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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

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As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

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Page 1: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

Page 2: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

Universidade Estadual de Campinas

Reitor

Fernando Ferreira Costa

Coordenador Geral da Universidade

Edgar Salvadori de Decca

Conselho Editorial

Presidente

Paulo Franchetti

Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno José A. R. Gontijo – José Roberto Zan

Marcelo Knobel – Marco Antonio ZagoSedi Hirano – Yaro Burian Junior

Page 3: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

Pierre Ryckmans

as anotações sobre pintura

do monge abóbora-amarga

Tradução e comentário da obra de Shitao

Tradução para o português

Carlos Matuck e Giliane Ingratta

Traduções adicionais do chinês

Tai Hsuan An

Page 4: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

Índices para catálogo sistemático:

1. Shitao 759.951

2. Pintura chinesa 759.951

3. Pintura paisagística 758.1

4. Pintura chinesa – História 759.951

5. Filosofi a chinesa 181.11

Título original: Les propos sur la peinture du Moine Citrouille-Amère

Copyright © by Plon, 2007

Copyright © 2010 by Editora da Unicamp

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em

sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

isbn 978-85-268-0882-9

R969aRyckmans, Pierre.

As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga: tradução e comentário

da obra de Shitao / Pierre Ryckmans; tradução para o português: Carlos Matuck e

Giliane Ingratta. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2010.

1. Shitao. 2. Pintura chinesa. 3. Pintura paisagística. 4. Pintura chinesa – História. 5. Filo-

sofi a chinesa. I. Título.

cdd 759.951

758.1

181.11

ficha catalográfica elaborada pelosistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

Editora da Unicamp

Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp

cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil

Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728

www.editora.unicamp.br – [email protected]

Page 5: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

sumário

apresentação .................................................................................................................. 7

advertência .................................................................................................................... 9

introdução ...................................................................................................................... 13

as anotações sobre pinturado monge abóbora-amarga

capítulo i – o único traço de pincel........................................................... 25

capítulo ii – a realização da regra ............................................................. 47

capítulo iii – a transformação....................................................................... 53

capítulo iv – venerar a receptividade ...................................................... 65

capítulo v – pincel e tinta .................................................................................. 69

capítulo vi – os movimentos do punho ..................................................... 77

capítulo vii – yin yun ......................................................................................... 83

capítulo viii – a paisagem ..................................................................................... 89

capítulo ix – o método das “texturas” ..................................................... 99

capítulo x – delimitações .................................................................................... 109

Page 6: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

capítulo xi – procedimentos ............................................................................. 113

capítulo xii – florestas e árvores ................................................................ 119

capítulo xiii – oceano e ondas ........................................................................ 123

capítulo xiv – as quatro estações ................................................................ 127

capítulo xv – longe da poeira .......................................................................... 137

capítulo xvi – despojar-se da vulgaridade ............................................ 145

capítulo xvii – em união com a caligrafia ............................................. 155

capítulo xviii – assumir suas qualidades ................................................ 161

anexo i – nota biográfica sobre shitao .................................................... 169

anexo ii – síntese crítica das teorias relativas à data

de nascimento de shitao acrescida de nota sobre a carta

de shitao para bada shanren ............................................................................. 179

anexo iii – bibliografia geral .......................................................................... 193

anexo iv – bibliografia comentada das fontes utilizadas

nas notas e nos comentários das anotações sobre pintura ......... 199

índice de temas e noções que foram objeto de uma análise

ou de uma menção específica ............................................................................. 231

índice de termos chineses em pinyin que foram objeto de uma

análise, de uma definição ou de uma menção específica ............. 235

apêndice à edição brasileira

cronologia – história da china ..................................................................... 243

relação das pinturas que compõem o caderno de imagens e

tradução de suas inscrições ............................................................................. 245

Relação das pinturas chinesas ...................................................................................... 245

Tradução das inscrições das pinturas chinesas ........................................................ 246

caderno de imagens ................................................................................................... 257

Page 7: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

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apresentação

Dizer que este é um livro maravilhoso é dizer pouco.

