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Cristovam Buarque AS CORES DA ECONOMIA

As Cores da Economia

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Cristovam BuarqueAS CORES DA ECONOMIA

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AS CORES DA ECONOMIACristovam Buarque

Artigos sobre Economia Selecionados de Jornais e Revistas

(2007 – 2011)

Brasília - DF, 2013.

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Para os jovens que escolheram a carreira de economista.

Esperando que ajudem o mundo a pintar a economia do futuro.

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Índice

AS CORES DA ECONOMIA

I - Economia Gordura e crescimento............................................... 11As cores da Economia ................................................ 13Apagões invisíveis...................................................... 15Desinverter a Pirâmide............................................... 17Progresso do Progresso.............................................. 19Pobre Riqueza............................................................ 21 Crescer florescendo................................................... 22Outros Muros............................................................ 24Os BRICS e os FICS.................................................... 25Exaustão da riqueza................................................... 27Keynesianismo social e produtivo............................... 29

II - Direitos Humanos Defesa da vida........................................................... 32Direitos Globais.......................................................... 34

III - Meio ambiente e ecologia A catástrofe da saída.................................................. 36A causa comum.......................................................... 38Nossa e Sempre......................................................... 40Planetania.................................................................. 41Jeitinho suicida ........................................................... 43Consciência em construção......................................... 45

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IV – NAÇÃO Mudar a ótica............................................................ 48Abusos Invisíveis........................................................ 50

V - POLÍTICA E CIDADANIA O Despertar de Dom Pedro........................................ 52Ervas e flores............................................................. 54Outra abolição.......................................................... 56Anormal e Imoral....................................................... 58Ameniza, não muda................................................... 60Esperança na “Rio+20”.............................................. 62Tenho vergonha......................................................... 64A primavera e o Outono............................................. 66Os compradores de tempo......................................... 68Cínicos ou Céticos...................................................... 71Basta.......................................................................... 73As Massas Falam........................................................ 75Autoengano............................................................... 76País ameaçado........................................................... 78As outras dengues...................................................... 81Debate Ausente.......................................................... 83O medo das palavras.................................................. 85Direito ao Uso............................................................ 86Cidanautas................................................................. 88Vergonha do Sete....................................................... 90Corda Bamba............................................................. 92Casamento maldito.................................................... 94Apesar de tudo........................................................... 95A outra fumaça........................................................... 97As duas democracias................................................... 99Cidadania Robótica..................................................... 101A luta pelo tempo....................................................... 103Quatro ações.............................................................. 105

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O parteiro ausente...................................................... 107Alerta: partido único no Brasil..................................... 109Legalidade incompleta................................................ 110Heróis esquecidos....................................................... 112Vinte anos................................................................... 115Tem volta.................................................................... 116Lições de uma polêmica.............................................. 118Crescimento ou grandeza............................................ 120

VI - PRÉ-SAL Apenas três letras........................................................ 122O petróleo permanente............................................... 123A outra corrupção....................................................... 126

VII - COMISSÃO DA VERDADE Verdade Silenciosa...................................................... 127

VIII - EXCLUSÃO Olhemos o espelho..................................................... 129

IX - JUVENTUDE Novos Tempos............................................................. 131Ideais da Juventude..................................................... 133

X - ENERGIA NUCLEAR/CHERNOBYL Aviso alemão.............................................................. 136

XI - CIVILIZAÇÃO/CRISE Quase 200 anos......................................................... 139Tribunal do Futuro....................................................... 141Pior nuvem.................................................................. 142Mesma chance............................................................ 144Sociedade hedionda.................................................... 146

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Todos cansamos.......................................................... 148Todos Neros................................................................ 150Neocanibalismo.......................................................... 151A Nova Riqueza........................................................... 153Imaginei..................................................................... 154As Raízes do Medo...................................................... 156Palavras ausentes........................................................ 158A Paz da Luta.............................................................. 159Profissão prisioneiro.................................................... 161Algemas Mentais......................................................... 163Anos esquecidos.......................................................... 165Dois derretimentos...................................................... 166Efêmero e Eterno......................................................... 168Fuzilamento ou embrutecimento.................................. 170O Patriomanismo.........................................................172Traidores Anônimos..................................................... 174A Esquerda Mudou de Lado......................................... 175Atraso Político............................................................. 177O Estado Limpo.......................................................... 179Estratégia dos Deuses.................................................. 181Imoral......................................................................... 183Nosso Cinquentenário................................................. 185O que foi?.................................................................. 186As Cores do Presidente................................................ 189Reformador de Mentes................................................ 193Se necesitan líderes globales....................................... 195Terrorismo e terror....................................................... 199Foco errado................................................................ 201Até quando!...................................................... ......... 203Ideias estapafúrdias.................................................... 204Lições da Grécia......................................................... 206PEC da Felicidade....................................................... 208

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Nota

Poucas coisas me dão mais prazer do que, a cada semana, escre-ver artigos para jornais. Ao longo dos últimos 30 anos, devo ter escrito uma média de quatro artigos por mês, o que faz um to-tal de mais de mil e quinhentos artigos. Depois de selecionados para eliminar aqueles que tratam de temas muito conjunturais, que não sobrevivem à semana, publiquei duas coleções: “Os Ins-trangeiros”, em 2002 e “ Sou Insensato”, em 2007.

Do período 2007 a 2011 separei dois grupos. Um primeiro ape-nas sobre educação, que está sendo publicado simultaneamen-te com este sob o título de “Uma nota Só”. E este, com temas variados, especialmente economia, política, civilização, direitos humanos, que publico sob o nome de um dos artigos: “As cores da Economia”.

Como cada artigo publicado a cada semana, este livro visa pro-vocar debates.

É isso que eu espero que ele consiga.

Cristovam Buarque Julho de 2012

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AS CORES DA ECONOMIA

I - Economia

Gordura e crescimentoO Globo – 09 de novembro de 2010

Durante séculos, acreditamos que as mulheres e os homens gordos eram mais saudáveis e mais ricos, carregando no corpo as provas da riqueza, as lembranças do prazer de comer e o fim da angústia da fome e, em consequência, eram mais belos. Hoje, pelo contrário, o símbolo da riqueza e da beleza é a esbelteza. Nas sociedades modernas, são os pobres que engordam; os ricos gastam fortunas para emagrecer.

Acreditávamos também que as cidades ficavam melhores à medida que crescia o tamanho da população. Faz pouco tempo, percebemos a necessidade de reduzir as cidades, para viver melhor fora das megaló-poles. Já é possível ser mais feliz em cidades menores.

Hoje, gordura e superpopulação deixaram de ser sinais de riqueza inteligente, tanto para cidades quanto para pessoas. Mas as pessoas ainda resistem em perceber que a gordura que as rodeia, na forma de bens, de consumo ou de patrimônio, não é mais sinal de riqueza inteligente. Porque essa riqueza já não cabe no mundo.

As cidades vivem com suas aortas entupidas de automóveis, a atmos-fera envenenada por dióxido de carbono. O organismo social padece das doenças que convenceram as pessoas a reduzirem suas cinturas. Depois de dois séculos de civilização industrial, principalmente na se-gunda metade do século XX, e muito mais com a globalização das últi-mas décadas, o PIB se transformou no símbolo do avanço civilizatório. Não importa se a compra vai endividar, comprometer o consumo de coisas mais essenciais à família, tirar as crianças de uma boa escola.

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Não importa também se as horas perdidas no trânsito aumentam ou se os engarrafamentos consomem tempo de vida ou provocam angús-tias e perdas. Como o consumo de combustível eleva o PIB, o engarra-famento passa a impressão de que a sociedade está mais rica, apesar da diminuição da felicidade geral.

Na medida em que percebemos o “desvalor” dos bens que engordam as cidades e as casas, tomamos consciência da possibilidade e da con-veniência de aumentar o bem-estar graças ao decrescimento da pro-dução de bens materiais e privados, com aumento na oferta de bens e serviços públicos e culturais. Diante da crise ecológica previsível e das insatisfações sociais já sentidas, surgiu, especialmente na Europa, um movimento pelo “decrescimento-feliz”.

O conceito de decrescimento, atualmente debatido na Europa, substi-tui a ideia do crescimento ilimitado como sinônimo de uma sociedade melhor. A ideia é que a sociedade pode melhorar seu bem-estar, con-sumindo menos. É claro que esse decrescimento não se aplica linear-mente em um mundo onde 20% consome 85% dos recursos naturais. Em consequência, 80% da população vive com menos do que o neces-sário.

Não faz muito, o jornalista Clóvis Rossi publicou um artigo com o título “Felicidade Nacional Bruta”, em que comenta o movimento mundial em busca de um novo indicador para o progresso. O IDH — Índice de Desenvolvimento Humano — já é levado a sério. O governo francês pediu e já recebeu uma proposta, elaborada por economistas, visando a um indicador que substitua o PIB.

É inevitável que a ideia de decrescimento-feliz ganhe adeptos. Que se espalhe e seja aceita tanto quanto a ideia de crescimento dominou o século XX. Antes disso, poderá ser recusada e ridicularizada, assim como a industrialização enfrentou fortes resistências do mercantilismo e da fisiocracia. Mas prevaleceu, porque representava a força do pro-gresso.

O decrescimento-feliz vai prevalecer graças à fragilidade da atual con-cepção de progresso para enfrentar a força da natureza e as insatisfa-ções existenciais. Não deve demorar muito para o crescimento econô-mico ser percebido também como o desconforto que hoje recai sobre

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a gordura do corpo e o tamanho das cidades. E que passemos a perce-ber o conforto e prazer de produtos que não aparecem no PIB, como a beleza ao redor, o tempo livre disponível, o exercício da convivialidade.

As cores da EconomiaO Globo – 16 de julho de 2011

Até recentemente, a ideia de “economia verde” era tida como um de-vaneio de ambientalistas, sem base teórica. Com o acirramento da crise ambiental, a “economia verde” ganhou legitimidade, apesar de ainda não ser reconhecido pelos economistas tradicionais porque, ao buscar alternativas sustentáveis para o processo produtivo, ela desres-peita os fundamentos da teoria prevalecente. A utilização de preços diferentes do mercado de curto prazo e a restrição ao uso de certos recursos naturais ainda incomodam os economistas. Mas a economia do século XXI não pode continuar amarrada, como a do século XX, à ideia de que a estrutura de preços momentâneos é capaz de orientar o futuro. Sabemos que as chamadas externalidades, os impactos exter-nos à economia e ao imediato, precisam ser consideradas.

Keynes dizia que no longo prazo todos estaremos mortos, por isso, o futuro distante não importava para a Teoria Econômica. Mas no seu tempo o problema ambiental não existia e a economia não tinha po-der de influir no longo prazo. Daqui para a frente, a sustentabilidade ambiental é condição necessária a ser considerada em qualquer eco-nomia sólida. A crise ecológica se acirrou de tal forma, e tão rapida-mente, que a simples mudança nos preços, justificando a preferência por recursos renováveis, já não é suficiente para enfrentar os proble-mas adiante. Mesmo assim, antes de ser aceita, a economia verde já nasceu velha: porque não basta o equilíbrio ecológico.

A substituição de combustíveis fósseis por renováveis pode gerar um efeito bumerangue: o acomodamento diante da crise. Não basta a “economia verde” em cada carro, se no nível macro o número de car-ros cresce tanto que as florestas darão lugar a plantações de cana para alimentar toda a frota, e as cidades serão paralisadas pelo excesso de veículos nas ruas ou nos estacionamentos. Além do problema da

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poluição e do desflorestamento, as cidades sofrem de um problema geométrico. Nelas não cabem todos os carros, infinitamente.

Também não basta a economia substituir o combustível fóssil por re-novável se o perfil da demanda continuar voltado para a minoria de renda superior. A economia que dinamiza seu crescimento produzindo bens caros para a minoria, concentrando a renda, pode ser verde, mas não é a economia que o futuro precisa. Não vale a pena a “economia verde” salvar o Planeta, se salvá-lo apenas para poucos. A economia do futuro precisa ser verde - no uso dos recursos naturais - e social no destino de seus produtos. Precisamos de uma economia que atenda às necessidades sociais como, por exemplo, a erradicação da pobre-za, a diminuição da desigualdade e a ampliação do emprego. Uma economia com valores éticos, capaz de entender que na educação e na saúde a desigualdade é imoral. Enfim, uma “economia vermelha”.

Além de verde e vermelha, a economia precisa ser branca, pacífica. Não faz sentido considerar a produção de armas como produto po-sitivo, seja para o ataque, seja para defesa. A proteção é necessária para evitar perdas, mas não aumenta riqueza. A cerca ao redor de uma casa assegura proteção, mas não aumenta seu tamanho. É um contrassenso considerar como produto que eleva a riqueza as balas que assassinaram Gandhi, Luther King ou John Lennon. Ou as bombas usadas em uma guerra assassinando milhares de pessoas. O valor do PIB não deve considerar o valor dos bens de destruição e de segurança.

A economia também deve estar em sintonia com a ciência e com a alta tecnologia: uma “economia amarela” pode ser a metáfora para a economia do conhecimento. A competitividade pela redução de custos, em geral pelo desemprego, não pode ser indicador da economia do futuro. A competitividade deve estar na capacidade de invenção de novos produtos capazes de elevar o bem-estar das pessoas. Para isso ela deve ter por base os cérebros, não mais a força dos braços.

Finalmente, a economia deve buscar o bem-estar como mais impor-tante do que a produção. A abolição do analfabetismo não pode ser medida apenas pelo aumento de renda do alfabetizado. O PIB basea-do em automóveis que engarrafam o trânsito, mesmo com carros elé-tricos, ou que fluem graças a viadutos construídos em vez de escolas, hospitais e sistemas de água e esgoto, não pode ser considerado como

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indicador da economia do futuro. Mais importante é uma economia que libere tempo dos trabalhadores e aumente os bens públicos e ima-teriais da cultura. A “economia azul” deve buscar eliminar os entraves que dificultam a busca da felicidade. Pode inclusive optar por um de-crescimento do PIB como forma de aumentar o bem-estar.

A “economia verde” começou a ser aceita, mas ela não representa a metáfora certa. Pelo menos cinco cores são necessárias para definir a economia do futuro: o verde da sustentabilidade ambiental; o verme-lho da justiça social; o branco de uma economia produtiva para a paz; o amarelo da criação de bens de alta tecnologia; e o azul da econo-mia comprometida mais com o bem-estar do que com a produção e a renda.

Apagões invisíveisO Globo - Maio de 2007

Todos os dias, de manhã e à noite, milhões de brasileiros esperam o transporte para ir ao trabalho ou voltar para casa. Esperam em pé, sob sol ou chuva, sem qualquer informação sobre o próximo ônibus, sem saber se irão perder a primeira aula, faltar à prova, chegar atrasados ao trabalho, ter o salário descontado ou perder o emprego; se terão tempo de fazer o jantar, conversar com os filhos, ver a novela. E sabem que isso se repetirá no dia seguinte e no outro e no outro. Todos os dias, vivem a angústia da irregularidade do transporte urbano. Mas esse apagão não levanta nenhum furor, não sai nas primeiras pági-nas dos jornais, não aparece nos noticiários da televisão, não provoca CPIs.

Porém, quando o sistema de controle do tráfego aéreo entra em crise e os aviões atrasam, o Brasil se levanta contra o apagão nos aeroportos, os passageiros têm ar-condicionado, restaurantes e lojas ao redor, mas os sofrimentos com o atraso, as perdas econômicas, a quebra de pro-jetos de férias, a imprevisibilidade das cirurgias fazem o Brasil entrar em pânico, e o Congresso convocar não apenas uma, mas duas CPIs.

A morte de qualquer personalidade ou cliente em um hospital privado gera imediatamente denúncias, críticas, propostas; mas a morte de

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dezenas em hospitais públicos, a falência total do sistema de saúde que atende a população pobre do Brasil, sem grandes perturbações. Como um apagão invisível.

Quando bancos e indústrias entram em greve, o risco de apagão eco-nômico movimenta as forças políticas, mas as greves de professores na educação básica não aparecem. Duram semanas, meses, provocando o mais duradouro dos apagões – o apagão intelectual, que inviabiliza o ingresso do Brasil na economia e na sociedade do conhecimento que caracterizam o século XXI.

O Brasil inteiro se isenta de responsabilidade. Os ricos se acomodam porque seus filhos estão nas escolas privadas; os pobres, porque – como os escravos no século XIX em relação à liberdade – acham que educação é privilégio dos filhos dos ricos. Todos acostumados e aco-modados. Os empresários, porque continuam viciados ao tempo das vantagens competitivas que vinham dos recursos naturais, ou do ca-pital das máquinas. Não entendem, nem se atrevem a ingressar no tempo do capital-conhecimento. Provocam o apagão invisível da com-petitividade.

O Brasil só vê os apagões de efeito imediato que obscurecem a vida da parcela rica. Enquanto isso, são invisíveis os apagões que infernizam a vida dos pobres e o futuro da Nação e que vão, aos poucos, apagando o País. Como se estrelas fossem desaparecendo do céu, aos poucos, até a escuridão chegar e surpreender.

Cada um dos apagões – tráfego aéreo, trânsito urbano, transporte (ro-doviário, ferroviário, marítimo, aéreo), setor elétrico, sanitário, educa-cional (pré-escola, ensino básico e superior), previdenciário, jurídico, policial, presidiário, ético, intelectual, cultural, científico, tecnológico, habitacional, hospitalar, ecológico, da segurança pública e da defesa nacional (Aeronáutica, Exército e Marinha) – vai desarticulando os se-tores do País, vai deixando sua marca. Vai apagando o País.

É preciso despertar o Brasil em seu ilusório berço esplêndido, no qual ele mais parece condenado do que deitado, iludido por não ver os apagões. O Brasil precisa de um despertador.

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Desinverter a PirâmideO Globo – 22 de novembro de 2008 – Publicado sob o título

“Inverter a Pirâmide”

Às vezes, a política precisa descobrir o óbvio: como o fato de que as pirâmides só se sustentam quando a base serve de apoio. No Brasil, acostumamo-nos tanto com as pirâmides invertidas que ainda nos sur-preendemos com as crises que ocorrem por causa desse desequilíbrio.

Nossa economia começou, no século XVI, voltada para o topo da pirâ-mide social da Europa, vendendo-lhe o açúcar produzido por escravos, que constituíam a base ignorada. Nossa industrialização dependeu da concentração de renda para criar a demanda por bens de preços ele-vados, dos quais um exemplo são os automóveis. Nossa indústria se voltou para o topo, esquecendo-se da base social e da sustentabilida-de.

Mesmo assim, embora a concentração tivesse chegado ao recorde mundial e atingido níveis de vergonhosa brutalidade e barbaridade, a demanda continuava menor do que a produção. Para continuar ven-dendo os produtos caros, a saída foi facilitar o crédito: adiar o paga-mento como possibilidade de vender produtos caros às classes médias. Começamos a fazer empréstimos para comprar produtos mais caros do que nosso dinheiro – no bolso ou no banco – permitiria.

Com o crédito fácil, empurramos ilusoriamente as classes médias para fazerem parte do topo da pirâmide, antes mesmo de atender às ne-cessidades da base. Em vez de água, esgoto, escola e saúde; palácios, aeroportos e automóveis. Em vez de esperar o aumento da renda e da poupança, optamos pelo endividamento, sacrificando os gastos com o consumo da base para permitir o consumo de luxo.

O único resultado possível seria a crise financeira, já que para aumen-tar a venda de produtos caros às famílias de renda média, os bancos emprestam mais do que seu capital e seus depósitos permitem. Para atender à demanda do topo, a base financeira fica instável.

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Agora, diante do desequilíbrio da pirâmide invertida, o Brasil opta por injetar bilhões de Reais para continuar financiando o topo: a venda de automóveis. Preferimos continuar financiando o transporte privado do topo do que investir no transporte público que atende a base. Mais uma vez, optamos pelo topo, no lugar de obras para garantir água, esgoto e habitação para a base, ainda menos em educação. Qualquer proposta nessa direção provoca a pergunta “de onde virá o dinheiro?”, mas para o topo, o dinheiro sempre aparece, sem perguntas sobre sua origem, sem considerações sobre a falta que ele fará em outros setores.

Mesmo a educação é um exemplo do desequilíbrio da pirâmide in-vertida. O Brasil dá mais ênfase ao topo, o ensino superior, do que à base, o ensino fundamental. O resultado é outra manifestação de instabilidade: a qualidade do ensino superior vem sendo puxada para baixo por causa da má qualidade do ensino médio; e este também vem perdendo qualidade por causa da piora no ensino fundamental.

Sem investimentos na base da pirâmide social, o Brasil continuará em desequilíbrio: violência urbana, concentração de renda, saúde degra-dada, educação sem qualidade. Mas não se vê o óbvio: a pirâmide está invertida. A maior prova disso é o abandono da primeira infância. É nela que o Brasil começa, e seu abandono é a maior das ameaças à pirâmide invertida que caracteriza nosso País. Como disse muitas vezes Heloísa Helena, quando senadora, “bastaria adotar uma única geração de brasileiros, desde o seu primeiro ano de vida”. Essa gera-ção, mais tarde, adotaria o Brasil. Para isso, seriam necessários poucos bilhões por ano. Mas como ele seria usado na base da pirâmide etária e social, com crianças e pobres, todos perguntariam de onde viria o dinheiro para enfrentar o maior de nossos problemas.

Talvez a crise atual – simbolizada no derretimento de bancos e geleiras – permita que o Brasil desperte para o óbvio e encontre a saída para um novo crescimento: pela base social e com equilíbrio ecológico.

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Progresso do ProgressoO Globo – 11 de setembro de 2009

Quando o Brasil ficou rico, com a exportação do açúcar, não havia modo de debater o destino dos recursos que chegavam. Éramos uma mera colônia, e a ideia do progresso econômico não tinha sido criada. Quando começou a exploração do ouro, o Brasil ainda era uma colô-nia escravocrata, e o ouro não nos serviu.

A renda do ouro partia de Minas Gerais para Lisboa, e daí para ci-dades inglesas, para atender ao luxo e ao desperdício dos ricos por-tugueses, servindo ao progresso industrial da Inglaterra. Em vez de investir nas novas máquinas que surgiam – os teares mecânicos –, Por-tugal comprava o tecido inglês, abrindo mão de ser um País industrial. Contribuiu para isso o fato de que os inventores das novas máquinas da Revolução Industrial eram ingleses, e Portugal não tinha nem ca-pacidade científica e tecnológica nem educação para se industrializar.

Naquele tempo, nem portugueses nem brasileiros tinham como enten-der a lógica do processo de desenvolvimento, nem eram capazes de projetar o futuro.

Quando Getúlio, e depois Juscelino, iniciaram o processo de desen-volvimento econômico, já existia o desejo consciente de progresso e também o conhecimento para induzir o desenvolvimento. O que nós ainda não sabíamos era que, ao lado das boas coisas, o progresso car-regaria concentração de renda, violência, aquecimento global, polui-ção, degradação urbana, inflação, endividamento, dependência, cor-porativismo e outros efeitos negativos. Foram necessários 50 anos de desenvolvimento contínuo para descobrirmos que existem o progresso bom e o mau.

Agora, quando surge a possibilidade de explorarmos as novas reservas de petróleo abaixo da camada do “pré-sal”, já temos conhecimento para imaginarmos o futuro e temos experiência suficiente para saber-mos que o progresso precisa ser orientado.

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O Brasil parece ter pressa em explorar o petróleo do pré-sal e usar os resultados obtidos com ele. Mas esqueceu-se de debater sobre qual progresso deseja para o futuro: se mantemos nossa aceleração no rumo do mau progresso ou se marchamos para um bom progresso que nos traga distribuição de renda, economia do conhecimento, equilíbrio ecológico, paz nas ruas e no campo, ética na política.

Só então, depois de ter escolhido o padrão de progresso para o futuro, a população deve responder as perguntas sobre o pré-sal: de fato ele existe nas dimensões apresentadas? Quais são as perspectivas para o preço do petróleo no futuro, diante da necessidade de substituição do combustível fóssil por combustível limpo; quais são os efeitos da queima dessas reservas de petróleo sobre o clima; como a economia do petróleo disputará com a economia do etanol; e, se tudo der certo, o que faremos com os recursos financeiros obtidos da queima do pe-tróleo?

Sobretudo, o povo deve debater as trágicas consequências de espe-rarmos pelos resultados do “pré-sal”, em vez de investirmos, desde já, em educação, saúde, segurança, defesa, ciência e tecnologia, com os recursos de que o Brasil já dispõe.

Outros países mais pobres, sem petróleo, já fizeram suas revoluções. Talvez exatamente por não terem recursos naturais abundantes, açú-car, ouro ou petróleo, tiveram de desenvolver suas capacidades cien-tíficas e tecnológicas, educar o povo, promover a maior de todas as energias de um povo: os cérebros de seus habitantes. Nós fizemos o contrário: o ouro, o ferro, o açúcar, o café, adiaram nossa indústria mecânica até a metade do século XX. E agora, com o petróleo, quando chegou a hora de reorientar o destino do progresso, o Brasil corre o risco de usar essa nova riqueza para não mudar de rumo.

Podemos perdoar as gerações do passado, mas não seremos perdoa-dos pelas futuras gerações, porque já sabemos o que é o progresso e porque já conhecemos suas consequências, boas e más.

Temos a obrigação de fazer mais do que progresso: temos de fazer o progresso do progresso.

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Pobre RiquezaJornal do Commercio –30 de outubro de 2009

Se um filósofo grego clássico caminhasse pelas ruas de Nova York, não veria ali qualquer sintoma de riqueza. Para ele, a riqueza estava associada à disponibilidade de tempo livre e o seu uso para o exercício da cultura.

O atual conceito de riqueza é pobre. Não resiste a uma análise filo-sófica, que tente entender o seu significado: o que é a riqueza-em-si. É certo que o grego ficaria fascinado pelo avanço das técnicas que aumentam o conforto, a água quente e o ar condicionado. Mas veria nisto uma solução rica para a arquitetura pobre; veria os automóveis engarrafados como símbolo da pobreza, porque roubam o tempo de vida o mais precioso de todos os recursos. Não consideraria riqueza o barulho urbano, nem o ar poluído, nem o desemprego estampado nos rostos. Mesmo ao se deslumbrar com a riqueza do avanço da medicina, pro-porcionando aumento na esperança de vida e na redução do sofri-mento, uma pessoa da antiguidade ficaria indignada com o privilégio que faz com que algumas pessoas vivam mais e com menos dores do que outras, porque dispõem de dinheiro para comprar vida e saúde.

Do ponto de vista moral, a riqueza atual não resistiria a uma análise filosófica, ontológica.

Pena que os economistas não tentam entender o que é a riqueza e aceitam como dogma o seu conceito atual. Se tentassem, perceberiam que o melhor indicador de riqueza ainda é o grau de educação de cada pessoa e do conjunto das pessoas em cada sociedade. Primeiro, porque a educação é a geradora da riqueza material e do conforto que caracteriza a riqueza-em-si; segundo, porque é o instrumento de ascensão social de cada pessoa; terceiro, porque a educação é o ca-minho para a redefinição do conceito de riqueza.

Se no lugar de observar o grego visitando Nova York visitássemos a Grécia antiga, aprenderíamos que a riqueza-em-si é o conhecimento,

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inclusive para sair do sem-sentido como se define riqueza nesses tem-pos modernos.

O conceito de riqueza se transforma ao longo da história, redefinindo o conceito de progresso. Mas a filosofia permite uma análise do âma-go de ambos os conceitos. E permite perceber uma grande ironia: a pobreza da riqueza.

Crescer florescendoProfissão mestre – setembro de 2009

Os economistas preferem o verbo crescer; os poetas, florescer.

Nossas cidades cresceram em população, número de prédios, shop-pings, viadutos; mas também em criminalidade, miséria, crianças nas ruas, prostituição infantil. As cidades cresceram, mas não floresceram.

Nossa indústria cresceu e nos transformou em potência econômica, encheu ruas de automóveis e lojas de produtos made in Brazil, cons-truiu hidrelétricas, centrais nucleares, aeroportos, rodovias. Mas por décadas enfrentamos uma inflação galopante com a troca regular da moeda, tornamo-nos campeões de endividamento, concentração de renda e desmatamento; o desemprego se mantém; por décadas, te-mos a taxa de juros mais alta do mundo; 70% da população continua pobre. Por falta de ciência, tecnologia e inovação, somos um país do “feito no Brasil”, mas não do “criado no Brasil”. A indústria cresceu, mas não floresceu.

A agricultura cresceu, tornou-nos o segundo maior exportador de ali-mentos, e o nosso agronegócio um exemplo de eficiência. Mas flores-tas foram devastadas, populações deslocadas, sem-terra peregrinam pelo território nacional, e milhões continuam passando fome do outro lado da cerca da modernidade. A agricultura cresceu, mas não flores-ceu.

O número de crianças matriculadas na escola cresceu, mas muitas não frequentam as aulas, não assistem, não permanecem, não concluem

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a educação de base, não aprendem o que precisam. A educação cres-ceu, mas não floresceu.

A política subverteu a economia e fez o País crescer, mas não florescer. Nossos políticos precisam buscar, mais do que crescimento, formas de fazer o Brasil florescer - crescer de forma sustentada, livre das dívidas, das depredações da desigualdade, da inflação, da taxa de juros.

O caminho é o crescimento pela base, beneficiando a população de baixa renda, e não o crescimento pelo topo, esperando uma hipotética distribuição da renda. Um crescimento que respeite o equilíbrio fiscal e mantenha a estabilidade de preços; que respeite o meio ambiente; ca-paz de frear a tragédia do endividamento e de reduzir a taxa de juros.

Esses objetivos – crescimento pela base e finanças públicas equilibra-das - podem se unir. Bem administrados, definidos corretamente e mo-bilizando a população em torno deles, poderão fazer o Brasil crescer florescendo, atendendo as necessidades dos excluídos, com estabili-dade de preços, respeito ecológico e sem a dependência das dívidas e seus juros.

Na atual situação brasileira, não há estratégia melhor do que o cres-cimento pela base, com incentivos sociais que empreguem os pobres, sem paternalismo nem assistencialismo, para que eles produzam tudo de que precisam, assegurem a frequência de seus filhos à escola, tra-balhem na construção de sistemas de água e esgoto, em projetos de reflorestamento. Um grande programa de emprego socialmente pro-dutivo. Esses gastos públicos, além de produzirem aquilo de que o povo precisa, dinamizariam a economia, induzindo crescimento. Ele-variam a produtividade e liberariam recursos públicos hoje gastos em assistência social. Gastos com saúde e segurança diminuiriam; a redu-ção da repetência escolar diminuiria despesas com educação; água e esgoto reduziriam doenças e aumentariam a produtividade.

Isso é tecnicamente possível, mas exigirá a composição de uma base de apoio político, para que o Brasil deixe o imediatismo e o corpora-tivismo que regem suas decisões, e formule alternativas para o con-junto do País, no médio e longo prazo. Esse é um problema político, dos políticos; e não técnico, dos economistas. Os economistas, que haviam aprisionado os políticos, são agora prisioneiros deles. E estes

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não veem saída; continuam prisioneiros do verbo crescer, ignorando e desprezando o conceito de florescer.

Outros MurosJornal do Commercio – 13 de novembro de 2009

Em novembro de 2009, o mundo comemorou o 20º aniversário da derrubada do Muro de Berlim, símbolo da divisão entre países. Além de comemorar, devemos lembrar que construímos três outros muros.

O primeiro separa os pobres dos ricos, não importa o país em que vi-vam. Como um muro ou uma “Cortina de Ouro” que serpenteia pelo Planeta, cortando cada país em duas partes.

De um lado, aqueles com recursos para estudar até o doutorado; de outro lado, os que não saem do analfabetismo ou, no máximo, che-gam à 4ª série. Alguns têm acesso a modernos sistemas de saúde, outros são abandonados à doença e morte; uns têm a esperança de chegar aos 80 anos; para os outros, a esperança de vida é de apenas 39 anos. De um lado da “Cortina de Ouro”, a renda per capita é de US$20 mil por ano, do outro lado, de US$500 por ano.

O segundo muro separa a atual geração das futuras. É o muro que de-corre da destruição ecológica. Até aqui, as gerações seguintes tinham certeza de uma vida melhor que a de seus pais. Este não é mais o caso, porque o muro da ecologia separa os que hoje têm acesso a uma agricultura que produz mais do que o necessário para alimentar todas as pessoas da atualidade, daqueles que, num futuro breve, terão uma agricultura desarticulada, incapaz de alimentar a população; daqueles que viverão o risco da elevação do nível do mar invadindo o litoral e inundando as casas. Que nos separa de nossos filhos e netos. Separa as gerações fazendo com que possamos usufruir de uma diversidade biológica a que os próximos seres humanos não terão direito.

O mundo que há 20 anos tinha uma Cortina de Ferro e um Muro de Berlim, hoje, tem uma Cortina de Ouro separando pobres e ricos, e outra separando a geração atual das gerações futuras. É a civilização

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dos muros nas fronteiras entre países, muros dos condomínios fecha-dos e dos shoppings centers, dos hospitais de qualidade, das boas escolas.

Uma terceira cortina faz com que, de um lado, estejam aqueles que se acostumaram à vida no mundo digital, que convivem com os chips, e do outro estão aqueles que têm apenas as mãos, sem conhecimento necessário para lidar com as tecnologias do tempo atual.

Hoje o mundo está mais dividido do que estava há 20 anos, quando o Muro de Berlim ainda estava de pé.

Precisamos dar um salto para irmos além do que foi feito 20 anos atrás, e derrubarmos os muros que continuam impedindo a humanida-de de viver a decência da mesma oportunidade entre as classes sociais atuais e as gerações futuras.

Antes, o debate era para saber como um lado derrubaria o muro des-truindo o sistema social e econômico que estava do outro lado. Agora, o desafio é como construir um mundo sem muros. O Brasil tem todos esses muros, mas tem os recursos necessários para derrubá-los.

Alguns países não têm necessidade de derrubar os muros, outros não têm condições de derrubá-los. O Brasil tem a necessidade e as condi-ções. Além disso, temos uma massa crítica de intelectuais e políticos capazes de entender esse problema, e liderarem as mudanças neces-sárias. Mas para isso eles teriam de derrubar um outro, dentro de seus cérebros e corações, e terem a consciência de que eles vivem em um lado da “Cortina de Ouro” e por isso ignoram as necessidades dos que estão do outro lado.

Os BRICS e os FICSO Globo – 08 de maio de 2010

O mundo do século XXI está cheio de siglas que representam grupos de países. O mais recente, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul é chamado de BRICS.

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O que unifica esses cinco países são suas dimensões demográficas e territoriais - entre as maiores do mundo - e o fato de suas economias terem crescido nas últimas décadas, tornando-os nações emergentes no mercado mundial.

O PIB do BRICS equivale a US$ 16 trilhões, 23,51% do produto bruto mundial; suas exportações somam cerca de US$ 2 trilhões, 13,03% do total das exportações mundiais. Participações surpreendentes, sobretu-do se comparadas à situação desses países há poucas décadas. Num mundo sem a polarização militar anterior à queda do Muro de Berlim e sem hegemonia política, esses países unidos formam um importante centro de poder.

Outro grupo - nem criado nem batizado - pode ter mais futuro do que o BRICS. Trata-se do grupo Finlândia, Irlanda, Coreia do Sul e Suécia, que podemos chamar de FICS. O que caracteriza esses países é o fato de deterem o principal capital do futuro: o conhecimento. Se os países do BRICS têm elevadas participações na produção, consu-mo e comércio mundiais, os países do FICS fazem parte da elite edu-cacional do mundo. A comparação entre os dados educacionais dos países do BRICS e do FICS mostra a diferença entre eles. Enquanto os países do FICS ficam entre o 10º e 22º lugares, os países do BRICS estão entre a 34ª e a 52ª posições, na avaliação da educação feita pela OCDE (Programa Internacional de Avaliação de Alunos - PISA) em 57 países, analisando o desempenho em leitura, matemática e ciências. Enquanto nos FICS as taxas de conclusão do ensino médio ficam entre 62% e 91%, nos BRICS ficam entre 15% e 57% da popula-ção.

Todos os países do FICS têm 100% de sua população adulta alfabeti-zada, mas nos do BRICS - com exceção da Rússia, que também atinge 100% - as taxas variam de 94% a 66%. Os países do FICS têm posição modesta na produção global, apenas 2,97% do PIB mundial, mas participam com 5,41% do total das expor-tações. Graças à boa educação de base, os países do FICS produzem e exportam cada vez mais bens com alto conteúdo científico e tecno-lógico, enquanto os do BRICS exportam principalmente bens agrícolas

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e minerais, produtos da indústria têxtil e mecânica com baixo teor de beneficiamento, produtos esgotáveis, como petróleo e gás, ou mesmo bugigangas. A realidade mostra as vantagens dos países do FICS sobre os do BRICS: a renda per capita dos primeiros é 4,9 vezes maior que a dos últimos. O índice de Gini (quanto mais próximo de 1, pior a distribuição de renda) dos BRICS varia de 0,550 (este pior índice é do Brasil) a 0,370; ao passo que nos FICS fica entre 0,250 e 0,343. O Índice de Desenvol-vimento Humano - IDH (quanto mais próximo de 1, maior o desenvol-vimento) nos FICS varia de 0,937 a 0,965; enquanto nos BRICS varia de 0,612 a 0,817. Os FICS também levam vantagem na estabilidade social e política, na proteção ao meio ambiente, na ética da política e nas das ruas. Mesmo em momentos de crise financeira, que pode ocorrer na Irlanda, a recuperação será possivelmente mais rápida. Mas é, sobretudo, o indicador de futuro que coloca esses países em condições superiores. O FICS tem território insignificante, pequena população, produção e consumo baixos, reduzida participação no co-mércio internacional. Mas em uma economia cada vez mais baseada no valor do conhecimento, o futuro será muito mais brilhante para os FICS, se comparados com o atraso dos BRICS.

Exaustão da riquezaO Globo – 16 de agosto de 2011

Tal como as pessoas, os músculos da economia também cansam e, às vezes, o cansaço se espalha provocando uma exaustão geral. Em 1929, o cansaço foi na Bolsa de Valores dos EUA e daí se espalhou pela economia mundial provocando a paralisia e uma depressão na produção, com redução do emprego e da renda.

Passado o conflito mundial, a economia entrou em um longo ciclo di-nâmico. Apesar de alguns percalços, como nos anos 70 e 80, devido à elevação do preço do petróleo, imposto pelo oligopólio da OPEP, não houve exaustão. Nos anos 90, com a liberalização dos mercados, a globalização do comércio e a revolução científica e tecnológica, a economia se robusteceu de forma ampla e geral.

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Agora, a dificuldade que o mundo atravessa é mais do que uma crise, é a manifestação de exaustão, que se pode perceber por cansaços na economia.

Os primeiros sinais dessa exaustão apareceram antecipados teorica-mente, já nos anos 70, no chamado relatório do Clube de Roma, com o livro “Limites ao Crescimento”. No fim do século XX, a exaustão am-biental saiu dos livros e ficou visível, sob a forma de aquecimento glo-bal, desertificação e ameaçando o esgotamento de recursos naturais.

A partir de 2008, surge a exaustão financeira.

Durante alguns anos, as finanças públicas passaram por dificuldades que foram enfrentadas pelo aumento de impostos ou emissão de mo-eda. As consequências foram a inflação e o aumento da dívida pública. Os economistas neoclássicos e os dirigentes conservadores usaram o neoliberalismo e o FMI para equilibrar os déficits fiscais. A exaustão na produção foi adiada, e a economia cresceu não só nos países centrais como também nos chamados emergentes, mas ao custo do desempre-go, da desarticulação da máquina do Estado e da redução dos bene-fícios sociais.

Agora, ao lado da crise fiscal, a economia enfrenta também a exaustão na dívida privada necessária para garantir a demanda que dinamiza a economia. A ganância dos banqueiros não quebraria a economia mundial, se não houvesse uma voracidade consumista que coloca a população em busca de crédito fácil para compra de bens ou hipoteca de imóveis, e se não fosse a irresponsável omissão dos governos libe-rando a criação de “moeda” pelos bancos. Se o cansaço financeiro for resolvido com regras restritivas ao crédito, a economia sofrerá uma queda de vendas e consequentemente da produção. E, se o governo for mais responsável em seus gastos, a economia deixa de crescer no ritmo que se deseja, por falta de infraestrutura e por redução na de-manda.

Com os governos sem recursos haverá uma exaustão dos benefícios sociais e a quebra de serviços públicos. A ampliação dos benefícios na saúde, educação, previdência, seguro desemprego, representa o grande avanço na justiça social ao longo do século XX, mas entra em exaustão por causa da crise fiscal. Os “jovens indignados” ocupam as

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praças contra o empobrecimento em comparação com seus pais. Para eles, a pobreza não é a falta de bens e serviços essenciais, é não ter renda para pagar o consumo no nível a que estão acostumados.

Essas crises levam pessoas indignadas às ruas, querendo ao mesmo tempo a redução de carga fiscal, o fim da insegurança financeira, o controle ambiental, a manutenção e a ampliação de benefícios sociais, a redução de juros, a manutenção da liberdade de mercado e moedas estáveis e valorizadas, como o Real ou o Euro, além da retomada do crescimento e da manutenção da paz. Objetivos incompatíveis entre eles.

Apesar da exaustão que se observa, o mundo moderno prefere re-definir pobreza, no lugar de redefinir riqueza. Não percebe que não haverá como segurar o padrão de consumo das últimas décadas. Ain-da mais grave, assume a exclusão de bilhões de seres humanos aos benefícios dessa riqueza; os movimentos contra a imigração nos países onde a maioria é rica e os muros dos shoppings e condomínios nos países onde a maioria é pobre. Essas barreiras provam a exaustão da ética da igualdade e da fraternidade.

Para retomar, o respeito à natureza, o equilíbrio fiscal, e garantirmos os serviços sociais, torna-se necessário entender que todas as crises atu-ais estão na definição de riqueza que a civilização industrial inventou e nela se viciou. Ao longo de décadas, a teoria do desenvolvimento se dedicou a discutir a falta de riqueza e os entraves ao desenvolvimento. Chegou a hora de percebermos o esgotamento do desenvolvimento e a exaustão do conceito de riqueza.

Keynesianismo social e produtivoJornal do Commercio – 16 de outubro de 2009

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento realizou um encontro no Cairo/Egito, com a participação de representares do PNUD de 56 países, para discutir a importância das Políticas de Transferência de Renda – iniciadas em 1995, em Brasília, com a Bolsa-Escola e trans-formadas em Bolsa-Família em 2004 –, na redução da pobreza no

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mundo. Durante o encontro, a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, atual administradora do PNUD, Helen Clark, disse uma frase surpreen-dente: “A África é um continente rico”. Surpreendente mas correta, ao afirmar que a riqueza de um povo está na sua população.

O desafio de abolir a pobreza está na mobilização da população para produzir os bens de que os pobres necessitam. O caminho para essa mobilização está na transferência de renda para que os pobres sejam mobilizados a produzir aquilo de que precisam, criando a partir daí o excedente que caracteriza a riqueza no sentido tradicional.

Desde a publicação do livro “A Segunda Abolição”, em 1999, pela Paz e Terra, essa lógica vem sendo chamada de “keynesianismo social e produtivo”, cujo instrumento mais conhecido é a Bolsa-Escola: a mãe recebe para participar do trabalho da educação de seus filhos.

Quando a pobreza é tratada como falta de renda, o número de pes-soas é visto como causa da pobreza, e não como indutor de produção. Com sua frase, a Sra. Clark apresentou uma nova visão. Primeiro, porque, se estiver produzindo, o pobre vira riqueza; segundo, porque afirmou que pobreza não é uma questão de renda, mas sim de oferta de bens e serviços.

No keynesianismo tradicional dos países ricos, os governos transferem renda para a população desempregada apenas para criar demanda e, com isso, dinamizar a economia, sem necessidade de produzir os bens públicos que atendam a população. Até porque, lá, mesmo os pobres têm acesso aos serviços essenciais. No keynesianismo social e produtivo, o SPK, seu acrônimo em inglês, os governos devem não apenas transferir renda, mas também oferecer incentivos sociais para que os pobres se mobilizem na produção do que precisam para sair da pobreza. São as “Transferências Condicionadas de Renda”: mobilizam pelo trabalho a mão de obra ociosa para que produzam e ampliem a oferta; geram dos bens e serviços de que os pobres necessitam.

Para isso, é necessário que a transferência de renda seja condicionada ao trabalho do beneficiado, produzindo aquilo de que ele e sua comu-nidade precisam. Sem a condicionalidade, a capacidade produtiva do pobre continua ociosa e inativa. A Bolsa-Escola garantia renda criando uma Rede de Proteção Social (RPS) e, ao mesmo tempo, colocava as

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crianças na escola, servindo de Escada de Ascensão Social (EAS). O livro “A Segunda Abolição”, pioneiro na concepção, na denominação e na proposta de uso da expressão keynesianismo social e produtivo, e apresenta outros programas e incentivos sociais, muitos deles implan-tados no Distrito Federal entre 1995 e 1998, promovendo o emprego de mão de obra desempregada para produzir o que melhora as con-dições de vida da população pobre, como pode ser visto no www.cris-tovam.org.br “Incentivos sociais: soluções simples e criativas” de 1997. Um bom exemplo destes incentivos é a bolsa que se pagava quando o analfabeto adulto demonstrava ter aprendido a ler. Comprava-se a primeira carta que ele escrevesse em sala de aula. Com este paga-mento, mobilizava-se o adulto analfabeto para o enorme esforço de aprender ler.

Ao mobilizar o desempregado para atividades como limpeza urbana, recuperação de rios, plantação de árvores, o KSP ou SPK se faz tam-bém ecológico.

Além disso, a transferência não condicionada de renda se transforma em instrumento de manipulação política da população que ao não oferecer contrapartida, vê a renda recebida como resultado de pater-nalismo do governo no poder. Com o condicionamento, o sistema é também cidadão, ao dar dupla dignidade ao beneficiado: por sua con-trapartida e pelo acesso aos bens e serviços que ele produzirá; além da renda que recebe.

Além de produtivo, o novo keynesianismo é social, cidadão ecológi-co, e precisa ter responsabilidade fiscal. O financiamento das trans-ferências deve ser feito com redução de gastos supérfluos do Estado, estancamento da corrupção e garantia de equilíbrio fiscal. Ao mesmo tempo, elas devem ser feitas democraticamente, o que exige a combi-nação dos recursos disponíveis com o tempo possível para a execução do programa. Quanto mais vontade social de fazer a transferência, menos tempo será necessário à abolição da pobreza.

Isso é coerente com a concepção levantada por Helen Clark de que a riqueza está nas pessoas: você é a riqueza.

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II - Direitos Humanos

Defesa da vidaO Globo – 15 de março de 2008

Nunca a humanidade esteve diante de opções éticas tão difíceis rela-tivas ao uso da ciência e da tecnologia. É recente o poder da ciência para degradar de forma catastrófica a Civilização e ameaçar o equilí-brio da vida no Planeta: com a bomba atômica e centrais nucleares, da física; o aquecimento global, da economia; e a manipulação da vida com a biotecnologia. Hoje é possível não só prolongar a vida, mesmo depois da morte cerebral; mas também impedir o nascimento com mé-todos pré e pós-concepção; fertilizar in vitro e manter congelada uma população ilimitada de embriões; beneficiar os ricos com tratamentos que lhes permitam viver mais e melhor. Em breve, também será pos-sível induzir mutações em embriões, beneficiando a classe social que pagar por esse serviço. Depois, provocar mutações transmitidas gene-ticamente. O resultado será quebrar a semelhança da espécie.

O uso tecnológico do conhecimento científico deve estar subordinado às razões éticas, que ainda são divergentes. Não há uma ética hege-mônica. Por isso, os debates devem ser livres e intensos, para que as decisões considerem as crenças individuais e o interesse comum. Toda opinião deve ser ouvida, ninguém deve ficar impedido ou omisso. Este é o caso da decisão sobre o uso de embriões congelados nas pesquisas com células-tronco. Há razões morais e religiosas contrárias, mas pelo menos cinco que justificam as pesquisas.

A primeira razão é de ordem moral. Quem defende a vida deve defen-der o direito ao nascimento e, também, à plena manutenção da vida e da saúde que ciência e tecnologia podem proporcionar. Contanto que a vida ou saúde de um não seja obtida sacrificando de outro. A decisão de autorizar as pesquisas com embriões humanos passa pela escolha entre o nascimento de uma nova vida e a perda daquela que estaria em formação nos embriões. Saber em que momento surge a vida é questão ética, religiosa e científica. Mas saber quando a vida acaba é somente científico. E os cientistas afirmam que, depois que o embrião

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permanece congelado por três anos, é impossível que dali surja uma vida; se havia vida no momento da concepção, agora existe um ente morto. Não há, portanto, razão moral para considerar seu uso um atentado contra a vida. Não é um ato similar ao aborto ou à eutanásia. Se houve erro moral, ele teria ocorrido com a fertilização in vitro e o congelamento do embrião por tanto tempo.

