedimento possessório é individualista, patrimonialista e

autoritário, não tendo a mínima estruturação para abarcar conflitos de cunho coletivo,

com respeito aos direitos constitucionais e urbanísticos dos envolvidos. Em uma fria

análise das ações possessórias, percebe-se sua vocação para resolução do conflito

entre “A”, proprietário, em face de “B”, também proprietário. Não foi estruturado para

interpretar o conflito entre “A”, proprietário desidioso contra 1.000 “B”s, que deram

uma função social ao local ocupado e estão exercendo seus direitos fundamentais, e

não meramente patrimoniais.

8. A prática forense relacionada às ações possessórias em conflitos

fundiários urbanos mostra um arraigado preconceito dos magistrados com as

ocupações populares, bem como a invisibilidade dos direitos dos ocupantes no

processo, privilegiando-se quase sempre e apenas o direito de propriedade do autor,

que é legalmente irrelevante para este tipo de processo. A existência de Grupos de

Trabalho de Mediação de Conflitos fundiários tem realizado o papel do Judiciário em

buscar soluções para o conflito, sendo que este Poder geralmente é o maior entrave

para a resolução pacífica do problema, algumas vezes mais intransigente que o

proprietário.

9. Para a realização de um procedimento possessório conforme a

Constituição e as legislações urbanísticas, é preciso que o Judiciário, quando for

chamado à exercer a Jurisdição em casos de conflitos fundiários, tome algumas

posturas:

a- Percepção de se trata de um conflito coletivo, envolvendo direitos

fundamentais e imediatos daquele grupo de pessoas;

b- Aferição de todos os requisitos do art. 927 do CPC para a concessão da

liminar, acrescido do inciso V, relativo à função social da propriedade e da posse

e inciso VI, que diz respeito ao cumprimento das obrigações fiscais do imóvel,

não aceitando a exceção de domínio como prova no processo;

c – Citação de todos réus ocupantes, inclusive os cônjuges para atuarem no

processo, bem intimação da Defensoria Pública dos Estados ou da União para

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91

defesa dos ocupantes;

d – Chamamento do Ministério Público ao processo e acompanhamento da

situação pelo conselho tutelar;

e – Notificação dos órgãos responsáveis pela política urbana da Prefeitura

Municipal, do Governo do Estado e da União Federal acerca do conflito, e

deslocamento da competência para a Justiça Federal caso a União demonstre

interesse na área, se o processo não tiver iniciado nesta instância;

f – Caso alguns dos órgãos demonstre interesse em resolver a situação,

determinar a suspensão do processo para que se encontre a saída negociada ou

para que o ente Executivo realize os procedimentos para a desapropriação, caso

o proprietário não demonstre interesse em negociar (vale lembrar que o

instrumento mais utilizado nestes casos é a desapropriação, que sequer depende

da aceitação do proprietário);

g – Caso não haja interesse dos órgãos públicos e não seja comprovada a

posse anterior do proprietário, deve julgar improcedente o processo possessório

e, após cinco anos, acionado pelos réus, proceder a desapropriação Judicial de

que trata o art. 1.228 do CC.

h – Realização de audiência de justificação prévia, com ouvida do réu e das

suas testemunhas argüindo não apenas acerca dos elementos constantes no art.

927 e da respectiva função social do imóvel, mas das motivações da ocupação e

da situação social das famílias. Dar um caráter de conciliação a esta audiência,

com a presença do autor, réus e dos entes públicos intervenientes no processo;

i – Inspeção Judicial na área para verificar a situação diretamente,

j – Manter uma postura ativa no conflito, tentando, ao mesmo tempo, mediar

a situação, como também aplicar as legislações que concedem poderes ao

Judiciário para debelar definitivamente o conflito;

k – Proibição do desforço imediato do proprietário descumpridor da função

social;

l – Garantia dos direitos humanos e realização dos procedimentos propostos

pela Plataforma Brasileira para Prevenção de Despejos em caso de cumprimento

da liminar;

m – Garantia dos direitos de possuidor de boa-fé para os ocupantes.

10. O que não deve ser feito em qualquer hipótese é a concessão da

medida liminar sem oitiva do réu, como forma de privilegiar uma propriedade que não

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92

cumpre a função social em detrimento do direito à moradia e à cidade e vários outros

de uma multidão de ocupantes. Muito menos deve-se usar a de força policial contra

quem está em buscando a efetivação de seus incontáveis direito (diante das

inúmeras legislações apresentadas neste trabalho, são tantos os direitos a serem

garantidos para os ocupantes que chega a ser risível qualquer chance de vitória de

um único direito – a propriedade – de um único autor). Como a expropriação, em

regra, é vedada em nosso direito, deve o Judiciário constituir o Município, o Estado

ou a União o dever de desapropriar a área, como forma de garantir o valor do direito

de propriedade do autor.