Como veremos, é considerado o ápice de uma tradição de pensamento teó-

rico sobre a pintura que remonta a mais de 1.500 anos. E ultrapassa o âmbito da

pintura, inserindo-se também no campo da fi losofi a.

Shitao (1642-1707), ou “O Monge Abóbora-Amarga”, um dos nomes que

usava como artista, talvez tenha sido o maior pintor da história da China, se é

que podemos escrever tal coisa sobre uma tradição que reúne nomes como os

de Wang Wei, Fan Kuan, Guo Xi, Liang Kai, Ma Yuan, Ni Zan, Zhao Mengfu,

Tang Yin, Wen Zhengming e Zhu Da (Bada Shanren), para citar apenas alguns

dos pintores mais conhecidos.

E, além de uma grande produção de pinturas maravilhosas*, legou-nos tam-

bém estas Anotações, texto baseado nas três correntes principais do pensamento

chinês (taoismo, confucionismo e budismo), consciente das obras anteriores es-

critas sobre a pintura, e, para completar, carregado de alto teor poético. A pri-

meira edição conhecida do livro é de 1728.

O autor da tradução para o francês e das notas que acompanham o texto de

Shitao é Pierre Ryckmans, tradutor e autor de variada obra, inclusive fi ccional.

Ryckmans optou por contextualizar, além de esclarecer, o tratado de Shitao atra-

* Um bom panorama de sua obra pode ser visto em François Cheng, Shitao, la saveur du monde.

Paris: Éditions Phébus, 1998. (N. do T.)

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

vés de notas de rodapé, tornando compreensível ao leitor ocidental um texto

que, de outra forma, seria inatingível aos não iniciados. A sua tradução, acompa-

nhada de seus comentários, tornou-se referência para todos os que se debruçam

sobre a história da pintura chinesa. A leitura exige paciência, já que as notas são

numerosas, mas é extremamente gratifi cante: a experiência do leitor ao deparar-

se com uma pintura chinesa nunca mais será a mesma.

Nos volumes de “história da pintura universal”, sob o domínio do pensamen-

to europeu, a pintura chinesa, quando é citada, fi gura como uma excentricidade,

à margem das grandes correntes principais, em um misto de ignorância e exer-

cício de dominação cultural. Este livro pode nos ajudar a ver através da bruma, e

reconhecer a beleza, a profundidade e a grandeza da pintura chinesa tradicional.

Agradeço a Giliane Ingratta e Tai Hsuan An, meus parceiros de tradução,

sem os quais o texto não poderia ser publicado. Agradeço também ao amigo Si-

mon Mao Hun Tseng, por sua ajuda na tradução das inscrições das pinturas; e ao

professor James Cahill, que mesmo sem nos conhecer, tentou esclarecer nossas

dúvidas a respeito delas. Por fi m, agradeço às professoras Laís Guaraldo, Luise

Weiss e Lygia Eluf, que se empenharam para a publicação do livro.

Carlos Matuck

Obs.: O sinal acompanha o nome dos pintores que estão representados no Cader-

no de Imagens, em sua primeira menção no texto.

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advertência

O presente trabalho tem como eixo um tratado chinês sobre a pin tura, As

anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga, de Shitao, do qual proponho

aqui a primeira tradução integral francesa1.

A importância e a densidade do tratado de Shitao exigiram o acom pa nha-

mento de um grande número de notas e comentários, abrangendo um leque bas-

tante amplo de noções pictóricas chinesas, que versam alternadamente sobre a

terminologia, a técnica, a crítica e a fi losofi a.

Em vez de recompor essas diferentes noções na forma de um ensaio introdu-

tório sobre a estética da pintura chinesa, preferi manter o tratado de Shitao como

fi o condutor e abordá-las apenas na medida, e em função, das exigências do texto

a ser comentado.