A segunda razão é humanista. O direito à vida não pode ser visto somente como o direito de nascer. Precisamos considerar o direito de nascer e de continuar vivo. E muitas pessoas poderão evitar a morte e melhorar a qualidade de vida se essas pesquisas forem adiante. Não defende plenamente a vida quem não defende o direito à sobrevi-vência e à qualidade de vida de todos. Não há como falar em direito à vida sem considerar o direito de ficar vivo, de não morrer antes do tempo, graças ao avanço nas pesquisas científicas.

A terceira é política. O Brasil é um país laico. Os brasileiros têm dife-rentes religiões, e todas devem ser respeitadas. Em alguns países, a re-ligião confunde-se com o Estado; neles, crime e pecado são a mesma coisa, mas esse não é o caso do Brasil. Aqui não podemos considerar crime o que é pecado para alguns. Os adeptos de cada religião têm o direito de não aceitar o desenvolvimento da medicina; podem recusar transplantes de órgãos ou transfusão de sangue, mas não podem acei-tar que uma fé se imponha politicamente a toda a população.

A quarta razão é social. Independentemente das leis brasileiras, essas pesquisas serão feitas em outros países. Se não autorizarmos as pes-quisas, os brasileiros ricos irão aos Estados Unidos e à Europa; depois, à Argentina e ao Paraguai, ou a outros países que desenvolvem suas pesquisas. Socialmente, não podemos tolerar que uns se beneficiem de pesquisas porque têm dinheiro para viajar em busca dos avanços que não fizemos. Do ponto de vista político, moral, social e humanista, há como justi-ficar as pesquisas com células-tronco a partir de embriões. Mas além destes aspectos, há mais um a ser considerado: o ponto de vista patri-ótico. O Brasil não pode abrir mão do domínio científico em uma área tão fundamental da medicina. Se proibirmos o uso dos embriões nas pesquisas, daremos um passo atrás em relação às nações que poderão realizá-las.

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Direitos GlobaisO Globo – 28 de fevereiro de 2009

A Academia da Latinidade, inspirada e dirigida pelo Professor Candido Mendes, realizou em fevereiro de 2009, no Instituto Nobel para a Paz e na Academia de Ciências da Noruega um debate de três dias sobre a ética na universalização dos direitos humanos. Embora o principal tema tenha sido as relações entre cristianismo e islamismo, ao longo dos debates surgiram cinco novos direitos humanos, que ainda preci-sam ser globalizados.

Primeiro, o direito ao meio ambiente. É preciso que o patrimônio na-tural do planeta seja garantido para as gerações futuras. Esse é um di-reito humano tão sagrado quanto os já reconhecidos e defendidos há 60 anos, pela Declaração Universal. E vai exigir mudanças profundas no sistema produtivo, nos padrões de consumo e no comportamento político das gerações atuais e futuras.

Segundo, o direito à migração. No mundo onde uma crise do sistema financeiro norte-americano se espalha por todos os países, onde o comércio é praticado livremente, onde um carro ligado em qualquer parte do mundo eleva a temperatura de todo o Planeta, ainda há fron-teiras que impedem a mobilidade das pessoas. Os pobres são impedi-dos de mudar em busca de emprego em outros países. O mundo glo-bal precisa tratar a migração internacional como um direito humano fundamental, derrubar as fronteiras da migração, como derrubou as fronteiras comerciais.

Terceiro, o direito à educação. Se o capital econômico está baseado no conhecimento, e o emprego de cada pessoa depende de sua qua-lificação, é inaceitável que a educação de cada criança dependa dos recursos da prefeitura da sua cidade. Se os direitos humanos proíbem a tortura, não podemos permitir que ainda existam cerca de 800 mi-lhões de analfabetos no mundo. Nem podemos tolerar que, por falta de educação, bilhões de jovens e adultos sejam incapazes de navegar no mundo virtual que caracteriza a contemporaneidade.

O quarto direito é ao emprego. As sociedades devem se unir em torno

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de um grande programa mundial de geração de empregos. Obvia-mente, esse emprego não poderá ser imposto ao setor privado, para produzir bens para o mercado, mas pode ser criado pelo setor público para atender a demanda por bens culturais, pela recuperação do meio ambiente, pela atenção em saúde, pela educação. A Bolsa-Escola era um exemplo desse emprego social: a família era empregada para ga-rantir que o filho fosse à escola.

O quinto direito é à saúde. Ao nascer no mundo global de hoje, as pessoas têm mais desigualdade no acesso à saúde, inclusive no direito a viver mais, do que tinham no passado. No século XIX, a medicina tinha praticamente a mesma ineficiência para qualquer pessoa: no século XXI, o acesso à medicina depende da renda da pessoa. Isso é imoral. E pode levar a uma diferenciação tão grande entre os seres hu-manos, que provocará o desaparecimento do conceito de semelhança. O mundo precisa definir sistemas de atendimento médico que iguale a chance de todos à saúde, sem importar em que País estão e a renda de que disponham.

Fiz a defesa destes cinco direitos durante os debates do XIX Colóquio da Academia da Latinidade, em Oslo. Creio que o Congresso Nacio-nal deveria debater o assunto nas Comissões de Direitos Humanos da Câmara e do Senado. Com a liderança que adquiriu nos governos dos presidentes Fernando Henrique e Lula, o Brasil deve tentar influir no cenário internacional, nas entidades que pertencem ao sistema das Nações Unidas, para que sejam encontradas formas de realizar o que ainda pode parecer um sonho: cinco novos direitos humanos globais.

No final da grande crise, de 1929 a 1945, o mundo aprovou a Decla-ração Universal dos Direitos Humanos e implantou o Plano Marshall, que recuperou a economia da Europa e lançou as bases para o desen-volvimento dos países do Terceiro Mundo. As crises globais deste co-meço de século XXI - ambiental, financeira, econômica, social - podem ser a motivação para a definição de direitos humanos globais e sociais e a realização de um Plano Global pela educação, saúde, emprego. O Brasil tem um papel a cumprir, omitir-se é fugir à responsabilidade.

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III - Meio ambiente e ecologia

A catástrofe da saída Jornal do Commercio – 19 setembro de 2007

A civilização contemporânea caminha para uma catástrofe, como já ocorreu com civilizações mais antigas. Mas desta vez, em escala plane-tária. As civilizações egípcia e maia desapareceram deixando ruínas; ninguém consegue ao menos explicar como surgiu e desapareceu a civilização na Ilha de Páscoa; a civilização greco-romana se dissolveu sob a ocupação bárbara e do cristianismo. Mas estamos atravessando a primeira grande catástrofe de uma civilização planetária.

O aquecimento global é o risco mais visível. Mesmo que medidas se-jam tomadas, nada aponta para a reversão da desarticulação climá-tica e de suas consequências sobre a indústria, a agricultura, o nível do mar, o bem-estar individual, sem falar na extinção de milhares de espécies biológicas e biomas inteiros.

Ao risco da catástrofe climática soma-se a escassez de recursos, princi-palmente energéticos, que provocará o colapso de setores industriais. As alternativas energéticas trarão consequências igualmente catastró-ficas: usinas nucleares, mesmo com segurança rigorosa, terminarão por ameaçar o meio ambiente; o uso de biocombustíveis na escala necessária para atender às demandas do mercado causará desmata-mento e reduzirá a produção de alimentos. Mesmo a mais limpa das energias, a hidroelétrica, cria lagos com impactos ecológicos negati-vos. A energia nuclear pode ser limpa, mas seus efeitos, quando ocor-rem acidentes, são de dimensões catastróficas.

A migração é outro risco. Provocado por mudanças climáticas e pela desigualdade de oportunidades entre países, a transumância universal em busca de melhores opções de vida provoca a decadência de algu-mas cidades pelo esvaziamento, e de outras pelo inchaço. O choque entre civilizações força um permanente quadro de tensões internacio-nais.

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A crescente disponibilidade de armas de destruição em massa fará o mundo cada vez menos seguro, provocando o risco de uma terceira catástrofe. Armas químicas e biológicas facilmente disponíveis serão usadas em guerras entre Estados, ou por grupos terroristas.

As sociedades globais, sem controles estatais nem fronteiras nacionais, sofrem uma vulnerabilidade crescente: nas economias nacionais e na saúde. As interações globais e instantâneas trazem o risco de crises econômicas e de epidemias que podem se espalhar de maneira mais rápida do que a possibilidade de enfrentá-las, mantendo uma perma-nente instabilidade.

A economia especulativa dependente de financiamento constante para a venda de seus produtos cai na incapacidade de prever o longo prazo. A superconcentração de renda em poucas mãos cria uma sociedade mundial perversa capaz de desigualar até mesmo o sentimento de se-melhança entre as pessoas.

A dependência de cada aldeia em relação aos bens e serviços vindos do exterior traz o risco de desarticulação no fornecimento dos produtos necessários ao funcionamento dos setores produtivos de cada povoado do planeta.

A urbanização cria hordas deslocadas de seus ambientes, sem alterna-tivas de sobrevivência salvo o crime, a mendicância, a informalidade, com sinais visíveis de desorganização social.

O individualismo e o tribalismo remanescentes em todo ser humano impedem a busca de soluções civilizatórias. A democracia nacional e de curto prazo impede medidas globais e de longo prazo que evitem a catástrofe.

A lógica simples da mente humana não permite que ela capte toda a complexidade da realidade, em sua enorme velocidade de transfor-mação. Com sua lógica divorciada da ética, o homem que constrói bombas não se recusará a utilizá-las contra inimigos nacionais.

A espécie humana parece fadada ao suicídio, se não biológico, ao menos civilizatório.

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A saída seria a pior das catástrofes: a parcela rica perceber que no mundo não cabem todos, e optar por uma ruptura no sentimento de semelhança entre seres humanos. E desenvolver a biotecnologia para induzir mudanças genéticas em benefício da parte rica da população, criando as bases éticas e filosóficas que justifiquem a exclusão e, a partir dela, a destruição da parte pobre da humanidade.

A catástrofe física e econômica seria evitada, mas ao custo da catástro-fe ética: a catástrofe da saída.

A causa comumO Globo – 01 de Setembro de 2007

O vazio de propostas alternativas acomodou a política, que assiste impotente a marcha rumo à catástrofe ecológica, o aquecimento glo-bal, a apartação. Os sonhos utópicos se limitam a poucos defensores de causas ecológicas, da assistência social, dos direitos humanos. Os partidos perderam a nitidez e as bandeiras; os políticos perderam a liderança e o estadismo; o Estado perdeu sua função; a população perdeu a esperança, as ideologias se esvaeceram.

Depois de 200 anos, a civilização do crescimento econômico se esgo-tou, pela depredação ecológica e pela divisão social. Construímos uma civilização de riqueza e poder científico-tecnológico inimaginável, mas ameaçada pelo desequilíbrio ecológico e limitada pela apartação so-cial, que atravessa cada País, separando pobres e ricos. A alternativa socialista também se esgotou, por falta de liberdade individual e de eficiência econômica, principalmente por causa da ilusão de igualdade criada pelo estado.

A civilização do crescimento, capitalista ou socialista, encara hoje a triste perspectiva do assombro ante um futuro com violência urbana, exclusão social, degradação ambiental, desarticulação demográfica, migração em massa, divisão, guerra de civilizações, consumo de dro-gas, destruição do patrimônio cultural, vazio existencial. Mas o sonho da utopia persiste, e algumas formas novas de ideologia são necessá-rias: o educacionismo, palavra inexistente no dicionário, é uma delas.

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O educacionismo defende a recuperação dos sonhos utópicos para o projeto civilizatório. Mas em vez das falsas promessas de abundância para todos, ou da igualdade da renda e consumo, propõe uma al-ternativa utópica: assegurar a mesma chance para todo ser humano; oportunidades iguais para que cada um desenvolva livremente o po-tencial de seu talento e de sua persistência.

Para tanto, é preciso agir em duas frentes: por um lado, assegurar a igualdade no acesso à educação de qualidade para todos, filhos de pobres ou filhos de ricos, garantindo a mesma chance entre classes so-ciais. Por outro, realizar ajustes no processo produtivo, construindo um modelo de desenvolvimento sustentável que garanta a mesma chance entre gerações.

Educação e ecologia são os vetores da utopia da mesma chance. E exigem eficiência para organizar um sistema social e econômico com-petente, por meio de um choque de gestão e de investimentos em infraestrutura, com equilíbrio das contas públicas.

Consciente de que tanto os vetores quanto a eficiência demorarão a dar os resultados esperados, o educacionismo assume a necessidade de enfrentar emergencialmente os problemas do desemprego, da vio-lência, da corrupção e da assistência às parcelas mais pobres da popu-lação, por meio de programas sociais inovadores, eficientes e eficazes.

Esses são os princípios e a estratégia do educacionismo, a ideologia que defende um futuro baseado no capital-conhecimento, construído graças a uma educação de qualidade para todos, com economia soli-damente apoiada em princípios do desenvolvimento sustentável.

Essa alternativa tem como principal recurso social e econômico a inte-ligência dos seres humanos, e considera cada criança como um tesou-ro a ser cultivado na escola. Esse projeto tem um partido que não se baseia nas siglas tradicionais, mas em uma causa comum. É um mo-vimento similar ao abolicionismo do século XIX: um “partido” formado por líderes filiados às siglas formais, mas todos militantes em torno de uma causa comum para o povo brasileiro e para o futuro. Cada um desses líderes é um educacionista.

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Nossa e SempreJornal do Commercio – 30 de maio de 2008

Nas últimas semanas, diferentes personalidades começaram a defen-der a ideia de que a floresta amazônica é um assunto de interesse de toda a humanidade e que nós brasileiros somos incapazes de protegê--la. Como consequência lógica surge a proposta de sua internaciona-lização: deixar de ser brasileira. Se ela é do interesse da humanidade, caberia à humanidade, e não ao Brasil, preservá-la.

É surpreendente a hipocrisia de defender a internacionalização da Amazônia por razões humanitárias, esquecendo-se de defender a in-ternacionalização de recursos igualmente importantes para a humani-dade. Defendem a internacionalização para proteger as árvores, mas não defendem internacionalizar os pobres do mundo, para salvar suas vidas. Cada árvore é importante, mas cada vida também. Se vamos defender a internacionalização das árvores para que não sejam der-rubadas, internacionalizemos cada ser humano para que não morra de fome.

Como defender a internacionalização da Amazônia sem defender a in-ternacionalização de todas as crianças, para que nenhuma delas seja abandonada, seja porque seu País é pobre, ou porque seus governan-tes são corruptos. Que humanismo é este que se preocupa em tomar uma parte do Brasil para que as florestas sejam conservadas, mas não se preocupa com a proteção das crianças de Darfur?

As emissões de dióxido de carbono que esquentam o Planeta decor-rem, sobretudo, do uso de um bilhão de automóveis que circulam no mundo. Para a humanidade, tão importante quando aumentar o nú-mero de árvores nas florestas é diminuir o número de carros nas ruas. Deveríamos submeter à decisão internacional o número máximo de automóveis a serem produzidos por ano em cada País. E por que não internacionalizar também os poços de petróleo, para evitar a queima desse combustível fóssil que degrada nossa atmosfera?

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A ideia de defender a internacionalização da Amazônia para evitar que suas árvores sejam derrubadas fica ridícula quando não se propõe internacionalizar o capital financeiro do mundo que circula pelas bol-sas de valores como verdadeiras motosserras cortando países inteiros. Mas é preciso que seja de todos: os brasileiros de hoje e do futuro. A Amazônia é nossa, mas tem que ser nossa para sempre, não apenas agora. Isso exige a defesa de sua soberania e a defesa de sua susten-tabilidade. Como dizia Jefferson Peres, é preciso defender a Amazônia contra a ambição que vem de fora, e contra a voracidade aqui de dentro.

Sendo nossa, ela tem que ser cuidada para sempre: servir às gerações futuras. Para tanto, é preciso definir áreas de reserva onde suas flores-tas serão conservadas: derrubar árvores nestas áreas deve ser conside-rado crime hediondo, de traição à Pátria e contra a humanidade. Em outras áreas, o uso da floresta está condicionado à sua sustentabilida-de. É preciso um “royalty verde” que cobre dos que exploram combus-tível fóssil dos subterrâneos do solo, para financiar os que conservam as árvores. Precisamos estabelecer um dia nacional da consciência de defesa da Amazônia, para, a cada ano, toda criança aprender a co-nhecer nossa riqueza florestal, amá-la, e adquirir o compromisso de defendê-la. Inclusive entendendo que o Brasil é parte de um condomí-nio chamado Terra. Patriotas com humanismo.

Sem a demonstração de nossa capacidade para defendê-la, a Amazô-nia corre o risco de ser tomada; sem nosso compromisso de protegê--la, ela corre o risco de ser de ninguém.

PlanetaniaJornal do Commercio – 10 de julho de 2009

Deve-se ao ex-governador do Acre, Jorge Viana, a criação da pala-vra “florestania”, em contraposição à “cidadania”. À palavra diferente corresponde um conceito diferente. Cidadania se refere a direitos e responsabilidades dos moradores das cidades democráticas. O termo

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está vinculado aos direitos e deveres dos cidadãos-urbanos, distantes dos moradores das florestas e ainda mais da própria floresta. Floresta-nia significa a cidadania adaptada aos moradores da floresta e a res-ponsabilidade deles com o meio ambiente natural onde vivem. Apesar de um enorme avanço, esse novo conceito ainda ficou restrito ao local.

A civilização de hoje exige um salto que vá além da cidadania e da florestania, que nos dê uma visão de cidadania e florestania em escala mundial: a “planetania”.

A planetania deve ter cinco características essenciais. Primeiro, dife-rentemente da cidadania e da florestania, ela deve ser global. Agindo nos limites de cada país, a cidadania e a florestania não permitirão ações que tenham influência nos assuntos de toda a civilização. Os problemas de hoje exigem enfrentamentos globais. A cidadania não pode mais se limitar às eleições dentro de um país ou cidade, ela deve levar em conta a responsabilidade e os direitos de cada cidadão para com todo o mundo. O meio ambiente, o terrorismo, a economia, a migração, a ilicitude, o tráfico, as drogas, qualquer problema da vida social, está vinculado ao resto do mundo. Cada país faz parte do con-domínio Terra, cada pessoa já não é cidadão apenas de um país: faz parte de toda humanidade.

Segundo, a planetania precisa estar relacionada com a natureza. Não há cidadania moderna que não leve em conta o rural, as florestas, a água, a terra arável. Além de global, a nova cidadania deve ser eco-lógica. A simples relação política entre os seres humanos, indepen-dentes da natureza, não permite a construção do mundo melhor que a cidadania busca. A planetania tem de levar em conta os aspectos ambientais com a mesma preocupação que tem com os aspectos da economia e da sociedade.

Terceiro, a planetania deve ser socialmente solidária em escala glo-bal. Em um tempo em que as informações são globais e instantâneas, qualquer lugar do mundo está dentro de qualquer sala em qualquer outra parte do mundo e o sofrimento de qualquer pessoa deve ser um sentimento global. Ninguém deve assistir em silêncio às tragédias das doenças na África, do desemprego na Europa. Da mesma forma como a globalização já permite o sofrimento e a solidariedade com os passageiros do acidente de um avião, é preciso que fome, doenças e

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todo sofrimento que acontece no mundo sejam capazes de sensibilizar cada pessoa do mundo. Eticamente, não se justifica o abandono dos problemas sociais de países e regiões distantes.

Quarto, a planetania, diferentemente da cidadania, tem uma percep-ção de longo prazo dos assuntos do mundo. A cidadania busca defen-der os cidadãos de hoje nos seus interesses imediatos e pessoais; no máximo, os interesses de curtos e médios prazos das cidades ou do País. A planetania olha com responsabilidade para o longo prazo e para todo o planeta.

Quinto, a planetania significa um compromisso global com a educa-ção no mundo inteiro: com a garantia de igualdade de oportunidade a cada indivíduo e criação de uma mentalidade planetária. Em vez de centrar o processo civilizatório e o desenvolvimento no avanço e no crescimento econômico, a planetania defende uma revolução global pela educação de qualidade igual para todos.

Jeitinho suicidaO Globo – 10 de abril de 2010

Muito antes dos céus se prepararem para a chuva, as tragédias no Rio, São Paulo e outras cidades já estavam em preparação. As tragé-dias são produto da natureza e dos seres humanos, por suas ações e omissões.

Há um século, libertamos os escravos sem fazer a reforma agrária e sem considerar que isso forçaria migrações em direção às cidades. Desde os anos 30, iniciamos o salto para a industrialização, aumen-tando a migração. E submetemos nossos projetos de infraestrutura ur-bana à vontade e à voracidade de um modelo de desenvolvimento perdulário e concentrador.

A consequência é que as cidades estão pagando pelos erros e omis-sões do passado. Atraímos migrações e usamos recursos para viabili-zar a indústria automobilística, e não para dar segurança aos morado-

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res. Em vez de urbanizar os morros, blindamos os caminhos por onde a água vazaria.

Fazemos nossas cidades sobre o alicerce dos “jeitinhos” e por gover-nos sem visão. Em países ricos e responsáveis, vias são construídas respeitando as águas, com fortes investimentos na sua drenagem e atendendo aos direitos sociais das maiorias - que são respeitadas com os investimentos urbanos necessários. Esses países levam em conta o longo prazo. Nós ficamos presos no imediato, não levamos em conta o futuro.

Resolvemos o problema de cada pedaço de asfalto sem considerar que, um dia, todo o território estará asfaltado; deixamos que a pobre-za force cada brasileiro a migrar do campo, sem perceber que, um dia, as cidades estarão superpovoadas; toleramos construções em ladeiras vulneráveis, sem considerar que um dia as fortes chuvas, sem terem para onde escorrer, arrastarão mulheres e crianças, soterrando-as. O Brasil construiu suas cidades como se as chuvas jamais fossem acon-tecer com a densidade concentrada que só ocorre com certa raridade - mas que acontece. E para não mudarmos o modelo de desenvolvi-mento e o imediatismo que norteiam as decisões, vamos dando “jeiti-nhos”, como se as chuvas nunca viessem em densidades infernais mas previsíveis, no longo prazo; e usando políticas públicas que privilegiam apenas a solução de problemas de uma parte pequena e privilegiada da sociedade.

A natureza é paciente, mas não tolera “jeitinhos”.

Não podemos jogar a culpa somente nos atuais governantes, nem apenas nos governantes locais, nem mesmo em todos os governantes. A culpa é da nossa cultura da preferência pelo imediato e do pavor à prevenção. A culpa não está nos céus. A chuva não escolhe onde cair. Foi o Brasil que escolheu o caminho da imprevisão e improvisação. Fizemos a opção pelo imediatismo, pela concentração, pela industria-lização e urbanização apressadas, com infraestrutura incompleta.

A tragédia vem da “chuvomissão”: as chuvas aumentam de volume, os governantes escolhem investimentos que não levam em conta o longo prazo; a omissão fecha os olhos, os ambientalistas não são ouvidos; o resultado é a tragédia.

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Se o Brasil continuar com a prática do jeitinho suicida, esse é um pro-blema que nenhum governante vai resolver: os baixos salários são compensados com baixa exigência, com aposentadorias precoces, vale-transporte, vale-refeição; a pobreza é compensada com bolsas assistenciais; a falta de habitação, com a tolerância na ocupação irre-gular do solo; a falta de estadistas para mudar o futuro do País, com políticos geniais no convencimento de que tudo vai bem.

Certamente que os governadores e prefeitos precisam fazer seus de-veres de casa, mas nenhum conseguirá resolver os problemas de sua cidade se o Brasil continuar desprezando o futuro. Comemorando o aumento do número de carros, vias asfaltadas e viadutos construídos, em vez de implantar um novo modelo de desenvolvimento que come-more a moradia, a ocupação regular do solo, o respeito ecológico.

Enquanto isso não for feito, a chuva e a omissão continuarão a provo-car tragédias cíclicas, gritantes e visíveis, ao lado de outras, permanen-tes, mas que nos negamos a ver, na saúde, na pobreza, na educação, na migração por necessidade de sobreviver e nas mudanças climáti-cas, que provocam a imprevisibilidade das chuvas.

Consciência em construçãoO Globo – 17 de dezembro de 2011

No dia 2 de dezembro de 2011, o Presidente da República em exercí-cio, Deputado Federal Marco Maia (PT-RS), sancionou a Lei nº 12.533 que institui a data de 16 de março como Dia Nacional da Consciência das Mudanças Climáticas. Pode parecer um ato sem grandes consequ-ências, mas, a partir dele, essa data passa a ser usada em todo o País para debater a tragédia que nos ameaça por causa da crise ecológica e também buscar soluções para os problemas que enfrentamos. Imagi-nemos todos os estudantes brasileiros debatendo em suas escolas qual o tipo de progresso que estamos realizando, quais os problemas que a humanidade tem adiante e como enfrentá-los, usando esse dia para buscar respostas às perguntas que o mundo apresenta. A Subcomissão do Senado para a Cúpula Rio+20 preparou uma lista destas questões

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sobre o futuro da humanidade. Elas foram reunidas no livro “Desafios à Humanidade – perguntas para a Rio+20”, de 2012 que está disponí-vel no site www.cristovam.org.br. Ressalto algumas das questões:

Água, como conservá-la? Se não adquirirmos uma consciência da es-cassez de água potável no mundo e não usarmos esta consciência para encontrar formas de poupar e reciclar a água potável que temos, nossos descendentes vão passar por graves dificuldades em um futuro não distante.

Energia, para que e como? Este é um problema perceptível por causa do esgotamento do petróleo, mas temos deixado o assunto para os técnicos, esquecendo que ele é também de comportamento pessoal e de política social. Buscamos aumentar a oferta, sem procurar como elevar o Bem-Estar usando menos energia. Os governos lutam de-sesperadamente por novas hidrelétricas, sem perceber que é possível reduzir o consumo de energia elétrica, nem entender que há outras fontes que já deveriam estar sendo utilizadas extensivamente.

Crescimento, até quando poderá continuar? A crise europeia mostra na prática o que há décadas se discute teoricamente: que não há como a economia da produção material continuar crescendo eternamente. Mais do que um problema financeiro, a crise europeia é o resultado do esgotamento de um tipo de civilização que define progresso como sinônimo de crescimento econômico: o progresso medido pela veloci-dade da utilização dos recursos materiais para servir à voracidade do consumo.

Progresso, como redefini-lo? Não é mais lógico nem ético adotar pro-gresso como sinônimo de crescimento econômico, conseguido graças à depredação ambiental, ao aumento da desigualdade, à produção de armas e ao consumismo. Mas ainda não temos um conceito alternati-vo; ainda não se definiu com clareza o que é desenvolvimento susten-tável, ainda não se aceita a ideia de que é possível elevar o Bem-Estar mesmo sem Crescimento Econômico.

Indicadores de progresso, quais utilizar? Se progresso não deve ser determinado pela taxa de crescimento do PIB, é preciso encontrar ou-tros indicadores que meçam o nível de Bem-Estar. O IDH – Índice de Desenvolvimento Humano - representou uma revolução. IDH leva em

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consideração a expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per ca-pita. Estimado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvol-vimento, o IDH mostra o contraste do Brasil, como um exemplo de progresso, a 6ª economia do mundo; e, ao mesmo tempo, exemplo de fracasso, por sermos o 84º País em progresso social. Mas é preciso ampliar seu conceito até podermos, a cada ano, indicar o quanto cada País melhorou o Bem-Estar das pessoas sem depredar a natureza.

Decrescimento com Bem-Estar é possível? Se o crescimento começa a se esgotar, cabe perguntar se é possível melhorar o Bem-Estar com a economia decrescendo. Aumentar a oferta de alguns bens e reduzindo de outros, mesmo que a soma não represente crescimento de um ano para outro.

Com a sanção da lei 12.533 de 2011, estas e outras perguntas pode-rão ser debatidas graças ao Dia Nacional de Consciência das Mudan-ças Climáticas,

Alguns anos atrás, Celso Furtado disse: “Os homens de minha geração demonstraram que está ao alcance do engenho humano conduzir a humanidade ao suicídio. Espero que a nova geração comprove que também está ao alcance do homem abrir caminho de acesso a um mundo em que prevaleçam a compaixão, a felicidade, a beleza e a solidariedade”. Esta nova geração só pode ser formada por debates entre os jovens. E o Dia Nacional da Consciência das Mudanças Climá-ticas poderá ter um importante papel na construção dessa consciência.

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IV – Nação

Mudar a óticaJornal do Commercio – 11 de julho de 2008

O primeiro papel de um líder é mudar a visão que o povo tem do fu-turo de seu próprio País. O maior mérito de Juscelino Kubitschek foi fazer o Brasil perceber-se não mais como País rural, agrícola, exporta-dor, como tinha sido ao longo de séculos; mas sentir-se com vocação urbana, industrial, voltado para o atendimento da demanda interna. Fernando Henrique Cardoso, em oito anos, fez o Brasil ver-se como País capaz de manter sua economia funcionando com estabilidade monetária, depois de décadas de inflação. O presidente Lula, ao ser eleito e governar com competência, depois de décadas de inflação, fez o Brasil enxergar e respeitar aqueles que têm origem nas camadas mais pobres da sociedade, o que não acontecia mesmo depois de um século de República.

Mas nenhum desses presidentes realizou mudanças fundamentais na maneira como o Brasil se vê.

O Brasil precisa deixar de se ver como prisioneiro do imediatismo, gastando e consumindo no presente, sem poupar nem investir para o futuro: optando por dívidas, tanto públicas quanto privadas.

A segunda mudança é na visão do valor de nosso patrimônio natural. Historicamente, estamos acostumados a uma economia que depreda a natureza: indústrias poluentes, esgotamento de minas, enfraqueci-mento de solos. É preciso perceber que a natureza também pertence às futuras gerações.

Precisamos ver-nos como povo soberano, reconhecendo a realidade da globalização. Essa é a terceira mudança. Por séculos, nos vimos como colônia submissa às grandes potências, como subdesenvolvidos lutando para imitar os países ricos. O Brasil precisa se ver como uma Nação independente, soberana, mas parte da humanidade globali-zada. Devemos olhar para a Amazônia como nosso patrimônio, mas

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cuidando dela com responsabilidade, como patrimônio de toda a hu-manidade.

A quarta mudança de visão é dar importância ao público, em vez de valorizar o privado. Na visão que o Brasil tem do Brasil, somos a soma de quase 200 milhões de indivíduos e não uma coletividade de cida-dãos. O Brasil tem de se ver como conjunto, e não como soma. Essa talvez seja a parte mais difícil, porque nos viciamos em uma demo-cracia que ajusta os interesses de cada indivíduo ou corporação, mas não compõe o interesse do conjunto. Nossa Constituição pode até ser cidadã, representando os interesses dos cidadãos, mas não prioriza o interesse patriótico do conjunto da Nação.

E, mais importante: precisamos ver o Brasil como um povo só, e não dois povos distintos. Nós nos aceitamos como país dividido, como se esta divisão fosse natural: uma elite privilegiada e uma massa aban-donada. Acostumamo-nos de tal maneira com a exclusão de parte da população que nos satisfazemos com a generalidade de reduzidas transferências de renda, mesmo sem educar suas massas e unificar-se em um povo.

Nenhum dos governos do nosso País teve a postura de unificar o povo brasileiro. Nenhum se dispôs a fazer qualquer revolução republicana que desse a todos o mesmo nível de cidadania, mesmo que conviven-do com desigualdades na renda.

Se quisermos, de fato, merecer o respeito dos que virão depois de nós, temos de enfrentar o debate de como transformar um país em uma nação. E o ponto de partida é como fazer para ver o Brasil de maneira diferente da ótica que temos adotado: um país imediatista, privatista, individualista, dividido, depredador.

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Abusos InvisíveisJornal do Commercio – 25 de julho de 2008

Só agora, em pleno século XXI, o sistema judiciário fez duas descober-tas: existem algemas no Brasil e o uso delas é um abuso, ainda mais grave quando na frente da televisão. A descoberta tem uma explica-ção: as algemas eram invisíveis enquanto os presos eram pobres e sem camisas. Quando as algemas chegam às pessoas com camisas sociais, descobre-se que há abuso no uso delas. Pena que não estejamos des-cobrindo outros abusos, porque eles ainda não chegaram aos ricos.

Durante séculos, nosso País utilizou o sequestro de africanos para ser-virem como trabalhadores em nossa agricultura e ninguém via como sequestro. Se um único brasileiro branco e livre fosse sequestrado na África e levado para outro continente, a elite empresarial brasileira da-quele tempo logo descobriria que havia um abuso na retirada de uma pessoa de sua casa para levá-la e vendê-la para o trabalho forçado. Esses mesmos escravos eram sujeitos à tortura, às penas de trabalho forçado e à venda de seus filhos, como também a chibatadas. Mas eram pobres, excluídos, e o abuso não era visto. Ficava invisível. O sistema judiciário daquele tempo ainda não tinha descoberto que isso acontecia.

No século XXI ainda existem prisões diferenciadas para pessoas que cometeram o mesmo tipo de crime. Quando, raramente, um criminoso rico vai preso e fica preso, tem direito a uma prisão especial, diferente das infernais prisões onde são jogados os criminosos pobres. Por isso, não é visto ainda como abuso colocar um preso pobre nas condições das prisões comuns. Se, algum dia, um rico for preso e não tiver um diploma superior, provavelmente o sistema judiciário brasi-leiro vai fazer outra grande descoberta: o abuso da má qualidade das prisões do brasileiro comum.

Milhões de adultos não sabem ler e outros muito mais não entendem o que leem, porque os analfabetos, todos eles, são filhos de famílias humildes. Se um dia aparecesse um rico analfabeto, certamente o sis-tema judiciário faria a grande descoberta de que o poder público é

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omisso ao deixar que isto aconteça. Mas, os analfabetos são pobres, e o abuso do analfabeto é invisível.

Estima-se que a cada minuto de ano letivo (200 dias, com 4 horas) 60 crianças abandonam a escola. Isso não é visto como abuso. Porque o abuso não é visto. Se uma única criança rica fosse impedida de estu-dar, o abuso seria rapidamente descoberto e provavelmente tratado. Como acontece quando faltam remédios para as doenças que vitimam os ricos e os pobres, mas sem qualquer criminalização das autoridades quando os hospitais públicos ficam superlotados. O uso de barreiras que impedem doentes entrar em hospitais de qualidade não é visto como abuso. Nem é visto o abuso de deixar uma pessoa com fome no lado de fora de um supermercado, com as prateleiras repletas de comida.

As autoridades do Poder Judiciário têm duas desculpas para explicar a invisibilidade dos abusos. A primeira, é que só podem agir quando provocadas por um advogado; e estes só trabalham para os ricos. O poder Judiciário, portanto estaria isento. Não teria culpa de que os de-fensores públicos sejam poucos, e de que os advogados mais compe-tentes não trabalhem para os pobres. Esquecem-se de dizer que além da competência, influi também a rede de conexões que o advogado tem. A segunda justificativa é que a culpa é do Poder Legislativo que faz leis imperfeitas.

A culpa é de todos nós que aceitamos um País onde há dois tipos de pessoas: os incluídos, beneficiários da lei; e os excluídos, vítimas da lei. A culpa é de todos que toleramos os abusos invisíveis.

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V - POLÍTICA E CIDADANIA

O Despertar de Dom PedroRevista Profissão Mestre – janeiro de 2009

Se ressuscitasse hoje, Dom Pedro II sentiria o alívio de quem desperta de um pesadelo: o marechal Deodoro não havia proclamado a Repú-blica. Amante das artes e das ciências, nosso imperador ficaria des-lumbrado com o Brasil ao seu redor, depois de seu sono secular. E fica-ria tranquilo ao perceber que, no resto, pouco havia mudado, apenas crescido.

No lugar dos barões, duques e viscondes que ele havia nomeado em 50 anos, descobriria que excelências e doutores agora compõem a aristocracia brasileira. Mudaram os títulos, mas continuaram separa-dos do povo. No lugar dos meninos escravos correndo atrás de carrua-gens, ele veria meninos de rua pedindo esmolas nos sinais de trânsito. Apartados dos que seguem dentro dos carros, isolados, distantes.

Veria que tinha sido um pesadelo o medo que sentira dos republica-nos, quando propuseram acabar com os privilégios dos aristocratas. Ficaria aliviado, pois os nobres ainda mantinham foro privilegiado e prisões especiais para quando cometessem crimes, bastando para isso possuir um título de nobreza emitido por uma universidade. E que não havia prosperado a ideia de direitos iguais defendida por aqueles que, na sua época, se diziam republicanos.

Ele notaria que, ao redor de sua moderna carruagem, sem cavalos e com o estranho frio do ar condicionado, os negros pareciam ter per-dido o olhar de escravo, mas a maioria continuava com o olhar de pobres, analfabetos, diferentes, separados. Dom Pedro II logo perce-beria que havia terminado o clima de revoltas nas províncias. Mas, no próprio Rio de Janeiro, ele ouviria tiros assustadores.

Ao ler os relatórios de seus ministros, ele saberia o quanto havia cres-cido o número de crianças nas escolas. Surpreso, porém, veria que ra-

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ras tinham a qualidade do colégio Pedro II, que ele deixara em 1889. Ficaria espantado com o triste estado das edificações das escolas de hoje, com a queda de prestígio dos professores, não compreenderia como as crianças chegariam à quarta série sem saber ler nem escre-ver. Acima de tudo, não entenderia como poderia ter aumentado o número de adultos analfabetos, que havia passado de 6,5 milhões em seu tempo, quando ele teria dormido, para 13 milhões, agora que despertava.

Se viajasse pelo Nordeste, veria que ainda era preciso o Estado vender sua coroa, como ele propôs, para atender às necessidades dos pobres nordestinos do semiárido, com um programa chamado Bolsa-Família. Pensaria até que seu sono tinha sido curto, porque ainda estudavam como levar adiante seus planos de desviar o rio São Francisco.

Dom Pedro veria ainda que as casas e as festas dos nobres continua-vam igualmente suntuosas, deslumbrantes, distantes do povo, e pos-suíam banheiros, ar-condicionado e grande quantidade de aparelhos que mesmo ele, imperador curioso cientista, não entendia bem. Mas o número de serviçais vivendo nas senzalas domésticas continuava igualmente grande. Nosso imperador talvez até temesse continuar so-nhando, pois um ano antes sua filha havia abolido a escravidão, e ele suspeitava que a escravidão ainda existisse - de um novo tipo, com algumas nuances, como não ser necessário comprá-los, mas ainda assim, escravos.

Ao ler os jornais destes dias, ele certamente riria ao se lembrar de quando, nos idos de 1870, tinha perguntado a seu amigo Paraná de que serviam os partidos, se depois das eleições eles ficavam todos iguais.

No seu desejo de fazer do Brasil um País civilizado, ele perceberia que o verdadeiro pesadelo tinha sido acordar e descobrir que o Brasil con-tinuava o mesmo, apesar de todas as mudanças ocorridas.

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Ervas e flores O Globo – dezembro de 2010

Enquanto centenas de bandidos são presos, diversas crianças nascem nos morros e favelas do Rio. Depois de presos os primeiros serão ado-tados pelos governos ao custo médio de R$ 20.400,00 por ano; os outros, serão abandonados pelos governos, não receberão mais de R$ 2 mil anuais para sua educação que durará poucos anos em péssi-ma qualidade. O Brasil gasta corretamente dinheiro para arrancar as ervas daninhas da sociedade, mas se nega estupidamente a gastar o dinheiro necessário para fazer florescer as flores que são nossas crian-ças.

É tão óbvio o absurdo de adotar bandidos e não adotar também os recém-nascidos que é preciso perguntar o que leva uma sociedade a agir dessa maneira. Uma explicação é a maneira superficial como o Brasil considera os problemas na medida em que eles são visíveis: os bandidos são problemas visíveis; as crianças não atacam, não promo-vem motim, não votam por isso, são invisíveis para governos insensí-veis. A outra é o desvio cultural e histórico de uma suicida preferência pelo presente: a falta de um sentimento de médio e longo prazo.

Além de injusto, isto é estúpido porque perdemos o potencial que há dentro de cada criança e corremos o risco de alguns serem levados, por necessidade, à criminalidade no futuro.

Esta aversão às mudanças estruturais e a preferência pelo jeitinho, têm a ver com a histórica característica de uma sociedade que de-fende privilégios graças a uma violência invisível contra os índios e os escravos, contra homens com fome do outro lado da cerca. Vê-se a violência feita por um esfomeado sem trabalho ou pelo movimento dos sem-terra, não a violência da exclusão ao direito de trabalhar na terra improdutiva.

Na luta contra a violência, prefere-se o jeitinho da superficialidade de prender os “violentos” do outro lado da cerca, ao invés de derrubar a cerca para fechar a fábrica de violência. Usa-se o que é preciso hoje, sem cuidar do amanhã. Para hoje, os policiais, para amanhã os pro-

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fessores; para hoje as balas, para amanhã os computadores; para hoje mais cadeias, para amanhã mais escolas; para hoje adotar bandidos, para amanhã adotar crianças. No Brasil, o que é para construir o ama-nhã fica para amanhã.

E para justificar esta preferência suicida, preferimos não ver toda a violência. Vemos a violência dos bandidos precisando de cadeias, não vemos a violência da exclusão de crianças precisando de escolas. Para podermos ver apenas a violência visível, não vemos as violências invi-síveis.

A tomada dos morros das mãos dos bandidos é uma condição imedia-ta necessária. Mas é apenas um jeitinho passageiro, que não trará a paz. Livrará a sociedade de alguns bandidos, inclusive os pobres dos morros, que vivem ao lado do tráfico, perdendo seus filhos, sem incluí--los no mundo da paz e sem protegê-los contra as violências escon-didas na invisibilidade; não fechará a torneira por onde saem novos bandidos a cada hora, por falta de oportunidade. Assim, as violências históricas continuam sendo praticadas, como, por exemplo, a mãe de todas as desigualdades: a desigualdade na qualidade da escola e na qualidade da saúde.

O caminho é construir escolas, privilegiar e formar professores, fazer uma doce revolução pela educação. Além de cadeias para adotar as ervas daninhas com a máxima segurança, é preciso construir escolas iguais, com a máxima qualidade, em todos os morros, bairros e con-domínios para adotar uma nova geração de crianças, nossas flores. Se a federalização da luta contra os bandidos é aceita, a federalização da revolução educacional também deve ser.

Porque quando todas as crianças tiverem a mesma escola, menos jo-vens precisarão cair no crime como alternativa e o futuro será dispu-tado em condições iguais entre as flores dos morros e as flores dos condomínios, combatendo uma lógica, também invisível, na aparente estupidez de adotar os bandidos e não adotar as crianças.

Afinal, as ervas daninhas são ameaça ao presente, as flores são a es-perança para o futuro.

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Outra aboliçãoO Globo – janeiro de 2011

Durante séculos, a ideologia dominante no Brasil via a pobreza como uma coisa natural, contra a qual não havia necessidade de preocupa-ção política. No máximo um sentimento pessoal de caridade. É muito recente que o assunto passou a ser levantado sob a ilusão e a promes-sa de que o crescimento econômico tinha por objetivo também reduzir e até eliminar o quadro de pobreza.

É recente a adoção de políticas que servem diretamente, não indireta-mente pelo crescimento, para diminuir o problema. Os governos mi-litares implantaram a aposentadoria rural, com consequências muito positivas sobre o grau máximo de penúria entre pobres, sobretudo os velhos e seus familiares. O governo Sarney implantou programa de distribuição de comida; o governo Fernando Henrique implantou na-cionalmente o programa Bolsa Escola, que Lula ampliou sob o nome e a forma de Bolsa Família.

Estes programas têm sido fundamentais para mitigar o problema da penúria entre os pobres dos pobres. Hoje, a pobreza continua, mas a fome regrediu; as massas, mesmo pobres, compram bens de consumo essenciais. No entanto, depois de mais de 25 anos de democracia, não houve um programa consistente para a abolição do quadro de pobre-za no Brasil, incluindo todos os brasileiros nas condições essenciais da modernidade, dando-lhes condições de ascenderem socialmente. Os programas das últimas décadas, todos positivos, são capazes de prote-ger os pobres da miséria absoluta, mas não lhes oferecem uma porta de saída da pobreza.

Ao escolher como lema de seu governo a expressão país rico é país sem pobreza a primeira presidente mulher manifestou a intenção de ir além dos programas até aqui executados. Mas para que esta ma-nifestação de intenção surtisse efeito, seria preciso que a presidente fizesse algumas modificações na forma de enfrentar o problema por seus antecessores.

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Teria que deixar claro que não se trata apenas de mitigar o problema, mas de abolir a vergonha. Para isto, vai precisar redefinir o entendi-mento do problema e sua superação. Até hoje, a pobreza é vista como a falta de crescimento econômico, sua solução como o resultado do crescimento e de transferência de renda por meio de programas as-sistenciais.

Para enfrentá-lo corretamente, o problema da pobreza deve sair da economia para a ética, tratá-lo como um assunto moral, usando os recursos da economia, mas sem esperar por ela. E, tecnicamente, a pobreza deve ser vista não como falta de renda, mas falta de acesso aos bens e serviços essenciais, inclusive àqueles que são comprados no mercado, com uma renda mínima necessária. Como falta de acesso à educação, saúde, cultura e segurança, que não se consegue por meio da renda, comprando no mercado. Só é viável educação e saúde de qualidade pela oferta pública destes serviços; ou pela compra deles por um reduzido número de ricos, com renda concentrada.

A pura e simples transferência de renda por meios assistenciais não permitirá a superação do quadro de pobreza. No máximo permite acesso à alimentação, comprada no mercado, mas só a comida não oferece uma porta de saída da pobreza.

O caminho para enfrentar o problema da pobreza, que fará com que um governo marque sua passagem na história, está no emprego de pessoas pobres, para lhes garantir uma renda, e possibilitar a pro-dução e oferta dos bens e serviços que permita a saída da pobreza. Abolição, a da pobreza, só será possível com um conjunto de “incen-tivos sociais diretos” para empregar pobres para que produzam o que necessitam, como saneamento, frequência de seus filhos à escola; e, “indiretos”, salários decentes para os professores, implantação de um sistema de saúde pública eficiente.

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Anormal e ImoralO Globo – 18 de julho de 2009

No Brasil, é normal seus dirigentes serem vistos e sentirem-se como casta, com privilégios muito além dos direitos aos quais o povo tem acesso. Os serviços de saúde e educação à disposição dos eleitos são completamente diferentes daqueles dos seus eleitores. Ninguém se espanta com o fato de o teto do salário no setor público ser 25 ve-zes maior que o piso salarial do professor - cujo valor, apesar de tão pequeno, ficou por dois anos sendo contestado no Supremo Tribunal Federal como inconstitucional.

É visto como natural que a parcela rica do Brasil tenha o maior índice de cirurgias plásticas de rejuvenescimento em todo o mundo e a par-cela pobre não tenha acesso nem mesmo às mais fundamentais cirur-gias; que os 10% mais ricos tenham esperança de vida de 72 anos e os 10% mais pobres de apenas 45 anos. Todos aceitam termos alguns dos melhores restaurantes do mundo, onde uma refeição pode custar centenas de dólares por pessoa e que milhares peçam esmolas para comprar comida e remédios que enchem as prateleiras de farmácias e supermercados.

Considera-se normal que os 1% mais ricos da população recebam 20,5% da renda nacional e os 50% mais pobres recebam apenas 13,2%; que 19% das casas não tenham água encanada e 51% não tenham saneamento ou esgoto. Aceitamos que 50 milhões dependam de ajuda no valor de R$182 por mês para a sobrevivência de toda a família, R$6 por dia, sem chance de trabalho com salário digno.

É tratado como natural que crianças vivam nas ruas, sejam mendigos, pivetes, prostitutas, trabalhadores, e não estudantes; que 11% delas cheguem aos 10 anos sem saber ler; e 60 abandonem a escola a cada minuto do ano letivo, antes da conclusão do Ensino Médio; e que entre as que permanecem, muitas vejam a escola apenas como um restaurante-mirim que fornece merenda. É aceito que os professores tenham a menor remuneração entre os profissionais com formação equivalente; que deem aulas em escolas sem água nem luz, raras com computadores e sistemas de vídeo. Ficou normal que as escolas te-

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nham se transformado em campos de batalha, os professores sejam agredidos, as aulas viraram balbúrdia.

