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1 AS CHARGES DA IMPRENSA CARIOCA: A IMAGEM PÚBLICA DE JOÃO GOULART E CARLOS LACERDA (1963-1964) Cristiane Mitsue Corrêa Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo O estudo consiste em apresentar análise sobre as charges dos jornais Correio da Manhã e Última Hora nos contextos de janeiro de 1963 e março de 1964, correspondente ao governo João Goulart (1961-1964). O objetivo central deste trabalho é apresentar a maneira com que as charges da grande imprensa retrataram e construíram a imagem pública dos sujeitos políticos em evidência do período João Goulart e Carlos Lacerda - e como os desenhistas Augusto Bandeira (CM) e Sérgio Jaguaribe (UH) incorporaram de forma gráfica os principais debates da época. Procura-se entender como as situações políticas do período foram retratadas graficamente através do humor e da crítica. Palavras-chave: Charges. Imprensa. Governo Goulart (1961-1964). Introdução As charges são expressões visuais que carregam mensagens de crítica capazes de sintetizar determinados acontecimentos do mundo político por meio do humor e do traço caricato. Localizadas na imprensa, são importantes meios de posicionamento ideológico. Diferentemente de cartuns, que são atemporais, as charges são expressões visuais que expõem a opinião do desenhista e do veículo comunicacional a que está ligada, sobre um acontecimento específico, inserida em um contexto para ser entendida. Neste estudo, pretende-se expor discussão teórica em torno de atributos envolventes do traço caricatural e como são transpostos na representação de determinado acontecimento político. Charges não são meros instrumentos de humor para ilustrar o texto escrito, mas são, em si mesmas, importantes instrumentos de leitura do cenário político e podem ser considerados termômetros de avaliação da imagem pública de determinado sujeito

AS CHARGES DA IMPRENSA CARIOCA: A IMAGEM PÚBLICA DE JOÃO ... · Manhã e Última Hora nos contextos de janeiro de 1963 e março de 1964, correspondente ao governo João Goulart

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AS CHARGES DA IMPRENSA CARIOCA: A IMAGEM PÚBLICA DE JOÃO

GOULART E CARLOS LACERDA (1963-1964)

Cristiane Mitsue Corrêa

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

[email protected]

Resumo

O estudo consiste em apresentar análise sobre as charges dos jornais Correio da

Manhã e Última Hora nos contextos de janeiro de 1963 e março de 1964, correspondente

ao governo João Goulart (1961-1964). O objetivo central deste trabalho é apresentar a

maneira com que as charges da grande imprensa retrataram e construíram a imagem

pública dos sujeitos políticos em evidência do período – João Goulart e Carlos Lacerda -

e como os desenhistas Augusto Bandeira (CM) e Sérgio Jaguaribe (UH) incorporaram de

forma gráfica os principais debates da época. Procura-se entender como as situações

políticas do período foram retratadas graficamente através do humor e da crítica.

Palavras-chave: Charges. Imprensa. Governo Goulart (1961-1964).

Introdução

As charges são expressões visuais que carregam mensagens de crítica capazes de

sintetizar determinados acontecimentos do mundo político por meio do humor e do traço

caricato. Localizadas na imprensa, são importantes meios de posicionamento ideológico.

Diferentemente de cartuns, que são atemporais, as charges são expressões visuais que

expõem a opinião do desenhista e do veículo comunicacional a que está ligada, sobre um

acontecimento específico, inserida em um contexto para ser entendida. Neste estudo,

pretende-se expor discussão teórica em torno de atributos envolventes do traço caricatural

e como são transpostos na representação de determinado acontecimento político.

Charges não são meros instrumentos de humor para ilustrar o texto escrito, mas

são, em si mesmas, importantes instrumentos de leitura do cenário político e podem ser

considerados termômetros de avaliação da imagem pública de determinado sujeito

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político, instituição ou evento. Estão carregados por um discurso ideológico, capazes de

enfatizar ou questionar, por meio do traço, determinado quadro político, econômico,

social ou cultural. A charge alia o conteúdo crítico com o humor. Entende-se as charges

como pertencentes a um espaço de debate político e como parte da disputa de imagem.