O essencial de meu trabalho, portanto, está relacionado às notas que seguem

cada um dos 18 capítulos da tradução. Como essas notas apresentam frequente-

mente um caráter bastante geral, dizendo respeito ao conjunto das teorias pictó-

ricas chinesas, podem ser abordadas fora do contexto particular de Shitao, como

curtas monografi as independentes. Dois índices (índice dos temas tratados e

índice dos termos analisados) eventualmente permitirão ao leitor consultá-las

isoladamente, na medida de seus interesses e de suas necessidades.

Essas notas baseiam-se em um grande número de citações que se encontram

em tratados chineses de estética, de diversos autores e de várias épocas. Como

não seria possível analisar cada autor e sua obra, conforme surgissem as citações,

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

sem o risco de tornar pesada demais a estrutura da exposição, juntei em um ane-

xo separado (Anexo IV) uma série de apontamentos apresentando brevemente

os diversos autores, e indicando, em cada caso, o lugar ocupado por sua obra na

evolução geral das teorias chinesas sobre a pintura.

A transcrição fonética dos nomes chineses citados é a transcrição chamada

pinyin* tal como foi ratifi cada pela Assembleia Popular de Beijing, em 11 de fe-

vereiro de 1958.

Empreguei diversas abreviações para as obras citadas com mais frequência,

conforme segue (para a referência bibliográfi ca de cada obra, ver Anexo III, Bi-

bliografi a geral):

Congkan: Yu Anlan: Hualun congkan (Coleção de livros sobre a teoria da

pintura).

Leibian: Yu Jianhua: Zhongguo hualun leibian (Textos organizados sobre teo-

ria da pintura chinesa).

Lidai: Zhang Yanyuan: Lidai ming hua ji (Registros das pinturas famosas de

todas as épocas).

Meishu: Deng Shi e Huang Binhong: Meishu congshu (Coleção de livros de

belas-artes).

* O pinyin é um sistema de romanização, isto é, um sistema de transcrição fonética para a escrita latina,

do dialeto mandarim-padrão da língua chinesa. Ratifi cado em 1958 e adotado ofi cialmente em 1979

pelo governo da República Popular da China, hoje é o principal sistema em uso. Por exemplo, é o

sistema utilizado para encontrar o ideo grama correto em todos os computadores chineses. Algumas

palavras consagradas pelo uso, quando transcritas por esse sistema, sofreram modifi cações: Pequim

tornou-se Beijing, o ex-líder Mao Tsé-tung tornou-se Mao Zedong, o Tao, o “caminho” ou “via” dos

taoistas, tornou-se o Dao. Há muita controvérsia sobre se devemos ou não modifi car a ortografi a

das palavras consagradas pelo uso. Esta edição optou por utilizar o sistema em todas as palavras,

seguindo uma tendência universal e também em sinal de respeito aos possíveis leitores chineses

e sino-brasileiros. A exceção foi “Confúcio”: seria pedir demais ao leitor brasileiro que decifrasse

Kong Fuzi. (N. do T.)

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Advertência

Yu: Yu Jianhua: Shitao hua yulu (Notas sobre as inscrições de pintura de

Shitao).

Zhu: Huapu (Manual de pintura) (edição fac-similar da versão xilográfi ca,

redescoberta recentemente, do manuscrito de Shitao, anotado por Zhu Jihai).

As citações do Lidai ming hua ji, do Tuhua jianwen zhi (Notas sobre os

meus conhecimentos em desenho e pintura) e do Hua Ji, za shuo (Teoria da

pintura — A continuação) são da edição da Editora de Belas-Artes do Povo

(Beijing, 1963).

Notas

1 Já temos uma tradução inglesa parcial (O. Siren, Th e Chinese on the art of

painting, pp. 184-92: tradução dos caps. I a V, VII e XV) e uma tradução alemã

integral (V. Contag, Die Beiden Steine), ver infr a, Anexo III, Bibliografi a geral*.