Mesmo sem guerra, nos acostumamos com 125 mil pessoas mortas por ano em consequência da violência. Aceita-se que o país com um dos cinco maiores territórios do mundo - além de litoral e espaço aé-reo - não apoie suficientemente suas Forças Armadas para defender esse patrimônio.

Não discutimos sequer o fato de conviverem 4,5 milhões de universi-tários ao lado de 13 milhões de analfabetos adultos e 40 milhões de analfabetos funcionais; de que, mais de 120 anos depois da abolição da escravatura, a cor da elite seja tão predominante branca quanto era durante a escravidão; é aceito como normal que as universidades sejam ocupadas, na imensa maioria, por jovens brancos e as prisões, por jovens negros; que depois de mais de 120 anos da República, o Brasil ainda tenha uma escola para os ricos diferente da escola para os pobres; e que, depois de mais de 20 anos de democracia, a corrupção seja vista como uma prática comum em todos os níveis da sociedade, especialmente entre os políticos.

Continua sendo normal que nossas reservas florestais sejam devas-tadas sistematicamente; e que apesar de todas as evidências da ca-tástrofe do aquecimento global, abramos mão de bilhões de reais em impostos para viabilizar o aumento na venda de automóveis privados, sem buscar uma reorientação dessa indústria, como forma de manter o emprego do trabalhador, o bem-estar do consumidor e o equilíbrio ecológico, a serviço das próximas gerações.

É normal prender quem rouba comida ou remédio para os filhos e dei-xar solto quem rouba bilhões, mas pode pagar bons advogados.

E é normal, nos dias de hoje, que os partidos que lutavam contra as injustiças tenham optado pelo abandono dos sonhos, entregando-se às mesmas práticas do passado e esquecendo-se de suas promessas. Com isto, fica normal o absurdo de na República, que comemora 120 anos, que a justiça, a escola, a saúde, o transporte, a moradia, a cul-tura sejam mais diferenciadas, conforme a classe social, quanto eram durante a Monarquia entre nobres e plebeus, ao ponto de as pessoas não parecerem compatriotas.

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Ameniza, não mudaO Globo – 20 de maio de 2011

O Brasil é um país de alta criatividade em políticas sociais, com saídas para amenizar, não para mudar a realidade. A criatividade começou na escravidão, ao invés de aboli-la recorremos à Lei do Ventre Livre. Com a Lei dos Sexagenários, os escravos velhos eram libertados, um eufemismo para abandonados. Até mesmo a Abolição da Escravatura aconteceu sem oferecer educação nem terra para os ex-escravos e seus filhos. De certa forma, a Abolição foi um eufemismo para a expul-são dos escravos das fazendas para as favelas.

Modernamente também temos sido campeões de imaginação para so-luções parciais.

Como o salário não era suficiente para pagar o transporte do traba-lhador até o local de trabalho, ao invés de aumento salarial, criamos o vale-transporte, como se fosse um grande benefício social, quando, na verdade, foi um serviço à economia: garantir a presença do trabalha-dor na fábrica. A regra é a mesma para o vale-refeição. O salário não era suficiente para assegurar a alimentação mínima para a família, então a solução foi garantir a alimentação do trabalhador, mesmo que suas famílias continuassem sem comida.

Quando a inflação ficou endêmica, ao invés de combatê-la (só enfren-tada em 1994), criou-se a correção monetária, que garantia moeda estável para quem tivesse acesso às artimanhas do mercado finan-ceiro, enquanto o povo continuava com seus salários cada vez mais desvalorizados.

Hoje, quando o País vive um apagão de mão de obra qualificada, cor-remos para fazer escolas técnicas, esquecendo que sem o ensino fun-damental os alunos não terão condições de aprender os ensinamentos dos cursos profissionalizantes.

A Bolsa Escola foi criada para revolucionar a escola. Como isso não foi feito, ela se transformou na Bolsa Família, sendo mais uma das soluções compensatórias agregadas ao vale-alimentação e vale-gás.

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As universidades boas e gratuitas são reservadas para os que podem pagar escolas privadas no ensino básico. No lugar de fazer boas es-colas para todos, criamos o PROUNI e cotas para negros e índios. O Brasil melhora com essas medidas, mas não enfrenta o problema e acomoda a população, como se agora todos já fossem iguais. Promo-vem-se benefícios com soluções provisórias, como se elas resolvessem o problema permanentemente.

Quando a desigualdade social força a separação entre pobres e ricos que se estranham, ao invés de superar a desigualdade constroem--se muros em shoppings e condomínios, separando as classes sociais. Para impedir a convivência de classes, impedimos estações de metrô em bairros ricos, o que mostra um total desinteresse desses habitantes pelo transporte público.

Falta professor de Física, retira-se Física do currículo escolar. Os alunos não aprendem, adotamos a progressão automática. O Congresso não funciona, o STF passa a legislar. A população fala Português errado, em vez de ensinar o correto a todos legitimamos a fala errada para a parte da população sem acesso à educação. Adotamos dois idiomas: o Português dos ricos educados e o Português dos pobres sem educação; o Português dos condomínios e o Português das ruas. Ao invés de com-bater o preconceito e a desigualdade, legalizamos a desigualdade.

Ao invés de fazer as mudanças da estrutura para construir um siste-ma social eficiente, equilibrado, integrado e justo optamos por simples lubrificantes das engrenagens desencontradas da sociedade. Nossas soluções podem até ser criativas, mas são burras e injustas. É a socie-dade acomodando suas deficiências. Ao invés de enfrentar e resolver os problemas, nossa criatividade ajusta a sociedade a conviver com eles. E adia e agrava os problemas porque ilude a mente e acomoda a política.

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Esperança na “Rio+20” O Globo – 07 de maio de 2011 - Este artigo foi publicado um ano an-tes da Rio+20 e revisto na semana seguinte à sua realização. Lamen-

tavelmente, o resultado da reunião não justificou retirá-lo desta coleção.

Recentemente, em visita aos imigrantes tunisianos impedidos de entrar na França, a direitista candidata à Presidência Marine Le Pen disse com toda franqueza: “Vocês não cabem na França”. Alguns anos atrás, declaração como esta seria repudiada por ilógica e imoral. Hoje é aceita como lógica e positiva eleitoralmente, embora ainda incomode moralmente a uma parcela dos franceses. O que mudou desde então foi a constatação de que não há espaço para todos no mesmo padrão de consumo dos ricos, seja da França, do Brasil ou da própria Tunísia. A fuga dos tunisianos e demais imigrantes dos países pobres acontece porque os ricos de seus países também pensam como a Sra. Le Pen – os pobres não cabem nos condomínios - e empurram seus pobres para o mundo dos ricos no exterior.

Há 200 anos nossa civilização se baseia no casamento de quatro ve-tores e propósitos: crescimento econômico, justiça social, democracia política e inovação técnico-científica. De repente, a percepção da crise ecológica, do aquecimento global, da escassez de recursos e dos limi-tes ao crescimento econômico ameaça este casamento. A continuação do crescimento para todos inviabilizará o futuro para onde navega, há 200 anos, a Nossa Barca chamada Terra sob a égide da civilização in-dustrial. Não há espaço para todos consumirem os bens dirigidos aos consumidores de alta e média renda.

As projeções mostram que este rumo levará ao naufrágio da Barca. Já se percebe isso pelas crises, não apenas ecológica, mas também finan-ceira e fiscal que impedem manter o bem estar adquirido por meio de financiamentos e por depredação natural. Esse rumo levará inevitavel-mente ao naufrágio da barca da civilização industrial.

Há outras duas alternativas para salvar este rumo.

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A primeira seria continuar no mesmo rumo, mas excluindo do bar-co 2/3 da humanidade. Esta alternativa está representada no filme “2012”, no qual, diante de uma catástrofe planetária, constroem-se barcas para salvar as pessoas que podem comprar passagens para o limitado número de lugares. O filme é metáfora para o discurso da candidata à Presidência da França.

A segunda alternativa consiste em mudar o rumo da Barca. Para isso são necessárias mudanças estruturais, ideológicas e até mesmo men-tais, nos conceitos, sentimentos e desejos já arraigados no imaginá-rio da população. Seria necessário redefinir o progresso, reorientar o crescimento econômico de bens materiais privados de curta duração, sem consideração ecológica, para bens públicos culturais de longa vida, comprometidos com o equilíbrio ecológico. Seria preciso rede-finir também a justiça social porque, neste novo rumo, não se pode manter a ilusão mentirosa de que a renda e o consumo podem crescer sem limite para todos. Alguns dos benefícios conquistados, tais como, o automóvel privado e a precoce aposentadoria não serão mais viáveis no longo prazo para todos. A própria democracia terá que ser redefini-da: sua prática local e de curto prazo terá de ser limitada por decisões internacionais. A democracia não se faria pela vontade própria e so-berana dos eleitores de cada país, sem levar em conta a vontade dos vizinhos em toda a Nossa Barca Terra.

Na reunião “Rio+20”, o mundo terá a chance rara de buscar o novo rumo em direção ao futuro, dependendo da representatividade dos Chefes de Estado e Governos que comparecerem, da agenda que for discutida e dos compromissos firmados.

Ninguém tem mais responsabilidade para o êxito ou fracasso desta reunião do que a Presidenta Dilma. Para isso, ela deve usar sua lide-rança política no sentido de convencer a vinda de líderes mundiais ao Brasil, oferecer infraestrutura eficiente e liderar a elaboração de uma Carta do Rio ao Mundo, reafirmando que a Nossa Barca é de todos e definindo as linhas para o novo rumo a ser seguido - a construção de desenvolvimento alternativo, harmônica entre os seres humanos e destes com a natureza.

Pena que isso pode não passar de um sonho, porque a população não parece acreditar nos riscos do progresso, nem deseja mudar o rumo

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da Barca. Além disso, o Brasil parece mais preocupado em saber quem fará mais gols em 2014, quem saltará mais alto em 2016, do que quantos sobreviverão a partir das decisões tomadas em 2012.

Tenho vergonhaJornal do Commercio – maio de 2009

Em Londrina, vi um adesivo de carro com o lema: “Tenho vergonha dos políticos brasileiros”. Pensei em adaptar para: “Tenho vergonha dos motoristas brasileiros”. Afinal, somos o País com maior índice de as-sassinatos no trânsito. Pensei que a lista de adesivos poderia ser bem maior. Alguns exemplos seriam: “Tenho vergonha dos profissionais li-berais brasileiros”, porque nos perguntam se queremos pagar com ou sem recibo; ou “Tenho vergonha dos contribuintes brasileiros”, porque sonegam impostos; ou “Tenho vergonha dos alfabetizados brasileiros”, porque são capazes de aceitar sem revolta os 13 milhões de compa-triotas incapazes de reconhecer a própria bandeira por não saberem ler “Ordem e Progresso”. Ou ainda, “Tenho vergonha dos eleitores brasileiros”, porque foram eles que elegeram os políticos que enver-gonham os brasileiros.

Mas não generalizo: há motoristas cuidadosos e políticos decentes. O adesivo deveria ser “Tenho vergonha dos brasileiros que generalizam”.

Aqueles adesivos só se aplicam quando atribuímos os defeitos de al-guns a todos os demais membros de uma categoria profissional.

Aquele motorista com o adesivo no carro atribuiu incorretamente o comportamento corrupto a todos os políticos. Mas, certamente, nem pensou em generalizar a incompetência que impede as lideranças po-líticas de mudarem os rumos do Brasil. Ele está corretamente inco-modado com os políticos que se apropriam do dinheiro público, mas muito provavelmente aprova as políticas orçamentárias que constroem mais viadutos do que escolas. Ele também não deve se incomodar com políticas que o beneficiam – como a redução do IPI de automóveis –, mesmo que isso reduza os recursos que atenderiam às necessidades da população pobre. Ele se declara contra a corrupção no comporta-

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mento dos políticos, mas é conivente com a corrupção nas prioridades das políticas públicas que o beneficiam.

A diferença entre os políticos e as demais categorias é que, embora seja um erro generalizar no que se refere ao comportamento ético, é correto generalizar a incompetência de todos os políticos para admi-nistrar o País: eliminar a corrupção acabando com as vergonhas que sentimos. É um erro considerar que o comportamento corrupto está generalizado entre todos os políticos, mas é correto generalizar a res-ponsabilidade dos políticos na aprovação das políticas públicas que fazem do Brasil um País atrasado, dividido, não civilizado, desigual.

O adesivo certo seria “Tenho vergonha das políticas públicas brasi-leiras e dos políticos que as criam e aprovam, beneficiando a atual minoria privilegiada, e prejudicando a maioria excluída e as gerações futuras, que ficarão sem os recursos que estamos desperdiçando ago-ra”. Outra sugestão de adesivo seria “Tenho vergonha de ser mais um brasileiro que incinera florestas e cérebros”. Ou, quem sabe, “Tenho vergonha de queimarmos, por minuto, o equivalente a seis campos de futebol na Amazônia, e 60 cérebros de crianças, jogadas para fora da escola.”.

Mas esses adesivos, além de muito compridos, não seriam bem com-preendidos, porque, com nosso baixo nível de educação, somos inca-pazes de entender nuances e detalhes. Só entendemos as generaliza-ções simplificadas.

O adesivo certo talvez fosse: “Tenho vergonha do grau de deseduca-ção dos brasileiros”. Afinal, esta é a generalização aceitável: a dese-ducação dos brasileiros que não foram educados; e também a dos que receberam educação, mas não a usam; ou a utilizam apenas em benefício próprio, sem nenhuma consideração pelo Brasil – presente e futuro.

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A primavera e o OutonoEl País – 08 de junho de 2011

No espaço de poucas semanas, o mundo assiste manifestações sociais surpreendentemente parecidas em lugares muito diferentes. A mobili-zação na praça Tahrir, no Cairo, na praça Catalunha, em Barcelona, e na praça Del Sol, em Madrid. Os dois movimentos se parecem, sobre-tudo, pelo descontentamento com os políticos e partidos tradicionais. A partir daí tudo é diferente, nas causas e nas perspectivas.

O movimento árabe é o começo de um novo tempo democrático. O movimento europeu é o fim de um tempo, um modelo exitoso, mas insatisfatório. Por isso, fala-se de Primavera Política no Egito; mas na Catalunha e em Del Sol pode-se falar de Outono Econômico.

A Primavera árabe tem como causa a falta de legitimidade de regimes que não permitem alternância no poder; baseados em partidos únicos ou quase-únicos; que construíram sistemas corruptos de promiscuida-de entre os assuntos públicos e privados, com o enriquecimento das fa-mílias no poder; mantendo sistemas econômicos que não conseguem diminuir o sofrimento da pobreza.

O Outono europeu acontece porque há décadas fizeram tudo o que os árabes estão propondo agora, mas o sistema se esgota. Acabou o casamento que há séculos permitiu a Europa unir democracia política com crescimento econômico e com justiça social. O crescimento eco-nômico encontra-se impedido de continuar por limites ecológicos e já não gera mais emprego, sobretudo, para os jovens; os benefícios sociais estão se esgotando pelos limites fiscais que impedem a amplia-ção dos serviços públicos aos jovens de hoje. Além disso, os partidos deixaram de representar alternativas. Os ditadores árabes montaram partidos únicos, mas na democracia europeia os partidos ficaram tão parecidos, que é difícil considerá-los diferentes. A Primavera árabe é resultado da falta de legitimidade na política; o Outono europeu é consequência dos limites ao crescimento econômico, aos benefícios do Estado provedor. Em ambos os casos, o resultado da falta de imagina-ção dos políticos.

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A imaginação árabe é limitada à busca da democracia que a Europa já tem. Por isso, é uma Primavera com a possibilidade de chegar ao modesto verão de uma nova constituição que permita organizar parti-dos, separar os negócios públicos dos privados e até prender políticos corruptos, eleger presidentes, liberdade de imprensa e independência dos Poderes Legislativo e Judiciário. Tudo que a Europa já tem.

No Egito eles queriam tirar Mubarak e eleger um novo presidente. Na Europa os indignados querem tirar os atuais governantes, mas não querem colocar a oposição no lugar. Rechaçam o presente, mas não têm clareza do futuro. O mundo árabe vive uma Primavera porque o verão que eles acenam é o presente da Europa, que se esgotou. Por isso, adiante, a possibilidade é de um inverno na Europa.

O otimismo da primavera nos países árabes vem da modéstia de pro-pósitos realizáveis; o pessimismo na Europa vem da impossibilidade de ir além do que já foi feito.

O grande desafio para transformar o Outono em uma Primavera é idealizar alternativas viáveis para um novo tempo, inventar um novo modelo civilizatório. Os jovens árabes olham pra o lado europeu, os espanhóis olham para o futuro. Isso exige uma mudança muito mais profunda do que a da ditadura para a democracia, do capitalismo para o socialismo. O desafio europeu é imaginar uma nova civilização, que vá além do industrial; além do PIB para um novo conceito de riqueza; do consumo material e privado, para o bem estar público e imaterial. No lugar de mais carros, mais tempo livre, sem depredação ambiental. Sair da globalização excludente para uma internacionalização inclu-dente. O desafio dos jovens árabes é político, dos espanhóis é moral.

Este difícil desafio de imaginar o novo inusitado é apenas o primeiro passo, ainda mais difícil será o projeto político: de espalhar as novas ideias e adquirir apoio das massas para uma proposta que exigirá uma nova mentalidade. Os jovens de Tahrir querem um mundo diferente daquele de seus pais, os indignados espanhóis querem os privilégios que seus pais tiveram graças à euforia do casamento entre crescimen-to econômico, democracia, e justiça social que lhes permitiu o bem estar, o alto consumo e ainda a solidariedade com os imigrantes. Os

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jovens do Egito querem ser incluídos na política, os da Europa querem não-ser-excluídos da economia; manter o bem estar social do consu-mo, retomar o crescimento, o emprego e os benefícios sociais.

Apesar do otimismo com os árabes, é com a Europa que podemos ter esperança na formulação do novo, que vá além do que é o novo Egito, mas já velho para a Espanha. São nas praças Catalunha e Del Sol que poderá vir realmente o novo, porque o verão árabe é o verão do ano passado e o verão do próximo ano, só depois do outono.

Os jovens egípcios querem ingressar em partidos e votar em candida-tos, os espanhóis querem repudiar os partidos e votar nulo, ou nem ao menos votar. Tentam ações como votar em branco; todos retirarem dinheiro do banco no mesmo dia; criar um dia sem compras; parar de usar carros e usar transporte público. Mas não recebem apoio a estas lutas, nem saberiam o que fazer no dia seguinte à quebra dos bancos.

Na Praça Tahrir havia uma palavra de ordem - fora Mubarak -, na Catalunha ou Del Sol vemos diversos grupos, debatendo temas dife-rentes, indignados, mas ainda sem uma proposta aglutinadora. Todos unidos no descontentamento. Mas raros aceitariam o decrescimento para manter o equilíbrio ecológico; nem a redução da jornada de tra-balho com mais tempo livre e pleno emprego, mas com menores sa-lários; nem a solidariedade com os imigrantes à custa da redução dos benefícios sociais.

Tahrir é símbolo do pequeno avanço com nitidez; as praças europeias são símbolos de perplexidade antes de um grande salto. Antes dele, porém, o tempo aqui é de outono; lá é de primavera.

Os compradores de tempoO Globo – 24 setembro de 2011

Há um poema de Ralph Waldo Emerson que, em tradução livre, diz mais ou menos o seguinte: “O cavaleiro serve ao cavalo/o organiza-dor à organização/o comerciante à sua bolsa/quem come serve ao alimento/este é o tempo do ter/o tecido serve ao tear e o milho ao seu moinho. As coisas estão na sela e conduzem a humanidade”.

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Com mais de cem anos, esta reflexão serve para explicar o presente. Nunca tantos dirigentes se reuniram tantas vezes e por tanto tempo, conduzidos perplexos e impotentes pelo movimento dos fatos e das coisas ao redor. Ao invés de reorientarem os destinos da humanidade, os “dirigentes” - políticos e economistas - agem como simples compra-dores de tempo, adiando o desenlace da crise.

Os fóruns internacionais aparecem na televisão como reuniões de car-deais - os governantes, auxiliados por teólogos - os economistas -, en-quanto nas praças os “indignados” movimentam-se por reforma para o futuro.

De crise em crise, reuniões e pronunciamentos, os governantes do mundo demonstram incapacidade política para entender a dimensão do problema, e incapacidade estadista para propor alternativas; agem como impotentes atores de uma tragédia grega: não controlam o de-senrolar da história, apenas representam. Ou como comandantes de barco sem bússola, navegando em círculos ganhando tempo para ver se surge uma estrela nova no céu, ou se a tempestade acalma. Não parecem buscar reorientação, contentam-se em adiar o desenlace, comprando tempo, deixando as coisas e os fatos conduzirem os desti-nos imediatos dos povos.

Semana após semana, discute-se ajuda financeira, corte de gastos, aporte a bancos, taxas de juros e paridade cambial. E marcam-se no-vas reuniões. Não percebem a complexidade da armadilha na encru-zilhada que a civilização industrial enfrenta, ou são impotentes para quebrar as amarras; ou pior, interessados e viciados na realidade e no curto prazo, não querem mudar o rumo; preferem o desastre, à mudança.

Já não há como aumentar os gastos públicos, mas sem eles o bem--estar social desaba e o crescimento econômico estanca. Não há como crescer sem vender, nem vender sem financiamento bancário, mas os bancos esgotaram as possibilidades para criar moedas e a capacidade para financiar o consumo. A degradação ambiental mostra os riscos da tragédia ecológica, mas a proteção ambiental limita a possibilidade de crescimento. A oferta de energia precisa aumentar, mas as grandes represas destroem a biodiversidade, a energia nuclear é uma ameaça a ser evitada e as fontes alternativas são caras. Sem o povo satisfeito

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não se vence eleições, mas atender os desejos do povo agrava a crise. Não há como romper a moeda única na Europa nem as inter-relações comerciais e financeiras do mundo global, mas a integração sacrifica a população das nações menos inovadoras.

Alguns podem pensar numa saída para a crise global e civilizatória, mas seus instintos políticos estão voltados para o eleitor local e as próximas eleições.

De tanto olhar para juros, moeda, dívida, câmbio e produção, os eco-nomistas e políticos não têm capacidade para ver a dimensão comple-ta da crise na civilização global. De tanto querer retomar o ritmo do crescimento da economia, não percebem a necessidade de mudar o rumo do futuro. A prisão ao velho paradigma do crescimento a qual-quer custo e a qualquer perfil do PIB impede os governantes de pen-sarem em alternativas que levem em conta as limitações do modelo que se esgotou depois de cem anos baseado no consumismo. Soluções como, por exemplo, elevação do bem-estar pela redução da jornada de trabalho, ampliação da oferta de bens públicos e garantia de meio ambiente sadio não entram na lógica dos debates dos governantes.

E se propuserem essas soluções, seus eleitores não se satisfarão, por-que desejam, sobretudo, retomar o mesmo caduco modelo esgotado.

Os “indignados” manifestam o descontentamento, mas não carregam ainda as cores da bandeira de uma nova civilização. Os jovens não lutam por um mundo diferente, mas para garantir no futuro os privilé-gios dos pais, no passado.

Só um novo modelo nas mãos de estadistas globais poderia trazer esperança de uma reorientação civilizatória. No entanto, nossos diri-gentes e economistas, com raras exceções, continuam prisioneiros de fetiches, mitos, crenças do passado economicista da civilização indus-trial, condenados a compradores de tempo, sem oferecer alternativa e esperança.

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Cínicos ou CéticosO Globo – 05 novembro de 2011

Diversos repórteres descreveram a rebelião em Canudos. Mas foi Eu-clides da Cunha quem ficou na história, porque no lugar de apenas descrever as aparências entre o que parecia um Conselheiro insensato e Generais sensatos, mostrou o que havia por baixo das aparências: a disputa entre Cidade e Campo, Império e República, Moderno e Arcai-co, Civilização e Barbárie.

Cem anos depois, estamos repetindo a mesma forma superficial de fazer reportagens sem descrições mais profundas da sociologia da cor-rupção. As notícias giram em torno de denúncia dos fatos visíveis: víde-os, contratos, fotos e propinas. Ainda não surgiu o Euclides da Cunha da corrupção. Estamos vendo e descrevendo o superficial.

Por trás dos fatos de políticos roubando dinheiro público, está a rea-lidade de uma sociedade acostumada a desprezar o que é público. A indignação contra a corrupção é um bom sinal de que o interesse pú-blico começa a nascer, mesmo assim muito discretamente, porque as causas mais profundas não são denunciadas. Como Canudos, há uma barreira protegendo a percepção das causas mais profundas.

Depois de séculos em que até o trabalhador era propriedade privada e de décadas de uma democracia servindo aos interesses de minorias, o interesse privado ainda prevalece sobre o público. Fica explicado - não justificado, obviamente - porque tantos se sentem no direito de vanda-lizar os bens públicos, como se destruir bens públicos não fosse uma forma de corrupção. Fica explicada também a aceitação de expressões como “isto não é roubo”, ou “rouba, mas faz”, ou “mas, e daí, se todos roubam”, ou a mais moderna e cínica “rouba, mas é um dos nossos”, ou ainda “rouba, mas não é para si, é para o partido e a campanha eleitoral”.

Até pouco tempo, existiam partidos e militantes que repudiavam essas afirmações. A democracia cooptou-os, absorveu-os e os fez tolerantes, criando uma geração de céticos e de cínicos, porque a realidade da

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primazia do privado é mais forte do que as ideias, os sonhos e a vonta-de dos que querem defender o público. Isso faz com que os jovens que há poucos meses estavam sendo pisoteados pelas patas de cavalos da polícia, ao manifestarem-se contra a corrupção, não compareçam e até repudiem as recentes manifestações pela ética. Pode ser por inge-nuidade ou por convicção de que os fins justificam os meios, ou pode ser por cinismo, porque as ações não mostram fins diferentes de outros governos e partidos, do ponto de vista dos interesses do público e do longo prazo.

Esse desprezo pelo interesse público induz e permite uma tolerância com o roubo dos recursos públicos a ponto de, eufemisticamente, cha-má-lo de corrupção, no lugar de roubo. A sociedade aceita como natu-ral o uso do dinheiro público para obras desnecessárias ou que bene-ficiam apenas uma minoria. Felizmente, cobrar propina na construção de prédio público já começa a provocar indignação, mas fazer obra faraônica ou estádios ao lado de casas sem esgoto não escandaliza. A primazia do privado sobre o público, do indivíduo sobre a Nação, leva à “corrupção pelo vandalismo”, à corrupção na política e à “cor-rupção nas prioridades” e à “corrupção do imediatismo”, provocando o consumo de recursos que pertencem também às gerações futuras, como acontecerá com os royalties do petróleo, como se isto não fosse também uma corrupção.

É por isso que, nas palavras do professor Kurt Weyland, citado pelo jornalista Rudolfo Lago, no site Congresso em Foco: “O Brasil tem uma democracia estável, mas de baixa qualidade”. Porque a política não está comprometida com a causa pública. Felizmente, enquanto não surge um Euclides da Cunha, temos repórteres atuantes, desvendando segredos e descrevendo a realidade apenas das aparências. Como os repórteres que foram a Canudos, os de hoje talvez tenham interesses e visão das minorias privilegiadas, viciadas no interesse particular da renda e do consumo privado, ou das obras e gastos que lhes benefi-ciam, que impedem a visão das causas da corrupção que vão muito além do comportamento dos políticos imorais. A corrupção está na estrutura social que dominava o Estado que serve a poucos.

Euclides da Cunha, além da genialidade literária, possuía uma habili-dade sociológica que não dá para exigir de todos nós, nem dos nossos leitores que, provavelmente, não gostariam de tomar conhecimento de

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toda a verdade. Mas dá para exigir que os militantes não sejam cínicos no presente, para que não sejam todos céticos quanto ao futuro.

BastaO Globo – 17 de fevereiro de 2007

Basta de maldades. De passageiros de ônibus queimados vivos, de jovens assassinados, de assaltos, sequestros, chacinas. E dos atos diá-rios de violência nem sequer noticiados. Basta de uma realidade que parece cena de filme de horror. Basta também de uma sociedade cho-cada por poucos dias, até o Carnaval, a Copa do Mundo, o próximo escândalo.

Basta da fábrica de violência escondida no nosso modelo social e eco-nômico. Da brutal desigualdade que divide nossa população em inclu-ídos e excluídos, separados por um mal-disfarçado sistema de apar-tação. Basta também de prometer a redução da idade para entrar na cadeia, sem assumir a necessidade de aumentar a idade para sair da escola.

Basta da nossa contribuição para o aquecimento global. E também basta da mentira de dizer que esse problema pode ser resolvido sem uma reforma profunda no modelo de desenvolvimento.

Basta de comemorar a matrícula de 97% das crianças, sem perguntar onde estão as outras 3%, e de esquecer que desses apenas um terço dos matriculados concluirão o ensino médio, e só a metade destes com uma qualidade minimamente satisfatória. Basta da mentira de chamarmos de escola as construções degradadas onde depositamos nossas crianças por poucas horas ao dia.

Basta de nossos governos esquecerem seus compromissos de campa-nha, ignorando os problemas mais profundos. De um sistema penal e judicial que protege bandidos de escritório ou de gabinetes com aces-so a advogados caros. Basta de um Congresso divorciado do povo que o elegeu, formando blocos em função de siglas, não de ideias, pro-postas, ações. Basta da mentira de que a democracia está apenas no

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direito de falar, mesmo que nada de relevante se diga para enfrentar os problemas. Basta dos moralistas que defendem a ética no compor-tamento dos políticos, esquecendo-se de cobrar a ética nas prioridades das políticas.

Basta de uma economia que cresce pouco e na direção errada, sem respeito ecológico, sem criar emprego nem sustentabilidade, sem nos tirar do atraso, ou quebrar o maldito círculo da desigualdade que nos amarra e envergonha. Basta de achar que simples transferências de renda eliminam a pobreza.

Basta de um País nascido na escravidão que não consegue completar a abolição. Basta de ricos incluídos culpando os pobres excluídos pelas desgraças da ineficiência, da criminalidade, da destruição ambiental, da deseducação. Como se no passado fossem os escravos os culpados pela falta de liberdade na vida e de demanda no mercado. Basta de jogar a culpa pela violência nos pobres, quando eles são as maiores vítimas.

Basta de procurar soluções simplistas, que nada mudam. Da dificulda-de de punir com rigor os assassinos e molestadores de crianças, e os responsáveis por quase um milhão de mortos pela violência nos últi-mos 25 anos. Basta também de achar que basta punir esses bandidos, como se outros não viessem substituí-los com a mesma bestialidade. Basta de bestialidade. Como se o problema fosse a violência visível, e não o que a está causando. Basta de buscar a justiça depois dos crimes cometidos, e não a paz que evitaria a violência. Basta do egoísmo in-dividualista e corporativo que impede o País de se ver como um todo, de olhar para o futuro, de definir seu rumo.

Basta da indiferença e dos argumentos que tentam encobrir as verda-deiras causas do maior dos crimes, o crime do egoísmo que divide o nosso País e impede a construção da nossa Nação.

Basta de fingirmos que o Brasil não precisa de uma revolução, de fingir que já a fizemos, ou de fugirmos dela, adotando pequenos paliativos.

E basta de artigos, também.

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As Massas FalamO Globo – 18 de janeiro de 2007

As últimas eleições no mundo mostram como mudou o perfil político dos presidentes eleitos nos últimos anos. As massas falaram. E pedi-ram mudanças. Mas as mudanças esperadas não estão acontecendo. Na prática, os eleitos têm se limitado à retórica dos programas que não têm vigor transformador. Ou têm se limitado às intervenções es-tatais sem qualquer garantia de transformação social e com riscos de inviabilidade política, econômica e fiscal. Nenhum dos recém-eleitos presidentes de esquerda, ex-guerrilheiros, ex-presidiários e vítimas de tortura, ex-socialistas, comunistas e esquerdistas apresentou um pro-jeto que possa mudar a realidade social.

São governos eleitos por aqueles que desejam mudanças, mas execu-tados por governantes sem projetos nítidos para quebrar os muros da desigualdade e do atraso que caracterizam a América Latina. Foram eleitos pela fala das massas, mas não correspondem aos anseios da Nação. As massas falam; a Nação, não. Por que a Nação tem dentro dela o futuro, as gerações por vir. As massas querem mudar o presen-te, as nações precisam de mudanças no longo prazo, viáveis, perma-nentes.

Entre a fala das massas e o discurso da Nação está a presença do esta-dista transformador. Os eleitos recentemente respondem aos eleitores, mas não falam à Nação. Governam para atender aos desejos do pre-sente, não aos sonhos do futuro. Foram eleitos para mudar, mas não têm propostas viáveis. As massas falaram, mas está faltando estadista para atender aos votos dos eleitores e aos desejos nacionais do pre-sente e do futuro, em uma sociedade integrada, dentro de um mundo global. A culpa não é das massas. É da falta de propostas capazes de mudar, com viabilidade e permanência, respeitando a aparente imuta-bilidade atual de alguns aspectos da realidade; e da incapacidade dos eleitos de formularem as utopias para o futuro distante. Eles não estão comprometidos com a mudança permanente de estruturas, nem com o longo prazo. Trabalham mais para atender as pesquisas de opinião e manterem elevados seus índices de popularidade. São prisioneiros do curto prazo, da próxima eleição. Não têm um projeto de futuro.

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Caem no conservadorismo e traem as massas, ou caem no populismo e traem a Nação. Está faltando uma proposta que seja ao mesmo tem-po democrática ao ouvir as massas e progressista ao sentir a Nação, capaz de combinar o presente e o futuro.

A dificuldade para que os eleitos pelas massas se transformem em es-tadistas da Nação está na incapacidade de compreenderem e formu-larem políticas, levando em conta que nenhuma Nação está isolada e cada Nação está dividida por uma apartação. O fim da apartação não pode ser o resultado de uma dialética onde um lado destrói o outro, tem de ser o local de encontro dos dois lados, como vem tentando fa-zer, do ponto de vista racial, a África do Sul, mesmo sem êxitos maiores de ponto de vista social.

Os políticos parecem se dividir entre os que se recusam a mudar e estão perdendo as eleições, os que prometem mudanças, mas não sabem como fazê-las, e aqueles que tentam fazê-las sem levar em conta essa nova realidade de um mundo integrado internacionalmente e desintegrado nacionalmente.

A impressão é de que as massas se adiantaram aos políticos, votaram em mudanças sem que eles estivessem preparados para liderá-las. Para se transformarem eles próprios em estadistas capazes de serem canalizadores da vontade nacional, vetores da construção nacional, sem os muros da desigualdade e do atraso. Se isso não acontecer, as massas irão para as ruas, com a mesma audácia como votaram nas mudanças, em busca de novos rumos ou até mesmo da volta ao con-servadorismo.

AutoenganoJornal do Commercio – julho de 2007

Nunca o Brasil teve tantos indicadores que apontam os riscos que o ameaçam adiante. E nunca esteve tão sem esperança de encontrar um rumo alternativo que lhe permita dobrar uma esquina, evitando chegar ao abismo no sinal. Esgotaram-se as propostas e perderam-se as esperanças. Apesar dos avanços com democracia, eleições diretas,

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constituinte, um presidente de esquerda, outro ainda mais de esquer-da, outra mais a esquerda ainda - nada desviou nosso passo rumo ao sinal amarelo.

Ainda pior, os partidos e os políticos perderam o papel de alerta crítico que exerciam antes de chegarem ao governo. Assumiram o mesmo passo rumo ao desastre, e deixaram o povo acomodado, afirmando que o sinal é verde, a estrada é sem fim, e o futuro, promissor. Obs-curecem a realidade que antes denunciavam. Deixam de ver o sinal amarelo como um alerta, e consideram-no motivo de comemoração, como se indicasse trânsito livre. Recusam-se a considerá-lo um indica-dor do fracasso óbvio, da ameaça palpável de um país dividido pela pobreza. Repetem que a desigualdade diminuiu, baseando-se numa redução mínima das necessidades essenciais dos pobres graças a transferências mínimas de renda. Ignoram o fato de que a pobreza não se resolve com a renda de algumas dezenas de reais, mas so-mente com a oferta pública de serviços essenciais, especialmente de educação de qualidade.

Comemoram o aumento na venda de automóveis, ignorando o risco do trânsito das grandes cidades ficar ainda mais pesado. Farão o que foi feito nas últimas décadas. Desviarão recursos públicos de saúde, educação e saneamento para viadutos; darão inventivos fiscais e sub-sídios financeiros para aumentar a venda de automóveis; substituirão as plantações de alimentos pela produção de etanol, esgotarão as re-servas de petróleo mais rapidamente.

A descoberta do Pré-Sal, a valorização do real, o surgimento do consu-mo em camadas C e D fazem os turistas brasileiros ocuparem as lojas do Brasil e do mundo inteiro. No lugar de ser prova de sucesso são indicadores de um sinal amarelo. Mas esses sinais amarelos são apre-sentados como verdes, comemorados como indicadores de progresso.

A dinamização da economia brasileira graças à produção de etanol para o mundo todo é vista somente pelo lado positivo. Ignora os riscos da destruição de florestas, elevação do preço de alimentos, expulsão ou exploração dos trabalhadores, poluição dos rios. A transformação da floresta amazônica em deserto de areia, pasto ou cana é ignorada, rebatida com a afirmação de que o desmatamento está sendo redu-zido. O sinal está amarelo, mas ninguém admite que essa destruição

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contribui com o desastre maior do aquecimento do Planeta e com suas consequências devastadoras para toda a civilização.

Os dez centavos adicionais por criança por ano, garantidos pelo Fun-deb, são apresentados como solução para a crise na educação, igno-rando os riscos que ameaçam uma sociedade incapaz de produzir o capital mais importante do século XXI: o conhecimento. Um modesto Plano de Desenvolvimento da Educação é apresentado como solução. O perigo do fracasso social logo à frente, provocado pela falta de uma educação básica de qualidade e por uma universidade deficiente, con-tinua ignorado. Ninguém repara nos indicadores de alerta, ninguém indica um novo rumo. Ao contrário, escamoteia-se o risco.

O apagão educacional é mais um sinal amarelo disfarçado, que não assusta ninguém, embora aponte para a formação de um exército de milhões de brasileiros sem educação. Exército que, por desespero ou falta de alternativa, acabará optando pela violência, transformando nossas ruas em campos de batalha, numa guerra que já é visível.

Mas até esse risco é ignorado. Os sinais amarelos têm sido sistemati-camente pintados de verde pelo marketing político, que é financiado por dinheiro público, retirado das necessidades do povo para financiar a publicidade do autoengano.

País ameaçadoFolha de S. Paulo – 31 de janeiro de 2008

O Brasil está ameaçado pela “invasão” de um exército de 72 milhões de adultos: um exército sem armas, cujo ataque vem da incapacidade para usarmos seu imenso potencial intelectual. São os eleitores sem o ensino fundamental completo. Adultos que aqui nasceram e, sem nenhuma culpa, serão agentes da desagregação nacional nas próxi-mas décadas. Por causa dessa “invasão”, dentro de 30 anos estaremos ainda mais mergulhados na baixa produtividade, na falta de competiti-vidade pela incapacidade de criar capital-conhecimento, nas desigual-dades social e regional, na violência, na corrupção.

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Não foi a ABIN, nem as Forças Armadas, nem a Polícia Federal que identificou a ameaçadora “invasão” que o Brasil sofre: foi o TSE, ao mostrar que são 104 milhões os eleitores sem o ensino médio comple-to, dos quais 28,8 milhões são analfabetos ou apenas sabem ler e 72 milhões não concluíram o ensino fundamental.

E esses dados não mostram que raros dos que concluíram o ensino médio tiveram cursos com a qualidade que os tempos atuais exigem, para a pessoa e o País. Mesmo que os dados não sejam exatos (são do momento do cadastramento do eleitor, sem estudos continuados posteriores), eles confirmam uma realidade conhecida.

Se algum país quisesse dominar o Brasil no século 21, não teria es-tratégia melhor do que abandonar a educação de nosso povo, como nossos próprios dirigentes fizeram ao longo de décadas passadas; nas próximas, essa situação vai trazer consequências catastróficas para o País.

Na democracia: o eleitor sabe votar corretamente, independentemen-te do grau de instrução, mas, sem educação, não tem alternativas de emprego ou renda, precisa de soluções imediatas para seus proble-mas. Em vez de votar em um candidato que propõe mudar o quadro futuro da saúde, vota naquele que lhe oferece uma caixa com o re-médio para resolver sua doença atual. É um voto inteligente, mas que leva à fragilidade da democracia e ao aumento da corrupção. Embora a grande corrupção venha do financiamento de campanhas eleitorais por grupos econômicos e privados, é um eleitorado sem alternativa que induz à compra e à venda de votos, daí ao descompromisso do eleito com o eleitor e ao uso do cargo em benefício próprio. O eleitor não tem qualificação e perde o direito de cobrar do seu representante.

Na economia: não há futuro para a economia sem mão de obra al-tamente qualificada, com trabalhadores preparados para usar instru-mentos modernos. Também não há futuro para a economia que não é capaz de criar com base no capital-conhecimento. Na economia do futuro, não basta o “feito no Brasil” é preciso o “criado no Brasil”. Se toda a população jovem não estiver bem educada para fornecer qua-dros competentes às universidades, estas não desenvolverão o capital--conhecimento com base na ciência e nas técnicas de nível superior que o mundo moderno exige.

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No emprego: a economia está trocando operários por operadores. Em vez de formar um operário com um simples curso, é preciso formar um operador de ferramentas inteligentes. Isso exige um bom segundo grau completo, idiomas estrangeiros, inclusão digital.

Na segurança: a maldade é uma característica mais comum entre os educados do que entre os iletrados. Mas, sem alternativas de empre-go, estes últimos ficam sem renda para sobreviver e mais facilmente caem na tentação de pequenos crimes. Se ficarem impunes, terão in-centivo à criminalidade; se forem presos, cairão nas universidades do crime que são as cadeias.

Na desigualdade: os dados do TSE não mostram a desigualdade entre o nível de educação do eleitor pobre e o do eleitor rico, mas mostra a desigualdade regional no acesso à educação. O mais grave nes-tes dados, porém, é a perspectiva de aumento da desigualdade entre pessoas e regiões. Eles mostram um Brasil dividido entre uma minoria educada e a maioria sem educação. Os primeiros terão várias opções, seus filhos serão ainda mais bem educados, e a desigualdade vai se ampliar. O Sudeste tem 19,8% de eleitores que declaram ter com-pletado Ensino Médio, uma taxa baixa para uma região rica. Mas no Nordeste, apenas 8,25% declaram ter concluído o mesmo nível. Não é difícil imaginar o que vai acontecer no futuro. O aumento da desigual-dade entre as pessoas e entre as regiões será uma das consequências previsíveis dos dados divulgados. Alguns conseguem educar-se, têm alternativas, empregos, renda. Outros ficam excluídos.

Lamentavelmente, os dados do TSE não despertarão a opinião pública. A imensa maioria - os eleitores que não estudaram - não vai sequer tomar conhecimento deles, e os que estudaram não se sensibilizarão. Não perceberão que eles também estão condenados a um futuro que inviabilizará nossas cidades por causa da violência, da miséria, da ine-ficiência. Não despertarão para a necessidade de fazer uma revolu-ção, garantindo educação de qualidade para todos – com escolas para os filhos dos pobres tão boas quanto as dos filhos dos ricos.

Se não fizer uma revolução na educação, o Brasil será um País amea-çado e sem futuro.

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As outras denguesO Globo – 29 de março de 2008

Todo ano, na época certa, o Brasil se assusta com a epidemia de den-gue que afeta diversas cidades. As autoridades trocam acusações e discutem de quem é a culpa. Mas poucos se lembram dos que avisa-ram que ela aconteceria. Foram muitos os médicos, epidemiologistas e políticos que avisaram, cobraram, denunciaram que o Brasil caminha-va para as epidemias periódicas que testemunhamos.

O risco de epidemias previamente anunciadas não se limita apenas ao quadro da saúde. Há décadas os ecologistas avisam, como muitos avisaram da dengue, que o desflorestamento da Amazônia é uma pra-ga que destrói o meio ambiente. Mas esses avisos foram ignorados. Alguns grupos – não apenas os conservadores de direita – chegam a reagir, dizendo que proteger a natureza é um atraso, porque o pro-gresso se mede por árvores derrubadas e transformadas em madeira. Há vinte anos, um marxista brasileiro dizia que a preocupação com o meio ambiente era uma invenção do imperialismo para impedir o desenvolvimento do Terceiro Mundo.

Nós, brasileiros, somos os Aedes Egyptis da Amazônia.

Em São Paulo, já se sabe que, em breve, o trânsito da cidade vai parar de vez por causa do excesso de automóveis, mas cada vez se produz mais e se paga menos impostos e sem ter financiamento maior para pode aumentar o número de carros nas ruas. Mesmo sabendo que a epidemia de carros vai paralisar o organismo de cidade, como a den-gue paralisa o organismo do doente.

A corrupção, as medidas provisórias, o vazio do Congresso são o mos-quito que contamina a democracia. A política brasileira está com den-gue, com a previsão de que em breve será hemorrágica, mas pou-co fazemos para interromper a marcha da epidemia que conduz ao autoritarismo explícito. Muito maior do que o atual autoritarismo das medidas provisórias em excesso e sem justificativa de urgência. Mas os alertas caem no vazio, como há algum tempo caía no vazio a denúncia do risco de dengue.

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Há anos é anunciada uma epidemia de desemprego, não por falta de vagas, mas por falta de formação. Uma epidemia que poderá, in-clusive, reduzir o ritmo do crescimento em diversos setores. Todos os dias, sobram – na indústria, na agricultura, na construção, nos serviços – vagas não preenchidas, enquanto milhões de pessoas desemprega-das querem trabalhar, mas não possuem a qualificação necessária. O imediatismo e corporativismo nos impedem identificar a epidemia da ausência de capital-conhecimento: ela não provoca febre e dores em cada indivíduo infectado, como faz a dengue, mas ameaça ainda mais o futuro da economia e das famílias do Brasil.

Nos últimos 50 anos, diversos políticos, como Brizola, alertaram e ten-taram convencer o Brasil a dar importância à educação. Tudo indica que essa epidemia também vai se agravar, porque a educação não avança como deveria, e porque as exigências de formação crescem mais rapidamente do que a formação – que, quando é oferecida, é insuficiente, incompleta e sem a complexidade que os tempos atuais exigem.

Todos sabemos que há muitas outras epidemias se preparando para eclodir no Brasil, mas vamos esperar para depois manifestar nossa in-dignação e, fingindo surpresa, culpar os outros: o ministro vai culpar o prefeito, o prefeito vai culpar o governador.

A pior de todas as epidemias é a falta de consciência da necessidade de um projeto comum para a Nação, que provoca a omissão e legitima o esquecimento do futuro. Limita todo tipo de poupança e impede o investimento hoje, que evitaria o que vai acontecer amanhã. É por isso que nenhum de nós se responsabiliza pelo resto do Brasil. Deixamos água empoçada e crianças sem escola – desde que não sejam as nos-sas. Como se os terremotos epidêmicos deixassem de pé somente a casa da gente, e as outras não importassem. Assim, o cidadão omisso e os governos oportunistas olham apenas os votos de hoje, e não para as doenças de amanhã. Recusam os sacrifícios no presente necessários para construir o futuro.

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Debate AusenteO Globo – 09 janeiro de 2010

Para uma pessoa, basta desejar-lhe Feliz Ano Novo, ela imaginará os desejos a serem realizados. Com um país, é preciso definir como fazê--lo feliz. Para o Brasil, um Bom Ano Novo seria aproveitarmos o perí-odo eleitoral para debatermos os rumos que corrigirão os problemas que persistem.

Graças à capacidade de comunicação e de aglutinação do Presidente Lula - aliadas ao seu senso de responsabilidade na economia e seu sentimento de solidariedade social-, ocorreu um retrocesso nos de-bates sobre os rumos para o Brasil. A oposição ficou sem bandeiras, apenas denúncias; o povo se sente atendido pelo pouco que recebe; a economia continuou sua marcha, atendendo classes médias e empre-sários no presente. Os intelectuais calaram; os estudantes foram aco-modados; os sindicatos cooptados; as ONGs absorvidas; os partidos descaracterizados e desmoralizados. Além de que o prestígio interna-cional do Lula, interno e externo, criou uma unanimidade reverencial, pela admiração ou pela bajulação.