Há a possibilidade das charges, enquanto expressões imagéticas e visuais, interferirem na

imagem pública política e no jogo político. É uma forma de comunicação que se apresenta

como um discurso político alternativo à maneira tradicional da comunicação escrita,

adaptando o conteúdo discursivo à forma cômica.

Charges: expressão visual de humor político e crítica ilustrada

Ao iniciar a leitura de um texto noticioso ou opinativo em um jornal, é possível

que o leitor tenha um olhar preestabelecido sobre o acontecimento, adquirido através da

mensagem impulsionada pela charge ou caricatura política, que se encontra em destaque

nas páginas. De acordo com Rodrigo Motta, “as expressões visuais possuem notável

poder de comunicação, alcançando efeito superior ao do discurso verbal”, transmitindo

com rapidez mensagens e discursos com “concisão e clareza” (MOTTA, 2006, p. 17-18).

Na grande e pequena imprensa, a caricatura política é uma respeitada forma de expressão

jornalística (FONSECA, 1999, p. 13).

A palavra charge vem do francês e significa carregar e exagerar. É um cartum que

satiriza um fato específico (FONSECA, 1999, p. 26). É uma das manifestações da

categoria maior caricatura. Para Fonseca:

A caricatura é a representação plástica ou gráfica de uma pessoa, tipo, ação ou

ideia interpretada voluntariamente de forma distorcida sob seu aspecto ridículo

ou grotesco. É um desenho que, pelo traço, pela seleção criteriosa de detalhes,

acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa ou de um fato. Na

maioria dos casos, uma característica saliente é apanhada ou exagerada.

(FONSECA, 1999, p. 17)

O artista traduz por meio da expressão visual do desenho determinados

acontecimentos a ser melhor e rapidamente compreendidos. O desenho, através do humor,

ironia, sátira e sarcasmo, acaba por reforçar o deboche sobre situações específicas, do

governo e de líderes políticos. Segundo Motta, “a representação é distorcida, caricata,

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mas a mensagem está lá” (MOTTA, 2006, p. 26). As charges acabam por estabelecer

“comunicação eficiente com o grande público” (MOTTA, 2006, p. 73).

A caricatura pode ser incluída entre as várias formas de crítica. Apesar de sua

simplificação exagerada, não é desprovida de fundamento real; trata-se, antes,

de uma linguagem lúcida, e deve ser encarada dessa forma. Através de

anedotas e charges estampadas na imprensa muitas situações são esclarecidas.

(...). Pela caricatura penetramos na intimidade e na sutileza das relações

sociais, às vezes pouco tangíveis, de difícil abordagem. (CAMARGO, 1971,

p. 231)

Os traços caricaturais das charges são um dos meios que ajudam a construir a

realidade, influenciando na percepção dos acontecimentos de forma cômica e humorada.

Henry Bergson, em seus estudos acerca do riso, afirma:

...o riso é acompanhado de insensibilidade, pois rimos da desgraça dos outros.

Não é puro o prazer de rir. Mistura-se a ele uma segunda intenção de humilhar,

e com ela, certamente, de corrigir, pelo menos exteriormente. O riso é

sobretudo um castigo, uma forma de castigar. Feito para humilhar, deve causar

à vítima dele uma impressão penosa. A sociedade vinga-se através do riso das

liberdades que se tomaram com ela. O riso não atingiria o seu objetivo se

carregasse a marca da solidariedade e da bondade. (BERGSON, 1980 apud

FONSECA, 1999, p. 22)

João Goulart e a política em traços: as charges de Augusto Bandeira em Correio da

Manhã

Correio da Manhã utiliza imagens gráficas na composição de suas páginas. Para

ilustrar notícias e acontecimentos em pauta, publica imagens e charges, ainda que o

volume destas seja predominantemente menor que o de textos. No que se refere

especificamente ao presidente João Goulart, foram observadas apenas ilustrações

caricatas. O mesmo também pode ser dito sobre o governo: o jornal publica poucas

fotografias, mas dedica espaço as charges. Elas acompanham textos e manchetes, que

estabelecem certa conexão. O desenhista do jornal nesse período foi Carlos Augusto

Moniz Bandeira (1937-2000), assinando suas produções como Augusto Bandeira. Natural

de Salvador, se destacou na produção caricatural de sua época, publicando nos principais

jornais brasileiros. Foi irmão do historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira (1935-2017).