* Por alguma razão, Ryckmans não atualiza esta bibliografi a sobre o tratado de Shitao. Desde que

seu trabalho foi publicado, várias outras traduções integrais foram realizadas (a de Lin Yutang é

anterior).

Citamos as mais conhecidas (em línguas ocidentais):

Lin Yutang: Shih-t’ao — An expressionist credo em Th e Chinese Th eory of Art. Putnam’s Sons, 1967,

pp. 137-58.

Richard E. Strassberg: Enlightening Remarks on Painting by Shih-Tao. Pacifi c Asia Museum Mono-

graphs, 1989.

Feng Xiao-Min: L’Union de l’Encre et du Pinceau. Flammarion, 2003 (além de caligrafi as e poemas

do autor, traz uma tradução integral do tratado sob o título Réfl exions sur la peinture du Moine

Concombre Sauvage).

Marc Nürnberger: Aufgezeichnete Worte des Mönchs Bittermelone zur Malerei. Dieterich’sche

Verlagsbuchhandlung, 2009.

Além destas, temos ainda:

Earle Coleman: Philosophy of Painting by Shih-t’ao. Th e Hague: Mouton Publishers, 1978 (tradução

do Manual de Pintura não das Anotações).

Marcello Ghilardi: Sulla Pittura — Discorsi sulla pittura del monaco Zucca Amara, prefácio de

Giangiorgio Pasqualotto. Mimesis Edizioni, 2008 (tradução não integral mas dos trechos principais

de cada capítulo, acompanhados de comentários). (N. do T.)

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introdução

O tratado de Shitao é o resultado relativamente tardio1 de uma literatura es-

tética que, ao longo de mais de um milênio, já havia acumulado uma produção

singularmente rica e abundante2.

Não é minha intenção fazer aqui um resumo da história da evolução das teo-

rias pictóricas na China; sobre o assunto, já existem diversas sínteses importantes

que também podem ser consultadas3. No entanto, a maior parte de meu trabalho

consistiu evidentemente num exame ex tenso dessa literatura estética, mas ape-

nas com o objetivo prático de for necer um conjunto de referências que permita

comentar detalha damente os diversos termos e noções utilizados por Shitao.

Assim, encontraremos os resultados desse estudo nas notas que acompanham

a tradução.

O trabalho de comparação entre o texto de Shitao e as grandes constantes das

teorias clássicas tem vários objetivos:

— primeiro, explicitar o pensamento de Shitao; expresso de uma forma extre-

mamente densa e concisa, esse pensamento, de fato, incorpora todo um

conjunto de noções já desenvolvidas ao longo dos textos anteriores, e que

aqui era preciso retomar;

— segundo, fornecer, desde já, certos elementos para uma futura terminologia

da estética chinesa4;

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

— terceiro, situar o pensamento de Shitao em seu contexto tradicional, e por-

tanto, por contraste, ressaltar a importância e a originalidade da contribui-

ção de nosso autor a essa tradição, na qual veio inscrever-se em seu término

e no mais alto posto.

Simplifi cando muito, poderíamos dividir esquematicamente a literatura pic-

tórica chinesa em duas vertentes: de um lado, os escritos de estetas e letrados

destinados ao homem de bem, apreciador de arte ou co lecionador e, de outro, os

escritos de pintores destinados principalmente aos seus colegas.

Os primeiros ocupam-se de História da Arte, compilam uma informação

histórica ou anedótica, estabelecem julgamentos e classifi cações críticas, fazem

inventários de obras e de coleções, instituem e dis cutem diversas noções teóricas.

Nessa área, às obras especializadas é preciso ainda acrescentar trechos de obras

literárias diversas, cuja intenção inicial não é especifi camente pictural, mas que,

referindo-se ocasio nalmente à pintura, às vezes exerceram uma infl uência im-

portante sobre as teorias pictóricas, por sua profundidade e pela originalidade

de seus pontos de vista.