O debate sumiu, no máximo fazem-se críticas. Junte-se a isso o apa-gão educacional e cultural, com nossas massas excluídas e nossas eli-tes sem imaginação. Até porque depois da crise do socialismo e do capitalismo, nossas elites ficaram sem os pensamentos importados que se acostumaram a copiar, fosse de um lado, ou de outro. As propostas foram substituídas por desculpas e buscas de explicação.

No período eleitoral não se vê debate de ideias entre candidatos dos grandes partidos. Apenas a disputa entre quem oferece a menor taxa de juros, e a maior de crescimento, o melhor PAC e a mais generosa Bolsa-Família.

Mas, o Brasil e o Mundo estão em uma encruzilhada entre seguir o mesmo rumo das últimas décadas ou reorientar seu projeto de Nação dentro da globalização. A eleição seria a chance para o Brasil criar um novo rumo.

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Um debate fundamental deve ser como construir uma democracia--ética no comportamento dos políticos e nas prioridades das políticas. Como acabar com a corrupção e a impunidade e como elaborar orça-mentos públicos comprometidos com os interesses comuns da popula-ção de hoje e da Nação futura.

Não pode faltar no debate a busca de crescimento equilibrado com o meio ambiente. Não basta crescer, é preciso definir quais produtos serão priorizados, quais serão realizados e com quais recursos naturais - não apenas financeiros - serão produzidos.

As formas de superar a persistência secular da pobreza em nosso País e de como reduzir a desigualdade social devem ser debatidas. Se a proposta é continuar esperando que os resultados do crescimento eco-nômico se espalhem ou se o caminho seria uma revolução que assegu-re igualdade educacional para todas as crianças, independentemente da renda dos pais.

Outra bandeira fundamental a ser debatida é como reorientar o ve-lho modelo de produção baseado na indústria mecânica, para uma nova economia, com produtos produzidos pelo capital-conhecimento, originados da ciência, tecnologia e, portanto da educação de base universal com qualidade. Isso implica o debate sobre qual a base do desenvolvimento futuro do Brasil: o capital financeiro ou a educação, ciência, tecnologia e cultura.

Será necessário debater como conquistar a paz nas ruas: escolher en-tre construir cadeias e cercar as casas com muros ou fazer pontes entre as diversas partes da sociedade.

A escolha entre a eficiência dos serviços públicos ou o aumento na oferta de bens privados é um debate que a população precisa fazer antes de escolher o seu candidato ou candidata à presidência da Re-pública. Aparentemente, não há vontade para fazer esse debate. A mídia não se interessa; os eleitores, ainda menos, os intelectuais estão alheios; os partidos, perdidos e os candidatos não querem correr ris-cos. As campanhas têm sido feitas com base nos shows de marketing e não na consistência das ideias.

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O medo das palavrasRevista Profissão Mestre – fevereiro de 2010

Quarenta anos atrás, as palavras se escondiam para não construir fra-ses, por medo das consequências do que diziam. Agora, as palavras continuam se escondendo para não formar frases. Por desesperança diante do que vão dizer.

Falar de uma civilização que está aquecendo o Planeta em uma rápida marcha rumo à desarticulação do tênue sistema que mantém a vida e do equilíbrio com o qual funciona a natureza e sobrevivem bilhões de seres humanos; ameaçando destruir, em nome do progresso, o patri-mônio construído até aqui, após dez mil anos de evolução civilizatória.

Dizer da desigualdade criada por esse progresso, que começa a fazer os homens diferentes, mais do que desiguais, provocando uma muta-ção biológica que fará os que podem ter os produtos do avanço técnico viverem mais, com mais inteligência e saúde, e bilhões viverem pouco, doentes, esfomeados, sem instrução.

Ou falar de um tempo no qual, graças a esse avanço técnico, armas são chamadas de “inteligentes” – o que mata a ética e desmoraliza o conceito de inteligência – e usadas contra povos indefesos e crianças cujo único erro foi estar no local escolhido como alvo.

Ou contar que, em nome dos oprimidos, muitos terminam do lado de ditadores e terroristas que agem fora da lei, apenas para ficar con-tra governantes perversos que agem dentro de uma lei fabricada por eles próprios, e saber que esses terroristas em breve terão armas de destruição em massa para serem usadas contra pessoas desarmadas, somente para atingir um ou outro governo.

E confessar que duvida de a democracia, que resistiu 2.500 anos como sendo a excelência na forma dos cidadãos se relacionarem, comece a ficar obsoleta diante do choque entre o curto prazo do egoísmo indivi-dual, com o qual eleitores escolhem e eleitos decidem, e o longo prazo das consequências dessas decisões e seus efeitos planetários.

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Reconhecer que o poder corrompe até os que parecem incorruptíveis: se não pela ganância, pela insensibilidade com a qual aceitam natu-ralmente os malditos defeitos que deveriam combater na realidade perversa que deveria ser modificada.

Narrar a desesperança ao perceber, depois de décadas lutando para que a esperança saia dos livros e vire realidade, que a realidade mata a esperança, que no lugar de chegarmos ao futuro sonhado continu-amos na mesma e inexorável isenta marcha das coisas, não importa qual seja o governo escolhido.

Quando, décadas atrás, comecei a escrever, as palavras se escondiam para não formarem frases, com medo das consequências do que di-ziam. Mas apesar do medo, uma força maior as fazia surgirem, se encontrarem e escreverem as frases que as uniam. Agora, as palavras continuam se escondendo para não formar frases, por desesperança diante do que vão dizer. Mas apesar da desesperança, elas continuam surgindo e escrevendo, em nome da esperança que mata o medo, im-pede o silêncio e nos obriga a dizer as coisas.

Porque, apesar do medo e da desesperança que assustam as palavras, a força delas dá vontade de nascer, apostar no futuro, retomar a espe-rança, sem medo de escrever.

Direito ao UsoO Globo – 27 de fevereiro de 2010

No mundo de hoje, o automóvel privatizou de tal forma o transporte urbano que a sociedade perdeu o direito de usar livremente o espaço metropolitano, apropriado por veículos paralisados em filas quilomé-tricas dos engarrafamentos ou em fileiras laterais dos estacionamen-tos. As ruas deixaram de ser usadas, para evitar assaltos nas calçadas e engarrafamentos nas vias. Desapareceu o uso dos passeios públicos; o costume de caminhar do cinema ao restaurante caiu em desuso.

A modernidade construiu um mundo com tamanha ampliação da pro-priedade privada que provocou a redução do uso do espaço público.

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Este, ao ser apropriado privadamente, deixou um conjunto de pessoas sem acesso pleno aos espaços urbanos.

O direito à propriedade é um avanço da sociedade humana. Pode--se até considerar que os povos simples, sem propriedade privada, sejam mais felizes, mas à medida que a sociedade avança, o direito à propriedade torna-se parte da liberdade individual, garantindo a cada cidadão o acesso aos seus pertences. Em uma sociedade que não respeite a propriedade, o cidadão fica sem direito ao uso dos bens e serviços de que necessita. A ausência do direito à propriedade de terra ou de moradia ameaça, podendo até impedir, o uso do solo para a agricultura ou para a habitação e vivência da família. Mas quando o direito à propriedade aumenta de maneira desproporcional, a socie-dade passa a sofrer ameaças ao direito do uso: ao privatizarem impli-citamente os rios onde indústrias despejam seus dejetos e as famílias jogam seus esgotos, deixando as águas sem possibilidade de uso. Para captar novas fontes de água e para tratar a poluída, a opção tem sido a privatização explícita, o que automaticamente reduz o acesso ao seu uso. Assim, será impossível o uso da água pelas gerações que virão.

A crise ambiental é um aspecto do crescimento do direito à proprieda-de com a redução do direito ao uso dos recursos naturais do planeta. O aumento do poder tecnológico chegou a tal ponto que não apenas a terra, mas a Terra foi apropriada e está sendo depredada, e isso im-pedirá seu uso, no futuro, pela humanidade.

Até a democracia vem perdendo o uso de seus instrumentos, pois ficou apropriada pelos partidos, pela mídia, pelo marketing, por grupos de pressão. O melhor exemplo dessa privatização está no alto custo das campanhas políticas, e no seu financiamento por grupos econômicos. A prática democrática se faz por um emaranhado de interesses pri-vados que levam, quase que necessariamente, à corrupção. Ao apro-priarem-se da política, os políticos sentem-se no direito de realizar seus interesses pessoais em vez de usa-la a serviço do bem publico. O ritual da participação social fica restrito; o povo fica excluído; as decisões são tomadas por poucos; as informações são divulgadas por uma mídia apropriada por grupos econômicos e até pelos governos ou por seus jornalistas. Os partidos se apropriam da atividade política, a mídia escolhe os candidatos a serem prestigiados; mesmo cada eleitor se apropria da democracia como meio para obter vantagem pessoal. A

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política democrática apropriada deixa de ser usada para a orientação da sociedade e se limita à distribuição das propriedades.

A realidade está mostrando que, à medida que o direito à propriedade avança, o direito ao uso está regredindo. Por isso, respeitando-se o básico direito à propriedade, a sociedade precisa se dar conta de que precisa defender o direito ao uso, como condição fundamental para o exercício da democracia, da justiça social e do equilíbrio ecológico.

Ao colocar bicicletas à disposição dos habitantes e turistas, a cidade de Paris iniciou um bem sucedido sistema de oferecer o direito ao uso sobre o direito de ter. Outras cidades, inclusive o Rio de Janeiro, estão repetindo a experiência. O uso no lugar da propriedade permite que um bem sirva a muitas pessoas no lugar de apenas uma; acaba com o custo do carro ou de bicicletas estacionados, distribui o custo de ma-nutenção. O mesmo pode ser feito com automóveis. Com cartão de crédito, cada usuário pode entrar e usar o carro sem necessidade de ser dono; com o GPS, o usuário pode deixar o carro onde quiser, um serviço central indica onde encontrar o veículo disponível para quem precisa. O número de carros nas ruas cai, o estacionamento desapare-ce. A propriedade continua, mas seu uso é disponível para todos.

O direito à propriedade é necessário para o bom funcionamento da sociedade, enquanto não impede o direito ao uso dos bens que deve-riam ser públicos, com a água, as calçadas, as estradas.

CidanautasO Globo – maio de 2010

Desde 1986, o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso reúne no BN-DES um grupo de pessoas para debater temas de importância nacio-nal. Reunir pensadores por um quarto de século é um feito. Debater de maneira aberta, sem preconceito, ouvindo todas as ideias, é um mérito do Fórum Nacional. Mérito ainda maior é preencher o vazio de ideias e propostas que caracteriza o Brasil atual.

Um dos temas recentes foi a modernização do Congresso.

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Uma observação nessa mesa foi afirmar que o Brasil tem o Congresso mais moderno do mundo, do ponto de vista técnico. Tem rádio, TV, computadores em rede, prédio confortável, jornal, profissionais com-petentes; mas o Congresso está atrasado do ponto de vista eleitoral, político e ético. Sem lembrar que é o mais caro ou um dos mais caros no mundo.

Durante o debate foram apresentadas sugestões concretas de como fazer essa modernização: proibição de mais de uma reeleição conse-cutiva; redução da duração do mandato de senador; possibilidade de candidatura independente de partido; divulgação de todos os gastos do exercício do mandato em tempo real; realização de sessões plená-rias em todos os dias úteis ao longo de três semanas, reservando uma semana por mês para visitas às bases eleitorais; perda do mandato para parlamentares nomeados para cargos no Executivo; criação de comissão permanente de inquérito e de comissões especiais provisó-rias para enfrentar os grandes problemas nacionais; obrigatoriedade do cumprimento dos mandatos de prefeitos, governadores e presi-dentes até o final, impedindo-os de disputar eleição para o período seguinte; declaração de “moratória partidária” por seis meses para permitir a reorganização dos partidos como forma de dar-lhes mais identidade; campanhas eleitorais apenas com recursos de pequenas contribuições do público; programa eleitoral gratuito limitado às fa-las dos candidatos, sem maquiagem de marketing; caracterizar como quebra de decoro o uso de serviços privados de saúde e educação por parlamentares; submeter todas as declarações dos eleitos à fisca-lização da “malha fina” da Receita Federal; proibir alianças eleitorais para cargos executivos no primeiro turno; separar as eleições federais das estaduais; substituir o título de “deputado” por “representante do eleitor”.

Mas a grande modernização será entender, aproveitar e submeter o Congresso às possibilidades de interação com a “praça virtual” onde a “população está se reunindo”, por meio de e-mails, twitters, blogs, etc.

A aprovação da Lei da Ficha Limpa foi uma vitória da ética na política. Ainda maior foi o exemplo de como o poder direto do povo consegue hoje penetrar, pressionar, conduzir os parlamentares. Foram milhões de assinaturas e dezenas de milhões de mensagens que conduziram o Congresso a decidir conforme a população queria e não apenas con-

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forme os desejos e os temores dos parlamentares. Por meses, o Brasil esteve nas ruas e praças virtuais. A grande modernização da atividade congressual está na utilização dos modernos meios e técnicas de in-formática para tomar as decisões que o País precisa, sem abrir mão da reflexão que o Congresso permite. Obviamente, esta modernização exige uma revolução educacional que incorpore toda a população no acesso aos meios de comunicação. Se a democracia assegura, e até obriga, acesso de todos à urna, a nova democracia participativa exige que todos tenham acesso aos equipamentos de informática, tanto dis-pondo deles, como sabendo usá-los. A internet é o megafone de cada eleitor, o computador deve fazer parte do sistema político tanto quanto as urnas eletrônicas.

É, portanto, na revolução educacional que está a chave da moderniza-ção política. Até lá, porém, cabe ao Congresso abrir-se ao contato com os “cidanautas” — cidadãos internautas — e, sobretudo, que defina políticas que ampliem o número destes novos cidadãos e aos assuntos de suas preocupações. A vitória dos “cidanautas” com o Ficha Limpa precisa ser ampliada para todos os brasileiros e todos os temas que interessam ao Brasil.

Vergonha do SeteO Globo – abril de 2011 - Desde a publicação deste artigo, em abril de 2011, a economia brasileira subiu da sétima para a sexta posição

no mundo, mas todos os demais indicadores continuaram estagnados: a vergonha aumentou.

No século XIX, Victor Hugo se negou a apertar a mão de D. Pedro II, porque este era o Imperador de um País que tolerava a escravidão. Hoje, Victor Hugo não apertaria a mão de um brasileiro para para-benizá-lo pela conquista da 7ª posição entre as potências econômicas mundiais, convivendo com total naturalidade com a tragédia social ao redor.

Estamos à frente de todos os Países do mundo, menos seis deles, no valor da nossa produção, mas não nos preocupamos por estarmos, segundo a UNESCO, em 88º lugar em educação. Somos a sétima eco-

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nomia, mas segundo o PNUD das NNUU estamos 84ª no IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.

Somos o sétimo país em valor do PIB, mas ignoramos que, segundo o FMI, somos o 55º país no valor de renda per capita, fazendo com que sejamos uma potência habitada por pobres. Mais grave: não vemos que, segundo o Banco Mundial, somos o 8º pior país do mundo em termos de concentração de renda, melhor apenas do que a Guate-mala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia.

Somos a sétima economia do mundo, mas de acordo com a Transpa-rência Internacional estamos em 69º lugar na ordem dos países com ética na política por causa da corrupção. A nota ideal é 10, o Brasil tem nota 3,7.

Somos a sétima potência em produção, mas, quando olhamos o perfil da produção, constatamos que há décadas exportamos quase o mes-mo tipo de bens e continuamos importando os modernos produtos da ciência e da tecnologia. Somos um dos maiores produtores de auto-móveis e temos certamente a maior população de flanelinhas fora da escola.

Um relatório da UNESCO mostra que a maioria dos adultos analfabe-tos vive em apenas dez países. O Brasil é um deles, com 13 milhões; com o agravante de que, no Brasil, eles nem ao menos reconhecem a própria bandeira. De 1889 até hoje, chegamos à sétima posição mun-dial na economia, mas temos quase duas vezes mais brasileiros adul-tos iletrados, do que tínhamos naquele ano; além de 30 a 40 milhões de analfabetos funcionais.

Somos a sétima economia e não temos um único prêmio Nobel.

Segundo um estudo da OCDE (Organização para Cooperação e De-senvolvimento Econômico), que pesquisou 46 países, o Brasil fica em último lugar em percentagem de jovens terminando o ensino médio. Estamos ainda piores quando levamos em conta a qualificação ne-cessária para enfrentar os desafios do século XXI. Somos a sétima economia do mundo, mas, segundo a OIT, a remuneração de nossos professores está atrás de países como México, Portugal, Itália, Polô-

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nia, Lituânia, Látvia, Filipinas; a formação e a dedicação deles pro-vavelmente em posição ainda mais desfavorável, por causa da péssi-ma qualidade das escolas onde estudam e os equipamentos daquelas onde são obrigados a lecionar. Somos a 7ª potência econômica, mas a permanência de nossas crianças na escola, em horas por dia, dias por ano e anos por vida está entre as piores de todo o mundo.

Corda Bamba O Globo – 18 junho de 2011

A infância, a adolescência e a juventude brasileira caminham sobre uma corda bamba, da qual milhões vão caindo antes mesmo de che-gar à idade adulta.

Logo no início da vida, crianças caem da corda bamba por falta de uma UTI infantil ou porque as mães são desprezadas pelos pais e terminam abandonando o recém-nascido. Milhões de crianças, que sobrevivem às primeiras horas de vida, continuam na corda bamba por falta de comida, brinquedos, estímulos educacionais, sem escolas maternais e sem o acompanhamento de mães preparadas ou de creches com qualidade. Caem da corda antes mesmo de começarem a caminhar.

Das que sobrevivem aos primeiros anos, milhões. Depois de caminhar alguns anos na corda caem logo depois, por não conseguirem entrar na escola, ficarem sem o desenvolvimento intelectual necessário e se-guirem na vida sem as ferramentas básicas necessárias à vida moder-na, tais como, emprego, renda e acesso a serviços essenciais.

Mesmo as que entram na escola, continuam caminhando sobre a cor-da bamba. A pobreza das famílias e a má qualidade da escola expul-sam a maioria delas antes mesmo do fim do ensino médio. São derru-badas da corda, jogadas no chão, sem alternativas. Das que concluem o ensino médio, mais da metade não teve um ensino de qualidade e, por isso, não entrará no ensino superior, nem em um curso profissio-nalizante competente, ou entrará, mas abandonará o curso por inca-pacidade de segui-lo até o fim, ou pode até obter um diploma, mas sem conhecimento superior e ficará sem emprego de nível e renda superiores.

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Ao longo de todo esse tempo, e mesmo depois, essas crianças, adoles-centes e jovens estarão em uma corda bamba que ameaça derrubá--los pela morte violenta antes do tempo, pela droga que age como o motor do balanço da corda por onde caminham os jovens; um amigo, uma decepção, uma cobrança, o simples trago em um cigarro errado ou num copo de bebida pode empurrar o jovem para a queda com uma pequena chance de recuperação. Mesmo os que não caem por força do empurrão das drogas, caem pela ociosidade, sem escola e sem emprego.

Mas não é apenas a escola sem qualidade e a falta de renda da família que derrubam crianças. Os adolescentes e jovens de renda média e alta também caminham por uma corda bamba, pela falta de ativida-des e por causa de uma escola aparentemente boa, em comparação com as péssimas. Ou porque também correm o risco do consumo de drogas ou da droga do consumismo. Move a corda também a aliena-ção da voracidade do superconsumo para aqueles que aparentemente chegaram ao outro lado, mas vivem sacrificando a vida para o enri-quecimento sem valor existencial. E quase sempre se endividando, seja pela dívida consigo mesmo, por não atender aos desejos de consumo de luxo: seja pelo endividamento com os bancos para poder comprar o luxo que deseja, seja a dívida em tempo roubado pelo trabalho desa-gradável. Endividam-se pelos desejos de compras não realizadas, com os bancos pelo financiamento para realizá-los ou pelo trabalho que não gostam, mas precisam para pagar as dívidas.

A corrupção na política também balança a corda por onde caminham os jovens. Não apenas pelo desperdício de recursos públicos que vão para os bolsos de alguns, em vez de irem para as políticas públicas com investimentos para os jovens. Pesam também a decepção e a alie-nação que excluem os jovens da participação política.

No Brasil, atravessar os anos antes da vida adulta é caminhar sobre uma corda bamba, balançando constantemente diante da omissão do setor público, da desarticulação das famílias, da necessidade de con-sumo, da violência da droga e, sobretudo, por falta do estável terreno da educação de qualidade assegurada a todos.

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Casamento malditoO Globo – julho de 2011

A corrupção tem sido uma loteria ao contrário. Na loteria, o vence-dor compra o bilhete e espera ser sorteado depois; o corrupto rouba primeiro porque sabe da pouca probabilidade de ser punido. A impu-nidade é o pai da corrupção, a mãe é a falta de valores morais moder-nos compromissos sociais e sentimento pátrio entre os que se dedicam à política.

É isso que vem ocorrendo no Brasil. As forças liberais realizaram a democracia e sentiram-se livres para usar o Estado como o celeiro de onde tirar proveito privado, pessoal ou empresarial. Aqueles que além da democracia lutavam pela ética e por bandeiras sociais, abandona-ram suas propostas para poderem chegar ao poder; depois perderam as convicções e as propostas; passaram a conviver com a corrupção como fato normal, não mais um crime da política contra o povo e o País. Ainda mais grave: a política passou a oferecer o magnetismo das benesses e do enriquecimento fácil.

A política permitiu o salto da sobrevivência com contracheque de assa-lariado para o poder de manejar bilhões de reais do dinheiro público. Coincidindo a impunidade jurídica e a falta de valores morais, a cor-rupção torna-se um filho bastardo da política e gera netos hediondos, tais como estradas paradas, porque a licitação foi burlada; alunos sem merenda, por causa do desvio de verbas; uma empresa escolhida no lugar de outra, porque pagou propina. Um triste produto desse ca-samento é a quebra da confiança nos políticos e a recusa dos jovens ingressarem na política.

A política fica sem dignidade, e os líderes que deveriam ser exem-plos são vistos como aproveitadores. Quando as bandeiras tradicionais morrem antes de serem substituídas por novas e a impunidade coin-cide com um marco jurídico impotente para enfrentar e combater a corrupção, o País entra em crise de credibilidade. Ainda pior é quando os mais velhos olham com desconfiança para os jovens que desejam fazer política, como se eles quisessem obter vantagens, e não oferecer sacrifício ao País.

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É necessário romper esse casamento maldito, acabando com a im-punidade e consolidando novas bandeiras. Mas as ideias só se trans-formam em causas quando o povo as entende e aceita. Vivemos em um tempo em que as bandeiras morrem antes que novas surjam. A população está dividida entre uma parte pobre interessada apenas na solução dos seus problemas imediatos e uma parte rica desejosa de manter os benefícios aos quais está acostumada graças a um modelo de sociedade e economia que já não têm mais como manter tantos privilégios.

No vazio ideológico desse tempo, não se pode esperar até que novas causas sejam aceitas pela maioria. Por isso, a forma possível de en-frentar a corrupção no momento é romper o casamento maldito pelo lado da impunidade, eliminando-a enquanto os novos valores sociais vão sendo construídos aos poucos pela história.

Apesar de tudoO Globo – 07 de julho de 2007

Antes, corríamos riscos e tínhamos objetivos. Agora, não há mais obje-tivos e os riscos parecem não existir. Corríamos riscos de morte, tortu-ra, prisão, exílio, mas tínhamos adiante, palpável, o sonho a realizar: a construção de uma sociedade justa e democrática, com igualdade e plena liberdade. O fim da exploração e da pobreza. A primazia da cul-tura, sobre o consumo material. E tínhamos certeza, certeza absoluta, de que nossos sonhos se realizariam. Valia a pena correr os riscos. Era assim a prática da política nos meus anos de juventude. Havia uma razão para a vida e para a morte, e um céu posterior: a história com a democracia e a justiça.

Acreditávamos que, estatizando a propriedade, distribuiríamos a ren-da; que a revolução se faria organizando os operários; que o planeja-mento acabaria com a ineficiência. Descobrimos que isso foi impossí-vel no Brasil, e onde foi tentado, os seus resultados não foram aqueles que esperávamos: a ineficiência, a corrupção, os privilégios continua-ram e a liberdade foi sacrificada.

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Hoje, a política não exige a coragem de enfrentar a morte, mas o ci-nismo de enfrentar a desonra da impotência, a vergonha de defender privilégios e interesses corporativos, próprios ou de financiadores de campanha. O único risco é tangenciar ambientes corruptores.

A política ficou propositalmente sem utopia, sem finalidade histórica, prisioneira do seu dia-a-dia. E se perdeu nessa rotina vazia. Por isso, não atraímos o aplauso dos adultos, nem a militância dos jovens. A política virou profissão, e não função. Esfera de acordos e conchavos, e não de ação transformadora. Os partidos que há pouco pareciam re-sistir se perderam quando chegaram ao poder: sem utopia, sem vigor transformador.

Muitos acham um horror os “Anos de Chumbo” da ditadura passada; outros, os “Anos Vazios” da democracia atual.

Apesar disso, ainda há objetivos adiante, e os riscos têm de ser en-frentados. Com o mesmo cuidado com que nos protegíamos da po-lícia quando descumpríamos as leis da ditadura, fazendo o que era preciso para subverter a ordem ditatorial implantada, agora precisa-mos cultivar o rigor pessoal no dia-a-dia, no uso de recursos públicos, no cumprimento das leis, na permanente vigilância contra desvios e desesperança. E, sobretudo, manter o foco em projetos utópicos, no compromisso com a transformação social no País.

O objetivo não é mais a democracia política, já conquistada. Já não é mais a igualdade socialista, desmoralizada, tecnicamente impossível e eticamente desnecessária. O que nos move agora deve ser a supera-ção do atraso e a garantia da mesma chance a cada pessoa. O atraso só será superado quando nosso País se tornar um centro produtor de capital-conhecimento, em função da dinâmica criada por uma revo-lução na educação de qualidade para todos. E a mesma chance será verdade quando a escola de qualidade estiver acessível para todos: o filho do mais pobre na mesma escola do filho do mais rico.

Isso é preciso e é possível. O Brasil dispõe de todos os recursos neces-sários. Nosso desafio, maior do que foi derrubar a ditadura, é conven-cer os pobres de que é possível, e os ricos de que é preciso. Propor as medidas corajosas e revolucionárias, e reservar os recursos necessá-rios.

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Vale a pena fazer política para construir essa utopia, mesmo que seja apenas para convencer os brasileiros de que é necessário, preciso e possível. Vale a pena correr riscos, ainda que sejam maiores do que antigamente. Antes, o pior que podia acontecer era morrer com honra, lutando; agora, é viver com a honra ameaçada pela omissão e pela lama.

A política na sua ação cotidiana é um dos jogos mais chatos do ser hu-mano. Mas quando ela é feita como o trabalho de operários constru-tores do futuro, torna-se uma das mais excitantes atividades humanas. Política com um propósito utópico para a Nação, com vontade de mu-dar a realidade, dedicação para convencer os eleitores e articular as lideranças. Fugindo da rotina do dia-a-dia e das tentações do poder.Apesar de tudo, é preciso continuar lutando. E também sonhando.

A outra fumaçaO Globo – 03 de dezembro de 2011

O Brasil deu um salto civilizatório ao proibir em escala nacional a fu-maça de cigarros em ambientes fechados. Milhões de vidas serão sal-vas graças a esta decisão nacional. É surpreendente que outros proble-mas igualmente graves não sejam enfrentados com a mesma vontade, para que o salto seja ainda maior.

Não se vê como igualmente grave, o problema do analfabetismo de adultos que já deveria estar resolvido há décadas. O fumo mata por câncer, o analfabetismo impede a vida plena de um adulto na vida moderna. Mesmo assim, aceitamos a morte cívica de dezenas de mi-lhões de brasileiros ao longo das últimas décadas. Não percebemos que completamos 122 anos de República, com uma bandeira que não é reconhecida por 13 milhões de brasileiros adultos. Eles não sabem a diferença entre as palavras “Ordem e Progresso” ou quaisquer outras que forem escritas.

Nem nos incomoda tanto quanto a fumaça de cigarros, o fato de qua-se 10% de nossas crianças chegarem a 4ª série sem saber ler. Por ser tratado pela média, esse percentual não reflete a gravidade do proble-

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ma ainda maior sobre as camadas pobres.

Aceitamos como natural que milhões de crianças trabalhem em vez de estudar. Mesmo que livres do fumo, essas crianças não terão futu-ro melhor do que a vida dos fumantes. Uma parte delas trabalha na prostituição. Não estamos vendo isso como uma tragédia ainda pior do que o fumo. Se víssemos, seria possível uma ação tão forte como a lei antitabagista, abolindo de vez a possibilidade desse tipo de conde-nação de nossas crianças.

Paramos o fumo, mas não paramos a exclusão de milhões de crian-ças, adolescentes e jovens que abandonam a escola antes do final do ensino médio, nem a exclusão dos que terminam em pseudo-escolas, sem a menor qualidade para oferecer o ensino que eles precisam para enfrentar a vida moderna.

Descobrimos o absurdo de permitir fumantes dentro de espaços pú-blicos, mas não estamos vendo o absurdo de classificarmos as esco-las como boas e péssimas. Aceitamos como absolutamente normal, a imoralidade de hospitais bons e ruins conforme o dinheiro da pes-soa. O dinheiro age como a fumaça do cigarro, no sentido contrário, quanto mais dinheiro menos doença e risco de morte. Felizmente, já não aceitamos a fumaça dos cigarros levando brasileiros à morte, mas aceitamos que a morte chegue aos que não têm dinheiro para pagar a um bom médico e comprar bons remédios. Estamos enfrentando o grave problema de cigarro na saúde pública, mas fechando os olhos à permanência da pobreza característica da sociedade.

Também não enfrentamos com rigor o problema da corrupção em to-das as esferas de nossa vida social, especialmente na política. O fumo é uma forma de corrupção que pesa sobre a saúde das pessoas, assim como a corrupção pesa sobre a saúde pública, pelo desvio de verbas, pela vergonha, pelo péssimo exemplo dado à nossa juventude.

A proibição de cigarros foi um avanço social de grande importância, mas não tratamos com a mesma preocupação e rigor o problema da violência. Tratar a violência apenas como assunto de polícia e cadeia seria o mesmo que tratar o câncer apenas como questão de remédios e hospitais, esquecendo a proibição de cigarros em ambientes públi-cos.

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Esta tolerância com os grandes problemas decorre de outra fumaça que encobre a realidade, nos embrutece e tira nossa perspectiva: a fumaça ideológica criada pelo vício de séculos a olhar os defeitos do nosso País como se fossem resultados de causas naturais. Em um ar-tigo que virou pequeno livro, “A arte de não ver os pobres”, J. K. Gal-braith mostra como as elites fazem a pobreza ficar invisível.

Durante 350 anos, uma fumaça nos impediu de ver a escravidão como problema social ou ético. Era vista até como solução econômica. Com a abolição, aquela fumaça se diluiu, mas não acabou. Continua nos impedindo de ver a profundidade de cada um dos nossos problemas. A fumaça de cigarros e suas consequências serviram para nos despertar e adotarmos medidas corretas, com coragem e vigor. Mas a outra fu-maça, da inconsciência e do egoísmo, esconde os trágicos problemas da pobreza.

Somente quando esta outra fumaça desaparecer, é que vamos agir com o mesmo rigor e coragem com a qual enfrentamos o câncer pro-vocado pelo cigarro.

As duas democraciasO Globo – 06 de janeiro de 2007

Há democracias conservadoras e democracias progressistas.

A norte-americana começou conservadora, escravocrata. O gesto pro-gressista da abolição do regime escravocrata exigiu uma guerra civil, não foi viável pelo voto. Até porque os escravos não tinham direito a votar. Depois voltou a ser conservadora: acreditando na evolução do sistema social graças ao aumento da riqueza. A partir dos anos 1930, a conservadora democracia dos Estados Unidos, apesar de manter-se conservadora, assumiu um caráter um pouco mais generoso, com o uso dos sistemas de proteção ao desemprego e o “food-stamp”, uma espécie de Bolsa-Família em “ticket” para comprar comida.

A democracia europeia, com os socialdemocratas, assumiu um caráter progressista: fez mudanças estruturais que universalizaram a qualida-

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de da educação e o acesso à saúde pública em bases equitativas para toda a população e ampliou os benefícios aos trabalhadores. Juntou--se a isso um sistema generoso de proteção social.

Quando a generosidade passou a ameaçar as finanças públicas, no lugar de fazer reformas progressistas que redefinissem os propósitos civilizatórios ou que mantivessem os benefícios tradicionais para as massas, retirando privilégios das minorias, optou-se pelas reformas conservadoras dos anos 1980/1990. A democracia norte-americana continuou conservadora e perdeu a generosidade; a europeia esgotou seu processo transformador ficando conservadora e está perdendo o sentimento de generosidade.

Nesse meio tempo, o Brasil passou por um período sem democracia e quando ela volta, em 1985, é com o mesmo caráter conservador e egoísta que caracteriza nossa sociedade desde sua fundação. De-mocracia com exclusão. Os governos Fernando Henrique e Lula se propuseram a serem experiências de democracia progressista no Bra-sil, mas frustraram as expectativas. Foram governos democráticos, de estabilidade monetária, generosos socialmente, mas conservadores: não se propuseram a mudar a realidade social, quebrar a apartação. Diferentemente da democracia sul-africana que é progressista, aboliu o sistema de apartheid racial e mudou sua estrutura legal; ainda que mantenha sua desigualdade social, foi revolucionária do ponto de vis-ta racial.

Os últimos governos brasileiros têm defendido a ampliação do acesso ao ensino superior, sem ampliar, no entanto, o número dos que termi-nam o ensino médio com qualidade. É uma democratização conserva-dora. Para o topo, não pela base.

A Bolsa-Escola era um programa de democracia progressista: ao in-vestir na educação, faria uma revolução social. A Bolsa-Família é de-mocrática e conservadora, porque não muda a estrutura social. Embo-ra um bom programa do ponto de vista da generosidade, não carrega vigor transformador. O governo Lula tem a qualidade positiva de ser uma democracia generosa, mas, ainda assim, conservadora. E sem futuro: a generosidade esgotará seus recursos, como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos. Ela não é capaz de transformar, por si, a estrutura social.

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O aumento no número de cursos e vagas no ensino superior durante o governo Fernando Henrique Cardoso foi um passo de democratiza-ção conservadora. O ProUni deu um passo adiante: a generosidade. Mas continua uma democratização conservadora, tendo em vista que beneficia aos mesmos que já terminam o ensino médio. Seria progres-sista se fosse parte de uma revolução que garantisse a conclusão do Ensino Médio com qualidade para todos. Ou se, como foi concebido inicialmente em 2003, mas abandonado em 2004 - sob o nome de Programa de Apoio ao Estudante (PAE) -, o aluno beneficiado tivesse de exercer o papel de alfabetizador de adultos, durante parte do perí-odo em que recebia a bolsa.

Os programas Bolsa-Família e ProUni nasceram de ideias progressis-tas, como a Bolsa-Escola e o PAE, mas ficaram conservadores ao se desligarem da Educação de Base e da alfabetização. Embora genero-sos, perderam o caráter transformador. Por isto, Lula não é Mandela. Mas ainda pode vir a ser: bastará entender que a revolução de hoje, emancipadora, progressista, democrática, se fará por uma revolução pela educação de base, erradicando o analfabetismo e universalizan-do o número de concluintes do Ensino Médio com qualidade.

Cidadania RobóticaCorreio Braziliense – 26 setembro de 2009

Um dos maiores exemplos de cidadania brasileira foi desenvol-vido pelos habitantes/cidadãos de Brasília: a Faixa de Pedestre. Graças a ela, sem repressão nem multas, os que dirigem carros, com o poder que o veículo inspira, passaram a respeitar um braço levantado por qualquer pessoa, rica ou pobre, velho ou criança, que desejasse passar de uma calçada à outra, atravessando a rua. Esse é um ato de cidada-nia, visto apenas em populações com elevado grau de educação.

No começo, poucos acreditavam que as Faixas seriam respei-tadas. Muitos temiam o desrespeito, com riscos de acidentes e mortes. Aconteceu o contrário: todos os motoristas passaram a respeitar, os pedestres passaram a usar, toda a população passou a se orgulhar.

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Passados mais de dez anos, as Faixas continuam como exemplo de cidadania, mas começam a ter uma nova característica: estão sen-do robotizadas por sinais de trânsito, que substituem o poder do cida-dão ao levantar o braço pelo poder da luz vermelha ou verde acesas em um ritmo cronometrado. É possível que as novas “faixas robóticas” sejam mais eficientes e seguras, mas serão menos cidadãs.

O que caracteriza a força do cidadão não é poder atravessar a rua quando o sinal de trânsito determina, é poder determinar o mo-mento de atravessar a rua em combinação respeitosa com os moto-ristas. O determinante da cidadania é o empoderamento do cidadão/pedestre ao determinar a hora de atravessar e do cidadão/motorista ao respeitar por livre vontade. Dois gestos de cidadania pessoal que geram cidadania coletiva. O sinal elétrico controla motorista e pedes-tre, põe ordem, não cidadania.

Mesmo se o pedestre detiver o poder ao acender a luz verme-lha para o motorista parar, ele não aumentará a cidadania coletiva. O pedestre passa a exercer um poder sobre o motorista, que passa a ser um submisso, não um participante do processo de cidadania.

A Faixa de Pedestre é a combinação respeitosa entre o pedestre e o motorista; o sinal de trânsito é a submissão controlada de ambos, uns submetidos ao risco do atropelamento, outros ao risco de multa, se não atenderem à cor da luz. O Estado põe ordem, imposta a todos.

Mesmo se trouxer mais segurança, ao robotizarem-se as Faixas de Pedestres matam o espírito de cidadania, empobrecendo o senti-mento de respeito mútuo entre os cidadãos, e enriquecendo os fabri-cantes dos equipamentos.

As Faixas são o produto da educação e instrumento educacio-nal. Muito mais do que um assunto de trânsito, elas são implantadas por processo educacional da população. No Distrito Federal, houve mudança de mentalidade pela mobilização cultural, que conseguiu transformar uma ideia em um comportamento social. Durante meses, o Correio Braziliense e a Rede Globo dedicaram espaço a divulgar a ideia; o governo do DF colocou instrutores/animadores nos locais das Faixas, divulgando e treinando pedestres e motoristas; nas escolas fo-ram distribuídos panfletos por meio do interesse e da curiosidade das

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crianças que se transformaram em educadores dos pais.

Depois de implantadas, elas se transformaram na própria esco-la de cidadania. Ao caminhar nas ruas onde há Faixas de Pedestre e, ao dirigir por elas, o cidadão educa sua cidadania, como pedestre ou como motorista. A cada dia, o cidadão apura mais sua cidadania.

A substituição das Faixas por Semáforos será um gesto de prá-tica de trânsito, não de educação, nem de cidadania. Substituirá o compromisso soberano, espontâneo entre pessoas, por um constran-gimento mecanizado de algumas pessoas para beneficiar a outras.

A cidadania precisa de mais “Faixas” e não de mais “Semáforos”.

A luta pelo tempoJornal do Commercio – 03 de outubro de 2008

Nossa geração vai deixar um Brasil melhor do que recebemos, mas ainda longe dos sonhos e promessas que deveríamos ter atendido. De-mos passos, não saltos; fizemos evoluções, não revoluções. Recebemos um país sob ditadura, deixaremos o país democrático com uma Cons-tituição que assegura direitos e também privilégios. Uma Constituição corporativa, que defende interesses de grupos, não necessariamente da pátria e do povo. Herdamos um país cuja elite ignorava as massas, vamos deixá-lo com um programa que transfere renda minimamente. Deixaram-nos um país sem moeda, viciado na inflação; entregaremos um país com um razoável compromisso com a estabilidade monetária e moeda forte, mas em um processo de desindustrialização. Recebe-mos um país que desprezava a natureza; devolvemos um que desco-briu o meio ambiente, mas que pouco fez para reorientar seu modelo de desenvolvimento em direção à sustentabilidade.

Não demos os passos necessários para transformar a economia ma-nufatureira fazendo-a capaz de produzir os bens que caracterizam a indústria do conhecimento do século XXI. Não fomos capazes de tomar as medidas necessárias para criar e implantar uma economia que pro-

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teja o meio ambiente. Não fizemos a revolução capaz de incorporar efetiva e eficientemente nossa população pobre na participação e nos direitos da modernidade. Não derrubamos o muro que divide nosso país em dois, nem o muro que nos separa dos países desenvolvidos. E responderemos por um enorme retrocesso no nível de consciência e mobilização social.Estamos entregando aos jovens um país estancado no debate de ideias, desmobilizado na defesa dos interesses da nossa soberania, com o sentimento de uma potência emergente, mas sem sonhos para o futuro nem memória política do passado.

É certo que esse vazio de ideias é fruto, entre outros, da queda do Muro de Berlim e do surgimento do pensamento neoliberal único. Mas foi, sobretudo, o rumo seguido nesses últimos anos por políticos conser-vadores, perplexos diante da adoção de suas ideias pelas forças que deveriam trazer alternativas, e também o pensamento único assumido por forças progressistas que, uma vez no poder, renegaram suas ideias e adotaram as que antes criticavam. Tomamos a democracia, a elei-ção direta, a constituinte como panaceia para a construção do futuro. O corporativismo individualista que corroeu o sentimento de pátria e de longo prazo também é responsável pelo vazio ideológico, e limita sua luta às reivindicações imediatistas de alguns grupos. Essas são as causas do retrocesso criado pelas esquerdas que assumiram o poder desde Itamar, passando por FHC e pelo governo Lula, sem discurso al-ternativo para um mundo de crise ecológica, vulnerabilidade interna-cional e divisão social crescente. Com habilidade para aglutinar todas as forças políticas, capacidade de adaptação e simpatia carismática, além do pragmatismo, o governo Lula acabou suspendendo o debate.

Os sindicatos estão paralisados, os intelectuais calados, os estudantes catatônicos, os movimentos sociais estancados, os partidos misturados, os militantes empregados e a mídia prisioneira dos escândalos.

As campanhas eleitorais são exemplos. Os partidos misturados em composições diferentes de uma cidade para outra, sem a menor ceri-mônia entre antigos adversários, todos “igualmente iguais”, sem cor, sem dentes, sem projetos diferenciados. Não há sinal de ideias. As bandeiras nem ao menos indicam os partidos, apenas o número do candidato e raramente seu nome.

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O resultado desse retrocesso político-ideológico levará anos para ser corrigido. Os partidos parecem clubes eleitorais, reunindo candidatos sem sonhos coletivos, sem ideias de futuro: a luta é pelo tempo de televisão. Somente a conivência e a conveniência, para aumentar o tempo de televisão.

Quatro ações

O Globo – 28 de março de 2009

Em 2009, o Brasil completou 24 anos da redemocratização. Tempo su-ficientemente longo para que comecemos a nos esquecer de como foi a ditadura. Porém, tempo insuficiente para consolidarmos a democra-cia. Já não há mais medo da ditadura, mas ainda não existe confiança na democracia.

O poder ditatorial se mantém por meio de armas nas mãos dos ditado-res; o poder democrático, pela credibilidade dos parlamentares junto ao olhar público. E pela capacidade de se reciclar, atraindo os melho-res quadros para a vida pública.

A crise de confiança que atravessa a política está provocando dois fe-nômenos que ameaçam a democracia: a descrença da opinião pública com os políticos e a perda do entusiasmo dos jovens pela vida pública. As pesquisas mostram um Congresso com baixíssima credibilidade, e quem anda entre jovens percebe que não há renovação da vocação política. A juventude despreza os políticos e a política. Pior, a sensação é de que os jovens que desejam seguir a carreira política estão mais interessados nos benefícios e vantagens do que em servir ao País.

Por isso, os que fazem parte do parlamento de hoje devem pensar não só na honra pessoal ameaçada, mas na responsabilidade com a consolidação da democracia. Temos idade para nos lembrar dos males da ditadura, e obrigação de senti-la ameaçada. Por isso, precisamos reagir.

Primeiro, precisamos entender nossa culpa e responsabilidade. Mes-mo que a imprensa possa exagerar, a notícia é sempre despertada,

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nunca inventada. Ela é o alarme de que precisamos para corrigir erros que às vezes não vemos em nós ou ao nosso redor. Por isso, a primeira ação deve ser garantir transparência em todos os atos, gestos e gas-tos. Não se comete crime e pecado do lado de lá de um vidro limpo, sob o olhar do público. Crimes e pecados são cometidos entre paredes fechadas, por trás de cortinas grossas. O Senado precisa assumir a transparência, tornar tudo público, como deve ser em uma instituição de eleitos pelo povo.

A segunda ação é aumentar nossa produtividade. O que mais deve incomodar a opinião pública é o fato de não ver, ao lado das notícias de escândalos, o resultado concreto do nosso trabalho para melho-rar o dia-a-dia do povo brasileiro. Somos um poder irrelevante diante das Medidas Provisórias e das Decisões Judiciais, espremidos entre o Executivo e o Judiciário. Por nossa ausência, Executivo e Judiciário se assenhorearam do poder de toda a República. Já que nossa Casa não aparenta produção concreta, além de discursos, salvo uma ou outra lei de interesse público, o povo nos vê apenas como despesa. Devemos recuperar o poder que temos obrigação de ter, revertendo as leis que dão mais poder ao Executivo, definindo as leis que o Judiciário deve interpretar. Na democracia, a Casa do Povo é o Congresso, ou não há democracia.

Para isso, precisamos de uma terceira ação: temos de mudar radi-calmente nosso comportamento. É impossível ter poder parlamentar quando se fica apenas dois dias por semana no Congresso, não mais que poucas horas no Plenário, raríssimas vezes em sessões plenárias, e nunca em sessões nas quais dialoguemos, discutamos, parlamen-temos. O maior de todos os escândalos é o fato de que, no Brasil de hoje, nós, parlamentares, não parlamentamos.

A quarta ação é renovar o compromisso com a agenda do povo. Mes-mo nossos discursos são raramente centrados nos problemas reais da Nação brasileira, no futuro do Brasil. Gastamos muito tempo debaten-do generalidades, enquanto o Brasil enfrenta uma crise estrutural e diversas conjunturais, e precisa enfrentar as duas.

O Brasil espera de nós mais do que estancar escândalos. Quer que demonstremos nosso poder de mudar o País, fazendo um Congresso que orgulhe a todos os brasileiros, que faça as mudanças que o Brasil

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espera há séculos, e sobretudo que justifique e consolide a democra-cia, atraindo os jovens para a vida pública em vez de afastá-los, como hoje acontece.

O parteiro ausenteO Globo – 01 de agosto de 2009

Em 1930, nasceu um Brasil novo por cima do velho. O Brasil agrícola, rural, sem infraestrutura, exportador de bens primários deu lugar a um País industrial, urbano, com infraestrutura e um mercado interno. Nes-ses últimos 80 anos, aquele novo Brasil ficou velho. Seu crescimento depredou a natureza, exigiu ditadura e concentração da renda, criou uma sociedade desigual e violenta, com corrupção endêmica e uma moeda desvalorizada, sua indústria mecânica ficou desatualizada para a realidade da economia do conhecimento.

Um novo Brasil quer e precisa nascer sobre este que ficou velho. Um Brasil com economia baseada no conhecimento, em equilíbrio com a natureza, distribuidora de sua renda e outros benefícios; sem pobreza, sem violência, sem corrupção. Uma sociedade republicana. Foi com a esperança de ter um parteiro para esse novo Brasil que os eleitores vo-taram e elegeram Fernando Henrique e Lula. Havia no ar a necessida-de de um novo Brasil e precisávamos de líderes que o fizessem nascer.

Passados quatro mandatos desses governos, descobrimos que o partei-ro está ausente. Esses líderes fizeram as alianças espúrias com a velha política e seus representantes. Eles próprios, que traziam a esperança, demonstraram estar comprometidos com o Brasil antigo. Preferiram pequenos ajustes no velho.

Conseguiram o fim da inflação e criaram uma rede mínima de prote-ção social, mas nada mudaram na realidade da estrutura social. Man-tiveram o mesmo padrão de crescimento baseado no modelo industrial do século XX, que exige concentração dos benefícios. Conservaram privilégios, conviveram com a corrupção e a política do passado. No máximo, buscaram acelerar o crescimento do mesmo velho modelo, sem oferecer qualquer reorientação em direção ao Novo.

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Não houve inflexão em direção a um crescimento que respeitasse a natureza, baseado na produção de conhecimento, nem na geração de emprego, baseado na educação. Não houve uma estratégia para a substituição da rede de proteção social por uma escada de ascensão social, nem a definição de um modelo civilizatório definindo limites no uso dos recursos naturais e emissão de resíduos, casando sociedade e natureza.