11. O procedimento Judicial acima apontado não se trata de uma

proposta de alteração legislativa, ainda no plano do dever-ser. Este é o formato

constitucional e legal do procedimento possessório, que visa proteger a garantias

constitucionais coletivas e as diversas previsões legais que tutelam o direito à cidade

e à moradia e que deve ser aplicado imediatamente aplicado em caso de conflitos

fundiários urbanos.

Page 93: As ações possessórias nos conflitos fundiários coletivos em imóveis urbanos

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO 1:

Decisão do Juiz de Direito, Dr. Gersino Donizete do Prado, Titular da 7ª Vara Cível de São Bernardo do Campo (SP), referente à comunidade conhecida como Jardim Skaf (Processo nº. 2157/97), prolatada em 17 de agosto de 2007, que utiliza algumas das idéias defendidas neste texto.

“Conforme ressaltado a fls. 669/72, utilizando da faculdade contida nos arts.

440 e ss. do CPC, com objetivo de obter maiores esclarecimentos e visualização direta do local dos fatos, desloquei-me ao imóvel objeto dos autos, em companhia de dois servidores, onde examinei o lugar para melhor decisão a respeito da questão ainda pendente.

Infelizmente constatei que as centenas de moradores vivem em condições miseráveis e degradantes.

O local, abandonado pelo Poder Público e desprovido de infra-estrutura, tornou-se depósito de lixo e de animais domésticos, o esgoto corre a céu aberto, os fios de transmissão de energia elétrica ficam soltos e estão tão baixo que obrigam as pessoas a tocar neles para, abaixando-se, transitarem dentre das próprias moradias.

Há, de fato, risco para a saúde dos moradores, expostos que estão à contaminação por doenças de todo tipo.

A situação é calamitosa, fere os mais elementares princípios de dignidade da pessoa humana e comprova o descaso do Estado como ente jurídico que tem por obrigação zelar pela saúde e bem-estar e, acima de tudo, pelo direito à vida de seus habitantes.

Além disso, a ocupação ocorre em área de proteção aos mananciais, com possibilidade de provocar dano de difícil reparação ao meio ambiente.

A situação é dramática, não envolve apenas questões jurídicas, mas e principalmente direitos sociais constitucionalmente garantidos e interesses difusos que despertam a atenção de toda a sociedade, notadamente dos Poderes Públicos responsáveis pela adoção de medidas de políticas urbanas interdependentes e com responsabilidade social e universal.

Essa circunstância obriga o Poder Judiciário a examinar a questão com profundidade, sem atropelo, para que não haja confronto e reedição da “praça de guerra” que virou a desocupação do “Jardim Falcão” (triste episódio que ocorreu em nossa Comarca e ocupou espaço em todos os veículos de comunicação nacionais e estrangeiros, que deixou como saldo inúmeros feridos, moradores e policiais, em verdadeiro campo de batalha) e empreenda esforços na busca de alternativas jurídicas e sociais para a efetiva solução do problema.

Depois de ver tanta miséria e constatar que pessoas humanas vivem em condições degradantes e insalubres, não posso “lavar as mãos” e deixar aqueles cidadãos, especialmente as crianças, algumas portadoras de necessidades especiais e os idosos, ao “deus dará”.

Não é da minha índole e a omissão não faz parte do “meu dicionário”. Sei que o Poder Judiciário não pode carregar em seus “ombros” todas as

mazelas sociais e, ainda por cima, ter solução pronta e rápida para tudo. Mas sei também que os poderes constituídos e a sociedade como um todo têm a obrigação de auxiliar a Justiça na busca do bem comum de seu povo, na aplicação da justiça social e no reconhecimento da efetiva aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, evitando, assim, a possibilidade propagação de dano físico, moral e material aos habitantes em especial, e risco à saúde pública e ao meio ambiente de modo geral.

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Essa situação de risco e exclusão social, decorrente da falta de políticas públicas voltadas a programas habitacionais, não pode ser resolvida com uma desocupação forçada e abrupta, enfocada apenas pelo aspecto legalista que, desigualando direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição Federal (direito de propriedade – art. 5º, caput; direito à vida e à segurança – art. 5º, caput; direito à saúde, moradia e segurança – art. 6º; direito de cidadania e de dignidade da pessoa humana – art. 1º, II e III; direito à honra – art. 5º, X), vai acarretar danos ainda maiores e de toda espécie, justamente àquele grupo de pessoas que mais necessitam da tutela estatal, mas que se encontram à margem de toda e qualquer ação política destinada à garantia de uma vida digna.

O objetivo primordial da Justiça há de ser a pacificação social e não a geração de conflitos entre classes sociais, cujo desfecho imprevisível pode provocar conseqüências não desejadas, que pode até caminhar para verdadeiras tragédias devastadoras no aspecto social.