Os segundos dirigem-se preferencialmente aos pintores e registram os segre-

dos de uma experiência tanto espiritual como prática da pintura, frequentemen-

te acompanhados também de refl exões críticas sobre a obra de seus colegas e de

seus predecessores. Essas obras tomam diversas formas: ora a de uma meditação

descritiva e poética, ora a de um manual prático que se refere sistematicamente,

capítulo por capítulo, aos diversos aspectos teóricos e técnicos do trabalho pic-

tórico; ora, ainda, apresentam-se como coletâneas bastante livres de refl exões e

aforismos descontínuos (forma muito em voga nas épocas Ming e Qing).

A essa literatura ainda é preciso acrescentar o gênero bastante profuso das

coletâneas de inscrições caligrafadas nas pinturas pelos pintores e críticos.

O tratado de Shitao, por sua forma e composição, apresenta-se aparentemen-

te como um desses manuais de pintura, divididos em capítulos analíticos. Mas

de sua leitura emerge imediatamente uma dupla originalidade essencial que não

encontra correspondência em nenhuma vertente da literatura estética: de fato,

trata-se de uma obra exclusivamente fi losófi ca, cujo pensamento se organiza em

um sistema sintético.

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Introdução

O pensamento fi losófi co certamente está presente em todas as formas da li-

teratura pictórica tradicional, e não há uma só colocação dessa literatura, mesmo

em seu nível mais concreto e mais técnico, em que os seus postulados implícitos

não possam ser lidos nas entrelinhas. Mas, quando se trata de sua expressão ex-

plícita, esse pensamento surge apenas de maneira ocasional e fragmentária, ora

na introdução de uma obra, ora em um capítulo específi co, com mais frequência

no brilho de alguns aforismos esparsos.

Em Shitao, ao contrário, a refl exão fi losófi ca constitui o objeto exclusivo e

sis temático de seu tratado; neste texto curto, que deliberadamente se situa, do

início ao fi m, em um plano de abstração universal, não há um único enunciado

que não seja essencial. De fato, nele não se encontram receitas práticas, nem

referências históricas, nem citações (salvo as dos clássicos da fi losofi a), nem ane-

dotas, nem julgamentos críticos sobre determinadas obras ou determinados ar-

tistas (notemos, por exemplo — coisa excepcional, sobretudo em sua época —,

que, em todo o tratado, não é mencionado um único nome de pintor), e se ele abor-

da certos aspectos das técnicas e das formas é unicamente para neles redescobrir

e verifi car a aplicação dos princípios fi losófi cos universais que pôs em suas pre-

missas, e para mostrar como esses princípios dão conta da profunda unidade do

fenômeno pictórico, inclusive em seus elementos os mais humildes e os mais va-

riados.

Shitao constrói o seu pensamento fora do tempo, além das obras e das esco-

las; não se ocupa nem dos pintores nem das pinturas, mas do Pintor e da Pintura

ou, mais exatamente, do Ato do Pintor.

Além disso, essa refl exão está estruturada na forma de um sistema coeren-

te, tendo como pedra angular um conceito original — o “Único Traço de

Pin cel” — em torno do qual todo o tratado se organiza: os primeiros capítu-

los apre sentam e defi nem a noção de “Único Traço de Pincel” — produto

sincrético de diversas noções tomadas das correntes fundamentais da fi losofi a

chinesa e aplicadas à pintura. O conceito desenvolve-se simultaneamente em

diversas direções, representando de uma só vez a medida suprema de toda

criação do espírito e, ao mesmo tempo, a noção mais concreta e mais elemen-

tar da técnica pictórica. Ele constitui o princípio unitário que permitirá dar

conta de todos os aspectos da atividade do pintor, em todos os níveis: fi losó-

fi co, ético, plástico e técnico.