Mais do que crescer, o Brasil precisa se renovar. Se insistir apenas em crescer, no lugar de se renovar, o Brasil vai estagnar, mesmo crescen-do. Continuará desigual, não republicano, com corrupção, violência, cidades degradadas, um País rico para poucos e não civilizado. A his-tória recente já mostrou que nenhum País se civiliza apenas pelo cres-cimento, sem uma renovação. E daqui para frente não cresce susten-tavelmente sem reorientar sua maneira de produzir. Mostrou também que a redução da desigualdade social e a construção de uma socieda-de republicana, pacífica e livre de corrupção, passam pela educação de qualidade para todos.

O mais grave é que teremos outras eleições presidenciais sem espe-rança de propostas de renovação. Porque o debate que se prevê entre os candidatos será sobre como acelerar o velho Brasil, e não como renová-lo. Os candidatos discutirão quem oferece maior taxa de cres-cimento da mesma antiquada, perversa e depredadora economia em direção ao abismo social, moral e ecológico, e não quem oferece um ângulo de inflexão para dobrar outra esquina da história em direção à modernidade que o século XXI aponta: economia do conhecimento, distributiva socialmente e equilibrada ecologicamente. Buscamos qual será o melhor mecânico para consertar e acelerar o velho Brasil, e não qual será o parteiro para concertar e reorientar um novo Brasil.

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Alerta: partido único no BrasilJornal do Commercio – 13 de maio de 2011

Quando lemos os jornais, temos sensação de caminhar para um regi-me de partido único, com tendências diferentes, como, aliás, todos os partidos únicos do mundo com seus conflitos internos.

De um lado, o Governo está conseguindo juntar quase todos os parti-dos como tendências de grande partido único de governo, além de co-optar as organizações do movimento social. Do outro lado, a oposição está se diluindo, pela perda de propostas alternativas. O governo Lula adotou propostas das oposições e estas não poderiam adotar posições progressistas. Ficam vazios pelos dois lados conservadores. Os parti-dos de oposição têm se limitado a ser apenas denunciadores. Nem críticos eles conseguem ser mais: são denunciadores de coisas erradas do Governo. E os demais partidos são apenas apoiadores.

É claro que isso facilita governar, mas não facilita o funcionamento da democracia. Ao juntar todo mundo, há a perda da perspectiva crítica do governante e o risco de se cometer erros por falta de alertas. O grande mérito da democracia está na capacidade da sociedade iden-tificar e corrigir erros de governos. Ao desfazer os outros partidos, os descontentamentos não têm para onde caminhar.

Na Tunísia havia um imenso partido, mas o presidente dava o direito de surgirem outros pequenos partidos, desmoralizados. Os descon-tentes não encontraram partidos alternativos que os representassem, foram para a praça e derrubaram o governo por meio de atos de rua, a única alternativa viável diante de partidos únicos.

O Brasil precisa ter democracia para abarcar e organizar os desconten-tes com partidos organizados, consolidados e com programas capazes de empolgar e fazer desnecessário que o povo, por falta de partido, tenha que ir para a rua quando precisar manifestar seu descontenta-mento.

O governo Fernando Henrique Cardoso teve a sorte de ter tido o PT, o PC do B, o PSB e o PDT na oposição. Foi uma oposição, transformada

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em opção de governo. Ao ponto de vista histórico foi uma sorte para o Brasil.

A imensa capacidade do ex-presidente Lula foi de juntar partidos dife-rentes, não em torno de programas nem de ideologias, mas de cargos e acordos específicos. Além disso, ele conseguiu juntar as forças não partidárias. As organizações não governamentais viraram associadas; os sindicatos ficaram amarrados; os estudantes, passivos; os intelectu-ais, calados.

Precisamos de intelectuais que falem, de estudantes que protestem, de sindicatos que reivindiquem, de ONGs que lutem por causas. Que possam radicalizar, dizendo que este País tem de ter hospital igual para todo mundo, que é indecente uma pessoa viver ou morrer em função do dinheiro que tem; tenham coragem de dizer que é imoral a desigualdade escolar.

Um processo democrático não resiste, se construído a partir de alian-ças tão amplas que o que sobra do outro lado são concessões para que continuem funcionando, sobretudo quando essas concessionárias partidárias não têm propostas, não têm programas, não têm ideias claras. Ao longo de alguns anos ou décadas a democracia brasileira corre risco.

Legalidade incompletaLegalidade incompleta

Há 50 anos o então presidente Jânio Quadros renunciou jogando o Brasil em uma das mais profundas crises institucionais de nossa histó-ria. O vice-presidente João Goulart estava em viagem oficial na China, era época de viagens internacionais difíceis e demoradas. Naquele tempo, o Presidente da República era eleito separadamente do Vice--Presidente: João Goulart era de outro partido e com propostas dife-rentes do partido e do programa de Jânio.

A instabilidade levou os chefes militares a optarem pela ruptura da Constituição que eles tinham jurado cumprir. João Goulart não aceitou

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o ultimato para exilar-se e decidiu regressar, enfrentando os riscos. Foi então que ocorreu uma das mais belas páginas da mobilização cívica no Brasil: a Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Bri-zola. Mobilizou o País usando uma precária rede de rádios, a Rede da Legalidade. O Grito da Legalidade venceu, João Goulart tomou pos-se, mesmo submetendo-se a adoção do Parlamentarismo que reduziu substancialmente o seu poder do Presidente.

Mas a Campanha da Legalidade ficou interrompida, porque não visa-va apenas dar posse ao eleito constitucionalmente, também compor o programa que ele defendeu na sua campanha a Vice-Presidente: fazer, dentro do marco constitucional, as reformas que o País ansiava há séculos: a reforma ética e técnica da máquina de Governo, para eliminar a corrupção e tornar o Estado eficiente; a reforma agrária necessária, economicamente, para permitir o uso da terra de forma produtiva, e, socialmente, para superar a miséria em que vivia a maior parte da população rural do País; a reforma bancária, que buscava colocar o sistema financeiro a serviço da economia produtiva e da população, tirando-o da especulação a que se dedicava; a reforma que levaria à erradicação do analfabetismo; a reforma da educação de base que permitisse colocar todas as crianças brasileiras em escolas com qualidade; e a reforma do ensino superior que era prisioneiro do bacharelismo isolado do setor produtivo, sem qualquer capacidade de inovar; uma reforma que permitisse criar um eficiente sistema de saú-de pública e eliminasse as filas, levando atendimento a todos com a mesma qualidade; a reforma que levaria o Brasil a se transformar em um país industrializado.

A Legalidade não foi completada. Ela não aboliu a corrupção, nem fez a reforma política que precisamos. O número de analfabetos é hoje maior do que há 50 anos. Pior do que a ilegalidade é termos constru-ído a imoralidade: uma pessoa morre ou vive de acordo com o acesso que consegue aos serviços de saúde; desenvolve ou não seu potencial intelectual de acordo com o acesso que consegue aos serviços educa-cionais. A agricultura substituiu latifúndios improdutivos pela eficiência do agronegócio, mas a economia continua baseada na exportação de commodities e o Brasil ainda tem trabalhadores rurais sem terra.

A nossa saúde e a nossa educação de qualidade continuam hoje, 50 anos depois, com acesso limitado aos poucos que podem pagar. A

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educação está restrita a apenas 40% que terminam o ensino médio e, destes, menos da metade recebe uma formação satisfatória para as exigências do mundo atual. O ensino superior, que aumentou subs-tancialmente o número de alunos, não foi capaz de elevar a qualidade aos padrões das exigências do mundo atual.

Em parte como consequência desse atraso educacional, nossa in-dústria, que avançou de maneira muito positiva nesses 50 anos, não consegue dar o salto que o século XXI exige, nem sair dos produtos tradicionais para os de bens e serviços de alta inovação científica e tecnológica.

A luta da Legalidade precisa continuar para construirmos o Brasil que queremos. Um país sem corrupção, nem miséria; com um Estado efi-ciente e uma política decente; com a mesma educação assegurada a qualquer criança do Brasil, independente da renda de sua família; com a garantia de que todos os brasileiros terão os serviços de saúde com a mesma qualidade; com uma economia capaz de inovar e adaptar-se ao novo tempo em que o capital é o conhecimento.

A Legalidade não foi completada, por isso não ficou desnecessária, e esta é a razão que leva jovens às ruas, 50 anos depois de ser sido ini-ciada no Rio Grande do Sul. A Campanha da Legalidade deve se fazer hoje usando as redes sociais, com manifestações contra a corrupção no comportamento dos políticos que desviam recursos públicos para bolsas e contas privadas; e contra a corrupção nas prioridades das po-líticas que desviam recursos para benefícios de minorias já privilegia-das e não para atender projetos prioritários para o povo e para o País.

Heróis esquecidos O Globo – 19 de novembro de 2011

Em 2011 o Brasil olhou para o Rio de Janeiro com orgulho pelo de-sempenho de seus policiais: alguns deles pelo heroísmo de recusar propina de traficante; outros pela competência e heroísmo de ocupar a Rocinha. Mas, surpreendentemente, o orgulho com o heroísmo de

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alguns brasileiros provoca um sentimento de vergonha em relação à estrutura social do País: afinal, onde erramos, ao ponto de ser neces-sário hastear a bandeira do País, em seu próprio território, como se fosse conquista de território estrangeiro, e onde estamos errando ao ponto de a honestidade virar gesto heroico.

Não se pode negar o heroísmo dos policiais, nem a consequente sa-tisfação e orgulho de cada brasileiro, mas é preciso refletir sobre as causas desse sentimento de orgulho vir acompanhado do constrangi-mento, porque se no Brasil a honestidade fosse adotada como valor fundamental, a recusa de propina não seria prova de heroísmo nem mereceria qualquer referência na mídia.

Se no passado o Brasil tivesse investido de maneira eficiente e solidária nas políticas públicas em todos os locais, não teria sido necessário ago-ra ocupar militarmente a Rocinha. A ocupação militar de hoje, como se tomássemos um território estrangeiro, decorre de que, ao longo de décadas, tratamos a Rocinha como um território abandonado como estrangeiro. Do ponto de vista dos investimentos públicos, os dados so-ciais da Rocinha são tão contrastantes com aqueles da parte rica do Rio de Janeiro que parecem corresponder a um país diferente. É isso que pode explicar o hasteamento da bandeira nacional na Rocinha depois da ocupação, como se a 7ª potência econômica invadisse o território de outro país em 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.

A estratégia do governo do Rio é ocupar militarmente para depois enfrentar a desigualdade na qualidade dos serviços públicos, transfor-mando uma favela em bairro do Rio. Se no passado a Rocinha tivesse sido tratada como um bairro do Rio, hoje não seria necessária a ocu-pação militar para iniciar a transformação da favela em bairro.

Isso não diminui, até engrandece, o Tenente Disraeli que recusou pol-puda propina de traficante, mas o orgulho em relação a este brasileiro envergonha o País como um todo, pois é prova de que somos uma fábrica de heroísmos isolados, de pessoas que fazem o certo nadando contra a corrente da tolerância e aceitação do errado. Ao banalizar o errado, fazer o certo vira heroísmo.

Recusar propina deveria ser um ato simples, óbvio; como deveria ser óbvio investir igualmente na qualidade de vida em todas as regiões.

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Mas nos acostumamos com a corrupção e a desigualdade, o heroísmo é exceção e a ocupação militar é a solução possível.

A convivência com a corrupção, tanto no comportamento dos políticos quanto nas prioridades, obscurece a percepção da fragilidade de nos-so orgulho diante de gestos pessoais de pessoas honestas. Perdemos o orgulho pela abolição do analfabetismo, pela garantia de escola de qualidade para todos. Enquanto aplaudimos policiais cariocas por ocuparem favelas, merecendo nossos aplausos, os chineses ocuparam o espaço sideral, acoplaram duas naves espaciais criadas por sua pró-pria tecnologia e produção. Há décadas, nós estávamos à frente da China e da Índia em matéria de pesquisas espaciais. Agora, nosso orgulho é com a ocupação do solo urbano, enquanto eles ocupam o espaço sideral. O Irã, as duas Coreias e países com tamanhos e poten-ciais econômicos muito menores que os nossos estão na nossa frente.

Da mesma forma que deixamos de perceber o absurdo de nosso atra-so ético que faz herói quem não se corrompe, já deixamos de compa-rar nosso atraso técnico em relação ao resto do mundo. Acostumamo--nos tanto em estarmos atrasados, que comemoramos com orgulho um gesto pessoal que deveria ser normal e uma pacificação urbana que já deveríamos ter atingido tempos atrás.

Tudo isso porque não consideramos heróis os dois milhões de profes-sores, sem salários, sem condições básicas nem ambiente favorável para o trabalho. O Brasil estará no bom caminho quando honesto não for herói, for apenas honesto; e quando favela não for favela, apenas bairro. Mas isso só acontecerá quando professor também não for herói, for apenas professor, bem remunerado, bem preparado e bem dedicado. Se isso já tivesse acontecido, talvez há muito tempo já tivéssemos passado do tempo em que ser honesto é um ato heroico, e nem seria necessário comemorar a ocupação militar de parte do nosso próprio território.

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Vinte anosCorreio Braziliense – 28 de março de 2009

Se hoje eu tivesse vinte anos, faria o mesmo que fiz quanto tinha essa idade, em 1964. Ingressaria em um partido ilegal, porque não acre-ditaria nos que estão aí; não me candidataria, pois não teria orgulho de qualquer cargo; defenderia o voto nulo, já que não acreditaria em qualquer candidato; lutaria para retomar a democracia, pois estaria desconfiado da atual; propor-me-ia a fazer uma revolução, porque não estaria contente nem com o Brasil do presente nem com o previsí-vel no futuro. Mas tenho muito mais do que vinte anos, e sou obrigado a dizer que esse não seria o caminho certo para hoje.

Depois de um esforço de duas décadas, não devemos desprezar a democracia que conquistamos, mesmo com todos os defeitos que ela ainda apresenta. O que está em jogo não é, como nos meus vinte anos, o direito de falar e votar, mas o que propor, o que fazer. Não é poder fazer política, mas o que fazer na política.

Se eu tivesse vinte anos hoje, escolheria lutar pela revolução que o mundo precisa fazer no século XXI: a revolução que ofereça a mesma chance entre gerações, com desenvolvimento sustentável, respeitando o meio ambiente (assunto que praticamente não existia nos meus vinte anos); e a mesma chance entre classes sociais, com uma escola igual para todos – algo que, presos ao socialismo, sequer considerávamos nos meus vinte anos. Eu seria militante da causa revolucionária de colocar os filhos dos trabalhadores mais pobres na mesma escola dos filhos dos mais ricos patrões. Ensinando-lhes o amor ao País, a ne-cessidade da igualdade de oportunidades para todos os brasileiros, o respeito à natureza, um ofício para construir um Brasil melhor.

Se tivesse vinte anos, seria um educacionista: para isso ingressaria no mundo da política legal, partidária. Apesar do meu descontentamento com os políticos e partidos atuais, lutaria por meu País dentro de al-gum partido.

Lutaria para mudar os políticos; se nenhum merecesse meu apoio, lutaria para derrotar todos na eleição seguinte. Mas não defenderia

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mais o voto nulo, como fiz nos meus vinte anos, durante a ditadu-ra que tutelava a política. Se fosse preciso, seria candidato também. Porque não é a democracia que está errada, não é a política que está errada, são os eleitos que não atendem às nossas expectativas.

Quando, depois de nove anos no exterior, escolhi Brasília para mo-rar, e aqui cheguei no dia 15 de março de 1979, não pensava em ser candidato a qualquer cargo. Tanto que escolhi esta cidade, onde não havia eleição para deputado federal ou distrital, nem senador, nem governador, prefeito, vereador. Vim para ser professor e fui envolvido pela política. Não nego as frustrações do dia-a-dia dessa atividade. Não nego o sentimento de tempo perdido pelos livros não lidos ou não escritos, e por limitar minha atividade docente na UnB a somente uma aula por semana. Mas tenho a satisfação de dizer que, na minha atividade política, transformei ideias de livros em leis no Diário Oficial. Por programas e leis, que implantei ou aprovei, como governador ou senador, pude mostrar que é preciso e é possível mudar o Brasil, fazer pequenos avanços. Sobretudo, posso dizer que não fiquei omisso.

Se hoje eu tivesse vinte anos, não ficaria omisso. Quanto maior fosse meu descontentamento, maior seria meu envolvimento. Faria política, seria um revolucionário, lutaria para fazer a revolução, porque essa é a única forma de mudar um País. E faria isso dentro da democracia, por meio da educação, escolheria candidatos e lutaria por eles, ou seria eu próprio um jovem candidato.

Tem voltaCorreio Braziliense – 28 de março de 2009

Depois de tantos desencantos ao longo de nossa história, ficamos com a sensação de que o Brasil não tem jeito. De tanto ver a degradação do processo político, pela falta de ética; de tanto conviver com um País em plena guerra civil, assistindo à morte diária de centenas de pesso-as por violência; de tanto nos acostumarmos a uma educação quase inexistente para os pobres e medíocre para os ricos; de tanto saber que fomos campeões históricos de escravidão e agora somos de desigual-dade; nós, brasileiros, começamos a imaginar que já não há solução.

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Diante de nós estariam, permanentemente: desigualdade, violência, corrupção, analfabetismo, deseducação, como se o futuro já estivesse escrito no nosso passado. Mas esse fatalismo, embora explicável, não é justificável.

É certo que todas as tentativas têm falhado na busca de civilizar o País. A Abolição não incorporou plenamente os negros; a Independência não nos deu a necessária autonomia; a República não quebrou a di-visão do Brasil entre a minoria incluída e a maioria excluída; o De-senvolvimento Econômico não distribuiu renda; a Redemocratização não foi capaz de fazer do Brasil um País pacífico, ético, educado, com oportunidades iguais.

Os últimos presidentes, vindos da esquerda, conseguiram a estabilida-de monetária, um aumento no número de universitários, certa genero-sidade para com a população pobre, mas não mudaram as estruturas do País, não fizeram a revolução de que o Brasil precisa.

Apesar da sensação de que estamos em um caminho sem volta, é possível mudar, e a hora é esta. A crise da economia-capitalista, o fim do socialismo-econômico, o salto tecnológico ocorrido na humanidade permitem fazer agora uma inflexão na nossa história, em direção a uma sociedade na qual todos tenham a mesma chance, graças a uma economia baseada no conhecimento. Essa igualdade de oportunidades não apenas colocará o Brasil como uma Nação na frente do progresso do século XXI, como também eliminará o quadro de pobreza, reduzirá substancialmente a desigualdade, eliminará a violência generalizada, trará eficiência à economia e honestidade à política.

O caminho para isso é uma revolução que assegure educação com a máxima qualidade, igual para todos, independentemente da renda da família e da localização de sua residência.

O Brasil tem volta. Essa mudança de rumo exige federalizar a educação de base: selecionar os professores em concursos nacionais, pagar-lhes salários de nível federal, exigir deles dedicação exclusiva, em escolas bonitas, confortáveis e equipadas com os mais modernos instrumentos da pedagogia, e todas em horário integral. Esse não é um projeto de implantação imediata, mas cada ano adiado para o seu início corres-ponde a um pedaço perdido do futuro.

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Lições de uma polêmicaJornal do Commercio – 17 de abril de 2009

Em entrevista ao blog do Magno Martins desde Recife, respondi que, em breve, poderia surgir uma proposta de plebiscito para decidir se o Brasil deseja ou não um Parlamento aberto. A dimensão tomada pela divulgação desta frase, no blog, permite algumas lições.

A primeira é de como, quando chega a um blog, uma frase, dita por telefone, se espalha por todo o Brasil. Há alguns anos, uma frase de-moraria tanto a se espalhar que chegaria morta. Essa lição nos mostra que os políticos não estão preparados para os novos tempos das co-municações universais e instantâneas.

Apesar da instantaneidade universal das informações e das imediatas manifestações de vontade da população, nossos projetos de lei de-moram anos, ou décadas, para chegarem ao fim do processo – até a aprovação ou a rejeição. O Legislativo ficou um poder atrasado, em relação ao Executivo.

A segunda lição é que nenhum dos críticos à minha frase levantou a hipótese de que o plebiscito chegasse ao resultado favorável de man-ter o Congresso. Todos tomaram a ideia do plebiscito, como se a resposta do povo fosse um claro e rotundo apoio ao fechamento, não à manutenção. Os formadores de opinião demonstraram convicção de que o povo deseja fechar o Congresso. Caso contrário, teriam se prendido à ideia de um momento da afirmação do Congresso, que receberia o apoio popular por meio de plebiscito.

Outra lição é como as frases se transformam e passam a carregar algo que não estava na sua origem. Eu quero abrir o Congresso, não fechá--lo. As pessoas já esqueceram que, durante os 21 anos do regime mi-litar, o Congresso só esteve fechado por poucas semanas. Ficou aberto todo o tempo, mas era irrelevante, desrespeitado pela opinião pública. Isso durou até 1978, quando novos parlamentares começaram a falar contra o regime e a articular o fim da ditadura. Imediatamente, rece-beram respeito, reconhecimento e apoio do povo. Vale lembrar que a

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emenda das Diretas foi recusada pela maioria dos congressistas. Na-quela época, por plebiscito, o povo teria aprovado as eleições diretas, mas o Congresso derrubou-a.

Não adianta imaginar que a crise na relação do Congresso com o povo será resolvida sem levar em conta o que o povo deseja. Até re-centemente, o povo ficava silencioso entre as eleições. Mas agora, a imprensa, com seus meios modernos, põe o povo em manifestação na “rua virtual”. Não vai demorar até que essa “rua” se manifeste. Talvez isso aconteça de forma eleitoral, substituindo os atuais parlamentares em final de mandato. Talvez de formas não eleitorais, ainda desconhe-cidas, porque não sabemos como vai se comportar, no futuro, a “rua virtual”.

Não há forma de manter aberto um Congresso que não seja respei-tado nem esteja em sintonia com a opinião pública. Há golpes baru-lhentos e silenciosos; golpes que fecham o Congresso e outros que o mantém aberto – mas irrelevante, sem sintonia com o povo. Esse golpe silencioso está em marcha, por culpa de nós próprios, par-lamentares – todos nós, não coloquemos a culpa em apenas alguns. E uma das culpas é o silêncio. Mas é melhor passar a aparência de golpista, apontando o risco de o golpe acontecer, do que manter a imagem de democrata em silêncio omisso, ante o golpe que poderá acontecer. Uma última lição é de que o político hábil é aquele que não corre risco dizendo frases polêmicas. A polêmica pode levar a desgastes de dimensões fatais, do ponto de vista eleitoral. Essa lição eu não vou seguir. Não vale a pena ver os problemas sem fazer deles o alarde que deve ser feito.

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Crescimento ou grandezaJornal do Commercio – 07 de setembro de 2007 - Fazendo caminha-

das pela Campanha “Educação Já”, ouvi o Deputado Estadual Ferreira Aragão dizer: “não queremos apenas crescer, queremos ser grande”.

Essa frase provocou-me a escrever este artigo.

O Brasil se acostumou a querer crescer, e se esqueceu de querer ser um grande País.

Crescer é aumentar a renda nacional; ficar grande é distribuí-la. Cres-cer é aumentar o número de cadeias; ficar grande é não precisar de-las. Crescer é ver a população aumentar, ter mais crianças nascendo a cada ano; ficar grande é tê-las na escola, fora das ruas, e ter todas as escolas – para rico ou pobre, em cidades grandes ou pequenas – com a mesma qualidade. Crescer é ter mais automóveis nas ruas; ficar grande é ter um trânsito que flui com conforto e sem engarrafamento. Crescer é derrubar árvores para utilizar a madeira; ficar grande é pro-duzir protegendo a natureza.

Paradoxalmente, o Brasil cresce ficando pequeno.

Nossas cidades cresceram, mas não ficaram grandes, pois também cresceu a violência, a poluição, a desorganização familiar. Nossos par-tidos também estão crescendo, mas não estão ficando grandes, pois lhes falta uma causa que mobilize seus militantes, uma bandeira de luta para levar adiante. E essa bandeira de luta deve ser fazer do Brasil um grande País, e não um País que cresce. Crescer é aumentar o nú-mero de famílias que recebem Bolsa-Família; ficar grande é reduzir o número de famílias que precisem da Bolsa-Família.

O mais grave é que não percebemos a diferença entre crescer e ficar grande. Queremos crescimento, e não buscamos grandeza.

Não há grandeza em negarmos boa escola para cerca de 82% das nossas crianças. Não há grandeza em comemorarmos a matrícula de 97% de crianças na escola, sem nos preocuparmos com aquelas que, já no início da vida, ficaram de fora. Nada demonstra mais pobreza do

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que permitir que só concluam o Ensino Médio cerca de um terço dos nossos jovens, no máximo a metade deles com um ensino de qualidade razoável. Podemos até ter tido algum crescimento, mas sem grandeza.

Crescimento é um Congresso que legisla sobre o dia a dia, ser gran-de é ter um Parlamento que se dedique à construção da grandeza do Brasil. Crescer é combater a corrupção da política, ficar grande é com-bater também a corrupção nas prioridades. É, especialmente, avançar a prioridade do crescimento para a prioridade à grandeza. Crescer é fazer pacotes, ficar grande é federalizar as reformas estruturais de que o Brasil precisa.

Crescimento não é sinônimo de grandeza. Está na hora dos líderes deste País irem além dessa medíocre visão de crescimento, e acredita-rem que crescer não é sinônimo de ser grande.

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VI - PRÉ-SAL

Apenas três letrasJornal do Commercio – 12 de junho de 2009

Apenas três letras separam as palavras “pré-sal” de “pré-escola”, mas entre as duas opções está uma separação imensa para o futuro do Brasil.

Diversos recursos econômicos do Brasil foram apresentados, cada um à sua época, como o caminho para o progresso nacional e a eman-cipação pessoal dos brasileiros: o açúcar, o ouro, o café, a borracha, a indústria. Em todos esses momentos, o futuro do País foi prometido como o resultado de uma atividade econômica central. Agora surgiu o Pré-Sal.

Outra vez, prisioneiro da economia baseada em recursos naturais, o Brasil não percebe que a saída está em se transformar em produtor de conhecimento: ciência, tecnologia, cultura. O único recurso capaz de superar dificuldades, substituir obsolescências e dinamizar a economia é o conhecimento: condição básica para explorar o pré-sal, e para in-ventar substitutos quando petróleo ficar raro.

E para ter ciência e tecnologia, é preciso investir na pré-escola de to-das as crianças. Por isso, no longo prazo, a pré-escola é mais impor-tante do que o pré-sal.

Um clássico da literatura de esquerda diz que o subdesenvolvimento da América Latina foi provocado pelas “veias abertas” que provocaram a sangria dos recursos naturais de nosso continente. Na verdade, o atraso decorre do abandono da educação de nossas populações e a resultante impossibilidade de construir uma forte infraestrutura cientí-fica e tecnológica. Mais do que as “veias abertas”, foi o “fechamento dos cérebros” que atrasou o continente. Se a América Latina tivesse perdido seu patrimônio natural, mas investido na educação de seu povo, hoje, na época da economia do conhecimento, estaríamos na linha de frente do desenvolvimento econômico.Diversos projetos têm surgido visando à vinculação dos royalties do

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petróleo com investimentos na educação. O presidente da República também se apropriou da ideia de que parte dos recursos do pré-sal seja canalizada para financiar a educação. No entanto, o risco é que, outra vez, os investimentos na educação sejam adiados para um futuro distante. E quando o pré-sal começar a dar resultado, o Brasil já terá perdido mais uma geração. Pior se essa reserva de petróleo se tornar outra ilusão, adiando a revolução de que tanto precisam. Além disso, de pouco servirá investir em educação daqui a alguns anos se, até lá, não tivermos cuidado bem das crianças que hoje estão em idade pré--escolar. Para investir nas suas crianças, o Brasil não pode nem precisa esperar o pré-sal. Não pode, porque o futuro estará na economia do conhecimento, não na exportação petrolífera; não precisa, porque já dispõe dos recursos necessários. Vincular a revolução educacional à hipotética e futura exploração da reserva do pré-sal é perder mais uma chance, como perdemos do açúcar, do ouro, do café, da indústria.

“Adotar” todas as crianças em idade pré-escolar – com tudo o que for preciso para iniciar o desenvolvimento intelectual das futuras gerações – custará, no máximo, R$15,5 bilhões por ano, o equivalente a 1% do que será gasto com o PAC, o pré-sal, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, caso o Rio de Janeiro seja a cidade escolhida. Mas para fazer o PAC, a Copa e as Olimpíadas, ninguém propõe espe-rar o pré-sal. Quando se fala na pré-escola, logo vem a pergunta: de que lugar sairá o dinheiro necessário.

A pré-escola é mais importante, construtiva, viável, ética, barata e sus-tentável do que o pré-sal. Entre pré-escola e pré-sal, três letras a mais fazem uma diferença radical no futuro do País.

O petróleo permanenteO Globo – 27 de março de 2010

Duzentos anos atrás, o Brasil descobriu ouro em Minas Gerais e uti-lizou-o para financiar atividades na Metrópole. No lugar de financiar sua industrialização comprou bens de consumo na Inglaterra. Portugal teve em suas mãos 1.000 toneladas de ouro, tirados de sua colônia brasileira. Esse ouro serviu para os portugueses da época, especial-

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mente os ricos aristocratas, consumirem bens industriais da Inglaterra. Foi este país que aproveitou o ouro brasileiro e se fez uma potência.

Os dirigentes portugueses levaram o ouro do Brasil, e usaram para consumir no presente, sem investir no futuro, na educação, na ciência e na tecnologia; roubaram esse ouro que deveria ter sido usado a ser-viço das gerações futuras. Se os dirigentes portugueses tivessem usado corretamente aquela riqueza – uma espécie de Pré-Sal do ouro -, a Revolução Industrial poderia ter sido feita em Portugal. Mas eles não sabiam que o ouro se esgotaria, nem imaginavam que a Inglaterra estava se industrializando.

Ninguém pode acusar os brasileiros daquele tempo por terem desper-diçado ouro: não sabiam que acabando não haveria alternativa, por-que eram Colônia. Nem os portugueses, porque naquele tempo não havia a percepção de desenvolvimento. Hoje, ao descobrir o petróleo, já sabemos que ele se extinguirá e conhecemos alternativas para usar bem os recursos que ele pode gerar.

Hoje, sabemos que está em marcha uma nova revolução industrial, do conhecimento, sabemos que o petróleo se esgota, roubado das gerações futuras. Seremos trucidados pela história se queimarmos o petróleo para que vire energia e os royalties para financiar os gastos correntes da nossa geração consumista, como fizeram os portugueses nos séculos passados. O resultado é que o ouro acabou como acabará o petróleo. O Brasil ficou com quase nada, Portugal com edificações e a Inglaterra industrializada.

Nos últimos cinquenta anos, o Brasil vem investindo em São José dos Campos (SP) para financiar o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA) e o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA). Uma rápida visita a São José dos Campos nos mostra os resultados desse investimento.

O IDH de São José dos Campos é de 0,849 – o 37º melhor entre as 5.564 cidades brasileiras. Além das dezenas de indústrias de alta tec-nologia, o resultado mais visível é a EMBRAER. No pátio de entrega, aviões com logotipos de grandes empresas de aviação do mundo nos passam a sensação de que o Brasil é um grande País.

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Isso nos faz comparar São José dos Campos com as cidades beneficia-das por royalties do petróleo. Mesmo após décadas recebendo royal-ties, a quase totalidade dessas cidades têm IDHs entre 745º e 4178º lugares no ranking nacional. Isso porque parte desses recursos é usada em gastos correntes, não em investimentos de longo prazo como a educação; e também por causa da imigração de mão-de-obra, vinda em busca da renda do petróleo.

O estado do Rio de Janeiro tem todo o direito de exigir a manutenção dos royalties que recebe. Caso contrário, haverá uma crise financeira no estado. Mas, enquanto defende suas finanças conjunturais, o Rio deve debater a relação permanente entre o petróleo e as finanças pú-blicas no Brasil: não só quanto cada estado ou município vai receber, mas também como investir a renda do petróleo para construir um País melhor.

E, nesse caso, o exemplo de São José dos Campos é marcante. A me-lhor solução é promover a verdadeira fonte permanente de energia: a inteligência humana. A mesma que hoje transforma a lama enterrada no subsolo do mar em riqueza energética, e que um dia vai extrair energia de fontes permanentes e ecologicamente limpas.

O Brasil estaria assim transformando uma fonte de energia esgotável em fonte de energia permanente, e também distribuindo os recursos do presente para o futuro. O Rio seria triplamente beneficiado: é o Estado com maior número de crianças na escola, depois de São Paulo; reduziria a imigração, que pesa em seu orçamento; e construiria um fluxo perene de recursos, que o petróleo não oferece.

Antes de aprovarmos a lei que vai definir o uso dos recursos do petró-leo, comparemos a aplicação dos royalties com os investimentos feitos pela União em São José dos Campos, no CTA e no ITA. Sem tirar os direitos adquiridos pelo Rio e demais unidades da federação com suas antigas reservas, combinemos o Pré-Sal com o Pós-Petróleo.

Mais ou menos quando o ITA e o CTA começavam, o Brasil estava na campanha “O Petróleo é Nosso”. De lá para cá, queimamos bilhões de barris que nunca voltarão, roubando das gerações futuras. Hoje deve-ríamos dizer “o Petróleo é das Crianças”, porque ele deveria ser usado para construir o Brasil do futuro, evitando a conhecida maldição que

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o petróleo tem trazido a tantos países, que consomem suas reservas e gastam seus recursos financiando despesas correntes voltadas para o presente.

Nosso desafio é fazer o petróleo ser permanente, inesgotável, e a úni-ca forma é transformá-lo em conhecimento, investindo na educação de nossas crianças, a renda que ele gera.

A outra corrupçãoJornal de Brasília – 20 de outubro de 2011

Ainda não despertamos para a dimensão da revolução sem líderes que hoje acontece no mundo. Em cada cidade, a população, sobretudo de jovens, está nas ruas e praças, “indignados”, protestando. Ainda não têm propostas sobre o que desejam, mas sabem o que não querem: partidos, corrupção e políticos.

O Brasil entrou nesse clima. Especialmente quando milhares se mobili-zaram contra a corrupção. Não houve convocação por partidos, líderes políticos ou sindicatos. Ao contrário, os partidos que antigamente fa-laram em ética parecem assustados e contrários às manifestações. O povo vai às ruas automaticamente, sem a necessidade das lideranças tradicionais que perderam legitimidade e credibilidade, mas continu-am controlando a máquina do Governo e do Estado.

E o povo, sem liderança, demonstra indignação, mas não mostra no-vas propostas e até ignora formas mais graves, embora menos visíveis, da corrupção: como a corrupção nas prioridades.

No mesmo momento em que as pessoas foram às ruas contra a cor-rupção, está em debate o uso dos royalties do petróleo do Pré-Sal. As pessoas nas ruas não percebem a corrupção que está sendo armada no uso daqueles recursos: a corrupção legal, mesmo sem apropriação pessoal, mas por meio do mau uso dos recursos. Mesmo que nenhum político roube, se o dinheiro do Pré-Sal for mal usado estaremos rou-bando às próximas gerações.

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VII - COMISSÃO DA VERDADE

Verdade SilenciosaO Globo – 05 de janeiro de 2008 - Finalmente, em 2012, quatro anos depois deste artigo, o governo e o Congresso fizeram uma lei contra o

sigilo e criaram a comissão da verdade.

Não há verdade silenciosa. Coberta pelo silêncio, a verdade é uma mentira. O Brasil é um País de verdades silenciosas: um País de costas para sua história.

Até hoje, não sabemos tudo o que aconteceu durante a guerra contra o Paraguai, 150 anos atrás. Há documentos oficiais escondidos sob o manto do sigilo. Como brasileiro do século XXI, não tenho culpa por crimes cometidos por brasileiros do século XIX, mas o silêncio das ge-rações atuais nos faz cúmplices de crimes do passado. Enquanto tudo da guerra da Paraguai não for exposto à luz, nós brasileiros estamos contaminados. Porque a história escondida contamina através do tem-po.

Da mesma forma, nossos militares de hoje não têm qualquer respon-sabilidade com crimes de há 30, 40 anos, mas, se não aceitam a apu-ração e divulgação dos fatos históricos, as Forças Armadas continuam contaminadas com a culpa da geração anterior. A esquerda do século XXI também continua contaminada por ações cometidas pela guerri-lha, ainda não expostas à luz da verdade.

A opção pela verdade silenciosa contamina todo o tecido social. O silêncio sobre a verdade termina sendo uma das causas da falta de princípios na política e um vetor para a corrupção. Inclusive a corrup-ção do silêncio. A política fica com aversão à história. Olha-se mais o poder pelo poder hoje, do que o nome em uma placa de rua no futuro. Justificando o Congresso a julgar secretamente senadores e deputados acusados de falta de ética.

Os intelectuais optam pelo silencio reverencial diante dos erros dos políticos correligionários. Como desprezam o que a história dirá ou

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não dirá, ficam quietos e calados diante dos erros dos governantes que eles apoiam. Os próprios guardiões da história sequestram a história. Alguns não criticam o decreto assinado por Fernando Henrique pror-rogando os prazos de sigilo dos fatos históricos, outros não criticam que o governo Lula nada fez para mudar esta parte do “conluio do silêncio”, como chamou a jornalista Miriam Leitão.

O “conluio do silêncio” é antigo. Nos fez conviver quase 400 anos com a escravidão, e tentou apagar o crime que ela representou ao quei-mar os documentos da época para impedir que os donos de escravos pedissem indenizações. Hoje, nos faz tolerar sem constrangimento a concentração de renda, a miséria, a deseducação, todos calados ou apenas cochichando, mas tolerando, sem julgar os culpados históri-cos. Neste conluio, aceitou-se não punir torturadores e indenizar tor-turados. Aqueles que se recusaram a fazer esta troca, provavelmente ficarão sem dinheiro, sem justiça contra seus opressores, nem nome de rua, em um País onde a história é escondida no sigilo ou no esque-cimento.

A verdade é a base da história, e a história é a base da política séria. Por isso, tudo deve vir a público, não necessariamente para julgar os que foram anistiados pela lei da Anistia, mas para salvar a honra das Forças Armadas e do Brasil, dos partidos que fizeram a luta armada: é para trazer o ar puro da verdade dentro da vida nacional, para ilustrar e conscientizar os jovens e as futuras gerações. É para comprometer a política com a história. Os crimes da Operação Condor e todos os demais cometidos durante os anos de chumbo devem ser conhecidos.

Sem história aberta – aquela feita por políticos com compromissos com a história, estudada por historiadores com acesso a toda verdade -- não surge o sentimento de Nação, por falta de perspectiva histórica. O país-não-nação se limita apenas a uma rede de pessoas e suas corpo-rações prisioneiras do presente.

Libertemos a verdade histórica, sem a qual a verdade democrática é uma farsa.

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VIII - EXCLUSÃO

Olhemos o espelhoJornal do Commercio – 21 de março de 2008

Com razão, ficamos indignados e reclamamos do fato dos jovens bra-sileiros serem barrados na fronteira da Espanha quando iam fazer um curso, mas aqui não deixamos entrar nas boas escolas os filhos da-queles que não podem pagar as mensalidades. Os muros das nossas boas escolas são mais protegidos do que as fronteiras dos aeroportos da Espanha, e isto não cansa indignação nem protesto.. Ainda pior, porque se o imigrante consegue entrar, pode ficar anos circulando clandestinamente; mas nas escolas e faculdades, se o aluno não paga a mensalidade do mês, as catracas automaticamente o barram na pró-xima vinda à aula. A entrada em qualquer hospital de qualidade é protegida por barreiras mais difíceis de atravessar do que as fronteiras europeias. Para entrar, não basta estar doente, é preciso ter dinheiro, conta bancária, documentos de seguro em dia. As exigências da porta-ria do hospital brasileiro são muito mais rígidas do que dos aeroportos na Espanha.

Se um brasileiro pobre conseguir pagar o ônibus para ir a um shopping, corre o risco de ser abordado pelo segurança e convidado a se retirar, porque não parece pertencer àquele mundo de consumo, por causa da roupa, do chinelo, dos dentes. Ou simplesmente porque, para os guardas ele representa uma ameaça aos privilegiados frequentadores, tanto quanto, para os guardas de fronteira espanhóis nós somos ame-aça aos privilegiados habitantes da Comunidade Econômica Europeia.

Ver nossos compatriotas impedidos de entrar na Espanha deve nos indignar, mas não nos esqueçamos dos treze milhões de brasileiros adultos impedidos de entrar na modernidade porque não receberam as condições para serem alfabetizados. Criticamos o excesso de zelo nas fronteiras espanholas impedindo a entrada de brasileiros naquele País, para estudar pós-graduação, e nos esquecemos de que impedi-mos os pobres brasileiros de estudar alfabetização.

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Precisamos manifestar nossa indignação com o comportamento dos países ricos que a cada dia dificultam mais o ingresso de turistas, estu-dantes, trabalhadores em busca de alternativas melhores no exterior. Mas precisamos olhar no espelho de nossa própria sociedade, e nos perguntarmos por que só merece crítica o comportamento dos policiais da fronteira contra alguns brasileiros que vão ao exterior, ignorando o comportamento do emaranhado de fronteiras dentro do Brasil contra os brasileiros que desejam alguma alternativa aqui dentro.

O Brasil é um País dividido por fronteiras tão rígidas quanto as do ae-roporto de Barajas ou qualquer outro de um país rico. Nós barramos os brasileiros.

E há uma fronteira pior: a dos olhos fechados, da falta de percepção para ver estas fronteiras contra os brasileiros pobres. Capaz de negar esta comparação, dizendo que o impedimento de turista entrar em um país estrangeiro é moralmente mais grave do que de doente entrar em um hospital em seu próprio país.

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IX - JUVENTUDE

Novos TemposO Globo – 16 de agosto de 2008

A União Nacional dos Estudantes vai fazer uma caravana nacional para debater educação, saúde e divulgar práticas de sexo seguro. Isso pode significar que o movimento universitário esteja saindo da pa-ralisia e do corporativismo para encontrar uma nova causa. Mas ao mesmo tempo, mostra que os universitários continuam desligados da necessidade do Brasil fazer uma revolução na sua sociedade.

Nada indica que a caravana da UNE terá a missão de levar consciên-cia política, sonhos alternativos, defesa de utopias, contestações da estrutura política e social. Por isso, os mais velhos ficam criticando os jovens de hoje, lembrando que no passado lutavam pela revolução social. Mais importante do que esse saudosismo arrogante é enten-der por que a juventude universitária ficou conservadora, enquanto a realidade social de hoje é tão perversa quanto antigamente: a cor-rupção domina a política, a violência controla as ruas, a desigualdade se transformou em apartação, a educação básica é uma calamidade vergonhosa, o Planeta se aquece. Nunca foi tão necessária uma juven-tude revolucionária.

Alguns põem a culpa nos 21 anos da ditadura, esquecendo-se de que já temos mais tempo de democracia de que durou a ditadura. A culpa é mais da democracia do que da ditadura, porque, naquele tempo, havia uma forte militância juvenil pela liberdade. A democracia calou os intelectuais e alienou a juventude. O abandono da mística revolu-cionária pela juventude universitária tem outras razões.

Antes, a revolução defendida pela juventude universitária era a favor da Nação, do povo, mas também dos jovens. O País estava estancado, as classes médias eram empobrecidas, a distribuição de renda traria vantagens para pobres, classes médias e até ricos, porque dinamizan-do a demanda, os negócios floresceriam. Com o apartheid social que caracteriza o Brasil de hoje, os jovens universitários percebem que não há espaço para todos. E preferem tornarem-se conservadores, porque

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sabem que a revolução sacrificará seus interesses de consumo. Para eles, a revolução está no PROUNI e no sexo seguro, bandeiras da ca-ravana da UNE. Parte dos universitários nem sequer defende o PROU-NI, porque ele beneficia a classe média baixa.

Por isso, a juventude universitária não defende a necessária revolução na educação de base. Intui que, se todos os pobres do Brasil tiverem educação de máxima qualidade, a juventude de classe média e seus filhos sofrerão forte concorrência. A exclusão educacional e a má edu-cação dos que sobrevivem até o fim do ensino básico é uma forma de proteger os que têm acesso a boas escolas. É uma cota disfarçada contra os excluídos em benefício dos que conseguiram chegar ao final do Ensino Médio.

O governo Lula é outra razão da alienação. Os jovens se sentem obri-gados a apoiar o governo atual, porque tem origem de esquerda, e porque acreditam que ele age no limite do possível.

Ao limitar-se ao que é possível, a juventude envelhece.

Mas a culpa não é dos jovens. É dos que se negaram a construir novos sonhos que pudessem mobilizar os jovens. Cooptados pela idade ou pelos privilégios do sistema de apartação, desiludidos com a queda do muro de Berlim, perplexos com o aquecimento global, os mais velhos abandonaram os jovens. Deixamos de oferecer alternativas, utopias, bandeiras de luta. Os jovens ainda tentam se mobilizar, mas não en-contram bandeiras, mapas, propostas radicais que os encantem.

A esperança está nos jovens. Eles encontrarão o próprio caminho quan-do perceberem que o fim da exclusão social e a educação universal de qualidade são fundamentais para construir a nova sociedade de que o Brasil precisa e na qual eles vão viver. É possível que, nessa viagem em defesa do sexo seguro, os ônibus da UNE provoquem inveja aos velhos. Mas não despertarão a juventude para a maior necessidade dos novos tempos: uma revolução pela educação de qualidade para todos, com os filhos dos trabalhadores na mesma escola que os filhos do patrão.

É como se novos tempos tivessem ficado velhos antes de acontecer.

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Ideais da JuventudeO Globo – 16 de janeiro de 2010

Em recente reunião, ouvi um jovem dizer que não tinha um único ami-go com ideais. Eram quase onze horas da noite. Eu disse aos que ali estavam, inclusive os pais dele, que iria colocar a frase no Twitter e esperar as respostas. Escrevi. @Sen_Cristovam: “Ouvi, há pouco, de um jovem: ‘não tenho amigo com ideais’. O que vocês, jovens, acham deste desabafo?”

Em menos de um minuto começaram a chegar comentários. Às onze horas já eram 66 respostas e, doze horas depois cerca de 200 mani-festações. O conjunto dessas respostas coloquei de volta no microblog (http://twitter.com/Sen_Cristovam) sob a forma de um link. Considerei, entretanto, que se justificava aproveitar este espaço da mídia impressa para mostrar algumas destas opiniões.A imensa maioria confirmou a opinião do jovem.

@Edthe: É um sinal de como está nossa era. Juventude sem ideais é protótipo de uma pessoa fracassada no futuro;

@marlonjlima: Concordo plenamente. Os últimos 8 anos apagaram toda a ideologia ou busca de ideais. O lema é: pagando bem que mal tem?;

@andredutra12: Os poucos jovens com ideais nem sempre são ou-vidos e talvez acabam deixando aquilo morrer consigo. Temos que inspirá-los!;

@DorgivalJR: Sou Qualificador Profissional do Pro-Jovem e eles falam sempre que estão “deixando a vida me levar”, mas para onde?;

@giordanobr: Triste, porém atual. Mostra como a minha geração está desnorteada, sem rumo e sem objetivos. O sonho está acabando;

Outros chamam atenção de que o problema pode não ser apenas desta geração.

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@Cesaurio: Pouca gente tem ideais hoje em dia... Mas... Será que muita gente os tinha nos anos de 1960?;

@allenfranco: Não são apenas pessoas jovens que têm estes proble-mas, muitos de seus colegas no Senado também têm este “problema” em comum.

Alguns insistem que têm ideais e amigos idealistas, embora faltem condições para que aqueles apareçam.

@roneyb: Há um paradoxo em um jovem dizer que jovens não têm ideias. Parece-me mais a velha baixa autoestima atacando;

@lovingunme: Creio que ele não tenha os amigos ideais. A juventude não está perdida, há quem permaneça na luta, na militância;

@pjrecords: Esse cara é que não tem ideais, todo mundo tem objeti-vos, só que não são compreendidos. Talvez por ignorância nossa;

@luhan_amaral: Acho triste juventude sem ideais. O ideal vem do (auto)conhecimento, que vem da educação, que vem da cultura. Per-deu-se algo;

@jujubamenegaz: Esta frase não me espanta. Nossa geração é muito fraca. Quer um corpo sarado, ganhar um milhão e passar o carnaval em Salvador. E quando o ano começar, depois das festas, quem sabe poderemos mudar o mundo em um segundo;

@liviafragoso: É. Eu sinto uma imensa falta de pessoas com quem de-bater assuntos interessantes e olhe que eu só estou pedindo isso;

@Alexandredantas: Acho isso comum. Ninguém mais tem aqueles ide-ais de antigamente. Ninguém mais tem aquele desejo de mudar o mundo, é uma pena;

@josietemendes: As pessoas no geral estão com preguiça de pensar. E nos jovens vejo, além disso, eles têm preguiça de ler, pesquisar...