Possui um traço firme, em que acentua as características físicas do presidente, como o

nariz e a calvície.

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Os desenhos de Augusto Bandeira, analisadas aqui, se referem ao contexto do

plebiscito de janeiro de 1963 e ao Comício da Central de março de 1964. No que se refere

ao ano de 1963, foram encontradas 9 charges sobre o presidente e seu governo, e 4 sobre

a política internacional, englobando líderes dos EUA e Cuba. A primeira charge do mês

de janeiro, posicionada em destaque no espaço superior e central da capa, apresenta o

presidente João Goulart com vestes de bobo da corte, tocando um instrumento e cantando

“Vamos dizer que não, não, não!” (figura 1). Esta frase faz parte dos jingles elaborados

no fim de 1962 para a campanha do plebiscito, em que um dos trechos é:

Meu povo a decisão agora está em sua mão, no dia 6 vamos dizer que não. O

Ato Adicional só aumentou a confusão, com o lápis na mão, vamos dizer que

não, não e não. (Jingle do plebiscito, 1962/1963)

Figura 1: Augusto Bandeira. O presidente Goulart como bobo da corte. Correio da Manhã, 4 jan. 1963, capa.

Não há manchete que possa ter conexão direta com a charge. O bobo da corte pode

representar o rei, que na paródia, “figura o poder no grotesco”, sendo “cópia irrisória do

rei” (FERNANDES, 2012, p. 38). A figura do bobo da corte ou bufão está ligada ao

sujeito que está encarregado de acompanhar reis e rainhas e entretê-los. Ainda que a

charge não dê explicações sobre e as especificidades que compõem essa caracterização e

o que representa de fato, uma das interpretações que se pode ter é de que está implícita a

ideia de que esta fantasia possui proximidade a imagem do palhaço, nos indicando o papel

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em que o presidente se submeteu à campanha do “não” ao parlamentarismo, fazendo

todos rir. A defesa do “não” pelo presidente da República, o faz ser visto sob fantasia de

bobo da corte, que o torna ridicularizado. A abordagem de João Goulart como um bobo

da corte permite ser interpretada como a imagem de um louco e do caráter dúbio que um

bufão carrega. Goulart como personagem, imbuído com traje e fantasia pitoresca, pode

ser interpretado como aquele que age de forma teatral. No mais, é a ideia de que o

presidente é aquele que faz rir. Segundo Balandier, “esta figura brinca com as aparências

e com a realidade escondida, com a ordem e com a desordem; não se lhe pode fixar uma

posição, pois onde quer que esteja, ‘erra’, desordena e ordena o curso do jogo”

(BALANDIER, 1982, p. 30). A imagem negativa de João Goulart é muitas vezes

caracterizada com base em sua “dubiedade”, aquele que se situa fora das convenções

sociais, onde passou a ser questionado por suas quebras de hierarquia militar e

aproximação sem protocolos governamentais com setores sindicais e trabalhistas. A

definição de Balandier (1982) sobre os bobos da corte e bufões pode ser associada à falta

de ordem que a imagem negativa do presidente carrega. Sobre a “dubiedade” do

presidente, bastante difundida como uma das marcas da sua imagem, Motta afirma que,

durante os anos em que João Goulart atuou como presidente e especificamente nos

momentos de maior instabilidade, “disseminou-se bastante a crença de que ele era um

político de atitudes ambíguas e convicções ideológicas vagas” (MOTTA, 2006, p. 70).