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

Após ter defi nido essa noção (caps. I e II), Shitao estuda seu papel liberador

como fundamento da criatividade (cap. III) e a condição de seu exercício na “re-

ceptividade” (cap. IV). Os dez capítulos seguintes mostram o conceito de Único

Traço de Pincel tal como é colocado concretamente em ação pelos diversos as-

pectos da pintura: de um lado, nos instrumentos do pintor — o pincel e a tinta,

primeiro considerados por si próprios (cap. V), depois em seu manejo (cap. VI) e,

enfi m, em sua ação conjunta (cap. VII) —; de outro lado, em diversos elementos

exemplares da pintura — a paisagem, sua expressão plástica por excelência (caps.

VIII e IX), a composição e os procedimentos (caps. X e XI) e a expressão de di-

versos outros componentes da paisagem (caps. XII, XIII e XIV).

Em seguida, dois capítulos visam à atitude do pintor: ética (cap. XV) e es-

tética (cap. XVI). Outro capítulo se refere à questão particular das relações que

unem tradicionalmente pintura e caligrafi a, cujo princípio do Único Traço de

Pincel vem atestar a identidade original (cap. XVII). Enfi m, uma longa conclu-

são reúne os principais elementos do tratado, à luz dos quais se encontram defi -

nidas a natureza e a condição da criação pictórica.

Para nós, o estudo deste tratado, que na opinião geral dos críticos chineses re-

presenta uma das mais altas e mais completas expressões do pensamento estético

chinês5, tem um interesse muito particular: surgindo quase no fi m de uma longa

tradição que nele cristaliza suas riquezas essenciais, por um lado o texto nos dá

ocasião de passar em revista as noções fundamentais dessa literatura estética e,

por outro, personifi ca de maneira exemplar a atitude do pintor chinês, depurada

até naquilo que ela representa de mais universal, isto é, a visão do homem agindo

em comunhão com o Universo. Ao abordar este texto curto, não poderíamos nos

contentar em trazê-lo até nós como uma amostra de uma literatura especializada

passível de ser isolada pela análise. Ao contrário, ele é que nos leva para um mun-

do cujas coordenadas fundamentais de fato se encontram situadas além da pin-

tura: essa é a riqueza deste tratado, mas também sua extrema difi culdade6. Assim,

estou bem consciente das fraquezas e do caráter incompleto deste trabalho de

aproximação: em muitas passagens, em relação à riqueza sugestiva e polivalente

do texto original, minha tradução teve que se contentar com o empobrecimen-

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Introdução

to de certas opções com sentido único. O que ofereço aqui não é a tradução

das Anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga, de Shitao, mas uma das

traduções possíveis7. E se tenho, desde já, a audácia de publicar um trabalho em

vários aspectos tão aproximativo, é porque sei que, essencialmente, a experiência

e a meditação de uma vida inteira não seriam sufi cientes para completá-lo.

Mas, por insufi ciente que ele seja, espero que o trabalho possa trazer uma

contribuição ao conhecimento da estética chinesa e, até, que essa contribuição

possa não se limitar a uma esfera de estudos especializados. De fato, o que o con-

vívio com esse pensamento pode trazer, parece-me, é de uma ordem ainda mais

ampla que apenas a do conhecimento científi co. Tendo visto, nos últimos tem-

pos, em certas refl exões e pesquisas de estetas e artistas contemporâneos, como

que a intuição de verdades semelhantes, pareceu-me ainda mais adequado tentar

oferecer agora um acesso — o mais rigoroso e direto possível — a um pensamen-

to que, por mais afastado que possa estar no espaço, nos revela entretanto, com

uma singular eloquência, o segredo de uma reconciliação com o Universo que

alguns pensadores do Ocidente começam precisamente hoje a redescobrir.

Hong Kong, junho de 1968.

A presente reedição reproduz fi elmente a edição original de meu livro (Bru-

xelas, 1970). Contentei-me em fazer algumas correções (erros de impressão) e

uma ou outra atualização em questões de menor importância.

Camberra, janeiro de 2006.