Outros explicam as causas da falta de idealismo.

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@JOR6INHO: As pessoas abandonam seus ideais não por opção, mas pela pressão vivida numa sociedade consumista oposta a qualquer ideal;

@fabianoaas: Os pais não educam mais os filhos para almejarem me-lhorias em suas vidas mediante seus esforços. Vive-se por viver apenas;

@camila_XD: Às vezes é desesperador. Você olha para os cenários político e social e nada muda para melhor. Aí é de se pensar “ideais para quê?”;

@senhordelicio: Quando se vive em uma sociedade em que predo-mina o incentivo ao consumo desenfreado, o que esperar senão a alienação?;

@FabioSA: É fácil, não existem muitos jovens com formação madura ou com opinião própria sobre assuntos importantes como: política e educação.

Importante, porém é saber que apesar de todos os erros das gerações mais velhas, de nossa incompetência para inspirar os jovens, eles ain-da tomam o tempo para dialogar sobre a crise de seus ideais.

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X - ENERGIA NUCLEAR/CHERNOBYL

Aviso alemãoJornal Destak – 07 de junho de 2011 - Um ano depois deste artigo ter sido publicado, também o Japão, que depende de fonte nuclear,

fechou temporariamente suas usinas. Logo depois a Itália fez um ple-biscito onde a maioria decidiu contra centrais nucleares. E o governo

alemão decidiu fechar as suas.

Em 2009 fui a Chernobyl. Trinta anos depois do acidente, ainda não foi fácil conseguir autorização para visitar o lugar e as ruínas do reator nuclear. Consegui permissão para ir até o local por, no máximo, seis horas de permanência.

A paisagem que tive a oportunidade de ver foi assustadora, desola-dora, uma devastação nuclear sem explosão. Silenciosa, sem fumaça.

Pude visitar prédios, escolas, restaurantes, centros de diversão, tudo abandonado, fantasmagórico, apesar da beleza do branco da neve ao redor. Uma roda gigante de um parque de diversão infantil mantinha--se intacta à espera da inauguração que seria no dia seguinte ao da tragédia. As casas estão invadidas pelas árvores que crescem dentro delas. Em breve, tudo será uma floresta, apenas o mausoléu do reator se manterá rodeado pelos prédios mais altos, abandonados também.

Tudo indica que o horror começou por um erro dos dirigentes da usina, que permitiu a um engenheiro testar até que ponto seria possível o reator funcionar em segurança. Ele perdeu o controle e o reator explo-diu, emitindo as terríveis radiações. Durante algumas horas o governo soviético, apesar da “glasnost”, preferiu manter a informação em se-gredo, até que, na Finlândia, analistas perceberam o forte aumento de radiação naquela região e revelaram o assunto ao mundo.

A partir da divulgação, o governo soviético decidiu esvaziar as duas cidades: a velha e modesta, quase medieval, Chernobyl, com suas ca-sinhas de madeira; e a nova, ostentosa e moderna, um retrato menor

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de Brasília, sede oficial dos serviços e das residências de servidores da usina.

Dezenas de milhares de pessoas já contaminadas foram obrigadas a sair da cidade em poucos minutos, levando somente a roupa do cor-po, que logo depois foi retirada e jogada em meio ao lixo classificado como contaminado.

Ao sair, depois de quase seis horas caminhando e conversando com os fiscais da área afetada, olhando para os medidores de radioatividade espalhados pela cidade, precisei passar por um detector de radiação que media todo o corpo para saber se voltaria para o hotel ou seria levado para o isolamento de algum hospital do país.

A visita mostra um quadro assustador. Pior é a percepção que vem ao conversar com pessoas que moravam a 200 quilômetros e até hoje carregam os efeitos na saúde dos familiares. Ainda mais ao ler sobre os milhares de mortos ao longo desses 30 anos; as pessoas que carre-gam doenças por toda a vida; e outras que transmitirão doenças aos filhos que ainda não nasceram.

Aquela visita me fez mudar a posição de ver a alternativa nuclear como energia limpa. Fukushima consolidou meu antagonismo ao uso de re-atores nucleares como forma de gerar energia. Pelo menos enquanto não evoluírem a engenharia civil, para garantir resistência absoluta nas edificações; e a engenharia nuclear, para garantir o armazena-mento seguro dos resíduos. Não se trata de dizer “nuclear jamais”, mas definir uma moratória de 20 a 30 anos à espera de uma evolução na engenharia.

Neste momento, construir usinas nucleares é uma temeridade que bei-ra o crime contra a humanidade Até mesmo manter as atuais é viver sob risco de tragédia em algum momento. Em vez de novas centrais nucleares, o precisam reduzir seu consumo de energia e investir em novas fontes, renováveis e menos perigosas.

A decisão do governo alemão, definindo prazo para desativar todas as suas usinas nucleares, é um alerta que o Brasil não tem o direito de ig-norar. Suas usinas estão em locais mais protegidos que as nossas; seus sistemas de defesa civil são mais bem organizados; sua dependência

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de energia nuclear é de 23% do total da demanda de energia, en-quanto a nossa é de apenas 3%. E a Alemanha não tem as alternativas de fontes energéticas que temos. Se a Alemanha está assustada, será um crime fecharmos os olhos. Sobretudo ao lembrar que importamos a velha tecnologia que os alemães desenvolveram e agora já não ser-ve para eles.

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XI - CIVILIZAÇÃO/CRISE

Quase 200 anosO Globo – 02 de julho de 2011

Em Dijon, na França, no fórum “Em torno das Incertezas: Rio+20”, dois senhores que somavam 184 anos de idade: Stéphane Hessel, com 94, e Edgar Morin, com quatro anos a menos debateram durante quase três horas em auditório lotado. A primeira gratificação dos assistentes foi ver dois homens com essas idades chegarem caminhando rápido e subirem faceiros os degraus do palco. Depois do debate, Hessel seguiu para um restaurante, onde jantamos até meia noite. Morin não pôde ir ao jantar porque precisava viajar por duas horas e meia até Paris para cuidar de sua mudança à casa onde ia morar depois do casamento.

A jovialidade desses quase 200 anos não decorre apenas da capacida-de de subir faceiramente os degraus, nem da loquacidade da oratória firme, mas, sobretudo, do conteúdo que apresentam, olhando para o futuro, e da total empatia com os jovens que ali estavam.

Morin gesticula mais, fala com rapidez meteórica e cita muitos autores. Hessel tem gestos mais contidos e fala com mais poesia. Ambos fala-ram do futuro, preocupados, enfáticos, combativos, otimistas. Cada um denunciou os riscos das crises ecológica, social, política e finan-ceira. Sobretudo, falaram que estas crises decorrem de outra muito maior, a crise do modelo da civilização que surgiu a partir da Revolu-ção Industrial.

Civilização da insegurança, do desperdício, da depredação ambiental, da desigualdade, do desemprego, do endividamento, do consumo de drogas e da droga do consumo. Civilização que no lugar de usar, se submete ao avanço técnico; no lugar de reduzir, cria necessidades no-vas a cada instante.

Ao longo de duas horas, eles passaram crítica, lucidez, jovialidade, combatividade. Começaram o discurso pela indignação que carregam e extravasam com a crise ambiental; a desigualdade; a intolerância ra-cial, religiosa, de gênero, de opção sexual; com a falta de compaixão e

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de respeito à diversidade; com a estupidez da economia, a voracidade dos bancos e dos consumidores.

Hessel convoca os jovens a indignarem-se, como estão fazendo milha-res, todos os dias, nos países árabes e na Europa, autonomeando-se de indignados, por inspiração do livro “Indignez-vous”, que ele escre-veu. Morin fala da esperança de uma “Nova Via”, pela qual aponta rumos para uma civilização solidária, inteligente, harmônica.

Da indignação passam a análise crítica, mostrando a falta de lógica da civilização industrial; fazem-nos pensar que diante de nós há um mundo ameaçado, um planeta mal tratado, uma sociedade partida, vazia, drogada; fazem-nos pensar como a produção destrói; como a economia e a globalização alienam pelo excesso de trabalho de uns e o desemprego de outros; como o luxo do consumo por alguns e o con-sumo do lixo por outros se engrenam como duas partes de um mesmo sistema.

Pelos discursos percebe-se que os dois senhores não aceitam pergun-tar se vale a pena o esforço para salvar a humanidade. Não concor-dam com a ideia de Arthur Koestler de que o cérebro humano é suici-da, por carregar um lado lógico com poder tecnológico para mudar o planeta e um lado amoral sem capacidade para dominar os instintos individuais e de curto prazo.

Eles falam da esperança de que todo o desastre atual é prenúncio de um novo tempo, quando a ética controlará a técnica; o prazer substi-tuirá o consumo; a dança substituirá o ritmo chapliniano do fordismo; o antagonismo será substituído pela convivência solidária entre os ho-mens e deles com a natureza.

Os dois passam o otimismo de que os jovens vão mudar o mundo que continuará depois deles dois.

E desafiam todos à combatividade para que mudem o mundo do fu-turo, dos duzentos anos adiante. Hessel, aos 94, conclui declamando, de memória, todos os 24 versos do poema de Apollinaire “Sob a Ponte de Mirabeau”, que conclui dizendo: “Vem a noite/soa a hora/os dias passam/eu não passo”.

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Tribunal do FuturoJornal do Commércio – outubro de 2011

Em Salvador, em julho de 1981, durante a 33ª Reunião da SBPC – So-ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência apresentei a proposta de criar um Fórum para Julgar os Crimes do Desenvolvimento no Bra-sil.

Naquele momento eram cinco os possíveis crimes: a) Projetos que des-truam ou ameacem destruir, quando executados, o meio ambiente e os recursos naturais; b) Políticas concentradoras de renda; c) Projetos e medidas desnacionalizantes, cujos efeitos alienam recursos naturais por parte de grupos ou nações estrangeiras, sem que a Nação como um todo receba em contrapartida uma remuneração condigna; d) Pro-jetos e decisões que põem em risco a vida e o bem-estar de parte da população ou que, em nome do desenvolvimento, comprometem a sobrevivência da população indígena; e) As medidas do setor público e do setor privado que beneficiem apenas uma pequena parcela da população nacional, à custa de recursos de toda a coletividade.

Após três décadas, ao invés de ficar obsoleto, aquela ideia do Fórum ficou mais urgente e necessária, ao ponto que agora deveria ser cha-mado de Tribunal, não apenas Fórum. Não se trataria de um tribunal formal, com legalidade jurídica, porque os governantes de cada país não têm interesse em uma instituição deste tipo. Apenas um teria ra-zões políticas para pensar realmente no Planeta e na Humanidade: o presidente das ilhas Maldivas, primeiro país que pode desaparecer pela elevação do nível do mar por causa da crise ambiental. Mas as Maldivas são exceção. Nos demais países, cada presidente terá que pensar no hoje e nos interesses de seus eleitores, e não no amanhã de toda humanidade. Em cada um deles tomam decisões que poderiam levá-los a serem julgados por este Tribunal.

No passado, os governantes aceitaram a criação de um tribunal para julgar os crimes contra a humanidade, mas apenas para os crimes políticos de ditadores contra seus opositores, mas não querem o mes-mo julgamento por crimes cometidos contra o equilíbrio ecológico, ou contra a sociedade.

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A esperança está na Força Moral por cima da Força Política. A criação de um Tribunal informal, constituído por grandes personalidades mun-diais capazes de inspirar no mundo o sentimento de condenação dos responsáveis. Aparentemente isso é um sonho idealista, mas décadas atrás, nos anos 60 e 70, um Tribunal moral conseguiu mobilizar po-pulações e fez cessar os crimes que os EUA cometiam no Vietnam. Foi o Tribunal implantado por um filósofo de 90 anos, chamado Bertrand Russell. Ele reunia grandes personalidades do mundo que julgavam os culpados pelos crimes da guerra no Vietnam. Sem força política, mas com muita força moral, aqueles senhores de cabeça branca con-seguiram abalar o poder dos dirigentes mundiais, especialmente dos presidentes dos EUA daquele tempo.

O mundo do século XXI pode implantar um novo Tribunal Russel, desta vez para julgar os responsáveis pela condução dos assuntos do mundo de hoje, emitindo punições sobre cada crime, tais como: exploração de petróleo nos Polos, ampliação da produção sem respeito ao Meio Ambiente, destruição de etnias, energia nuclear antes de seu controle pleno, ações financeiras desarticuladoras de economias, medidas que ampliam a desigualdade e sacrificam a educação e a saúde, hidroelé-tricas que destroem a biodiversidade.

Trinta anos depois, durante a reunião da cúpula Rio+20, reapresentei a mesma proposta. Este novo Tribunal poderá ter como mobilizador e aglutinador algum idoso com a idade de Russel, naquela época, como, por exemplo, Edgard Morin, nos seus 90 anos, ou Stéphane Hessel, com 94.

Pior nuvemO Globo – 31 de março de 2007

Três nuvens pairam sobre o futuro da humanidade.

A primeira é a assustadora nuvem ecológica, que ameaça destruir a frágil rede que sustém a vida no planeta. Os cenários para o futuro são

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ameaçadores, com pequenas discordâncias quanto à data da tragédia. Estamos ameaçados por um desastre anunciado, resultado do projeto civilizatório que nós escolhemos.

Depois de quatro décadas de avisos, desde o informe do Clube de Roma, em 1972, os futurologistas não mais adivinham o futuro: ele chegou. Seus efeitos são visíveis, suas causas conhecidas e sua evolu-ção previsivelmente catastrófica.

Se mantivermos o mesmo rumo ao longo de algumas décadas, a agri-cultura estará desarticulada, a água escassa, áreas ao nível do mar serão cobertas, a economia encolherá, o desemprego será geral, a qualidade de vida cairá dramaticamente, o patrimônio da civilização sofrerá um forte retrocesso.

A segunda é a nuvem da divisão social da humanidade. Depois de milênios caminhando para o fortalecimento da semelhança entre se-res humanos, de séculos construindo o respeito mútuo, e de décadas sonhando com utopias igualitárias, a humanidade está dando passos atrás.

Além de assistir ao aquecimento global, a atual geração vê ampliar--se a brecha social que divide a humanidade em duas. A qualidade de vida, que desde sempre foi diferenciada entre a parcela rica e a pobre, se distanciou ainda mais no século XX. Até recentemente, se acreditava que esses benefícios se distribuiriam para os atualmente excluídos. Percebe-se que, agora que os benefícios dos novos recursos científicos e tecnológicos não se distribuíram para todos, uns poucos seres humanos vivem mais, são mais fortes, saudáveis e inteligentes do que a maioria excluída destes benefícios. Percebe-se que os limites ecológicos e a violência entre excluídos e incluídos poderão levar a um estranhamento que se transformará em dessemelhança nas ca-racterísticas biológicas, mentais e culturais. Será uma separação muito mais dramática do que o apartheid racial ou a apartação social, será uma ruptura na semelhança, uma evolução biológica produzida pelas maravilhas da técnica e por uma involução da ética.

A terceira nuvem é o trágico fracasso intelectual em formular alterna-tivas aos rumos do projeto civilizatório. Depois de termos confiado na democracia e no estado para a condução da utopia, percebemos que

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o estado é autoritário e a democracia é incapaz de combinar as exi-gências do mundo global com as demandas isoladas de cada Nação.

Os avisos dos redatores do Clube de Roma foram recusados pelo pen-samento liberal de direita, que dizia que o mercado teria a solução, e pelo pensamento intervencionista da esquerda, que dizia que a inte-ligência técnica e política venceria. A direita desprezava os avisos de crise ecológica, a esquerda via neles uma conspiração contra os países pobres.

Quando a catástrofe chegou, os pensadores ficaram mudos. Ainda mais porque os liberais perceberam que o resultado de sua utopia e da extrema riqueza convive com um Gulag Social de prisioneiros – recu-sados nas fronteiras, pobres abandonados à própria sorte, desempre-gados, doentes sem atendimento, crianças desnutridas, mães sem leite para os filhos – e os esquerdistas percebem que, ao lado do fracasso das experiências socialistas e da vitória do capitalismo, as bases do seu pensamento estão fracassando.

Nesse quadro, a história caminha e conduz a um desastre. Como se adiante houvesse a ameaça de um grande meteoro, produzido pela própria humanidade, pronto a explodir. O primeiro passo para vencer as ameaças é superar a falta de uma proposta intelectual capaz de enfrentar as outras duas tragédias. O segundo passo é desenhar uma nova utopia, e as bases para uma nova revolução. Mas os intelectuais, perplexos pelo fim de seus paradigmas e acomodados por serem parte dos beneficiados social e economicamente, não oferecem propostas; e os militantes acomodados e perplexos, abandonam suas crenças e bandeiras.

Esta é a pior das nuvens: a nuvem seca, que não chove, e encobre silenciosamente qualquer alternativa.

Mesma chanceJornal do Commercio – 04 de maio de 2007

Já não se comemora o Dia do Trabalho como antigamente. As alter-nativas socialistas em crise, a força avassaladora do capitalismo global

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e a divisão dos trabalhadores entre incluídos e excluídos esvaziaram ideologicamente o Dia do Trabalho. Ele perdeu o vigor vermelho, ama-relou. Porque o proletariado não redesenhou sua utopia, não reorien-tou sua revolução. Perdeu vigor transformador, canaliza reivindicações sem propostas de transformações revolucionárias. Perdeu-se o senti-mento de possibilidade da igualdade.

Mas a realidade social e econômica não nos permite acomodamento, como se a utopia já estivesse pronta. Ao redor, desemprego, pobreza, desigualdade, insegurança, comprometendo o presente e ameaçando o futuro de todos. Nunca foi tão necessário sonhar e lutar por uma utopia. Não mais a utopia da apropriação do capital pelos trabalha-dores sob o controle do Estado, pois esta experiência não funcionou.

Ainda há utopia: “a mesma chance é possível para todos, filhos de patrões ou de trabalhadores”. O caminho é a distribuição do conheci-mento pelo acesso de todos à escola de base com a máxima qualida-de. E não a falsa e autoritária promessa de igualdade de renda e de consumo.

O cérebro do filho de um rico capitalista tem o mesmo potencial do cérebro do filho de um pobre desempregado. A desigualdade é cons-truída, sistematicamente, diariamente, pela escola diferenciada. A igualdade não virá da economia. O acúmulo não é mais de capital, é de conhecimento. Se não estudar, o filho do capitalista não vai ser um patrão de sucesso; o filho do proletário que estudar vai ter toda chan-ce, em função do seu talento, sua persistência, sua vocação.

O Dia do Trabalho precisa voltar a ser um dia de sonhos utópicos e de vigor revolucionário por uma revolução: pela educação para assegurar a Mesma Chance a cada pessoa, independente de onde nasceu e de quem é filho. Uma educação que desenvolva o potencial latente de cada criança ao nascer.

O trabalhador antes fazia Greves Setoriais por salários e Gerais por mudanças e revoluções. As setoriais ficaram cada vez mais frágeis e por isso, sabiamente, cada vez mais raras. Os poucos que têm tra-balho temem os milhões de desempregados; e seus patrões sabem que negociando em tempo evita-se paralisações daqueles que ainda trabalham.

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A passagem do Dia do Trabalho nos faz pensar que é hora de voltar aos sonhos e à luta. Convocar uma Greve Geral para que os trabalha-dores e o povo em geral digam que querem o direito à Mesma Chance exigindo para seus filhos a mesma escola dos filhos do seu patrão. Uma Greve Geral de apenas uma hora para refletir e gritar “Educação Já”, como antes gritava-se “Diretas Já” ou “Viva o Socialismo”.

Este é um gesto revolucionário possível no mundo de hoje. Rompe com a paralisia e o acomodamento conservador do pensamento único do neoliberalismo; e com o acomodamento e paralisia da esquerda tradi-cional que continua prisioneira da lógica da revolução pela economia.

A nova revolução, da Mesma Chance, considera que no mundo do século XXI, o capital e o desenvolvimento estão no conhecimento. A distribuição não se dá mais pela concentração do capital nas mãos do Estado, mas na distribuição do conhecimento de forma igualitária a todas as pessoas, desde a primeira infância. A utopia está em fazer a escola do filho do mais pobre trabalhador igual à escola do filho do mais rico patrão. Esta é a luta que permitiria avermelhar, outra vez, sob outra forma, o Dia do Trabalho.

Sociedade hediondaO Globo – 03 de março de 2007

Estudos recentes revelam que pessoas com menos de seis anos de estudos têm duas vezes mais risco de serem presas do que pessoas educadas. Por isso, a desigualdade social e falta de escolaridade tem sido apontada como a principal causa da violência. Dessa forma, me-didas mais duras contra o crime, inclusive a redução da maioridade penal, seriam, aparentemente, medidas contra os pobres. Até porque os ricos, com seus advogados e influência sobre a polícia e a justiça, terminam escapando da prisão. Mas os que defendem o maior rigor das leis insistem que suas propostas não são contra os pobres, porque eles são pacíficos.

De fato, os pobres brasileiros são pacíficos. Há séculos, no campo, pobres brasileiros sem-terra assistem, pacificamente, aos seus filhos

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morrerem de fome, enquanto as grandes empresas exportam comida. Nas cidades, pobres pedem esmolas com filhos esfomeados em frente a supermercados abarrotados de comida; ou com filhos doentes, em frente a farmácias repletas de remédios. Pacificamente, famílias intei-ras vivem embaixo de viadutos, ao lado de luxuosos condomínios.Os pobres brasileiros são obviamente pacíficos. Pacíficos até demais, diriam alguns. Afinal, assistir pacificamente aos filhos morrerem de fome ou doença, ao lado da comida e do remédio, é um pacifismo tão radical que chega a ser antinatural. É um admirável respeito pacífico à lei dos homens, porém totalmente contrário às leis da natureza. A história do Brasil é um romance de pacifismo, aceitação e conformismo da multidão de pobres, ante a desigualdade e o acinte da riqueza de poucos.

Assassinar é um crime gravíssimo, não importa a idade do criminoso. Assassinar um menino arrastando-o pelas ruas do Rio de Janeiro é um crime mais que gravíssimo, horroroso. Mas também é um crime he-diondo deixar milhares de meninas, a partir dos nove anos de idade, serem arrastadas vivas pelas ruas e praias do Brasil como prostitutas infantis.

Um jovem educado, com futuro assegurado, tem muito menos incen-tivo para cair no crime; mesmo assim, alguns terminam caindo. Um jovem sem futuro, sem educação para buscar uma alternativa na vida, assistindo à violência maior da abundância ante a miséria, tem um incentivo imediato para aderir à criminalidade; mesmo assim, nem todos caem no crime. E aqueles que tiverem caído devem ser punidos. Porque os pobres são pacíficos, mas a pobreza é violenta em si, e fabri-cada. Nem todos resistem às necessidades, aos desejos de consumo, ao abandono, à ostentação dos outros. E terminam contaminados pela maldade da sociedade perversa, até caírem na perversidade individual do crime.

Alguns bandidos são violentos, outros assim ficaram. E ficaram por causa de alguma falha na sua formação, no decorrer de sua infância e adolescência. Os que cometem os crimes têm de ser punidos. Princi-palmente os que fabricaram os criminosos que poderiam ter tido outro rumo na vida.

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Têm razão os que defendem que todos os criminosos sejam punidos, independentemente da classe social, se pobres ou ricos. Até porque o perdão a criminosos é uma injustiça contra a imensa massa de po-bres, que são as maiores vítimas da maldade dos bandidos. Mas tam-bém devem ser punidos aqueles que fabricam a violência, por ação ou omissão; aqueles que constroem uma sociedade perversa, hedionda, criminosa ela própria. Porque os pobres são pacíficos, mas a pobreza é uma violência. E mais, é uma fábrica de mais violência.

Todos cansamosJornal do Commercio – 24 de agosto de 2007

Independente da avaliação que um dia será feita do governo Lula, uma coisa já se pode afirmar: foi um tempo de retrocesso na mobi-lização popular. Os sindicatos, a UNE, o MST, os empresários, todo o movimento social se acomodou. A população pobre aceitou a Bolsa Família como uma grande dádiva, sem necessidade de qualquer rei-vindicação. Os intelectuais escolheram o “silêncio reverencial”.Nesse quadro, felizmente surge um movimento contestador. Persona-lidades das artes e da publicidade lançaram um manifesto dizendo-se cansados da situação. É uma pena que tenham demorado tanto para cansar, em um país com concentração de renda, calamidade nos ser-viços de saúde e de educação, corrupção generalizada, especialmente na política. E uma vergonha que tenham cansado somente da violên-cia que aparece nas ruas, sem verem a violência que causa a violência.Eu também cansei. Cansei dos assaltos nas esquinas, dos sequestros nas ruas. Mas cansei do roubo secular como os privilegiados se apro-priam do que seriam os direitos dos pobres; cansei da violência que fabrica violência, ao roubar as oportunidades dos meninos jogados na criminalidade.

Cansei do atraso nos aeroportos, mas também dos apagões nas para-das de ônibus, onde milhões de trabalhadores e estudantes esperam, debaixo de sol ou chuva, ameaça de assaltos, sem terem a quem recla-mar, sabendo que sua tragédia será ignorada pelos jornais. Também cansei do apagão da saúde nas filas dos hospitais, na cara doente do povo, no olhar de crianças assustadas e mães angustiadas. Cansei dos

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que se cansaram dos aviões atrasados, mas sempre se omitiram ante um país que não atende às necessidades básicas de sua população. Cansei da corrupção no comportamento dos políticos, mas também da histórica corrupção nas prioridades da política. Cansei da humilhação dos baixíssimos salários dos professores, mas também dos sindicalistas que não se ocupam da tragédia das escolas fechadas pela guerra civil dos morros ou por greves intermináveis.

Cansei dos artistas e apresentadores que se cansaram da corrupção, mas sempre votaram em corruptos, e votarão neles nas próximas elei-ções, pois preferem um corrupto amigo a um honesto que não é de sua turma. Cansei dos publicitários que se cansaram da corrupção, mas na próxima eleição farão alegremente campanha para os corrup-tos que lhes pagarem bem.

Cansei de um país que se diz sem racismo, mas não aceita o uso de cotas para aumentar o número de estudantes negros na universidade. Também cansei do elitismo do movimento negro que se interessa pelas cotas para os poucos que querem entrar na universidade, mas ignora os milhões de pobres, negros ou brancos, abandonados no caminho educacional, antes de concluírem o ensino médio.

Cansei da acomodação dos milhões de pobres que aceitam que seus pais e mães morram nas filas dos hospitais e sacrificam passivamente o futuro dos seus filhos, em escolas sem qualidade.

Cansei, acima de tudo, da aparente impossibilidade de colocarmos juntos os cansados, que têm medo de perder seus privilégios, e os pobres acomodados na sua falta de direitos. Cansei, mais ainda tenho esperança de que um dia os cansados tenham patriotismo e os acomo-dados tenham consciência.

Cansei também de tanta gente achar que isso é um sonho impossível. Só não cansei de achar que ainda vale a pena acreditar que vale a pena. Cansei, mas não me desesperei, ainda.

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Todos NerosJornal do Commercio – 09 de março de 2007

Dois mil anos atrás, um imperador romano com pendores artísticos foi acusado de incendiar Roma para levá-la à modernidade. O imperador acusou os cristãos de terem cometido o crime, mas aproveitou o desas-tre para realizar a primeira reforma urbana, até hoje considerada uma das maiores de todos os tempos.

Graças ao incêndio na sua cidade, Nero levou a modernidade à Roma.O século XX fez o contrário. Agora, o progresso incendeia o mundo. Não mais uma cidade, o que arde é o planeta, graças ao uso indiscri-minado dos produtos dos tempos modernos.

Além da ordem inversa – a progredir para incendiar, em vez de incen-diar para modernizar –, e das proporções – a queima do planeta em vez de uma cidade –, o aquecimento global tem mais uma diferença – hoje não existe um único Nero para ser acusado.

Considerando níveis distintos de responsabilidade, ninguém está isen-to. Somos todos pequenos Neros, contribuímos diariamente para in-cendiar o Planeta. E sabendo que o resultado não vai nos trazer uma cidade melhor, como aconteceu com Roma, que ressurgiu mais bela depois do incêndio.

Incendiamos o Planeta cada vez que damos partida no carro. Cada vez que deixamos a torneira aberta por mais tempo do que o necessário. Cada vez que lançamos lixo em local inadequado. Sempre que esti-mulamos, ou toleramos, o avanço da área de produção agrícola sobre as florestas. Toda vez que derrubamos árvores, seja para exportação, seja para a fabricação de bens supérfluos, ou para queima nos altos fornos das siderúrgicas.

Conta a história que Nero ficou na varanda do seu palácio tocando lira, deslumbrado com o incêndio, antevendo os novos prédios que surgiriam. Da mesma forma ficamos nós, nas nossas salas, deslumbra-dos com as manchetes que apontam as taxas de crescimento indicando

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progresso, deslumbrados com aumento no consumo.Caminhamos para o grande incêndio global como pequenos Neros, insaciáveis, sem olhar adiante.

NeocanibalismoO Globo – 05 de dezembro de 2007 - Publicado sob o título “Um rela-

to de Horror”

Em 1729, o escritor Jonathan Swift apresentou o que chamou de “mo-desta proposta” para resolver o problema da infância abandonada no seu país. Na abertura, ele diz que sua “ ‘modesta proposta’ é para evitar que as crianças dos pobres da Irlanda se tornem um fardo para seus pais ou para seu país, e para torná-las benéficas ao público”. O livro com a proposta foi recentemente publicado no Brasil pela presti-giosa Editora UNESP, com ótimo prefácio de R. Morais.

A proposta é um relato de terror: o famoso satírico recomenda que as famílias pobres vendam seus filhos para serem degustados como refi-nada iguaria pelas famílias ricas. Segundo ele, na sua sátira-terror, sua “modesta proposta” daria renda aos pobres e uma nova delícia gas-tronômica à nobreza, criaria empregos na rede hoteleira e tiraria da rua a infância abandonada. Além disso, segundo o Dr. Swift, reduziria o roubo, a mendicância, o complexo de culpa dos ricos e, sobretudo, o sofrimento das crianças e de suas famílias. Eliminaria a angústia das mães que não sabem onde os filhos estão ou que riscos eles correm perambulando pelas ruas. Pela “modesta proposta” de horror, as mães saberiam do destino do filho. E dormiriam tristes, mas tranquilas. Além disso, obteriam uma renda, ao vender seus filhos.

Felizmente, a proposta ficou na ficção; não foi aceita, por causa do tabu contra o canibalismo. A sociedade que abandona suas crianças defende a vida delas, por maior que seja seu sofrimento.

Swift morreu em 1745. Tivesse vivido até o século XX, veria sua ideia adaptada e adotada em diversos países, sob formas diferentes, dis-farçadas para serem aceitas, driblando os tabus religiosos contra o canibalismo.

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Em alguns países, a “modesta proposta” de Swift condena as crianças pobres ao trabalho infantil, fabricando sapatos que serão usados pelas crianças ricas de outros países. O tempo roubado de suas vidas infantis é transformado em sapatos. Em vez de servi-las à mesa, pisa-se nas suas infâncias.

No Brasil, a ideia de Swift também foi adaptada e adotada. O tabu da antropofagia, trazido pelos portugueses, criou uma solução ainda mais sofisticada. Em vez de comer as crianças, como sugeria a “modesta proposta” de Swift, adotamos a opção de bebê-las na forma do suco das laranjas que elas colhem na fazenda, com as mãos que deveriam usar lápis quando deviam estar na escola. Transforma-se em suco e toma-se a infância.

Aqui também preferimos outra vertente da “modesta proposta” de Swift: a prostituição infantil. Os banquetes nas mesas dos castelos são substituídos pelas camas dos motéis. As crianças não são assassinadas para servirem ao paladar, mas seus corpos são usados em vida para servirem à luxúria.

A “modesta proposta” foi adaptada para evitar o horror ao canibalis-mo explícito proibido pelo cristianismo, mas adotada com requintes às vezes mais cruéis, embora menos horrorosos. Porque, na sátira horri-pilante de Swift, a morte de criança seria um gesto simples, instantâ-neo e quase indolor, tal qual fazemos com bois, frangos, porcos. Na forma adaptada e adotada no Brasil, a criança é submetida a uma morte lenta, que dura toda sua infância - corpos vivos, cérebros abor-tados, vidas tristes.

Há algo de errado na lógica da civilização adotada pelos seres huma-nos. Enquanto as sociedades antropofágicas cuidavam bem de suas crianças, nas sociedades que abandonam e exploram suas crianças, o canibalismo é tabu, é um ato abominável. Para respeitarem o horror à antropofagia, as perversas sociedades modernas abandonam suas crianças ao horror de um neocanibalismo. Muitas vezes, sem nem se-quer perceberem.

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A Nova RiquezaISTO E DINHEIRO – Dezembro 2007

Quando o Brasil começou, sua riqueza vinha da terra, propícia para a cana-de-açúcar, depois o ouro, o café, o algodão. Bastavam a terra e a mão de obra escrava. O africano descia do navio negreiro, recebia uma enxada - que não conhecia - e, com a força de seus braços, co-meçava a produzir riqueza. Mais tarde, a industrialização exigiu quali-ficação do trabalhador livre. O nordestino descia em São Paulo apenas sabendo ler e logo aprendia a arte de pedreiro ou um ofício de operá-rio metalúrgico. Para criar riqueza bastava ter mãos treinadas.

As coisas mudaram nas últimas décadas. Em vez de operários que usam mãos treinadas, a economia exige o operador, que usa os de-dos em equipamentos digitais, e que precisa ter recebido formação educacional. Para ter familiaridade com a operação dos novos equipa-mentos digitalizados, não basta que o novo trabalhador tenha somen-te habilidade manual, ele precisa ter um mínimo de conhecimentos de informática, de Inglês. Aos poucos, os operários e o proletariado vão cedendo lugar aos operadores, uma nova classe de trabalhadores qualificados, sem os quais a economia não funciona. Mesmo a mão de obra mais simples, como os encarregados da limpeza do chão das fábricas, será em breve substituída por máquinas robotizadas, mane-jadas à distância por operadores especializados.

A educação passou a ser fator determinante do processo produtivo e do sistema de garantia de emprego. Também de distribuição da renda, visto que nem o emprego nem o salário existirão sem qualificação. Hoje, a sociedade brasileira tem uma imensa massa de desemprega-dos, enquanto a economia brasileira tem um acervo enorme de vagas não preenchidas, por falta de operadores qualificados. A economia emperra pela falta de educação de qualidade.

Há um fato ainda mais grave. Mesmo quando produz, a economia não gera mais a riqueza integral, porque o valor dos produtos não é mais a soma dos fatores tradicionais: mão de obra, capital, matéria prima. O fator fundamental na geração de riqueza e do valor dos produtos está no conhecimento que inventa os produtos e os equipamentos que os produzem.

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No início da nossa economia, o valor da saca de açúcar dependia do custo dos escravos, do valor da terra, do transporte e a remuneração do pouco capital. Com exceção do transporte em navios estrangeiros, a riqueza ficava aqui. Hoje, um dos componentes fundamentais da for-mação de valor está no conhecimento, na criação de novos produtos e novos equipamentos que não criamos aqui.

Quando um brasileiro compra um remédio fabricado no Brasil, a maior parte do valor vai para os cientistas do laboratório que patenteou a fórmula, e para os tecnólogos que desenharam os equipamentos auto-máticos que o produzem. Em um consultório médico, parte substancial da renda vai para os fabricantes que criaram os modernos equipamen-tos utilizados.

A ciência e a tecnologia que geram valor saem de Centros de Pesquisa, que têm origem no Ensino Superior, o qual só terá qualidade se o país tiver educação de qualidade para todos, até o final do Ensino Médio. Não haverá futuro para a economia que desperdiça o mais importante recurso da modernidade: os cérebros da sua sociedade. Cada criança deixada para trás por falta de educação é um recurso que ficará perdi-do, emperrando a economia por falta de operadores ou impendido-a de avançar por falta de capital-conhecimento.

A nova riqueza nacional é produto do acúmulo da educação.

ImagineiO Globo – 10 de novembro de 2007

Imaginei que todas as crianças brasileiras, entre quatro e dezoito anos, estavam assistindo aula. Não apenas matriculadas, mas frequentan-do, assistindo, aprendendo, até o final do Ensino Médio. Imaginei que o dia escolar começaria na hora certa, e todas as crianças ouviriam juntas o Hino Nacional. Cada aula duraria o tempo previsto. Imaginei todas as crianças em bonitos uniformes, sem diferenças por renda, luxo, pobreza.

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Imaginei que nenhuma criança iria embora logo após a merenda, e que depois do almoço elas ainda teriam atividades escolares comple-mentares: nadariam, pintariam, jogariam, ouviriam música, apren-deriam idiomas, leriam, fariam trabalhos comunitários, assistiriam a filmes, fariam experiências científicas, teatro, dança, aprenderiam a tocar instrumentos musicais.

Imaginei que todas chegariam ao final do ano e passariam nos exa-mes, por terem aprendido, sem necessidade de promoção automática. Que todos os jovens concluiriam o Ensino Médio, salvo raras exceções por motivos de saúde. E que o Ensino Médio teria 4 anos, garantindo também o domínio de um ofício, ensinado na própria escola. Todos aprenderiam a deslumbrar-se com as belezas do mundo, a indignar-se com suas injustiças, a entender a lógica das coisas, a querer fazer um planeta melhor e mais belo, a sobreviver dignamente no atual mundo do conhecimento.

Imaginei que todos os professores seriam muito bem remunerados, dedicados e bem formados. Que nenhum professor precisaria parar as aulas para pedir aumento de salário. Que um Plano Nacional de Carreira quebraria a vergonhosa desigualdade na qualificação e na remuneração dos professores, dependendo do Município e do Esta-do. E que todos os nossos professores disporiam dos mais modernos equipamentos pedagógicos, cujo uso dominariam. Cheguei a imagi-nar que, quando nascesse uma criança, seus pais desejassem para ela a profissão de professor.

Imaginei o fim da desigualdade na qualidade da educação no nos-so país, e que a escola dos pobres seria igual à escola dos ricos, a dos morros igual à dos condomínios, todas com a máxima qualidade. Imaginei a escola do Brasil igual às melhores do mundo. Jovens dis-putando o vestibular em igualdade de condições, independentemente da renda de sua família e da cidade onde vivessem. E a universidade recebendo assim os melhores dos melhores entre todos os brasileiros, com a máxima formação, e não apenas os melhores entre os poucos que concluem o Ensino Médio, com a mínima qualificação. Imaginei que os melhores desses novos alunos optariam pela Carreira Nacional do Magistério. Imaginei a dinâmica e força dessa nova universidade, as pesquisas que ela desenvolveria, os profissionais que formaria, ima-ginei até os prêmios Nobel que o Brasil receberia.

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Imaginei como estariam o desemprego, a violência, a corrupção, a desigualdade, a pobreza, a eficiência, a autoestima, a participação, a cidadania, a economia, a saúde, a ciência e tecnologia, o meio am-biente, quando todos os brasileiros tivessem uma educação da maior qualidade. Vi que tinha imaginado um Brasil completamente diferente daquele que a realidade nos faz temer, porque o futuro tem a cara das escolas no presente.

Então imaginei o mais difícil: que todos acreditariam que tudo isso era possível e necessário. Pensei que, se todos imaginássemos juntos, o caminho estaria aberto para transformar a imaginação em realida-de. Que se os diferentes partidos, em sucessivos governos, se unissem para fazer aquilo que imaginei, o imaginado aconteceria.

Foi então que li no jornal que isso havia acontecido! O presidente e os governadores de diferentes partidos tinham se unido e feito um pacto em torno de um projeto que levará sete anos, quase o tempo suficiente para toda uma geração concluir o Ensino Fundamental. Mas era para preparar o Brasil para a Copa do Mundo.

As Raízes do Medo

Contra as ditaduras, as revoluções começam com a perda do medo; contra democracia, pela perda da esperança. O Brasil fez duas revo-luções democráticas, em 45 e 85, mas não fez ainda uma revolução social, porque a esperança sempre é mantida com manipulação do imaginário da população. “País do futuro” joga sempre ara a diante a ideia do sonho que precisa apenas ser esperado. Sem necessidade de lutar por ele. A manipulação é garantida graças à falta de instrução pública à população.

O governo Lula, no lugar de instigar os gestos revolucionários que o Brasil precisa, passou a combinar a esperança e o medo. A esperança de que a transferência de renda dos sob a forma do Bolsa Família é suficiente para retirar os pobres da pobreza, emancipá-los e fazer-lhes cidadãos, propósito de toda a revolução; e medo de que qualquer outra proposta significará perda. Da mesma forma que os ditadores

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ameaçam qualquer mudança de poder com a desordem e suas conse-quentes perdas.

Além disso, as revoluções costumam ser evitadas pela cooptação dos revolucionários nas benesses dos cargos públicos, com a função de não fazer revolução, acomodar-se apenas. Este é o terceiro instrumen-to usado pelo governo Lula na paralisia social do Brasil: ao transformar os militantes de antes em funcionários públicos de hoje. Defensores a qualquer custo do status quo, propagandistas de migalhas, apenas porque perderam a dimensão transformadora da sociedade. Suas dis-putas deixam de ser com as forças conservadoras, mas internamente pela partilha de cargos.

Finalmente, as revoluções não ocorrem sob o silêncio dos intelectuais. E o governo Lula conseguiu restringir a arte de escrever apenas ao silêncio, a louvação ou a denúncia. As críticas ao modelo socialista, a formulação de propostas, a poesia das utopias morreram.Por estas quatro razões, o governo Lula é o mais antirrevolucionário da história do Brasil. A ditadura produziu pensadores, sonhadores e de-sejos populares, apesar do medo. O governo Sarney, além de fazer a revolução do fim da censura, uma constituinte democrática, a liberda-de plena de organização partidária, fez aflorar o vigor transformador do PT e dos demais partidos progressistas.

Hoje nada disso e ainda fica a absoluta tolerância e aceitação de atos de corrupção, como os conservadores justificavam a tortura.

Fica para não dizer que esta análise é preconceituosa, oposicionista, um único reconhecimento de mudança: político e cultural, graças à figura do Lula. Quebrando 500 anos de história de que só os filhos da elite sabiam governar. Lula mostrou que um homem do povo é capaz de governar, nos mesmíssimos moldes da elite: para a elite. É uma única esperança e que serve para confirmar que elas ocorreram para que nenhuma outra mudança ocorresse.

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Palavras ausentes Jornal do Commercio – 16 de novembro de 2007

Quando conspiravam para derrubar a Monarquia, os líderes republi-canos já sabiam como seria a bandeira da República. Ela já estava desenhada, inspirada desde o exterior, especificamente pela França. Seguia o pensamento de Auguste Comte (1798-1857), que defendia que cada sociedade deveria ter por divisa “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso como objetivo.” As bandeiras nacionais deveriam ter a inscrição: Amor, Ordem e Progresso. Na nossa bandei-ra, não coube a palavra “Amor”. Ficaram apenas “Ordem e Progres-so”. Mas muitas outras palavras ficaram ausentes.

Soberania: já nascemos com um lema importado. Não usamos ban-deira com apenas desenhos e cores. E as palavras não foram criadas por um poeta brasileiro.

Solidariedade: a nova república ignorou a solidariedade, quando co-locou na bandeira uma divisa escrita, mesmo sabendo que 65% da população não sabia ler. Nem criou escolas para erradicar o analfa-betismo e permitir que todos pudessem ler a nova bandeira. Em um país com 90% da população na área rural, ninguém fez uma reforma agrária. Sem escola nem terra, os republicanos não completaram a Abolição da Escravatura.

Faltou igualdade: a república manteve a mesma estrutura de castas separando pobres e ricos, negros e brancos. Não houve gestos para reduzir a distância abismal que havia entre os brasileiros. Acabaram os títulos de nobreza do Império, mas a República continuou um país de doutores e analfabetos, incluídos e excluídos, excelências e gente comum, povo e povão.

Faltou justiça: desde o início, a República tratou diferentemente a dis-tribuição da justiça, prestigiando os ricos - com conexões e dinheiro - em detrimento dos pobres, excluídos, isolados em sua pobreza.

Faltou compromisso com a educação: nem mesmo um ministério da instrução pública foi criado. Esqueceram-se de que a base do pensa-mento positivista estava no objetivo de “Reorganizar Cientificamente a

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Sociedade”, o que exigiria a educação de todos como elemento central do progresso. Não pensaram na divisa “Educação é Progresso”, nem agiram nessa direção.

Faltou a palavra ética: e não é por acaso que, poucos anos depois, já começaram a estourar escândalos de corrupção, como se a República brasileira nascesse dentro da caverna de Ali Babá.Faltou natureza: a república nasceu, cresceu, desenvolveu-se destruin-do a natureza herdada dos índios, ainda existente ao final do Império. Em nome do progresso, fez-se uma república amante do cimento e do deserto.

Faltou democracia: não se passaram muitos anos para a primeira mu-dança de presidente fora do prazo, e a posse de um novo que se orgulhava do título de Marechal de Ferro. Os primeiros governos da República foram legais, mas aristocráticos, de fazendeiros latifundiá-rios, juristas sem contato com o povo. Depois foram ditaduras civis ou militares. Mesmo as democracias se limitaram à legalidade, jamais à integração e à participação popular. A palavra democracia social e plena, não foi escrita na bandeira.

Faltou emancipação: o último gesto emancipador incompleto foi da monarquia - a Abolição. Desde então, a República tem sido instrumen-to de manutenção do status quo: nem revolução, nem educação, nem mudança social.

A divisa ficou incompleta, com duas palavras que se casam sucessi-vamente, pelo autoritarismo, pela passividade ou, de vez em quando, por esmolas.

A Paz da LutaO Globo – 22 de dezembro de 2007 – Publicado com o título “ Paz e

Lutas”

Os índios Aymara, que habitam há séculos as margens do lago Titi-caca, nos Andes, defendem a necessidade de sete diferentes tipos de paz.

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A primeira paz é para frente, com seu passado. A arrogante cultura ocidental põe o passado para trás. Os Aymara põem o passado à fren-te, porque ele é conhecido, lembrado. Se você tem remorsos, dívidas não pagas, culpas, arrependimentos, não está totalmente em paz.

A segunda é para trás, com seu futuro. Quem está assustado com dívidas a pagar, com o emprego incerto, esperando más notícias, tem medo do que virá, não está em paz.

A terceira é para o lado esquerdo, com seus próximos. Sem a paz familiar, não há paz. A disputa doméstica, o descontentamento com familiares e amigos próximos tira o sentimento de paz.

A quarta paz é para o lado direito, com seus vizinhos. Não adianta a paz em casa se, do outro lado da rua, estão a ameaça, a maldição, o descontentamento.

A quinta paz é para baixo, com a terra em que você pisa, de onde virá seu sustento. Se vier tempestade, se o solo secar ou tremer, não haverá paz completa.

A sexta é para cima. Com os espíritos dos antepassados, com a von-tade de Deus. Se você não está em paz com o mundo sobrenatural, espiritual, com a metafísica da sua existência, sua paz fica incompleta.A sétima é para dentro de si. Consigo próprio, na saúde do corpo, na lucidez da mente, no prazer do trabalho, na correspondência dos seus amores. Sem paz consigo, você não está em paz.

No atual mundo global, todos os seres humanos são vizinhos. A paz de cada um exige o bem estar de cada outro, não importa onde ele estiver no mundo. Hoje, a paz com a terra dever ser a paz com a Ter-ra, o equilíbrio ecológico é uma condição para a paz. Como não ter remorso sabendo que já perdemos cinco séculos de história? Como ter paz com o futuro, sabendo que estamos despedaçando o mundo? E como ter paz com a família, quando filhos e netos perguntarem o que você fez para evitar a tragédia?

Por isso, a paz exige luta por um mundo melhor para todos.

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Profissão prisioneiroO Globo – 15 de setembro de 2007

Houve um tempo em que se dizia: brasileiro, profissão esperança. Hoje, mais correto seria dizer: brasileiro, profissão prisioneiro.

Prisioneiro no trânsito, em carros que são celas ambulantes em mar-cha lenta, desperdiçando precioso tempo de vida de seus passageiros. Alguns em carros blindados, os vidros escuros fechados, impedidos de ver a cidade em sua realidade, obrigados a correr o risco de cruzar esquinas com sinais vermelhos, para evitar assalto, morte, sequestro.