Seus adversários e críticos o viam como “um fraco, suscetível a moldar suas crenças e

aspirações em decorrência de pressão de terceiros, e um líder de caráter e ideias frouxas”

(MOTTA, 2006, p. 70).

Na edição do dia 6 de janeiro, data em que foi realizado o plebiscito da escolha

entre a permanência do regime parlamentarista, instaurado em 1961, ou o retorno do

sistema presidencialista, foi publicado a charge que também trata da defesa do “não”.

Neste caso, João Goulart está presente em uma cerimônia de casamento, onde impulsiona

o “não” com o gesto da mão e expressão de seriedade, em resposta à pergunta do padre:

“Sim ou não?”. Enquanto o noivo possui expressão gestual e facial de dúvida, a noiva

tem expressão sorridente. O casamento é uma cerimônia de compromisso. Nesse sentido,

entendemos que o “não” rompe o compromisso que até então o governo e o país possuía

com o regime parlamentarista.

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Figura 2: O presidente e parlamentarismo em mar agitado. Augusto Bandeira. Correio da Manhã, 15 jan. 1963, capa.

Figura 3: João Goulart em mar agitado. 31 mar. 1964, CM, p. 6

A charge do dia 15 de janeiro de 1963 (figura), uma semana após o plebiscito,

retrata o período conturbado em que o presidente se encontra. Em mar agitado, o

presidente João Goulart está em pé em uma vela náutica, no topo de uma onda, enquanto

alguém se afoga segurando um pano com os dizeres “Parlamentarismo”. João Goulart,

com expressões de preocupação, segura um remo em que o sujeito no mar tenta se segurar,

mas não consegue. A charge nos indica que o regime parlamentarista não conseguiu se

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salvar ou ser salvo pelo presidente. O desenho pode estar aberto também à interpretação

de que, mesmo não estando mais sob governo parlamentarista, o presidente continuará a

ter de enfrentar um mar agitado. Entretanto, há uma vela em cena, metáfora de que tem

capacidade para navegar, ainda que seja uma situação de instabilidade.

Um ano depois, Correio publica charge semelhante. A última caricatura política

do mês de março de 1964 (figura 4) traduz o clima do período. João Goulart está vestido

de marinheiro em um pequeno barco em meio a um mar agitado. Possui um semblante

preocupado. Este desenho representa desordem e descontrole da situação por parte do

presidente.

A charge correspondente ao dia 16 de janeiro de 1963 apresenta João Goulart com

a faixa do Presidencialismo de 1946. O alfaiate, com semblante sério e preocupado que

acompanha o presidente em cena diz, “Mas está muito folgada!”. O presidente, por sua

vez, contempla os dizeres com um sorriso no rosto. Isso indica que o regime

presidencialista precisa ser ajustado para servir no presidente. Pela expressão de Goulart,

é possível que não se importe com o fato da faixa estar folgada demais. Possivelmente

um componente característico das charges de Augusto Bandeira, está presente uma

pequena criatura. Esta oferece uma pequena faixa presidencial - escrito 63 - ao presidente.

Como próprio à expressão caricatural da charge, o desenhista Augusto Bandeira retrata

Goulart com uma cabeça bem maior que do alfaiate, com os olhos caídos, sua calvície,

nariz e queixo acentuados.1

Na charge do dia 23 de janeiro, o presidente aparece de costas e perfil, pisando

descalços em ovos, carregando nos braços seus sapatos. Há alguns ovos quebrados no

chão. Ele está sendo cauteloso, procurando ser cuidadoso em seus passos e ao “pisar em

ovos”. Vai em direção à política internacional, marcada por uma placa. Tudo isso indica,

metaforicamente, os riscos referentes à política externa, ou mesmo as decisões que o

governo deve tomar no que compete à política internacional e os riscos que ela promove.2

Duas edições depois, no dia 25 de janeiro, o jornal publica a charge em capa

posicionada acima da manchete: “João Goulart dá posse ao seu novo ministério e faz

1 Augusto Bandeira. Goulart e presidencialismo. Correio da Manhã, 16 jan. 1963, capa. 2 Augusto Bandeira. Goulart e a política internacional. Correio da Manhã, 23 jan. 1963, capa.