Não se pode elevar a tão alto grau o direito de propriedade (é preciso também analisar se a área cumpre sua função social), em detrimento de todos os direitos fundamentais e sociais já elencados.

É preciso envolver o Estado, em todas as esferas de Governo, e a Sociedade, por intermédio de entidades que compõem a Sociedade Civil, para que haja uma solução conjunta, negociada com todos os partícipes e que atenda ao interesse dos proprietários e moradores.

Aliás, esse foi o procedimento adotado recentemente pelo Governo do Estado de São Paulo quando estudantes da USP invadiram o prédio da reitoria. Mesmo de posse de decisão judicial favorável, os executivos Estadual e Municipal não buscaram o confronto, nem tampouco a desocupação a qualquer preço, com o uso de força e aparato militar, optando pela negociação, à exaustão, com os alunos rebelados, demonstrando, assim, que o diálogo e a busca de soluções alternativas, embora um pouco mais demorados, é muito mais eficiente que o uso da força física e do aparato militar e evita tragédias e danos irreparáveis às pessoas e aos próprios municipais e estaduais.

Ora, se essa foi a conduta frente a um grupo de alunos rebelados que se insurgiram contra decreto do Governo Estadual, porque quando a questão envolve pessoas simples, humildes, honestas e decentes, que vivem à margem da sociedade, excluídos socialmente, e não têm o que comer e onde morar, o Estado deve mostrar toda sua “força”, realizando a desocupação forçada e abrupta de uma área ocupada, segundo as reportagens, por 502 (quinhentos e duas) famílias, utilizando todo o aparato militar, colocando em risco a vida de crianças, pessoas com necessidades especial e idosos ?

Essa tragédia anunciada tem que ser evitada e a Justiça deve atuar como mediadora com todos os organismos, na busca de uma solução conjunta, que atenda aos interesses dos envolvidos em especial, e da sociedade em geral, que certamente sairá desse episódio fortalecida, ciente de que possui uma Justiça atuante, que não mede esforços para alcançar o bem comum e a dignidade de seus jurisdicionados.

Creio que a busca do entendimento, da discussão civilizada, do diálogo franco e aberto serão a saída para encontrar-se a solução pacífica, sem tragédias, evitando-se o risco de sério confronto e, até, a perda vidas.

Vou convocar a todos para o diálogo, vou oferecer alternativas e ouvir ponderações e sugestões, e tenho certeza que a solução será pacífica e satisfatória.

Farei tantas reuniões quantas forem necessárias, esgotarei todas as possibilidades de diálogo e negociações. Se mesmo assim não conseguir uma

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composição definitiva para o caso, aí sim, como último ato restará a desocupação, que, no entanto, será realizada com critério, estratégia e segurança para todos os envolvidos, com a cientificação prévia de todos os moradores, para que não haja um só ferido e jamais a perda de uma vida.

Com esse intuito, lastreando-me nas disposições dos arts. 125, IV, 130, 131, assinalo o dia 17 de setembro de 2007, às 14:00 horas, para realização de audiência pública na 7ª. Vara Cível da comarca de São Bernardo do Campo, visando iniciar o diálogo entre os contendores, órgãos Públicos e representantes da Sociedade, a fim de se alcançar uma solução justa e adequada a esse difícil conflito, que coloca em cheque direitos constitucionalmente garantidos.

Além das partes e seus advogados, uma Comissão de Moradores formada por cinco integrantes e a Central de Atendimento aos Moradores e Mutuários do Estado de São Paulo – CAMMESP, ficam convidados a participar do ato: Ministério Público do Estado de São Paulo, especialmente os Promotores de Justiça dos Direitos Constitucionais dos Cidadãos e do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo, Secretaria de Habitação e Meio Ambiente (SHAMA) de São Bernardo do Campo, Secretaria Estadual de Habitação e Meio Ambiente e Ministério das Cidades, Câmara Municipal de São Bernardo do Campo, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, Câmara Federal e Senado Federal.

Oficie-se a esses órgãos, cientificando-os da data e da providência adotada, convidando os respectivos representantes para participarem da audiência, a fim de que possam oferecer subsídios, alternativas, sugestões e contribuir para a busca de solução que atenda plenamente aos interesses dos litigantes, da comunidade e do meio ambiente.

Por enquanto então fica SUSPENSA A REINTEGRAÇÃO DE POSSE. Concedo aos autores o prazo de 15 (quinze) dias para manifestarem-se

sobre a petição e documentos de fls. 363/632. As fotografias depois de reveladas poderão ser juntadas aos autos. Int.

SBC, 17.08.07. GERSINO DONIZETE DO PRADO Juiz de Direito”