Prisioneiro do analfabetismo, que faz estrangeiros, brasileiros em suas próprias cidades, impedidos de decodificar os sinais que dão liberdade de locomoção, escolha, entendimento. São livres em um mundo estra-nho, prisioneiros do desconhecimento, exilados no tempo pisando o século XXI e vivendo no século XIX. Ao seu lado, prisioneiros também milhões de brasileiros, principalmente jovens, que aprenderam a ler, mas não conseguem um emprego, por falta de educação de qualida-de. São muitos os prisioneiros dessa educação insuficiente; também são prisioneiros: os educados obrigados a interagir com brasileiros pri-sioneiros da deseducação; o engenheiro sem operários que entendam suas ordens nem saibam operar as máquinas que devem utilizar; o gestor sem auxiliares que executem bem suas ordens por falta de ca-pacitação profissional.

Prisioneiros das filas: nas paradas de ônibus, nos postos em busca de uma vaga de emprego, nos corredores à espera de atendimento médico, condenados à morte, sentenciados pela falta de médico, de leito, de equipamento, de medicamento. Prisioneiros da insensibilida-de e da incompetência dos dirigentes, que não canalizam os recursos necessários, ou os desperdiçam no meio desse apagão gerencial que caracteriza a administração pública brasileira. Prisioneiros de políticos que mais parecem hipnotizadores: capazes de roubar quando pare-cem dar; de mentir aparentando sinceridade.

Prisioneiros infantis, com infâncias roubadas nas ruas, no lugar da es-cola; no crime, no lugar de família; na prostituição no lugar dos ges-

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tos simples das amizades pueris ou adolescentes. Crianças prisioneiras desde o dia em que nascem, que passarão, desde a primeira infância até a morte, sem tocar o chão da realidade nacional. Protegidas em bolhas sociais, do quarto à garagem, dali à escola, ou ao clube ou dentista, e de volta à garagem e ao quarto.

Adultos prisioneiros em condomínios fechados como naves espaciais, distantes da realidade urbana, deslocando-se da casa para o carro fechado, dali ao estacionamento subterrâneo, escritório ou shopping center, aeroporto ou outras cidades nas quais a bolha social conti-nua levando-os prisioneiros, protegidos, assustados com o risco da contaminação social. Apesar do luxo, do conforto, do ouro, da ren-da, isolados como prisioneiros, assistindo a realidade à distância, pela televisão. Confundindo os fatos de seu país com os acontecimentos de qualquer outra parte do mundo. Prisioneiros de uma globalização que transforma o mundo em um simulacro, apenas aparência. Tão prisioneiros quanto os 580 mil encarcerados nas superlotadas cadeias nacionais.

Parlamentares prisioneiros no Congresso Nacional, porque optaram por construir uma bolha política, isolados da vontade popular, distan-tes da opinião pública. Pensam no povo apenas a cada quatro anos, no instante do calendário eleitoral.

O brasileiro, profissão prisioneiro, é como um hipnotizado que acre-dita ser livre. Enganado como o pobre que se sente rico quando fecha os vidros do seu carro preso no engarrafamento, prisioneiro, cansado, mas feliz, porque ao seu redor os outros pobres prisioneiros pensarão que seu carro tem ar-condicionado.

Prisioneiro, eu. E você também, leitor!

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Algemas MentaisCorreio Braziliense – 16 de agosto de 2008

Só agora, em pleno século XXI, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a polícia não pode constranger um cidadão, colocando-lhe alge-mas desnecessariamente. A demora não foi por maldade dos juízes, eles simplesmente não tinham ainda notado a existência das algemas no cenário policial brasileiro. Elas eram invisíveis nos pulsos de cente-nas de presos que aparecem todas as noites no noticiário.

Foram necessários 400 anos de correntes de ferro maltratando escra-vos, durante a Colônia e o Império, e 120 anos de República, para que os juízes brasileiros percebessem as algemas que estavam nos punhos de pobres sem bermuda, sem camisa, inclusive nas últimas décadas, nas telas da televisão, quase todos os dias.

Esse atraso na percepção não decorre apenas da falta de sensibilida-de que caracteriza a elite brasileira, mas também do fato de que, na nossa lógica jurídica, os juízes só veem o que é mostrado e apresen-tado sob a ótica e o argumento de advogados. Temos uma parte da população invisível aos olhos da elite, parlamentares, juízes, políticos, professores universitários. Não temos justiça, temos um marco legal. E ele depende da capacidade dos advogados que representam os réus.Quando a ilegalidade é cometida contra quem usa camisa e paga um bom advogado, os juízes tomam a decisão e, democraticamente, de-terminam que o benefício da legalidade amplia-se para toda a popu-lação. A Justiça não é discriminatória contra os pobres, simplesmente eles são invisíveis para ela. Os olhos vendados da deusa da justiça só percebem parte da realidade, aquela que chega a eles pelos argu-mentos dos bons advogados, representando a parte rica da sociedade que pode pagar.

Foi preciso que a Polícia Federal usasse algemas em suspeitos ricos e bem-vestidos, e que seus advogados protestassem, para que elas fossem percebidas e abolidas tanto nos ricos quanto nos pobres. Sorte do pobre, quando seu julgamento coincide com o processo contra um rico pela mesma causa.

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Não ser atendido e morrer na porta de um hospital, por falta de di-nheiro ou de seguro médico, não é ilegal; portanto, a Justiça brasileira não vê nem age. Até que um rico brasileiro morra na porta de um hospital porque não estava com sua carteira de dinheiro ou de seguro médico, e um bom advogado entre com processo pedindo indenização para seus herdeiros. Só assim, será possível que a Justiça se pronuncie considerando ilegal a omissão de socorro, tanto para o rico que provo-cou o assunto, quanto para os pobres. Não por sentimento de justiça, mas porque o fato ficou visível e adquiriu uma lógica legal. Sem o ad-vogado e seus argumentos legais bem convincentes, o morto na porta de um hospital é um ente invisível, seja ele rico ou pobre.

Foi quando uma epidemia de poliomielite assolou sem discriminação de classe social as crianças no estado do Paraná, nos anos 70, que os autoritários dirigentes militares brasileiros viram o que os civis de-mocratas nunca tinham percebido. Foi iniciada então a mais ampla campanha de erradicação da poliomielite já feita no mundo. O Brasil também é exemplo mundial no atendimento público aos portadores de HIV, porque essa doença não escolhe classe social. As doenças dos pobres só são vistas quando também atingem os ricos.

Por isso, não há um programa radical para a erradicação do analfabe-tismo, nem para que todos os brasileiros, independentemente da clas-se social, cheguem ao final do ensino médio em escolas de qualidade. A falta de escola sendo um problema dos pobres, não é visto pela justiça nem representado pelos advogados. A algema mental continua, pela omissão dos governantes. É a pior de todas as algemas – porque tira a liberdade que vem do conhecimento e duras décadas –, mas é uma algema invisível, que só atinge os pobres. Os juízes não têm for-ma de perceber a injustiça porque o assunto não chega a eles.

Nenhum dos advogados que criticou o uso de algemas em suspei-tos ricos denuncia a falta do serviço de educação para os pobres. A Constituição garante o direito à educação, o poder público se omite e a criança permanece analfabeta até a idade adulta, mas esse fato continua invisível à Justiça.

Está na hora de um bom advogado entrar no Supremo pedindo uma indenização em nome de alguém mantido algemado pela omissão do poder público que não lhe garantiu educação.

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Anos esquecidosO Globo – 12 de abril de 2008– Publicado com o título de

“Anos Tapioca”.

Nestas semanas anteriores ao 120º aniversário da Abolição da Es-cravatura, gastei algum tempo lendo as atas das sessões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que debateram e aprovaram o projeto da Lei Áurea. Li, entre outros, os discursos de Joaquim Nabu-co, a favor; e do Barão de Cotegipe, contrário. Aqueles foram anos de grandes debates sobre a consolidação da Abolição e da República.O Congresso se debruçava sobre a construção nacional e os rumos do País. Os parlamentares eram os construtores de uma nação, e seus dis-cursos apresentavam visões diferentes, se opunham e se uniam, eram discursos e acordos de estadistas.

Ao ler essas atas, lembrei-me dos debates no Congresso Nacional, quando comecei a ter idade para ler os jornais. Acompanhei os discur-sos feitos durante os chamados “Anos de Ouro”, da passagem do Brasil agrícola para o Brasil industrial, da mudança da capital, da construção da infraestrutura rodoviária e hidroelétrica, da implantação da SUDE-NE e subsídios para o setor industrial. Cada uma dessas decisões pro-vocou fortes debates. Juscelino Kubitschek tinha que debater, mobilizar aliados, contrapor-se às ideias e propostas da oposição.

Ao lado dos grandes temas, havia acusações de corrupção, desvio de verbas, superfaturamentos, mas sem diminuir o tempo dos debates pelos grandes temas que eram feitos e saiam nos jornais e nas rádios, quando nem havia televisão, muito menos TV Câmara e TV Senado. Eram debates de ideias e interesses, demonstravam visões diferentes e os discursos tinham consequências sobre a realidade. Não se esgo-tavam nas denúncias nem em demissões e prisões, muito menos no vazio.

Acompanhei o “Tempo das Reformas”, aquele das discussões a favor ou contra as reformas agrária, trabalhista e fiscal, na política externa. Os debates eram acirrados, entre esquerda e direita, com conceitos, ideologias, propostas novas e velhas ideias que persistiam. Também houve denúncias de corrupção, mas sem perder o rumo das grandes causas.

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A partir daí, comecei a participar mais intensamente, ainda fora do Congresso, acompanhando os debates durante os “Anos de Chum-bo”; que foram também considerados “Anos do Milagre”. No Con-gresso havia coragem, ousadia, riscos, muitas contestações e crença no futuro. Aqui se construía um país livre ou controlado; soberano ou independente; justo ou injusto; rico ou pobre; e para cada um desses caminhos havia alternativas e debates. Que afloravam, repercutiam, criavam seguidores e opositores.

Participei ainda mais dos “Anos da Redemocratização”, quando os de-bates refletiam as ruas e repercutiam nelas. Os debates eram: “o que fazer”, “se fazer”, “como fazer”, “quando fazer”. O Congresso casava com as ruas, e conseguimos Anistia, Diretas, Constituinte.

Hoje, sou senador e assisto aos debates de dentro. Sou parte deles, mas devo reconhecer que ou tendemos a endeusar a história, e mos-trar o passado como algo grandioso que não foi; ou a demonizar o presente e não ver os grandes feitos realizados; ou nossos debates atuais caíram muito em relação ao passado. Primeiro, porque não es-tamos presentes no Congresso. Dedicamos mais tempo ao importan-te trabalho da convivência com a população em cada estado do que ao trabalho de debater ideias, parlamentar, aprovar leis, construir um país. Segundo, porque concentramos nossos discursos nas denúncias de corrupção, na leitura de relatórios, na subserviência às Medidas Provisórias. Em vez de pavimentar o solo da história, parece que senti-mos prazer em pisar na lama, sem sair do lugar.

Corretamente, denunciamos atos corruptos, mas não debatemos me-didas que eliminem a corrupção. Como “Anos Esquecidos”, porque ne-nhum dos nossos discursos ficará para o futuro, como ficaram os de Nabuco e Cotegipe.

Dois derretimentosO Globo – 11 de outubro de 2008

O mundo assiste nestes dias, ao derretimento simultâneo das calotas polares e do sistema financeiro global. A causa dos dois derretimentos é a mesma. A culpa de ambos é de políticos sem visão nem liderança e

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de banqueiros irresponsáveis, e de um sistema que empurra o proces-so econômico para a sua própria falência. Os bancos são culpados por causa da leviandade com que manejaram depósitos e empréstimos, com base em moeda podre; os governantes, porque deixaram que isso chegasse até a falência; e os consumidores pelos empréstimos neces-sários para atender à voracidade consumista.

Por trás da ciranda financeira estão o setor produtivo e o consumidor, um querendo vender mais, outro gastar mais. A voracidade de consu-mo e produção empurra o sistema bancário para o crédito fácil, sem bases sólidas. Buscando lucros excessivos, os bancos criam moeda sem sustentação e fazem empréstimos de risco; querendo mostrar taxa de crescimento, os governantes incentivam essa irresponsabilidade. Ape-sar dessas causas, as saídas propostas continuam concentradas no sis-tema financeiro: injeções de dinheiro público, como forma de evitar a quebra dos bancos. Nenhuma proposta que reoriente o rumo ou o funcionamento da economia.

A mesma lógica absurda prevalece no tratamento do problema ecoló-gico. Assim como o sistema financeiro, as geleiras também estão der-retendo. Mas não enfrentamos as causas do problema: a voracidade da produção e do consumo.

Entretanto, os derretimentos podem ser um alerta para juntar os pro-blemas financeiro e ecológico, e redefinir os propósitos e prioridades para uma economia saudável, sustentável, sem riscos financeiros nem ecológicos. Isso exige mudar, tanto o tipo de produtos que definem riqueza, quanto o perfil da sua distribuição entre classes e gerações.

Foi graças à crise de 1929 que o Brasil reorientou seu modelo expor-tador-agrícola, criando uma nova economia industrial. Na crise do pe-tróleo de 1973, que coincidiu com o início da revolução na informática, o Brasil investiu na alternativa do etanol, mas não mudou sua matriz de transportes, baseada nos veículos rodoviários; nem de industriali-zação, baseada no automóvel; e em vez de investir na educação e na ciência da computação, preferiu a reserva de mercado para produzir computadores ineficientes, com tecnologia e componentes importados.Esta crise de 2008 traz outra oportunidade, desde que consideremos: a) formular regras que definam responsabilidades e limites à mani-pulação financeira e monetária, combatendo tanto a irresponsabili-

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dade dos banqueiros que quebram bancos quanto dos governantes que criam inflação; b) deixar de concentrar o problema na conjuntura financeira, buscando alternativas na base da crise, que é o sistema produtivo ecológica e financeiramente depredador; c) orientar o pro-cesso produtivo para setores que não sejam depredadores nem forcem a máquina de crédito além dos seus limites; d) perceber que o setor mais importante é o dos investimentos públicos, uma espécie de key-nesianismo produtivo socialmente orientado e fiscal, financeira e mo-netariamente responsável; e) dar máxima prioridade aos investimentos em educação, ciência e tecnologia, setores dinâmicos e de baixo custo, que não necessitam de crédito ao consumidor, são ecologicamente limpos e representam o verdadeiro capital do século XXI.

O Brasil perde oportunidades desde a cana-de-açúcar, o ouro, o café, a borracha, a indústria mecânica. Mais uma oportunidade surgiu pro-vocada pelo duplo derretimento dos bancos e dos polos, simultanea-mente à possibilidade de sermos um centro produtor de energia.

Falta escolher o modelo de produção (“o que” e “como” produzir) do futuro; que não dependa tanto de crédito para o consumidor, não des-trua o meio ambiente nem aumente a concentração de renda. Um modelo que seja baseado em investimentos sociais, com respeito à ecologia e distribuindo os benefícios do progresso, nesta e nas próxi-mas gerações.

Efêmero e EternoO Globo – 07 de junho de 2008

Na biologia, todos somos efêmeros; na história, alguns conseguem ser eternos. O Brasil assistiu o triste adeus a um político, mostrando a vida efêmera, mas ficando na história como cidadão eterno.

O que fez a diferença, não foi apenas o fato do senador Jefferson Péres ter sido um defensor da ética, em um mundo político corrom-pido por suas regras e práticas. Há muitos outros como ele, mas não receberão o mesmo tratamento. A diferença é que ele defendia a ética como uma causa. Não ficou prisioneiro da política do efêmero, de cada escândalo.

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Outros políticos brasileiros têm suas mãos limpas de dinheiro público e denunciam crimes de corrupção. Mas, raros conseguem sair da efeme-ridade do dia-a-dia do jogo político, para mergulhar na permanência histórica das decisões que mudam o País. Inclusive para fazê-lo sem corrupção.

A política ficou efêmera, e, em consequência, os políticos também. Perdemos a dimensão histórica de nossos gestos. O mandato a ser-viço da história inverteu-se na política a serviço da manutenção do mandato. A atividade pública e histórica ficou privada e circunstancial. Essa é a principal causa da tragédia do vazio político, do descrédito, da descrença.

Ao ter consciência de como é efêmera sua existência, o soldado sabe que há uma história a ser construída com sua própria vida. E fica eter-no, por ser efêmero. Perdemos este sentimento: a história sumiu da política. A urna substituiu a história, o eleitor ao povo, as convicções foram substituídas por interesses, as concessões passaram a ser regra, a corrupção é apenas um sintoma, grave, de uma doença maior: a política da rotina, fazendo com que o político desapareça com seu mandato, não fica como símbolo, marco na história que ele ajudou a construir.

Jefferson soube fazer a política do permanente. Morreu como um sol-dado, atingido por um tiro de dentro do próprio peito, no campo de batalha da história. Ele demonstrou ter tido consciência de seu pa-pel histórico, quando assumiu que não seria candidato outra vez, nas condições da política atual: nada acrescentaria à sua biografia, nem aumentaria sua contribuição à história. Sabia inclusive dos riscos de continuar na política; nas eleições com financiamento baseado no se-tor privado, no vazio do dia-a-dia, no jogo sem consequência maior.Preferia deixar a política para deixar de ser efêmero, porque seu man-dato devia estar a serviço do País. Sua vontade de sair estava no co-ração que o tirou da cena política e colocou-o no cenário histórico: do efêmero para o eterno.

A ética era sua bandeira; mas também a soberania do Brasil sobre seus recursos, especialmente a Amazônia; o bem-estar de seu povo, a educação, a saúde, o emprego. Defendia insistentemente um pro-grama republicano que fizesse do País uma Nação, para todos e com

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futuro. Tentou isso aceitando compor um chapa à Presidência mesmo sabendo que o efêmero tem muito mais votos. Ele enfrentava críticas ao defender o rigor fiscal e dizer que seu compromisso era maior com o País e o seu povo, do que com o eleitor do momento, no dia da elei-ção. E disse que o descontente com sua coerência não precisava dar--lhe o voto; preferia ir para casa tranquilo, como um homem-de-bem comprometido com seu País, que tentou mudar.

Ele tinha o sentimento de Nação e de história, essa foi sua diferença. Não pertencia a qualquer corporação, nem apenas a seu tempo. Não votava pensando na próxima eleição, mas no caráter permanente da história. Não votava conforme queria o eleitor, mas como precisava o povo e a nação brasileira. Sabia que era um ser efêmero, mas fazia política comprometida com a permanência do povo e do Brasil.

Foi essa maneira de fazer política, comprometida com a história, que fez dele um político eterno. Independente do mandato, que ele não procuraria repetir, e independentemente da própria morte.

Era tão incorruptível que não se submeteu à política efêmera; mesmo no tempo em que o efêmero domina a política. Isso fez toda a dife-rença.

Fuzilamento ou embrutecimentoO Globo – 03 de janeiro de 2009

Não existe um único adulto pensante neste país que não tenha se sen-tindo embrutecido, moral ou intelectualmente, ou ambos. Perdemos a capacidade de entender e explicar o que se passa ao redor, e ainda mais de propor alternativas à realidade que nos descontenta. E perde-mos a capacidade de sentir e sofrer com o que se passa ao redor, ain-da mais de usar o sentimento para lutar por mudanças na realidade. Até algum tempo atrás, sentíamos ao ver e tínhamos propostas com esperança. O embrutecimento não ocorria porque explicávamos, pro-púnhamos e a esperança nos aliviava.

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Depois de termos conseguido desenvolver e fazer do Brasil uma potên-cia mundial na economia, termos eleito um presidente vindo das ca-madas mais pobres, com um discurso radicalmente diferente de todos os anteriores, substituindo outro que também vinha da esquerda, só nos resta o embrutecimento intelectual ao olharmos ao redor e perce-bermos que nada mudou na estrutura social do País. Ainda mais grave, ao pensarmos que faltam bandeiras, que os partidos ficaram todos iguais, para não dizer que os políticos também. Não há quem não se sinta sem lógica, sem razão, sem rumo. Ficamos brutos de ideias e de sonhos.

Raros não se sentem brutos uma outra vez ou quase sempre ao olhar de dentro do ar-condicionado do carro para os meninos pobres per-didos, pedindo esmolas, cheirando cola, ou simplesmente deitados na calçada ao lado dos pais. Salvo alguns sem sentimento, não há quem não se sinta bruto uma ou outra vez ao saber que, no Brasil, 60 crian-ças abandonam a escola a cada minuto do ano letivo. Que apesar de, felizmente, existem políticas de transferências de renda a desigual-dade não diminui e a pobreza não reduz a níveis que aliviem nossa brutalidade.

Há um forte embrutecimento intelectual que nos impede de entender a realidade e um embrutecimento moral que nos permite aceitar viver nela, sem entendê-la.

Essa situação é ainda maior quando olhamos o mundo como um todo e não apenas o nosso. E percebemos que tudo caminha para uma hecatombe ecológica da Terra aquecida e uma dessemelhança da es-pécie humana provocada pela desigualdade crescente. E sem ideias empolgantes para nos inspirar.

O embrutecimento termina nos dando saudades do tempo em que Victor Serge escreveu em sua autobiografia que, nos idos de 1933, na URSS stalinista, “não havia um único adulto pensante neste país que alguma vez não tenha achado que podia ser fuzilado”. Talvez a de-mocracia seja nossa única conquista, mas não há um adulto pensante neste país que alguma vez não tenha achado que pode ser assaltado com todas suas consequências.

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Além disto, se tiver de escolher, prefiro o risco do fuzilamento ao risco do embrutecimento. O primeiro tira a vida de um ser humano, o outro a dignidade de ser humano.

O PatriomanismoJornal do Commercio – 13 de junho de 2008

No começo dos anos 1980, publiquei um artigo no Jornal de Brasília, com o título “O Alasca Verde”. Nele, alertava para o risco da venda da Amazônia como forma de pagar a dívida externa, nos mesmos moldes do que ocorrera em 1867, quando a Rússia vendeu o Alasca para os EUA. Em 2005, escrevi outro artigo no Jornal do Com-mercio, com o título “Alasca Deserto” dizendo que a troca da dívida ainda não tinha se realizado, mas que, naquele intervalo de tempo, parte considerável da floresta fora destruída. Como se disséssemos ao mundo que a Amazônia é nossa e temos o direito de destruí-la.

Chegamos a 2008, e a Amazônia continua sob cobiça internacional sob o argumento de que nossas florestas se tornaram uma reserva que precisa ser mantida. A incorporação da Amazônia, por uma nação ou pela comunidade internacional, passou a ser defendida por alguns, como único modo de preservá-la.

Não há dúvida quanto ao nosso direito de preservar o território ama-zônico. Não podemos abrir mão desse direito, nem do compromisso para com as gerações futuras. Os brasileiros não perdoarão os gover-nantes que contribuírem para perdermos a soberania sobre a Ama-zônia, nem aqueles que ficarem omissos diante de sua destruição. A soberania não nos dá o direito de destruir a floresta, como temos feito.

A Terra é um imenso condomínio, cada país com soberania e respon-sabilidades, como moradores de apartamentos. Os países não podem usar sua soberania contra os interesses dos outros. Os EUA, a Europa e a China não têm o direito de continuar destruindo a natureza com a avidez da indústria que atende à orgia consumista. O efeito estufa deriva muito mais da imensa produção industrial dos países ricos do que da destruição da Amazônia. Mesmo assim, os EUA continuam se

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negando a assinar o Protocolo de Kyoto, que tenta colocar um mínimo de disciplina no processo industrial do mundo.

Não podemos seguir o péssimo exemplo deles. Precisamos demonstrar que a Amazônia é nossa e por isso devemos protegê-la como patrimô-nio brasileiro e da humanidade, e não apenas como um território. Mas cuidando para não transformá-la em deserto.

Lamentavelmente, isso será difícil. As estatísticas mostram que as reser-vas florestais da Amazônia caminham rapidamente para o desapareci-mento. De um lado, líderes civis e empresários defendem a exploração do que ainda existe. De outro, a estratégia é proteger a Amazônia ocupando-a o mais rápido possível, mesmo que isso signifique destruir floresta. Um grupo pensa que é melhor transformar suas árvores em madeira e dinheiro, e suas terras em commodities, como a soja ou o etanol, do que conservar a floresta. São os patriotas gananciosos. Outro considera melhor um território desértico soberano do que uma floresta sob influência estrangeira: são os patriotas suicidas. Por outro lado, há ONGs e sertanistas dispostos a abrir mão da soberania para manter a floresta. São os humanistas antipatriotas.

A destruição da Amazônia ocorre, sobretudo, por falta de determina-ção nacional de optar por um desenvolvimento que respeite e mante-nha o patrimônio brasileiro e da humanidade. A soberania não deve ser apenas territorial, mas também patrimonial. Nesse caso, a con-servação é uma condição básica da soberania. E não somente para o Brasil, mas para toda a humanidade.

Transformar a nossa Amazônia em deserto é tão grave quanto en-tregá-la. A Amazônia não pode ser um Alasca Verde, como dizia há 25 anos, nem um Alasca Deserto, como começa a parecer. Para isso, é preciso combinar patriotismo e humanismo, e inventar no Brasil o “patriomanismo”.

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Traidores AnônimosO Globo – 25 de outubro de 2008

Há algumas décadas, o Brasil estava no mesmo padrão que a China e a Índia, na área de pesquisas espaciais. Hoje, o Brasil deu passos atrás e está com seu programa praticamente paralisado, apesar da existência de acordos internacionais que nos dão a ideia de movimen-to. Enquanto isso, a China já envia missões tripuladas ao espaço, e a Índia, além de astronautas ao espaço, acaba de enviar uma nave não tripulada à Lua.

Alguém traiu o Brasil nesse período. Não tivemos qualquer catástrofe natural que nos forçasse ao retrocesso que tivemos. Ao contrário, Ín-dia e China, com terremotos, inundações e vendavais, têm tragédias naturais maiores do que as secas brasileiras. Politicamente, ambos são países mais conturbados, divididos internamente, com pobreza ainda mais gritante.

Alguém traiu o Brasil, ao tomar as decisões que nos fizeram estagnar em matéria de ciência e tecnologia.

É difícil, e talvez inconveniente, apontar os nomes dos responsáveis entre os muitos dirigentes dos governos que tivemos. Mas é possível e conveniente apontar a traição decorrente de uma mentalidade e de um estilo de fazer política que caracterizam os eleitos e os eleitores.

Fomos traídos por nossa preferência pelo consumo no presente, em vez da poupança e do investimento voltados para o futuro. Toda a economia brasileira é concentrada em resultados imediatos, sem es-tratégia para o longo prazo. Queremos consumir o máximo e o mais rapidamente possível, sem preocupação com os limites que esse con-sumo voraz impõe. Driblamos esses limites com dívidas externa e inter-na e com inflação. Não aceitamos crescer primeiro na infraestrutura, antes de aumentar o consumo, nem crescermos sem endividamento ou emissão de moeda.

Fomos traídos pelo nosso gosto pelos caminhos mais fáceis, que nos levam a adotar as técnicas estrangeiras de que precisamos, em vez de desenvolvê-las internamente. Enquanto outros países, como Coréia,

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China e Índia, inventaram seus próprios produtos, ainda que com base no conhecimento externo, nós preferimos pura e simplesmente com-prar as técnicas, sem nem sequer aprender a copiá-las.

Fomos traídos pela primazia do investimento universitário nas áreas das ciências sociais e humanas, no lugar das ciências exatas. Por dé-cadas, enquanto os demais países enviavam estudantes em grandes quantidades ao exterior para aprenderem técnicas e ciências, nós en-viamos poucos para estudar as áreas humanas, por vezes gastando milhões para o estudo da literatura brasileira em universidades estran-geiras, com orientadores que nem sequer liam Português.

Fomos traídos pela adoção de um desenvolvimento industrial baseado no protecionismo, que evitou a concorrência que teria feito o Brasil desenvolver sua própria capacidade científica e tecnológica. O melhor exemplo de traição foi a criação de reserva de mercado para os pro-dutores de máquinas, em lugar do investimento na formação dos cria-dores de sistemas. Protegemos a cópia dos hardwares, e não aprende-mos a desenvolver os softwares.

Mas, sobretudo, nossa maior traição foi não ter feito a mesma revolu-ção educacional que fizeram países com menos condições do que nós – tais como Irlanda, Coréia, Índia, China, para não falar de Finlândia e outros – e que teria criado a base da qual sairiam nossos cientistas. Aqueles países investiram na criação de inteligência, e agora come-çam a colher os resultados. No lugar de investir em conhecimento, nos endividamos para produzir bens materiais, na maior parte simples bens primários, as “commodities”.

A Esquerda Mudou de LadoEl País – 10 de outubro de 2009

Há, no ar, a sensação de que a Europa abandonou a esquerda. A cada eleição nacional, percebe-se uma migração de votos em direção a partidos e candidatos mais conservadores. Os próprios candidatos e partidos de esquerda mudam seus discursos em direção a propostas mais conservadoras. É exatamente por isto que os eleitores optam pe-

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los conservadores: se os discursos ficaram parecidos, melhor votar nos conservadores autênticos.

Nessas condições, a esquerda fica em um beco sem saída: se mantiver o velho e tradicional discurso, estará fora de sintonia com a realidade atual, se fizer o discurso conservador, perde para os concorrentes.

Apesar disso, se os problemas sociais e civilizatórios continuam exigin-do reformas estruturais, a esquerda continua necessária. Mas uma es-querda diferente. Uma esquerda que se autorrevolucione antes mes-mo de revolucionar a realidade. A primeira dessas autorrevoluções está em liberar-se da economia como centro de suas propostas revo-lucionárias. A esquerda precisa liberar-se da economia das amarras ideológicas e liberar-se ideologicamente dela. A realidade mostra que a economia tem restrições técnicas que não permitem sua manipula-ção ideológica. Mostrou também que o sonho utópico da igualdade da renda, graças a um Estado controlador, exige autoritarismo, impede as liberdades individuais, mantém privilégios e ainda cria graves inefici-ências.

A saída é a formulação de um discurso de esquerda em outros aspec-tos de vida social, no lugar da tradição de concentrar-se na economia. Para continuar viva, a esquerda precisa descobrir e assumir os novos desafios das mudanças necessárias. Ir além do socialismo que contes-tava o capitalismo e contestar e oferecer novos horizontes à própria civilização individual como desenvolvida nos séculos XIX e XX, tanto sob a forma capitalista quanto socialista.

A agenda da esquerda deve carregar novas bandeiras, como o equi-líbrio ecológico ainda ausente dos partidos de esquerda tradicional; a universalização de um programa de atendimento de saúde com quali-dade igual para ricos e pobres; a garantia de um sistema de emprego social capaz de assegurar uma renda com produtividade a cada pes-soa; um sistema previdenciário compensador; um programa para a ju-ventude; o apoio e a prioridade à cultura e a produção de outros bens imateriais. Um programa de revolução educacional capaz de fazer com que a educação do filho do trabalhador tenha a mesma qualidade que a educação do filho do capitalista. No lugar do velho discurso de que “o socialismo consiste em tomar o capital do capitalista para dar ao trabalhador, por meio do Estado”, assumir que “o socialismo está em

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usar o Estado para colocar o filho do trabalhador na mesma escola do filho do capitalista”.

Sobretudo a grande bandeira da esquerda está em fazer a globaliza-ção social no lugar da globalização econômica feita pela direita – um programa de investimentos sociais em escala mundial para quebrar a desigualdade crescente entre os ricos e os pobres do mundo. Não mais o velho discurso de Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, mas entre os ricos do mundo, não importa o país em que vivam, e os pobres de todos os países. O trabalho da esquerda consiste em emancipar pesso-as pobres desse Gulag Social espalhado por todo o planeta separado por uma Cortina de Ouro dos ricos do Primeiro Mundo Internacional. A esquerda que construiu ou tolerou a Cortina de Ferro que separava países por ideologia, agora deve ser a vanguarda da derrubada da Cortina de Ouro que serpenteia todo o planeta, cortando todos os pa-íses em dois, separando incluídos e excluídos no mundo inteiro.

O problema é como convencer os eleitores dos países-com-maioria--da-população-de-alta-renda a fazer um programa de solidariedade social internacional em beneficio dos pobres do mundo, da mesma forma que depois da II Guerra Mundial a direita convenceu seus povos a fazerem a transferência de renda para investimentos em países po-bres, em benefício dos ricos destes últimos países.

Essa dificuldade talvez seja o que dificulta o futuro da esquerda eu-ropeia, deixando o desafio para a esquerda dos países-com-maioria--da-população-de-baixa-renda. Mas nesses países, os líderes de es-querda estão propondo demagogicamente elevar o consumo de suas populações ao nível dos países ricos, sem consideração pelo social, nem pelo ecológico.

Atraso PolíticoO Globo – 19 de dezembro de 2009

Os problemas ficaram globais, mas a política ficou provinciana. O ho-rizonte de tempo ficou centenário, mas a política continua limitada aos quatro anos à frente. As catástrofes que ameaçam a humanida-de adiante não cabem dentro de cada país, mas as preocupações da

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política se limitam ao espaço nacional. Prisioneiros de cada país e do horizonte da próxima eleição, a política e nós, políticos, estamos des-preparados para enfrentarmos as tragédias adiante.

A globalização apequenou os políticos. Até algumas décadas, eles fa-ziam discursos internacionais – pelo socialismo, capitalismo, indepen-dência, desenvolvimento –, falavam para o mundo defendendo suas ideias. Agora, falam apenas para seus eleitores, conforme a orientação dos marqueteiros, baseados nas pesquisas de opinião. A globalização transformou os líderes mundiais do passado em gerentes comerciais de seus respectivos países.

Para encontrarmos caminhos para cada país, precisaremos encontrar caminhos para o mundo inteiro. E, para tanto, precisaremos de um tipo de político que ainda não temos. Pelo menos cinco desafios deve-rão ser enfrentados pela política e pelos políticos nos próximos anos e décadas, para que eles estejam em condições de conduzir os destinos de seus países e da humanidade.

O primeiro desafio é espacial: ser nacional e global, ser capaz de atender às aspirações locais de seus eleitores, sem perder de vista a necessidade de sacrifícios locais em benefício de um planeta equili-brado no futuro. Esse é um desafio para o qual a atual geração não parece preparada.

O segundo desafio é temporal: ganhar votos de eleitores imediatistas e ao mesmo tempo olhar para o longo prazo das futuras gerações. Combinar o horizonte de décadas adiante, com o horizonte dos meses até as eleições seguintes.

O terceiro desafio é atravessar a fronteira civilizatória: ir além do de-bate entre o social e o econômico, e formular uma proposta alternativa para a próxima civilização. Em vez de apenas propor como produzir mais e distribuir melhor, pensar no que produzir e em como produzir. Formular novos propósitos: mais tempo livre, mais produtos públicos, nova composição do produto, nova matriz de energia. Isso vai exigir trocar a busca pelo crescimento pela busca de outro tipo de objetivo, que pode implicar inclusive um decrescimento econômico que traga aumento na qualidade de vida.

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O quarto desafio é implícito à atividade política: como se relacionar com o eleitor. O político das próximas décadas não deve ser apenas o boneco ventrículo dos marqueteiros e da opinião pública. Terá de se arriscar a propor o novo, mesmo sabendo que diminuem suas chances de ganhar eleições. Voltar ao tempo do Estadista, mas desta vez com sentimento planetário. Além disso, o político não pode se dar ao luxo de ouvir os eleitores apenas por meio da mídia. A comunicação tem que ser a cada minuto, pelos novos meios de comunicação instantâ-nea.

Finalmente, o quinto desafio é de mentalidade. O político do futu-ro deve ser um construtor da mentalidade que permitirá o salto da atual civilização do consumo depredador privado para a mentalidade do equilíbrio ecológico, da satisfação com o uso de bens públicos; da substituição da divindade do consumo pelo reino do bem-estar. E o caminho para mudar a mentalidade é uma revolução educacional em escala global. Todos na escola, em uma escola de novo tipo.

O Estado LimpoO Globo - 31 de março de 2009

A crise de 1929 colocou o papel econômico do Estado no centro do debate político e social. Desde então, defende-se o estado grande ou pequeno; forte, fraco e até desnecessário; atento, interventor ou au-sente. A crise de 2008 deve trazer outra dimensão para este debate: não sobre tamanho, força, poder, mas sobre limpeza ou sujeira do estado. O desafio é como limpá-lo e fazer um Estado limpo. Ao longo do século o Estado esteve sujo: pelo autoritarismo; a burocracia, a cor-rupção e o cooperativismo; em consequência, a ineficiência.

Nos países socialistas, além do autoritarismo mostrou sua principal cara, mas também carregou outras sujeiras.

Os exemplos são claros: nossas universidades estatais só recebem os filhos dos ricos, porque o estado abandonou a educação de base dos pobres; nossas estatais criaram privilégios para seus servidores, em vez

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de distribuir o resultado de sua rentabilidade, muitas vezes sacrificada pelo corporativismo; dividiu a aposentadoria em duas: uma aposenta-doria na hora da morte e salários de fome outros com aposentadorias precoces e super salários.

O Brasil precisa limpar o estado com reformas:- Transparência: só a total transparência permite acabar a corrupção e os privilégios. No princípio seria apenas um choque de verdade, os direitos adquiridos não permitiriam acabarem com os privilégios de imediato, mas eles morreriam em curto tempo.

- Democracia: um estado autoritário não é limpo, mas a democracia, além da transparência de ser participativo, sem o que os grotões do poder continuarão sujando o aparelho governamental.

- Paz e Direitos Humanos: Só o Estado capaz de manter a paz social e o respeito aos Direitos Humanos pode ser considerado limpo.

- Igualdade de Oportunidade social Estado limpo cria as condições para a igualdade de oportunidade, com mecanismos de proteção aos pobres, aos incapacitados, mas sobretudo pela garantia de educação igual de qualidade para todos. Esta é a chance do Estado limpo, por-que trás praticamente todas as outras limpezas.

- Estabilidade Monetária: Além de concentração da renda a inflação, que é um de seus instrumentos, é característica de um Estado sujo: o Estado limpo tem de ter responsabilidade fiscal.

- Déficit Social: Mas não pode fazer às custas das camadas pobre ain-da menos das crianças. O estado limpo tem que buscar atender as necessidades sociais, sobretudo por políticas eficientes na gestão da economia criando emprego e renda, mas também oferecendo os ser-viços sociais básicos e, ainda além a assistência social quando neces-sário nos casos excepcionais.

- Futuro: O Estado limpo é comprometido com o futuro. O estado ime-diatista, do populismo, das obras de fachadas, da propaganda é um estado sujo. O Estado limpo tem um compromisso especial com as crianças do país, com infância abandonada, sem escola todo dia, toda hora, é um estado sujo.

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- Educação: Para realizar sua limpeza, o centro do Estado limpo é seu compromisso radical com a educação de todo sem povo, com a máxi-ma qualidade, independente da classe social da pessoa.

Estratégia dos DeusesRevista Profissão Mestre – junho de 2009

No meu livro de ficção os “Deuses Subterrâneos”, publicado pela Edi-tora Record, um grupo de seres superiores vive há centenas de milha-res de anos embaixo da terra, fugindo dos efeitos de uma radiação que cobrira toda a superfície. De lá escaparam dois androides imunes à radiação que, como Adão e Eva, povoaram o mundo.

Muitos séculos depois da fuga dos androides, os seres superiores des-cobrem que sua morada subterrânea estava ameaçada por tremores de terra provocados por bombas atômicas, detonadas pelos descen-dentes dos androides escapados. E ficam assustados pela possibilidade de guerra entre duas nações portadoras de bombas atômicas. Com a guerra nuclear, as camadas tectônicas se moveriam até destruir seu privilegiado habitat.

Por isso, decidem acabar com a inteligente e louca espécie dos an-droides, mas sem confronto nuclear. Levariam a paz entre as nações, mas degradariam seu meio ambiente até que ficasse impossível aos androides sobreviver de maneira civilizada.

Para executar essa estratégia, sequestram alguns androides, fazem melhorias nos seus cérebros, dão-lhes um talento especial de cientis-tas, engenheiros, economistas, políticos, e os devolvem à superfície, para que fizessem a paz entre as nações e o desenvolvimento econô-mico que destruiria a natureza e à destruição ecológica. Era como se Gorbachev tivesse sido um dos programados pelos “Deuses Subter-râneos”. Depois que o livro foi publicado, acabou a Guerra Fria. E o aquecimento global parece ser resultado da segunda parte da estra-tégia deles. Mas, como os deuses subterrâneos só existem na ficção, a catástrofe em marcha é resultado da insanidade dos seres humanos.

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Arthur Koestler, um escritor húngaro, disse que o ser humano tem um defeito de fabricação, pois surgiu de uma evolução biológica que lhe deu a mente inteligente-científica, mas não o sentimento da mente--ética. O ser humano tem a capacidade de criar a maravilha científica da bomba atômica, mas não a capacidade sentimental de não usá-la. Tem a capacidade de produzir mais de US$40 trilhões anuais, mas não a capacidade de distribuir bem essa renda, ou de reduzir a produção para evitar a elevação do nível dos mares, o aquecimento global, a desarticulação da agricultura.

Prova disso são as estratégias usadas para combater a atual crise eco-nômica. Parece que a programação feita pelos Deuses Subterrâneos impede os humanos que fazem política, no Brasil e no Mundo, de bus-car saídas harmônicas, social e ecologicamente. A saída para a crise está sendo escolhida dentro da lógica, sem sentimento nem sentido, sem capacidade para imaginar uma alternativa que combine os temas financeiros e econômicos aos problemas sociais e ambientais.

Aparentemente, os dirigentes brasileiros foram sequestrados pelos Deuses Subterrâneos, foram reprogramados para conquistar o poder e destruir nossa natureza. Afinal, no livro, a residência dos deuses fica bem perto de Brasília. Não há outra explicação para o gênio político da elite brasileira, salvo ter sido programado pelos Deuses Subterrâne-os, seguindo a estratégia de fazendo a economia crescer, sem guerras, mas rumo à catástrofe ecológica e social.

Talvez, nem a programação feita pelos Deuses Subterrâneos consiga recuperar o crescimento dessa economia que depreda o ambiente e privilegia camadas sociais. Talvez os seres humanos precisem se li-vrar daqueles cujas mentes estão programadas para a destruição, em nome do crescimento industrial. Como se o mal pudesse ser o bem.

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ImoralO Globo – 18 de julho de 2009

No Brasil, é normal seus dirigentes serem vistos e sentirem-se como casta, com privilégios muito além dos direitos aos quais o povo tem acesso. Os serviços de saúde e educação à disposição das famílias dos eleitos são completamente diferentes daqueles dos seus eleitores. Ninguém se espanta com o fato de o teto do salário no setor público ser 25 vezes maior que o piso salarial do professor – cujo valor, apesar de tão pequeno, até hoje, um ano depois de sancionado, ainda é con-testado na Justiça, como inconstitucional.

É visto como natural que a parcela rica do Brasil tenha o maior índice de cirurgias plásticas de rejuvenescimento em todo o mundo e a par-cela pobre não tenha acesso nem mesmo às mais fundamentais ope-rações; que os 10% mais ricos tenham esperança de vida de 72 anos e os 10% mais pobres de apenas 45 anos. Todos aceitam que milhares peçam esmolas para comprar comida e remédios que enchem as pra-teleiras de farmácias e supermercados.

Considera-se normal que os 1% mais ricos da população recebam 20,5% da renda nacional e os 50% mais pobres recebam apenas 13,2%; que 19% das casas não tenham água encanada e 51% não tenham saneamento ou esgoto. Aceitamos que 50 milhões dependam de ajuda no valor de R$182 por mês para a sobrevivência de toda a família, R$6 por dia, sem chance de trabalho com salário digno.

É natural que crianças vivam nas ruas, sejam mendigos, pivetes, pros-titutas, trabalhadores, e não estudantes; que 11% delas cheguem aos 10 anos sem saber ler; e 60 abandonem a escola a cada minuto do ano letivo, antes da conclusão do Ensino Médio; e que entre as que permanecem, muitas vejam a escola como um restaurante-mirim que fornece merenda. É aceito que os professores tenham a menor remu-neração entre os profissionais com formação equivalente; que deem aulas em escolas sem água nem luz, raras com computadores e siste-mas de vídeo. Ficou normal que as escolas tenham se transformado em campos de batalha, os professores sejam agredidos, as aulas vira-ram balbúrdia.

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Mesmo sem guerra, nos acostumamos com 125 mil pessoas mortas por ano em consequência da violência. Aceita-se que o país com um dos cinco maiores territórios do mundo – além de litoral e espaço aé-reo – não apoie suficientemente suas Forças Armadas para defende-rem esse patrimônio.

Não discutimos sequer o fato de conviverem 4,5 milhões de univer-sitários ao lado de 14 milhões de analfabetos adultos e 40 milhões de analfabetos funcionais; de que, 121 anos depois da abolição da escravatura, a cor da elite seja tão predominante branca quanto era durante a escravidão; é aceito como normal que as universidades se-jam ocupadas, na imensa maioria, por jovens brancos e as prisões, por jovens negros; que em 120 anos da República, o Brasil tenha uma escola diferente para os ricos, na qualidade, da escola para os pobres; e que, depois de 20 anos de democracia, a corrupção seja vista como uma prática comum em todos os níveis da sociedade, especialmente entre os políticos.

É normal que nossas reservas florestais sejam devastadas sistemati-camente; e que apesar de todas as evidências da catástrofe do aque-cimento global, abramos mão de bilhões de reais em impostos para viabilizar o aumento na venda de automóveis privados, sem buscar uma reorientação dessa indústria, como forma de manter o emprego do trabalhador, o bem-estar do consumidor e o equilíbrio ecológico, a serviço das próximas gerações.

É normal prender quem rouba comida ou remédio para os filhos e dei-xar solto quem rouba bilhões, mas pode pagar bons advogados.E é normal, nos dias de hoje, que os partidos que lutavam contra as injustiças tenham optado pelo abandono dos sonhos, entregado-se às mesmas práticas do passado e esquecendo-se de suas promessas. Na República, com mais de 120 anos, é normal que a justiça, a escola, a saúde, o transporte, a moradia, a cultura sejam tão diferenciadas, conforme a classe social, que as pessoas não pareçam compatriotas.No Brasil, o anormal é normal; por isso, o normal é anormal. E imoral.

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Nosso CinquentenárioJornal do Commercio – 09 de janeiro de 2009

Os cinquenta anos da revolução cubana trouxeram avaliações con-centradas em presos políticos, pobreza econômica, falta de liberdades individuais, censura à imprensa. É como se todos os 50 anos se limi-tassem aos fracassos para a implantação de uma economia de mer-cado e uma democracia nos moldes ocidentais. Faltou uma análise nos aspectos negativos e positivos do que seria Cuba sem os 50 anos de revolução, e isto é possível de ser feito: basta comparar Cuba com outros países do continente.

Do ponto de vista da democracia, Cuba teria hoje um sistema multi-partidário, uma imprensa livre, como os demais países do Continente, lembrando-se do que estes passaram metade do século com regimes militares, torturando, prendendo e exilando. Na própria Cuba, não sabemos quanto tempo teria durado ainda a ditadura de Batista e seus sucessores, com o apoio dos “democratas” do Continente, se a revolu-ção de Fidel não o tivesse mandado para Miami.

Do ponto de vista da liberdade de imprensa, Cuba hoje deveria ter jor-nais livres, mas teria poucos leitores. Basta observar os resultados da alfabetização e da educação nos demais países do Continente, nestes 50 anos onde a imprensa é livre, mas pouquíssimos são capazes de ler e entender o que está escrito.

Se imaginarmos como seria Cuba sem a revolução, comparando-a com os países ao redor como o Brasil, por exemplo, ela hoje teria mais de 11% de analfabetismo no lugar de todos alfabetizados, ainda te-ria crianças sem matrícula, muitas apenas matriculadas, mas fora da escola, apenas 33% terminariam o ensino médio, no lugar de todos concluírem este nível de educação com frequência e horários integrais, desde os 4 anos até os 18, teria apenas 4% de sua população adulta na universidade, a maior parte tendo de pagar seus cursos, no lugar de quase todos com acesso ao ensino superior gratuito, como hoje oferece Cuba. Poderia haver em Cuba debate de ideais, como temos no Brasil, mas um debate limitado entre poucos, como ocorre no Brasil.

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Do ponto de vista da economia, não há dúvida que Cuba teria hoje uma renda per capita muito superior a que a revolução conseguiu, mas seria graças à monocultura da cana e aos serviços turísticos com cassinos e tudo o mais que esta atividade atrai, mas a renda estaria concentrada, nas mãos de poucos, como nos demais países do Conti-nente.