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discurso”3. Centralizada e posicionada na parte superior da página, o desenho nos mostra

João Goulart vendado. Atrapalhado, com pernas e braços bambos, o presidente tateia

objetos que estão ao seu redor, que acabam por cair e quebrar. Os objetos representam a

“reforma bancária”, a “reforma agrária” e o “Plano Trienal”. Existe a conotação de que o

presidente é uma pessoa atrapalhada por conta de sua cegueira. A pequena criatura

presente em praticamente todas as charges, segura a bengala – possivelmente em alusão

ao problema da perna de Goulart, que não está a sua disposição para se manter em

equilíbrio.4

O desenho do dia 12 de janeiro de 1963, publicado em capa, apresenta um sujeito

carregando uma espécie de cofre que representa o Plano Trienal. O sujeito que aparece

possivelmente é Celso Furtado, economista e criador do plano.5 Ele está subindo e

escalando, com uma corda, uma montanha de pedras, para chegar ao topo. Há sujeitos

com máscaras nos olhos. Um deles está com uma tesoura, prestes a romper a corda e

sabotar a subida do Plano e de quem o carrega. Em uma montanha íngreme, Furtado tem

dificuldade de subir, visto o peso do plano e do esforço que faz. Isso representa a ideia de

que o Plano Trienal é uma grande responsabilidade do governo para o país naquele

momento. Esta charge está acompanhada pela manchete “Governo imobilizado pela

política apesar do resultado do plebiscito”6, posicionada acima do desenho.7

Já no ano de 1964, em 21 de março, Correio da Manhã publica charge em que o

presidente troca os pneus “reformas de base” do carro “Brasil”. É a maneira gráfica para

representar que, para fazer o Brasil andar, é preciso das reformas de base. Para realizar as

reformas, assim, precisaria da ajuda da Câmara, representada na charge por uma mulher,

que o auxilia.8 No dia seguinte, a charge publicada dedica críticas ao monopólio

governamental do papel, ação governamental que pode interferir na liberdade de

3 Correio da Manhã, 25 jan. 1963, capa. 4 Augusto Bandeira. João Goulart, as reformas e o Plano Trienal. Correio da Manhã, 25 jan. 1963, capa. 5 Celso Furtado (1920-2004) criou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, em 1962,

enquanto foi ministro do Planejamento no governo Goulart. 6 Correio da Manhã, 12 jan. 1963, capa. 7 Augusto Bandeira. Plano Trienal. Correio da Manhã, 12 jan. 1963, capa. 8 Augusto Bandeira. Goulart, reformas de base e a Câmara. 21 mar. 1964, Correio da Manhã, p. 6

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expressão da imprensa e, segundo esta, da própria democracia, podendo “esmagá-la”

enquanto João Goulart empurra o rolo do papel.9

No final do mês, Augusto Bandeira faz referência a data de Páscoa com seus

maiores símbolos: o ovo de chocolate e o coelho estampado em sua embalagem.

Entretanto, João Goulart, curvado, se dá conta que não se trata de um ovo, mas de uma

bomba prestes a explodir, como a situação em que o país se encontra.10 A charge do

primeiro dia do mês de abril, por sua vez, apresenta João Goulart fazendo sinal para um

tanque militar, “via Laranjeiras”, local onde se encontra a sede do governo carioca,

sugerindo possivelmente que o presidente “pede carona” aos setores militares ou se

entrega às intervenções militares.11

Charges de Jaguar em Última Hora: março de 1964

Os desenhos publicados pelo jornal Última Hora em março de 1964 estão

posicionados apenas no espaço editorial do veículo e não se encontram na primeira

página. Foram encontradas 16 charges, sendo 8 referentes ao governador do Estado da

Guanabara, Carlos Lacerda. Também foram observados desenhos com menção ao

Comício das reformas, charges sobre a situação do trânsito carioca, o pedido de falência

do Banco do Brasil e menção ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD).