Notas

1 Quanto à data das Anotações sobre pintura: há alguns anos, descobriu-se na

China a versão xilografada de um manuscrito de Shitao intitulado Huapu (Ma-

nual de pintura), que traz um prefácio datado de 1710 (essa obra foi reproduzida

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

em edição fac-similada, Shanghai, 1962). O texto do Manual é quase idêntico

ao das Anotações; entretanto, é um pouco mais curto e apresenta cerca de 60 va-

riantes de pormenor (sobretudo variantes de estilo, mas também omissões de

palavras, de pedaços de frases, algumas vezes de frases inteiras, que em certa me-

dida alteram o conteúdo do pensamento). A questão de saber se o Manual é uma

forma depurada das Anotações ou as “Anotações” uma versão desenvolvida do

Manual está sendo atualmente discutida pelos críticos chineses. No conjunto,

constata-se com sufi ciente clareza que as Anotações indicam um desenvolvimen-

to e aprofundamento do pensamento com relação ao Manual, e portanto pode-

riam ser consideradas como posteriores a ele. Admitindo-se esse ponto de vista,

então seria preciso deduzir que as Anotações teriam sido escritas entre 1710 (data

do Manual) e 1720 (data presumida da morte de Shitao).

A mais antiga edição conhecida das “Anotações” é aquela do Zhibuzuzhai

congshu (Coleção de livros O Saber Insufi ciente), e traz um posfácio de Zhang

Yuan datado de 1728.

2 Os fragmentos mais antigos de teorias pictóricas que foram conservados

datam do século IV. O mais antigo tratado que chegou até nós na íntegra é do fi m

do século V; desde então, essa literatura jamais foi interrompida, e isso até a épo-

ca contemporânea, formando um conjunto recenseado de mais de 800 obras, cuja

maior parte pertence evidentemente às épocas tardias (Ming e Qing).

(Para uma visão bibliográfi ca de conjunto, ver a nomenclatura de Yu Fu (Yu

Fu: Lidai zhongguo huaxue zhushu lumu [Sumário dos registros das obras de

teoria da pintura chinesa de todas as épocas], Beijing, 1958).)

3 Ver infr a, anexo III, “Bibliografi a geral”.

4 Esse problema de terminologia ocorre em todas as disciplinas dos estudos

chineses. Por seu caráter ideográfi co, a língua chinesa dispõe de uma bagagem

comum de conceitos suscetíveis de utilizações extremamente variadas, segundo a

disciplina que os adota. O caráter vago e polivalente que esses conceitos apresen-

tam quando são estudados em abstrato não deve nos iludir: apreendidos no con-

texto de uma determinada disciplina, podem constituir, ao contrário, uma lingua-

gem sistemática e precisa em que, por convenção, cada termo assume um

signifi cado específi co que é preciso primeiro reconhecer antes de poder levar

Page 19: As anotacoes sobre a pintura do MONGE ABOBORA-AMARGA

19

Introdução

adiante nosso estudo. Portanto, a estética chinesa se utiliza de uma rica termino-

logia, muito mais rigorosa do que poderia parecer à primeira vista (muitos de seus

termos são emprestados de outras disciplinas — fi losofi a, cosmologia, crí tica lite-

rária, caligrafi a — mas revestem-se de uma nova acepção), e os melhores dicioná-

rios gerais da língua até agora não deram conta dessa terminologia particular, ou

apenas deram conta de maneira incompleta e às vezes errônea.

Quando se comparam os variados empregos de conceitos iguais nos contextos

de diferentes tratados de várias épocas, torna-se possível estabelecer uma defi nição

precisa desses conceitos e, eventualmente, descrever sua formação e evolução.

Esse trabalho terminológico deveria normalmente ter precedido toda discus-

são mais genericamente relacionada ao conteúdo dos textos. A terminologia que

comecei a elaborar em um outro trabalho baseia-se apenas numa seleção ainda

parcial dessa literatura estética. Em meus comentários do texto de Shitao utilizei,

na medida das necessidades, alguns elementos desse estudo terminológico cujo

conjunto será objeto de um trabalho ulterior.