Nenhum dos êxitos dos cinquenta anos deve nos atrair ao ponto de copiar no Brasil o regime político criado pela revolução cubana, nosso caminho deve ser outro. Mas fechar os olhos para os êxitos da revolu-ção cubana é ignorar a maneira como o povo é tratado nos países que não fizeram suas revoluções.

Nestes cinquenta anos de revolução cubana, não fechemos os olhos para falhas nas opções políticas que ela fez, mas tampouco para os países que não fizeram suas revoluções. Até porque, agora e aqui, não temos uma ditadura, como lá eles tinham de Batista, não estamos a poucos quilômetros dos EUA, não há mais Guerra Fria, a URSS e o Leste Europeu já abandonaram o socialismo. Não temos desculpas para justificar copiar Cuba no plano político, nem desculpas para não fazer o que Cuba fez na área social. Para nós seria muito mais fácil e não estamos fazendo, porque não nos preocupamos em como acertar no Brasil sem necessidade de revolução nos moldes cubanos.

Preocupamos-nos em criticar os erros dos cinquenta anos de revolução em Cuba, e esquecemos-nos de criticar nosso cinquentenário sem re-volução nos setores sociais.

O que foi?O Globo – 26 de setembro de 2009

O que foi que aconteceu para que, depois de cento e vinte anos de República, o Brasil ainda seja um país tão dividido no acesso à saúde, à educação, à moradia, tão diferenciado entre pobres e ricos – como se tivéssemos uma aristocracia encastelada e um povo abandonado?

O que aconteceu para que, cento e vinte e um anos depois da Aboli-

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ção da Escravatura, as boas universidades continuem reservadas para brancos e as prisões para negros?

E por que a Justiça no Brasil se faz de maneira tão desigual quando julga um réu conforme a sua riqueza?

O que foi que aconteceu para que a corrupção seja tão tolerada pelas instituições e pelos eleitores, apesar de tão denunciada e criticada pela mídia?

O que aconteceu para que o sonho da energia renovável do etanol seja colocado de lado pela proposta da energia fóssil do petróleo?

Por que a hipótese do pré-sal domina muito mais o imaginário brasi-leiro do que a realidade da pré-escola?

O que foi que aconteceu para os partidos ficarem todos iguais? E os intelectuais calados em um silêncio reverencial? E os sindicatos aco-modados? E os estudantes dóceis diante de governos que não lhes oferecem a educação a que têm direito?

O que aconteceu para que o Senado, com 180 anos, respeitado e ad-mirado por seu passado, de repente, perdesse sua credibilidade?

O que foi que aconteceu para que a população considere que é me-lhor ficar parado nos monumentais engarrafamentos de automóveis a ir rápido graças à implantação de um eficiente sistema de transporte coletivo? E que motivo leva os governantes a não implementarem um eficiente sistema de transporte coletivo?

Por que os dirigentes perderam a capacidade de propor alternativas para os rumos do País?

O que aconteceu para os candidatos a presidente se preocuparem tanto com a aceleração do crescimento da economia sem imaginarem mudanças na estrutura social e econômica do País?

O que aconteceu que as famílias brasileiras se desarticularam, perde-ram aglutinação, fazendo com que as mulheres estejam sozinhas e os filhos nas ruas?

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O que aconteceu para que, no Brasil, o imposto para automóveis seja reduzido no mesmo ano em que se aumenta o imposto sobre os livros?

Que aconteceu com as escolas públicas que eram de qualidade e re-cebiam os filhos das classes média e alta, e agora estão abandonadas, apenas para os filhos dos pobres, a ponto de muitas escolas se trans-formarem em simples restaurantes aonde as crianças vão pela meren-da, sem aulas, sem dever de casa, sem aprendizado?

O que foi que aconteceu para o Brasil destruir a Mata Atlântica, redu-zida a apenas 3% do seu tamanho anterior?

O que foi que aconteceu para que o Brasil trate tão mal seus velhos, suas crianças, seus professores? E para que o Supremo Tribunal Fede-ral consiga com rapidez e naturalidade o aumento no teto salarial e demore a definir como constitucional o piso do salário para os profes-sores?

O que foi que aconteceu para os partidos políticos terem se derretido, na ausência de ideologia e de programa?

Como explicar que conseguimos saldar a dívida externa, mas não a social; usamos dólares para pagar bancos, mas não usamos reais para alfabetizar, educar, garantir acesso à saúde?

O que aconteceu que o pacato homem brasileiro se transformou em assassino no trânsito, destruidor de florestas, assaltante em sinais de trânsito, cínico diante do sofrimento social, conivente com a corrup-ção?

O que foi que aconteceu para que, no Brasil, viaduto ficasse mais im-portante do que escola e postos de saúde?

O que aconteceu que os centros de nossas cidades foram abandona-dos, substituídos por shoppings e condomínios? Como foi que o Brasil se transformou em um labirinto de muros dividindo e separando o seu povo em dois?

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O que foi que aconteceu que nossos universitários ficaram conserva-dores, egoisticamente voltados para si, e as universidades de costas para o povo?

O que aconteceu para permitir que o pragmatismo das pequenas transferências de rendas substituísse os sonhos de revolução social?

As Cores do PresidenteEl País – 13 janeiro de 2009

O Presidente Obama já está na história como o primeiro presidente negro dos EUA. Para os EUA e o mundo inteiro, especialmente a África, este é, um fato marcante. Há meio século, um negro não podia andar na mesma calçada, entrar nos mesmos banheiros, sentar nos mes-mos lugares, comer no mesmo restaurante dos brancos. E era impos-sível estudar nas mesmas escolas. A eleição de um presidente negro nos EUA é determinante na marcha da humanidade para o progresso social. Mas, nem os EUA, nem o presidente Obama tiveram ainda a oportunidade de mostrar ao mundo que têm o primeiro presidente do século XXI.

Para ser o primeiro presidente do século XXI, Mr. Obama terá de fazer uma inflexão na política e no comportamento dos EUA. Clinton e Bush, que fizeram parte do século XXI do ponto de vista cronológico, foram presidentes ainda do passado. Para ser o primeiro presidente do sécu-lo XXI, Mr. Obama terá que mudar o rumo dos EUA e o seu papel no mundo.

A primeira inflexão será trazer a preocupação ambiental para o centro do debate e das decisões na economia, na sociedade, na ocupação da Terra pelos norte-americanos e demais cidadãos do mundo. Precisará começar por assinar o acordo de Kyoto, até hoje recusado pelos EUA. E ir além. Propor, inspirar, formular, aprovar dentro dos EUA e nos fóruns internacionais medidas que possam reverter a clara tendência suici-da do projeto civilizatório. A economia tem que ser reorientada para um compromisso com o equilíbrio ecológico. O candidato Obama deu demonstrações neste sentido. Muitos dos que o apoiaram, e os jovens

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que nele votaram têm esta expectativa. Para ser considerado o primei-ro presidente norte americano do século XXI é de esperar que Obama, além de presidente negro, seja um presidente verde também.

A preocupação social com a pobreza é uma segunda inflexão neces-sária para fazer de Obama um presidente do século XXI. O mundo caminha para uma divisão tão gritante entre os que fazem parte e os excluídos da modernidade, que podemos caminhar para uma ruptura no sentimento de semelhança entre os seres humanos. A marcha da economia sem compromisso social tem que ser reorientada para uma economia comprometida com a redução da pobreza. O presidente do século XXI, além de negro e verde deverá ser também vermelho. Não no sentido de subverter a ordem econômica e romper as bases da economia, mas no sentido de criar os mecanismos para enfrentar o quadro de desigualdade em nos países e no mundo.

O abandono da postura de arrogância imperialista que caracterizou os EUA a partir do final século XIX e ao longo de todo o século XX também precisa ser revertida. Apesar de ter sido um país nascido da própria expansão em direção ao Oeste e neste processo ter se apropriado de parcela do México e comprado todo o Alasca, os EUA não foram uma nação imperialista, até recentemente. Mesmo a Doutrina Monroe foi capaz, no primeiro momento, de apresentar uma intenção de solida-riedade com o Sul do Continente, e não apenas um desejo interven-cionista sobre esta Região. A partir, sobretudo, do final da Segunda Guerra, os EUA passaram a ver-se como os portadores do destino da humanidade e tentaram apropriar-se ao máximo dos mercados e re-cursos dos demais países, influir para fazer de cada um deles parte da economia e da cultura norte-americanas.

Além de antagonismos, de injustiças, de desrespeito às soberanias de muitos povos, os EUA terminaram criando e apoiando sistemas autori-tários e que, mesmo quando mais democráticos, criaram desigualda-des ainda mais formidáveis do que havia antes. Sobretudo, impediu nestes países, especialmente na América Latina, a procura autônoma de seus próprios rumos, conforme seus recursos e suas vontades polí-ticas. E isolou-se como uma potência antagonizada em todo o Plane-ta. A CIA, outros órgãos de espionagem e as FFAA norte-americanas devem parar de impor a vontade norte-americana ao mundo inteiro.

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Neste sentido, o presidente do século XXI além de negro, verde, ver-melho deve ter também a cor branca da paz. Como exemplo, deve reverter meio século de bloqueio e sabotagem em relação a países, como Cuba é um exemplo e um símbolo.

O fim da arrogância deve levar a uma postura de tolerância com a diversidade cultural. Os EUA do século XX tentaram impor visões e estilos do “american way of life” a todo o mundo. E grande parte do mundo aceitou por ver neste padrão um estágio superior de desenvol-vimento. Hoje, além do choque entre este padrão e as possibilidades ecológicas, há uma resistência cultural que os EUA precisam entender e tolerar. Querer cristianizar todo o Planeta, como foi tentado a partir do século XVI é um retrocesso. O novo presidente deve respeitar ple-namente a diversidade religiosa, cultural, e sobretudo de experiências como novos modelos econômicos, desde que dentro de valores huma-nistas definidos por instancias internacionais como as Nações Unidas. Por esta razão, o primeiro presidente do século XXI deve abrir diálogo com todos que desejam participar do concerto humano, desde que to-dos abram mão da violência, do terrorismo, muitas vezes como resul-tado de antagonismo às imposições norte-americanas. O presidente negro, para ser o primeiro do século XXI deve aceitar as variadas cores que há na sociedade planetária dos seres humanos.

Deve também submeter-se a valores morais internacionais. A demo-cracia limitada a cada país, elegendo seus presidentes a cada quatro anos não vai permitir enfrentar os problemas de longo prazo e glo-bais, planetários da humanidade. Os EUA não podem ser uma ilha isolada diante dos sonhos da humanidade, nem querer fazer o mundo à sua imagem e semelhança. Os valores como limites ecológicos ao crescimento, limites éticos ao uso da ciência e da tecnologia, padrões de comportamento humanistas de respeito aos direitos humanos, a tolerância com os diferentes, deverão ser cada vez mais questões glo-bais, internacionais, de toda a humanidade. O primeiro presidente do século XXI terá que aceitar para seu governo e para seus cidadãos o respeito às cortes internacionais.

Finalmente, o primeiro presidente século XXI deve ser um indutor da distribuição da educação, do conhecimento científico e tecnológico, da cultura ao redor do mundo. Depois da segunda guerra mundial, os EUA tiveram um papel fundamental na distribuição do capital econô-

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mico entre os países do mundo. Mesmo que às custas da dependência por remessa de juros e lucros, foi possível realizar um desenvolvimen-to industrial até nos mais atrasados países do mundo. O resultado é uma globalização dos ricos ao lado de um “gulag social” dos pobres no mundo inteiro. O século XXI vai exigir a distribuição do seu novo capital: o conhecimento. Este capital conhecimento será capaz de que-brar a desigualdade que ocorreu com o desenvolvimento econômico do capital das finanças e das máquinas, vai liberar energias que estão sendo reprimidas em bilhões de cérebros humanos pela falta de edu-cação provocando uma migração em massa de deseducados em busca de empregos nos países ricos. O presidente do século XXI deverá ser o defensor da visão do capital conhecimento como a base do futuro em cada nação e no mundo global e ser o promotor de uma revolução in-telectual no mundo inteiro por meio da educação. Não apenas deverá ser um presidente de muitas cores, também o presidente de um novo Plano Marshall Educacional Global.

Deverá fazer a inflexão do desenvolvimento pela economia do consu-mo material para poucos, em direção a uma sociedade do desenvolvi-mento do conhecimento para todos. Um desenvolvimento que respeite a diversidade de modelos e estilos de vida; defina limites sociais infe-riores a que ninguém será condenado e limites ecológicos superiores a que ninguém terá direito; aceite, sem constrangimento ético, a de-sigualdade de renda, mas ofereça a todos a chance de participar do desenvolvimento conforme o talento e esforço de cada um. No meio destes limites uma desigualdade legitima e ética decorrente do talen-to, em um mundo onde todos tiveram os mesmos direitos de acesso, como aqueles que permitiram a um jovem negro se transformar no primeiro presidente negro dos EUA, criando a expectativa de que ele será o primeiro presidente do século XXI, fazendo uma revolução na mentalidade que substituirá o século do consumo depredador da na-tureza por um século promotor da educação como o meio libertário da humanidade e cada um de seus seres.

O primeiro presidente negro será o primeiro presidente norte-ameri-cano do século XXI se ele for capaz de fazer um Plano Marshall Social/Educacional para incluir toda a humanidade nos benefícios do pro-gresso, como as mudanças da inclusão racial no seu país permitiram que um negro chegasse à presidência, pelo seu talento, utilizando as chances que as reformas dos anos 1960 lhe foram oferecidas.

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Reformador de MentesO Estado de S. Paulo – 21 de novembro de 2009

Em sua autobiografia, John Stuart Mill diz que o livro “Tratado da Le-gislação” de Bentham mudou sua vida. Ele escreveu: “Quando termi-nei o último volume do ‘Traité’, havia me tornado um ser diferente”. No meu caso, foi “Formação Econômica do Brasil”. Já havia lido outros que me influenciaram, de formação como os de Marx, de análise obje-tiva, como “Geografia da Fome” de Josué de Castro. Mas “Formação” deu-me nova orientação intelectual para entender a história e a reali-dade de meu país.

Muitos outros formaram minha maneira de pensar, mas provavelmen-te nenhum provocou inflexão igual na minha formação. Porque me fez ver a história não só como descrição de fatos, mas como explicação do processo socioeconômico do Brasil.

Hegel e Marx deram subsídios à lógica da história; o “Formação” ex-plicou o andamento da história, no caso concreto de um determinado país. Poucos países têm uma obra como o “Formação”. Em geral, a his-toriografia econômica de países são textos dogmaticamente marxistas ou literariamente idealistas. Celso Furtado escreveu um texto magis-tral, com as lógicas de cada momento e uma lógica entre os diversos momentos da história do Brasil.

No “Formação” descobrimos que o Brasil não surgiu por acaso: havia uma lógica que empurrava a Europa em direção a novas regiões; hou-ve racionalidade em cada uma das estruturas sociais do novo País e no desenrolar de sua história; a história se desenrolou em ciclos que se sucedem dependentes de cada riqueza natural e da influência estran-geira do momento.

Estes são os dois grandes feitos do “Formação”: a história como um desenrolar lógico e sua descrição em um texto elegante. Os sucessi-vos capítulos do livro aproximam o leitor da vida socioeconômica do Brasil, transformando o País em “personagem” que nos provoca amor, indignação, sofrimento diante dos caminhos seguidos; em um texto de bela escrita, sustentada por dados e fatos analisados com rigor. Há

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um prazer em lê-lo como o romance de um povo que vai se formando, não apenas por seus feitos visíveis, pela epopeia da ocupação do con-tinente, mas também pela vergonha da escravidão, da desigualdade, do atraso em relação a outros países. Sobretudo, o prazer de descobrir como nossa história caminhou. A lógica insensata dos interesses das classes dominantes, com total desprezo pelas necessidades e vontades do povo.

Da mesma maneira que faz parte destes raros livros que mudam a maneira como conhecemos e entendemos a história, o “Formação” faz parte de um seleto grupo de livros que influenciam até mesmo os que nunca o leram, e nem sabem que ele existe. É o caso de livros de Smith, Mill, Keynes e outros que surgiram no momento certo, com a vi-são apropriada para o seu tempo e graças a isso mudaram as cabeças dos que mudam as cabeças. Livros que atravessam a fronteira do inte-lectual acadêmico para o intelectual militante, jornalista, professor: o “Formação” atravessou essa fronteira e chegou ao imaginário coletivo do Brasil. Por isso, “Formação Econômica do Brasil” é um clássico, con-tinua tão atual e recebe novas edições 40 anos depois de publicado pela primeira vez. “Formação” é um livro para sempre. As explicações que ele deu sobre o passado do Brasil dificilmente serão substituídas.Na verdade, alguns detalhes nas últimas décadas têm servido para consolidar ainda mais o pensamento de Celso Furtado. Seu capitulo “Perspectiva dos Próximos Decênios” continua atualizado com o que aconteceu depois do livro, mesmo que não fosse possível imaginar o tamanho do salto quantitativo das últimas décadas.

Falta ao novo leitor, que provavelmente não havia nascido quando ele foi escrito, usa-lo para entender como o Brasil “avançou” nestas últi-mas quatro décadas, desde onde o “Formação” parou; a história do período posterior à sua publicação.

A indústria que se desenvolveu, graças ao protecionismo, integrou-se competitivamente ao livre mercado do mundo global; o controle cam-bial e tarifário, que foi o principal instrumento para proteger setores, perdeu importância como instrumento de política econômica; a infla-ção deixou de ser o financiamento do setor público e da concentração da renda; mas, lamentavelmente, não houve mudanças substanciais na realidade da “triangulação” beneficiando os centros da riqueza, desde o século XIX. Mesmo com o salto da indústria mecânica, o Brasil conti-

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nuou atrasado, não acompanhou a modernização da matriz produtiva para uma economia baseada no conhecimento como o principal fator de geração de riqueza. Não demos o salto para um desenvolvimento sustentável ecologicamente, nem construímos uma escada de ascen-são social para as massas pobres; trocamos o protecionismo pela in-tegração internacional competitiva, mas ainda dependentes, agora da importação dos produtos da ciência e a tecnologia. Não reorientamos nosso modelo para um desenvolvimento com distribuição automática e estrutural de renda e dos benefícios da economia; ficamos apenas na distribuição cosmética, por recursos públicos, uma distribuição “para inglês ver” como foi a proibição do tráfico de escravos.

Essa formação ainda desequilibrada pode ser explicada pelo fato que, ao longo de toda nossa história, a educação foi relegada como fator econômico ou social. É como se não houvesse qualquer relação entre educação e a economia que Furtado descreve. No “Formação”, o tema educação não aparece na realidade da nossa história econômica.Entramos no século XXI com o mesmo quadro de integração-depen-dente-concentradora-depredadora como ao longo da nossa história, mudando apenas a forma da dependência.

São necessários estudos para trazer o “Formação Econômica do Brasil” até nossos dias. Mas qualquer que sejam os avanços, certamente vão exigir os métodos e o rigor que Celso Furtado utilizou. Quase meio sé-culo depois de sua publicação, esperemos que suas atualizações sejam escritas com a mesma elegância, para que não se limitem ao públi-co acadêmico, e ajudem a reformar a mente de muitos jovens, como aconteceu comigo, em um passado já distante.

Se necesitan líderes globales *(aguardando tradução)

El Pais – 15 de dezembro de 2009

Con la globalización, toda persona tiene derecho a exigir que cual-quier líder nacional se erija en uno de los líderes del planeta. Aunque sea senador del Brasil, soy ciudadano del mundo y me siento en mi derecho de reclamar a los dirigentes de cualquier país que defiendan a todos los habitantes de la Tierra.

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Los problemas que hoy nos afligen no atañen simplemente a los países en singular, sino a toda la humanidad, no sólo a los próximos años, sino a los próximos siglos; no únicamente a las próximas elecciones, sino a todas las generaciones futuras. Los problemas planetarios -el calentamiento global, la ampliación de las desigualdades sociales e incluso biológicas, el desigual acceso al conocimiento y a sus produc-tos, las fuertes migraciones internas y entre distintos países-, obligan a cada presidente, rey, jeque, primer ministro a postularse no simple-mente como un líder de su país, de su población y de su tiempo, sino también como uno de los líderes del mundo y de la humanidad.

Ante la gravedad de la crisis planetaria, nosotros, los ciudadanos del mundo global, no podemos aceptar que nuestros líderes se reúnan en Copenhague para adoptar cada cual por su cuenta un mero papel de defensor aislado de su nación, luchando por la menor tasa de polu-ción para proteger la mayor tasa posible de crecimiento económico, pensando en sus electores en las próximas elecciones. Tratar el pro-blema ambiental simplemente como una cuestión de deforestación y de emisión de gases supone minusvalorar la amplitud del problema, que tiene que ver con el propio concepto de crecimiento y desarrollo que ha prevalecido en los últimos dos siglos, y especialmente en las últimas décadas.

En Copenhague, cada dirigente nacional debe convencerse de que es de facto uno de los líderes de toda la humanidad y debe afrontar las causas de los problemas globales. Si por un lado sabemos que el ca-lentamiento global está provocado por el efecto invernadero derivado de las emisiones de gases, sabemos también que esas emisiones son consecuencia de la demanda de productos industriales fabricados en cantidades superiores a los límites ecológicos. La crisis ha sido causada por la voracidad de consumo y de lucro.

Hasta la caída del Muro de Berlín, hace 20 años, los líderes nacionales eran líderes mundiales en defensa de sus propuestas -capitalistas, so-cialistas, demócratas, libertadoras, desarrollistas...-. La caída del Muro sustituyó los debates mundiales por las acciones nacionales. Al mismo tiempo que se construía la globalización en la vida económica y social, la política se giraba hacia el interior de cada país, hacia su propio pue-blo, hacia sus electores, sus elecciones. La civilización se volvió mayor y más integrada, mientrasque sus líderes se empequeñecían.

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Los problemas actuales exigen un cambio de postura. Cada dirigente nacional ha de ser otra vez un líder mundial que al hablar no se dirija simplemente a sus compatriotas electores, sino a los seres humanos en general, en busca de alternativas para el futuro de la civilización; que presente propuestas que vayan más allá de sus fronteras y de nuestro tiempo. No se trata ya de escoger entre socialismo o capitalismo, ni de derribar el muro que separaba países e ideologías, sino de construir un mundo sin muros, ni entre clases sociales, ni entre generaciones.Es necesario un esfuerzo para cambiar la matriz energética, pasando de la opción de los combustibles fósiles a un modelo basado en las energías sostenibles, a base de buena voluntad, cooperación y uso de los recursos internacionales, incentivando la investigación en la bús-queda de fuentes verdes de energía -hidroeléctricas, preferentemen-te en pequeñas centrales, etanol, energía eólica y otras-. Un Centro Internacional para la Búsqueda de Nuevas Energías puede canalizar las sinergias de las investigaciones globales hacia un mundo global sostenible.

Pero no basta con cambiar la matriz energética si mantenemos el mis-mo patrón de producción y de consumo en el sector industrial. Durante la II Guerra Mundial, los países realizaron una reconversión de sus in-dustrias de bienes de consumo en fábricas de material bélico. Algo así podría volver a hacerse sin necesidad de fabricar armas, produciendo bienes de carácter público, servicios culturales, usando energía y re-cursos renovables. El Banco Mundial podría incentivar y financiar esta reorientación.

Asimismo, durante la II Guerra Mundial, la movilización militar fue un instrumento para garantizar el empleo. La creación de empleo podría hacerse en un periodo de paz, no para la movilización de los soldados, sino para producir impactos sociales y ecológicos, en la cadena pro-ductiva de biocombustibles, desde su plantación hasta su distribución, en la reforestación, en el desarrollo de una actividad agropecuaria sostenible, en el reciclaje de residuos, en la recolección y tratamiento de las aguas residuales, en la contratación de profesores, médicos, investigadores. El Banco Mundial, la Unesco, la OIT podrían servir de base para incentivar y promover estas actividades.

Los gobiernos han de asumir una función reguladora, al objeto de no permitir que el avance de los biocombustibles se produzca en detri-

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mento de la producción agrícola, ni que la producción y el consumo alcancen niveles que supongan la degradación del medio ambiente. Al mismo tiempo, debe reglamentarse mediante medidas fiscales el apoyo a la producción y el consumo de bienes compatibles con los bie-nes sostenibles y desincentivarse el consumo y producción de bienes depredadores.

El sistema tributario debe teñirse de “verde”, cambiando la tradición de los impuestos sobre el capital y el trabajo por impuestos proporcio-nales, directa o indirectamente, al nivel de degradación ambiental que la producción provoca, la duración del ciclo de vida de los productos, el tipo de materias primas utilizadas, los niveles de emisión de CO2, el consumo de energía, la ocupación del suelo.

Los Estados necesitan redefinir el papel de los órganos protectores del medio ambiente. Hoy, los ministerios de Medio Ambiente son meros apéndices, considerados como estorbos para el desarrollo económi-co y no como árbitros del tipo de progreso que deseamos. Es preciso transformarlos de fiscales impotentes de los demás ministerios en una asesoría directa de los Gobiernos: la sostenibilidad ha de pasar a ser el eje central de las decisiones de todos los órganos de gobierno y de desarrollo.

La ciencia y la tecnología actuales han de ser sometidas a los valores éticos y ser compartidas por todos los seres humanos, los de hoy y los del futuro. Los conocimientos, especialmente en los sectores de edu-cación, salud, sustitución de materiales, energía, alimentación, deben ser distribuidos de forma universal. Las patentes han de ser respetadas como principal forma de incentivo para la creatividad en los labora-torios, pero un Fondo Mundial financiaría la compra de los servicios de conocimiento para que puedan ser puestos a disposición de todos. La Unesco puede auxiliar en la reflexión que conduzca a esta clase de actuaciones.

Los órganos de Naciones Unidas que se ocupan de las cuentas, al igual que la OCDE, deben tomar en consideración nuevas formas de medir los resultados del desarrollo. Los esfuerzos de cada país no deben es-tar centrados en el crecimiento de la producción. Los datos nacionales deben incluir las pérdidas ambientales y los costes sociales, a medio y a largo plazo. Los resultados positivos no deberían limitarse a cuanto

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aparece en el mercado en forma material de aumento de la producci-ón económica, sino también en forma inmaterial de bienes públicos, como educación, cultura y salud.

De gran importancia resultaría un programa mundial para la educaci-ón de todos. Después de la II Guerra Mundial, el mundo dio un gran salto hacia el crecimiento económico. Es hora de un nuevo Plan Mar-shall, global y social esta vez, para promover especialmente la educa-ción en el mundo entero.

Copenhague puede ser el Bretton Woods del siglo XXI, no ya simple-mente de carácter financiero y económico, sino también social y ecoló-gico, que alumbre incluso una visión alternativa del propio concepto de progreso global, dando un gran paso para la creación de una manera distinta de concebir el desarrollo y diseñar el futuro. Si esto ocurriera, el nombre de Marshall sería sustituido por el de alguno o algunos de los nuevos líderes globales, aquellos que sean capaces del radicalismo lúcido que el mundo de hoy exige.

Terrorismo e terrorO Globo – 14 de março de 2009

O mundo está assustado com a possibilidade de um futuro de terror, quando os terroristas dispuserem de armas de destruição em massa, mas não percebe o terror do futuro que viveremos adiante, quando as profecias ecológicas e sociais se confirmarem. Mais do que um futuro de terror, precisamos temer o terror do futuro de uma civilização inca-paz de reorientar seu destino, que caminha rumo ao seu próprio fim. Um terror do qual seremos as vítimas, embora nos comportemos como os terroristas, preparando nosso suicídio.

Nos últimos anos, o terrorismo tem sido identificado como prática dos muçulmanos. Mas não podemos associar o terror ao islamismo, nem considerá-lo ação exclusiva de mulçumanos. Devemos, sem dúvida, lutar contra todas as formas e dimensões de terror, mas nenhuma ci-vilização tem autoridade moral para identificá-lo com o Islã. Mesmo porque, no passado, muitas pessoas, de outras religiões e ideologias, cometeram atos insanos de terror.

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O terrorismo já foi apoiado pelas autoridades do catolicismo, na épo-ca das Cruzadas, quando atrocidades foram cometidas contra os po-vos árabes nos países do Oriente Médio. Terríveis maldades também foram cometidas na própria Europa, pelo terrorismo de Estado e da Igreja, na época da Inquisição. A Inquisição foi uma forma de terror que, em vez de explodir, queimava as vítimas. Como foi terror, em nível de genocídio, o que o europeu Adolf Hitler cometeu contra milhões de judeus. Alguns heróis da criação do Estado de Israel usaram terrorismo contra os ingleses. O bombardeio aéreo de cidades inteiras também foi uma forma de terrorismo. Pode haver uma diferença técnica entre o avião pilotado por suicidas, enviado por líder fanático para chocar--se contra um prédio, e o avião que despeja bombas por ordem de um líder eleito, mas a dimensão do terror é a mesma. O terror foi ainda maior quando as bombas liberadas por esses pilotos eram atômicas, mesmo sob o argumento de acabar com a guerra.

Ninguém deve tolerar que um grupo de pessoas, em nome de causas religiosas ou políticas, leve um avião a se chocar contra um prédio, assassinando milhares de pessoas, como aconteceu no histórico dia 11 de setembro. Mas ninguém pode usar este gesto, cometido por um grupo de terroristas, para condenar todos os que praticam o mesmo credo religioso ou a mesma ideologia política.

O maior de todos os terrorismos foi cometido durante quatro séculos, em campos de concentração flutuantes, que transportaram 10 milhões de africanos, escravizados com a finalidade de dinamizar a economia do continente americano. Nossa civilização democrática, rica, moder-na, ocidental, foi construída com base numa covarde forma de terro-rismo. E essa mesma civilização nos encaminha, hoje, para um futuro aterrorizante. Estamos caminhando para um desastre de proporções superiores a todos os atos terroristas cometidos no passado. Muito pior do que um futuro de terror, com armas de destruição em massa nas mãos de fanáticos, é o terror do futuro que temos à frente, uma bom-ba-relógio prestes a explodir, que será detonada pela voracidade do consumo do qual todos participamos, como homens-bomba armados de cartões de crédito.

Vivemos o terror ecológico, que ameaça elevar o nível dos mares, inun-dar o litoral de todos os países, aquecer todo o Planeta, desarticular toda a agricultura, provocar fome generalizada. Existe o terror de que

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a desigualdade social cresça ao ponto de se transformar em desseme-lhança entre seres humanos, criando uma subespécie superior e outra inferior, fazendo desaparecer o próprio conceito de genocídio, pois as massas assassinadas não serão mais vistas como semelhantes. Existe até mesmo o terror assustador – embora invisível – do vazio de ideias e propostas para o futuro, que acirra o individualismo até a destruição do sentimento de solidariedade.

Esse é o futuro do terror, mais do que um futuro de terrorismo. Latini-dade, em Oslo, no final de fevereiro, juntamente com o Instituto Nobel e a Academia de Ciências e Letras da Noruega.

Foco erradoRevista Profissão Mestre – julho de 2010

O Produto Interno Brasileiro de 2009 sofreu uma queda em relação ao ano anterior. É claro que a parte grande dessa tragédia que se chama recessão é culpa de uma crise que não estava nas mãos do Brasil, uma crise internacional que chegou aqui. Chegou aqui não como uma pe-quena maré, uma marolinha – como se dizia –, chegou de fato como uma grande onda, mas não como um tsunami.

Mas a perspectiva e percepção da população brasileira, mesmo que o PIB tivesse crescido, deveria ser comemorada com ressalvas. Porque o crescimento não distribui. Nós ainda não estamos distribuindo os re-sultados do desenvolvimento dos cinquenta anos de forte crescimento que o Brasil teve. Nosso crescimento é para poucos. Um país pode crescer sem melhorar, e o Brasil cresceu sem melhoras: a violência aumentou, a desigualdade também, a destruição ecológica chegou a níveis absurdos.

E mais: o crescimento que vemos se concentra na ideia da produção industrial, e não na produção dos serviços de que a população precisa. O PIB cresceu muito, mas a saúde cresceu pouco, assim como aconte-ceu com a educação.Temos de buscar novos caminhos para o crescimento, um novo tipo de crescimento, um novo modelo de desenvolvimento da economia

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brasileira. Nosso crescimento não é sintonizado com o futuro, é um crescimento baseado na produção de automóveis, e não na melhoria do transporte. Há uma sutileza entre aumentar a produção de auto-móveis e melhorar o transporte. O crescimento com base na produção de mais carros não basta para trazer satisfação e alegria. A satisfação e a alegria podem vir do aumento na qualidade e na eficiência do transporte disponível.

O que se quer é ir com rapidez de casa para o trabalho, de casa para a diversão, de casa para visitar amigos, parentes e familiares. O que a gente quer é transporte – o carro é apenas o meio.No Brasil de hoje, o aumento na produção de carros significa piora do transporte, porque os engarrafamentos aumentam. O aumento do PIB faz crescer o direito de ter, mas para poucos, não para todos.O exemplo do carro serve para outros aspectos. A produção brasileira não está sintonizada com as exigências do futuro e depreda o meio ambiente. E ao depredar o meio ambiente, piora a nossa vida e in-viabiliza a vida dos nossos netos. Se é que não vai inviabilizar a dos nossos filhos.

Infelizmente, esquecemos que o PIB mede a produção material. Não existe um PIB da produção da inteligência brasileira. A gente tem um Produto Interno Bruto das coisas materiais que são vendidas no mer-cado, mas que não há nada que meça a produção da inteligência brasileira.

Outra forma de dizer que estamos crescendo sem nenhuma sintonia com o futuro é o fato de nós crescermos com base em produtos velhos, com base na indústria mecânica, e não na indústria do conhecimento. Com base na velha e antiga produção agropecuária, que aumenta a renda, mas não aumenta o bem-estar do País, nem aumenta a sobe-rania. Mas o verdadeiro salto para o futuro virá da produção dos bens com alto conteúdo de inteligência.

Atualmente, parte da renda vem da inovação tecnológica que vai para o exterior, porque não temos pesquisa no Brasil. E só teremos ciência e tecnologia, quando tivermos uma boa universidade. E isso só ocorre em países com bom ensino médio. E para ter um bom ensino médio, é preciso uma boa educação de base, que só ocorre em países que cuidam bem das suas crianças.

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Logo, ao mesmo tempo em que constatamos uma queda no cresci-mento, fica o alerta de que não basta crescer, é preciso mudar o tipo de crescimento.

Até quando!Jornal do Commercio – 05 de agosto de 2011

Durante o regime militar, alguns brasileiros se atreviam a denunciar o que era feito aqui dentro. E por isso eram acusados, até mesmo por democratas, de ofender o País, ao denunciar no exterior que havia tortura no Brasil. Dom Helder Câmara era um desses. Dizia-se que roupa suja se lava aqui dentro e era falta de patriotismo denunciar as torturas.

Agora, quando um jornalista espanhol, radicado no Brasil, com a famí-lia brasileira, que se sente um brasileiro, escreve um artigo e publica em seu jornal, El País, sua surpresa pela falta de indignação nacional diante da corrupção, algumas pessoas, inclusive de esquerda, denun-ciam que ele quer ofender o Brasil. Até 2002 eram arautos da morali-dade, agora se indignam quando se fala contra a corrupção, ao invés de indignarem-se com a falta de indignação que tomou conta do país, em uma tolerância dos que fazem política, a indignação é dirigida contra o jornalista Juan Arias.

Não se pode dizer que a chegada de partidos de esquerda ao governo aumentou o número de corruptos no poder, mas pode-se afirmar que aumentou a tolerância, mesmo entre os que antes eram radicalmente contrários a corrupção.

O pai da corrupção é a impunidade, mas a mãe é a perda dos valores morais das bandeiras de luta entre os que fazem política. E isso está acontecendo. Não se sabe se os partidos de esquerda perderam as bandeiras porque chegaram ao poder ou se chegaram ao poder por-que ficaram sem bandeiras. O fato é que sem bandeiras, os partidos miram o poder como um fim em si mesmo, e a corrupção é aceita como normal. Os políticos se decidiram entre os que aceitam pagar pedágio que para estar no poder e aqueles que recebem pedágio por

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ficar no poder. Mas todos aceitando o pedágio da corrupção como prática usual.

O artigo de Juan Arias é um marco literário na história do País, mas pode não ir além disso, não se transformar em um marco político, se nós não despertarmos para fazer contra a corrupção o que fizemos contra a ditadura, graças a denúncias corajosas como de Dom Helder, agora feitas pelo jornalista Arias. E também gestos corajosos como os de Dilma ao promover sua faxina. Gesto que, é preciso dizer, não tem recebido solidariedade firme dos partidos de sua base. Alguns temen-do perda de governabilidade, outros temendo perder a chave do cofre.Isso para não falar da nem percepção da corrupção nas prioridades em um país com 50% da população sem água potável e esgoto, com escolas funcionando em pardieiros, obras paradas em 53, e universi-dades e os estádios sendo construídos em ritmo de três turnos.

Ideias estapafúrdiasO Globo – 25 de julho de 2011

Por muito tempo circulou na Europa a estapafúrdia ideia de que a Ter-ra girava ao redor do Sol, mas ninguém aceitava esta opinião de um louco chamado Copérnico. Por causa desta ideia Galileu só escapou da morte quando renegou o que havia provado. Porque o Papa infalí-vel havia dito que era o Sol que girava redor da Terra como Deus havia feito e todo mundo via.

Algum tempo depois um marinheiro genovês de nome Cristo-vão Colombo propôs à Rainha Isabel a possibilidade de viajando para o leste, chegar à Índia que estava no oeste.

A estapafúrdia ideia foi recusada pela Universidade de Sala-manca porque, supondo que a Terra fosse redonda, ela era uma bola tão grande que os marinheiros morreriam de fome antes de chegar ao destino. E assim a ideia estapafúrdia permitiu descobrir o Brasil para onde os portugueses trouxeram a lógica ideia de roubar pessoas da África para aqui trabalharem como escravos. Quase 400 anos de-pois alguns desses escravos tiveram a estapafúrdia ideia de defender a

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abolição da escravidão. Todos foram mortos. Até que um nobre acima de qualquer suspeita, chamado Joaquim Nabuco, conseguiu conven-cer uma princesa e esta convenceu os parlamentares e assim assinou a Lei Áurea.

Mais recentemente nos EUA, o presidente americano receberá a estapafúrdia idéia de que a ciência e a tecnologia seriam capazes de colocar um artefato em órbita ao redor da Terra, até que um dia acor-daram com a notícia de que os russos já tinham feito. O Presidente en-tão teve a estapafúrdia ideia de dizer que antes de 10 anos colocariam homens pisando na lua. Ele morreu antes, porque seus seguranças não acreditaram na estapafúrdia ideia de que um pistoleiro sozinho escondido em cima de um depósito de livros poderia acertar o cérebro do próprio presidente, com uma bala.

Mais ou menos naquela época, um presidente brasileiro teve a estapafúrdia ideia de que era possível finalmente construir a capital do Brasil onde nada havia, fazer estradas passando pelo nada, de um lado ao outro, e fabricar carros quando nem eletrodomésticos, ainda fabricávamos.

Durante a ditadura que se seguiu, milhares foram presos, exi-lados, assassinados lutando pela estapafúrdia ideia de que os bem ar-mados, poderosos e informados os militares não cederiam o governo à democracia.

Agora, surge a estapafúrdia ideia de que o futuro do Brasil de-pende mais da pré-escola do que do pré-sal; mais da educação do que das fábricas. E para isto é preciso a estapafúrdia ideia de pagar um salário de R$9000,00 por mês a cada professor da educação de base, depois de selecionados nacionalmente (como os funcionários do Banco do Brasil, Ministério Público, Justiça, Congresso, Receita e todo órgão federal) entre os melhores alunos das Universidades; e que eles só serão confirmados no cargo depois de um ano de formação pré universitária (como hoje se faz com os alunos do Instituto Rio Branco); e que estes professores bem remunerados e preparados serão também dedicados e darão resultados; que a estabilidade deles no emprego será responsável, dependendo da dedicação; que os direitos dos pro-fessores estarão acima da vontade dos governantes, mas abaixo dos interesses da educação das crianças. E que eles trabalharão em esco-

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las cujos prédios serão os mais bonitos e confortáveis da cidade (como já foi em um passado recente) quando apenas os filhos da elite tinham vaga na escola pública; e que disporão dos mais modernos equipa-mentos de informática e televisão, onde os quadros-negros estarão à mostra em uma sala de museu para mostrar como era a escola do passado, da mesma forma que hoje guardamos as caravelas; e que todos os alunos brancos e negros, ricos e pobres estudarão, jogarão, praticarão arte, aprenderão um ofício juntos ao longo de todo dia. E que os filhos dos políticos deverão estudar nas escolas públicas, como, aliás, já acontecia no Tempo do Império, graças ao Colégio Pedro II. Felizmente podemos esperar que continuará livre a estapafúrdia ideia de que alguns continuem lutando para convencer os outros da estapa-fúrdia ideia que têm. Ainda que de vez em quando sejam obrigados a negar o que pensam para não parecer loucos, nem serem demitidos dos cargos, mesmo que, como Galileu, cochichando digamos para sim mesmo: mas que é possível, é.

Lições da GréciaO Globo – 31 de dezembro de 2011

Este ano foi da Grécia, mais do que Irlanda, Islândia, Espanha, Por-tugal ou Itália, a Grécia simbolizou a crise mundial. Mais também do que os EUA em 2008. Na Grécia, a crise mostrou uma dimensão mais ampla: foi econômica, com forte contração do PIB; política, porque nenhum outro país teve mais greves e mobilizações nas ruas; e social, por causa da consequência do desemprego, inclusive com fome em diversos setores da sociedade.

Na Grécia é possível perceber os escombros deixados por uma econo-mia que apresentou uma exuberância artificial, graças a uma moeda supervalorizada e ao financiamento bancário fácil, permitindo consu-mo privado e aumento dos gastos públicos; tudo que significa ilusão de uma riqueza provisória. A Grécia foi, em 2011, a prova de que a riqueza fácil é também efêmera. Mais que isso, a Grécia foi a prova do fracasso de um modelo de de-senvolvimento caracterizado pelo aumento do Produto Interno Bruto, sobretudo o progresso medido pelo aumento da produção material,

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mesmo às custas da concentração de renda, depredação ambiental, voracidade do consumo, endividamento, irresponsabilidade bancária e governamental, moeda artificialmente forte. Em 2011 a Grécia foi o símbolo deste modelo, mas pode ser vista também como a origem do pensamento que serviu para adotarmos e executarmos hoje esse conceito de progresso. Foi da percepção e criação da lógica, entre os gregos clássicos, que nasceu a base da ciência e da tecnologia desen-volvidas quase 2.000 anos depois no Renascimento Europeu, levando à Revolução Industrial na Inglaterra e à utopia da volúpia e da voraci-dade das últimas décadas em todo o Globo.

Em consequência é o símbolo do fracasso do progresso que nós, do século XX e XXI transformamos em sinônimo do consumo supérfluo, do consumismo irresponsável, exigindo gastos públicos além do equilíbrio fiscal, financiamento além da responsabilidade bancária, depredação ecológica além dos limites físicos, endividamento além das possibilida-des dos estados, das empresas e das famílias.

A crise da Europa não é apenas financeira, econômica, social, ecoló-gica. Mais do que uma crise é o esgotamento de uma concepção de progresso ao mesmo tempo arrogante em relação à natureza, injusta do ponto de social e estúpida do ponto de vista lógico. A saída não vai estar nas finanças pública ou bancárias, mas em uma reorientação dos propósitos do desenvolvimento e da própria civilização.

Mas, se a Grécia é a lição do fracasso de um modelo civilizatório ali nascido, sob uma forma diferente, tanto tempo atrás, ela pode ser tam-bém uma lição para o futuro. Ouvi de um professor universitário grego que seu salário foi reduzido em 40% junto com sua carga de trabalho. Ao perguntar-lhe como sobrevivia, respondeu: “Primeiro tirei o filho da escola privada, coloquei-o na pública e agora tento ajudar sua escola a melhorar; já não tenho como ir ao trabalho de carro, em compen-sação, como muitos estão na mesma situação, o trânsito flui melhor; e estou aproveitando o tempo livre para atividades que me dão prazer e, às vezes, uma renda adicional; quase não saio para comer fora de casa, mas aprendi a gostar de cozinhar; não tenho comprado roupas novas, mas não tenho sentido falta delas; meus eletrodomésticos não serão trocados nos próximos anos, mas não estou vendo necessidade disso; sinto falta de viagens ao exterior, mas estou descobrindo as ri-quezas turísticas da Grécia, inclusive uma ao lado da minha casa que

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atrai turistas de todo o mundo. Neste Natal gastaremos muito menos, mas a alegria não será reduzida na mesma proporção”.

Nem todos profissionais gregos podem ter esta lucidez e estas alter-nativas: as camadas mais pobres não têm como reduzir o consumo, os filhos já estão na escola pública, não têm alternativas de lazer, e nem de trabalho extra que assegure renda adicional; mas, de qualquer for-ma, esse exemplo é um indicador de que pode vir da Grécia, a prova do fracasso de um modelo civilizatório e a ideia de inflexão em direção a uma nova civilização, na qual o crescimento da produção econômica deixe de ser o padrão para definir o Bem Estar e a Felicidade; na qual seja possível até mesmo um decrescimento feliz, em harmonia social e com a natureza, sem endividamento, com mais tempo livre, mais bens públicos, com austeridade criativa e gratificante.

PEC da FelicidadeO Globo – 29 de abril de 2011

Durante a campanha de 1994, para governador do DF, tinha a sensa-ção de que se eleito meu papel seria eliminar o máximo de entulhos que dificultam cada morador da cidade buscar sua felicidade pessoal. Nunca tive a ilusão de que iria ajudar na conquista da felicidade, como acreditam os que fazem autoajuda, apenas achava que o governador de Brasília tem por obrigação e objetivo oferecer as condições sem as quais a busca da felicidade fica impossível. Por exemplo, fazer o trân-sito fluir, ter menos risco de sofrer acidente, poder atravessar as ruas no momento que desejar; não precisar ficar em filas, seja para ser atendido por médico ou conseguir uma matricula na escola publica. Também seria preciso facilitar habitação, emprego, segurança. Tudo cuja ausência dificulta a busca da felicidade. Mesmo que esta seja um assunto puramente pessoal e subjetivo.

Quando assumi o governo, em 1995, tive a consciência de que esse seria meu papel e tentei cumpri-lo: ajudar o povo a ter menos entulhos no caminho de sua busca pessoal para ser mais feliz. O que dependes-se do governo, ele faria o possível para não dificultar a busca pessoa. Acho que esta deve ser a sensação de todo prefeito, governador e presidente, cada um na sua respectiva dimensão.

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Claro que nenhum deles pode fazer uma pessoa mais feliz, porque são pessoais os valores e porque são inúmeras as variáveis que tocam na vida de cada habitante de uma cidade. Mas, cada decisão minha como governador foi tomada pensando se, graças a ela, as pessoas teriam menos entraves e entulhos impedindo-a de buscar sua própria felicidade. O governante cria as condições, ou ao menos elimina risco, para que a pessoa possa buscar a felicidade. Por omissão, decisões erradas ou interesses antissociais muitos governantes terminam sendo os promotores da infelicidade por decisões erradas que levam desde às guerras, até falhas no trânsito, corrupção que além de envergonhar e, portanto, entristecer as pessoas da cidade ainda desviam dinheiro de setores que seriam mais compatíveis com a felicidade.

Foi com esta perspectiva, retirar o entulho social que dificulta a bus-ca da felicidade pessoal por cada individuo, que tomei a decisões e governei durante quatro anos. Fomos os pioneiros no mundo em um programa que pagava as famílias pobres para que seus filhos estudas-sem. Isto trouxe impacto imediato nas mães que passaram a dispor de renda e levou crianças para estudarem. Investimos massiçamente na educação, sem o que as crianças de hoje terão no futuro dificuldades em buscar a felicidade, por falta de emprego, de renda, de posição social. Criamos um sistema de saúde que levava médicos para junto das casas das pessoas e mesmo nas casas, quando necessário. É difícil imaginar a alegria de um idoso pobre recebendo um médico do setor público em sua casa. Como também vi a alegria de quem recebeu luz elétrica em casa pela primeira vez mesmo morando na capital do País. Cidades antes sujas ficaram limpas graças ao emprego de milhares de desempregados para um sistema simples de coleta de lixo.

Esta alegria não é sinônima de felicidade, mas é um passo para ela. Não é condição suficiente, mas é uma condição necessária.

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