O desenhista carioca Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, mais conhecido

como Jaguar, nasceu em 1932 e é um dos principais expoentes do humor gráfico

brasileiro. Sua carreira como cartunista iniciou no final dos anos 1950, participando de

revistas como Pif-Paf, Revista da Semana e, nos anos 1960, trabalhou para os jornais

Correio da Manhã e Última Hora (FONSECA, 1999, p. 258). Em 1969, fundou, com os

jornalistas Tarso de Castro, Sérgio Cabral e o desenhista Ziraldo, o jornal alternativo de

humor O Pasquim. Jaguar possui um estilo gráfico agressivo e grotesco, com traços

vigorosos e linhas irregulares (FONSECA, 1999, p. 258).

9 Augusto Bandeira. Charge: democracia e monopólio do papel. 22 mar. 1964, Correio da Manhã, capa. 10 Augusto Bandeira. Feliz Páscoa. 29 mar. 1964, Correio da Manhã, p. 6. 11 Augusto Bandeira. João Goulart e tanque militar. 1 abr. 1964, Correio da Manhã, p. 6.

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Carlos Lacerda (1914-1977), por sua vez, foi um político e jornalista que

protagonizou no cenário político do país por seu posicionamento crítico e radical aos

governos Vargas e Goulart. Desde os anos 1920 escreve artigos para jornais e em 1945

chegou a trabalhar no Correio da Manhã. Em 1947, foi eleito vereador pelo Rio de Janeiro

pela União Democrática Nacional (UDN) e dois anos depois fundou o jornal Tribuna da

Imprensa, fazendo oposição ao getulismo. Esteve em meio à crise política de 1954,

quando após o Atentado da rua Toneleros intensificou críticas ao presidente Vargas,

exigindo sua renúncia. A situação política acabou por resultar no suicídio do presidente.

Também esteve presente no impedimento de posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, e

de João Goulart, em 1961. Enquanto governador da Guanabara, eleito em 1960,

pertencente a ala radical da UDN carioca, Lacerda fez recorrentes críticas ao governo

Goulart, apoiando sua deposição.12

Nas charges de Jaguar, é possível observar a construção de uma imagem pública

do governador Carlos Lacerda como um político ranzinza, impaciente, pequeno, eufórico

e radical. O jornal Última Hora constantemente desmente a agitação, a desordem e o

pânico em torno do Comício da Central do dia 13 de março de 1964. O veículo promove

e mobiliza seus leitores a comparecer ao evento, que este ocorrerá de modo tranquilo.

Para isso, critica as provocações e agitações feita pelo IBAD, assim como o governador

Carlos Lacerda e seus “cúmplices”.13 Última Hora associa as imagens deste político, seus

aliados e da instituição IBAD como encarregados de criarem uma “atmosfera de terror”14.

Entretanto, tendo o comício a proteção das Forças Armadas, o editorial evidencia que

“nada podem esses agitadores contra as Forças Armadas, escudo da lei e da ordem,

expressão mais alta da soberania popular” (Última Hora, 13 mar. 1964, capa). Assim, UH

promove o comparecimento do povo, justamente para desarmar os considerados

“inimigos da democracia”: “Que o povo compareça, pois. Em massa. E em ordem. Para

12 Verbete Carlos Lacerda. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed.

FGV, 2001. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/carlos_lacerda

Acesso em: 13 maio 2018 13 Nesse período, houve articulações da chamada direita brasileira, que consistia em políticos, militares e

empresários, para desestabilizar o governo e que se autodeclaravam anticomunistas. Surgiram os órgãos

Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) que

reuniram forças para a desestabilização do governo janguista. O IBAD chegou a financiar “candidaturas de

parlamentares conservadores” (FERREIRA, 2005, p. 342). 14 O povo em comício, Última Hora, 13 mar. 1964, capa.

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desespero e derrota dos inimigos da democracia e da liberdade, os únicos interessados na

provocação e na baderna” (Última Hora, 13 mar. 1964, capa).