5 Entre os chineses, um especialista como Yu Jianhua não hesita em escrever a

seu respeito:

Desde a Antiguidade até nossos dias, certamente foram escritos inumeráveis trata-

dos sobre pintura, mas se se procura uma visão superior, teorias às quais nada escapa,

um pensamento livre e impetuoso, então é o tratado de Shitao que deve ser coloca-

do em primeiro lugar. Gênio imenso, rico tanto em cultura clássica como em talento

criador, Shitao eclipsa com sua pintura todos os Wen Zhengmin, Shen Zhou e outros

Wang; quanto a seus escritos, que dominam soberbamente todas as eras e se impõem

com independência no centro do universo artístico, merecem fi gurar no mesmo nível que

o daqueles dos mestres da fi losofi a clássica. (Yu Jianhua: Zhongguo huihua shi [História

da pintura chinesa], vol. 2, p. 136)

Entre os ocidentais: “O Hua Yu Lu é uma das mais extraordinárias contribui-

ções às discussões sobre a teoria e a prática da pintura [...]” (Siren, Th e Chinese on

the Art of Painting, p. 182).

6 Zhang Yuan, o primeiro editor do texto de Shitao (1728), já ressaltava o

caráter abstruso do tratado. Alguns críticos chegam a desaprová-lo, por exemplo,

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As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga

por sua excessiva obscuridade: assim, Yu Shaosong julga-o nebuloso e entulhado

de elucubrações chan! (Yu Shaosong: Shu hua shulu jieti [Explicações das ques-

tões sobre os principais livros de caligrafi a e pintura]). O prefácio da edição críti-

ca do manuscrito Huapu (Shanghai, 1962) constata:

Este tratado, que sem nenhuma dúvida constitui uma das obras mais eminentes

da literatura estética de nosso país, é realmente digno de nosso estudo atento. Mas seu

texto é obscuro e o leitor difi cilmente pode chegar a uma compreensão profunda dele. E

no que se refere a alguns termos, sua interpretação varia de um comentador para outro.

Os comentários que fazemos aqui poderão, sem dúvida, ajudar consideravelmente o

leitor a penetrar o sentido do original, mas não são poucas as passagens que permanecem

irredutíveis à análise. Por isso, o leitor deverá armar-se de paciência. Só após um estudo

atento e minucioso ele será capaz de apreender intuitivamente o seu espírito essencial.

A mesma advertência certamente é necessária, a fortiori, para o leitor des-

ta tradução. E se, ao fi nal de seu estudo, muitas passagens ainda permanecerem

obscuras, não se surpreenda muito pois Yu Jianhua, um dos maiores especialistas

no assunto, confessa: “Na literatura estética da época Qing, é opinião geral con-

siderar o tratado de Shitao como o texto mais difícil [...]; muitas passagens me

parecem ainda ininteligíveis e sinto-me muito pouco à vontade em escrever um

comentário sobre elas [...]” (Yu Jianhua: Shitao tihua ji [Notas sobre as inscrições

de pintura de Shitao], Beijing, 1959, p. 1).

7 Este título aparece em várias edições na forma abreviada de Anotações sobre

pintura (Hua yulu). O “Monge Abóbora-Amarga” (Kugua Heshang) é um dos

numerosos cognomes que Shitao havia escolhido para si próprio. O termo “ano-

tações” (yulu) signifi cava originalmente uma forma específi ca da literatura bu-

dista chan*: tratava-se de notas tomadas pelos discípulos a partir do ensinamento

oral de um mestre. Esse termo, cujo uso data das escolas budistas chan da época

Tang, depois foi retomado pelos ensaístas neoconfucionistas da época Song.

* Chan é a denominação chinesa da tradição budista conhecida no Ocidente por seu nome japonês

zen. Assim, aqui nos acostumamos a dizer zen-budismo. Nesta edição, de acordo com o original,

mantivemos a denominação chinesa chan e a expressão “budismo chan”. (N. do T.)