Figura 4: Jaguar e o Comício. Última Hora, 10 mar. 1964, p. 4

Em charge de 10 de março de 1964 (figura 4), Jaguar representa em seu traço a

necessidade de Carlos Lacerda em se proteger do comício, marcado para uma sexta-feira,

13. Este dia representa popularmente um dia de azar. Em cena, o sujeito que

possivelmente produziu a escultura fala com Lacerda ao telefone: “Alô, Governador?! A

figa que o sr. encomendou para sexta-feira, 13, já está pronta”. Jaguar brinca com a

supersticiosidade do momento e o próprio medo do governador junto ao comício, a partir

de uma enorme figa encomendada por ele.

A imagem de Lacerda foi caracterizada constantemente a partir da figura do corvo.

O jornalista de UH, Octávio Malta, critica o governador e sua imagem delineada através

da figura do “corvo”, como a ave fascista.

Enfim, o comício é um fato concreto. Apesar da proibição, e mais do que a

proibição, os cartazes arrancados, as intrigas, as ameaças, os espantalhos

armados para atemorizar o povo, ninguém levou em conta o Corvo – ave de

camisa preta, a ave fascista! (...). Por que iria agora render-se à ave fascista, às

baixas manobras do Corvo? (Octavio Malta. Jornais e Problemas. O povo e a

ave fascista, Última Hora, 13 mar. 1964, p. 4)

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O corvo tem uma simbologia interessante, pois representa aquele animal que

ronda a morte. Representa, assim, no senso comum, a imagem da morte, do nefasto, do

azar. Também existe a figura dos “gorilas”, termo utilizado pelas esquerdas para

caracterizar a direita brasileira, normalmente encontrada nas caricaturas. Segundo Motta,

“a figura foi uma das principais armas discursivas usadas pelas esquerdas para atacar seus

adversários” (MOTTA, 2007, p. 196), em que sua “representação metafórica” é de que

“as forças de direita tinham as mesmas características do símio, associadas à imagem de

atraso e reação” (MOTTA, 2007, p. 198).

O ódio ao político carioca já havia inspirado a criação de uma figura caricatural

para atacá-lo, o corvo, imagem que evocava características malignas e

sinistras. Embora Lacerda já possuísse sua própria “persona caricatural”, a

figura do gorila renovou o arsenal satírico de seus adversários. (MOTTA,

2007, p. 204)

Neste momento, Jaguar não representou Lacerda através da imagem do corvo. No

entanto, foi comum sua representação como político ranzinza, como pode ser visualizado

na charge do dia 11 de março de 1964 (figura 5). Em decorrência da greve dos ônibus no

Estado da Guanabara, Carlos Lacerda aparece ao fundo irritado pelo fato da greve não ter

estourado no dia do Comício, para que dificultasse a ida das pessoas ao evento. Tal

informação nos é dita através da legenda, recurso utilizado com frequência pelo

desenhista: “Não, não é por causa da greve, é que ela não estourou no dia do Comício”

diz o sujeito para o outro sobre o estado de irritação de Lacerda, chutando objetos e com

expressão facial de insatisfação.

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Figura 5: Jaguar e a greve dos ônibus, Última Hora, 11 mar. 1964, p. 4.

Considerações finais

Conclui-se que as charges, enquanto expressões visuais sobre o político,

provocam o humor através da crítica gráfica e do traço caricato. Os desenhos podem

contribuir para a elaboração da imagem pública de algum político, pois acentuam não

somente suas características físicas, mas comportamentos políticos e suas personalidades.

Para representar uma situação política, são utilizados diversos elementos visuais que

influenciam na compreensão do leitor através da ironia, sarcasmo, humor e deboche. A

distorção de algum acontecimento político na charge pode definir melhor uma realidade

social do que textos escritos. Assim, a caricatura política serve como alternativa de

expressão opinativa e crítica sobre a realidade nos meios de comunicação impressa.

Referências

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1982.

BERGSON, Henry. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio: Zahar Editores,

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