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Dissertação de mestrado de Rejane Carolina Hoeveler.
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Universidade Federal Fluminense (UFF)
Centro de Estudos Gerais (CEG)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH)
Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH)
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: os
primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps- Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para obteno
do ttulo de Mestre.
Niteri
Maro de 2015
Folha de Aprovao
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: uma
histria dos primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps- Graduao em Histria da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para obteno
do ttulo de Mestre.
Orientadora: Virgnia Fontes
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Virgnia Fontes (UFF/EPSJV-Fiocruz)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Renato Lus do Couto Neto e Lemos (UFRJ)
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Joo Mrcio Mendes Pereira (UFRRJ)
II
As elites orgnicas transnacionais diante da crise: uma histria dos
primrdios da Comisso Trilateral (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Resumo
O tema desta dissertao a histria dos primeiros anos de existncia da Comisso
Trilateral, entidade privada fundada em 1973 que engloba representantes do mundo
empresarial, poltico e acadmico dos Estados Unidos, Europa e Japo, constituindo-se
como parte daquilo que Ren Dreifuss chamou de elites orgnicas transnacionais. A
criao da comisso foi fruto do engajamento empresarial de fins dos anos 1960 e incio
dos anos 1970, perodo convulsionado por crises de diversas ordens (econmica,
poltica e social) nos pases capitalistas centrais. O trabalho visa entender como, de sua
fundao at 1979, a comisso tratou de temas candentes como a crise do sistema
monetrio internacional, o primeiro choque do petrleo, o funcionamento das
instituies internacionais e aquilo que a comisso caracterizou como crise da
democracia.
III
The transnational organic elites before the crisis: a history of the
early years of the Trilateral Commission (1973-1979)
Rejane Carolina Hoeveler
Abstract
The theme of this work is the story of the early years of the Trilateral Commission, a
private entity founded in 1973 that includes representatives of business, political and
academic in the United States, Europe and Japan, establishing itself as part of what
Ren Dreifuss called "transnational organic elites". The creation of the commission was
the result of corporate engagement of the late 1960s and early 1970s, period convulsed
by crises of various orders (economic, political and social) in central capitalist countries.
The study aims to understand how, since its foundation until 1979, the commission dealt
with burning issues such as the international monetary crisis, the first "shock" of oil, the
functioning of international institutions and what the commission characterized as
"crisis of democracy ".
IV
Sumrio da Parte I (volume I)
Introduo.............................................................................................................01
Comeando do comeo: quem a Comisso Trilateral?..........................................06
O que a Comisso Trilateral e o trilateralismo....................................................09
O que pretende este trabalho..................................................................................12
Periodizao........................................................................................................13
Fontes.................................................................................................................14
Diviso dos captulos...........................................................................................15
Palavras iniciais....................................................................................................17
Cap. 1 Imperialismo, Estado e elite orgnica: um debate
introdutrio.........................................................................................................18
1. O sistema internacional na perspectiva liberal clssica......................................20
2. As perspectivas marxistas em relao ao sistema internacional: o imperialismo e
suas metamorfoses...............................................................................................28
2.1. O carter internacional do capitalismo.......................................................28
2.2. O debate clssico do imperialismo e suas reverberaes............................31
2.3. O imperialismo contemporneo....................................................................42
3. Antonio Gramsci e as contribuies da escola neogramsciana..........................48
3.1. A escola neogramsciana em debate........................................................52
3.2. Sociedade civil transnacional, internacionalizao do Estado e classe
capitalista transnacional...............................................................................................60
4. A matriz poulantziana: a transformao contempornea do Estado-
nao.......................................................................................................................68
4.1. A teoria do Estado no marxismo...................................................................68
4.2. Poulantzas: internacionalizao do capital e mudanas do
Estado................................................................................................................72
5. O conceito de elite orgnica de Ren Dreifuss..................................................78
5.1. A obra de Ren Dreifuss...............................................................................79
5.2. Elite orgnica, frente mvel e Estado-maior................................................85
5.3. Os usos do conceito de elite.........................................................................88
V
Captulo 2 - Elites orgnicas transnacionais e suas entidades: antecedentes da
Comisso Trilateral.............................................................................................96
1. As primeiras elites orgnicas transnacionais.......................................................97
1.1. O Committee for Economic Development (CED)...97
1.2. O Bilderberg.................................................................................................101
1.3. O Political and Economic Planning (PEP) britnico......102
1.4. A rede CED-PEP-Cepes e seus congneres.................................................105
1.4.1. Congneres latino-americanas........................................................112
2. O Council of Foreign Relations e seu Projeto para os anos 1980..................115
2.1. O modelo do CFR e suas transformaes.......................................116
2.2. A guerra do Vietn e as mudanas no CFR...........................................119
2.3. O Projeto para os anos 1980 do CFR............................................126
3. A renovao do engajamento corporativo no incio dos anos 1970..................130
3.1. A ideologia da obsolescncia do Estado-Nao...................................137
Captulo 3 - O que o trilateralismo e a Comisso Trilateral: conceitos fundadores
e aspectos organizativos.....................................................................................142
1. Os conceitos fundadores do pensamento
trilateralista...............................................................................................144
1.1. O mundo na era tecnetrnica de Z. Brzezinski..................................146
1.1.1. Na crise, a transio entre duas eras........................................149
1.1.2. A era da crena voltil, ou o fim da ideologia..........................155
1.1.3. A crtica ao ps-modernismo e Nova Esquerda..........................157
1.1.4. A crise da democracia liberal........................................................162
1.1.5. Os guetos locais, os guetos globais................................................165
1.1.6. Uma comunidade das naes desenvolvidas.............................169
1.2. O conceito de interdependncia e o trilateralismo..................................172
1.2.1. A interdependncia complexa e as instituies internacionais.......178
1.2.2. A sntese trilateralista..................................................................184
2. O que a Comisso Trilateral: membros, funcionamento e
estrutura...................................................................................................185
VI
2.1. Outras influncias na formao da Comisso Trilateral.....................185
2.1.1. A Brookings Institution e os Tripartite Dialogues............................186
2.2. Membros....................................................................................................188
2.2.1. Intelectuais acadmicos..............................................................189
2.3. Coordenao..............................................................................................191
2.4. James E. Carter e a Comisso Trilateral....................................................191
2.5. O conspiracionismo e a oposio de direita...............................................196
2.6. Aspectos formais da comisso..................................................................200
2.6.1. Programas......................................................................................200
2.6.2. Durao e financiamento...............................................................201
2.7. Pequena cronologia das origens da CT.....................................................202
Sumrio da Parte II (Volume II)
Captulo 4 A Trilateral e as facetas da crise econmica nos anos
1970.................................................................................................................................01
1. A Trilateral e a crise do sistema monetrio
internacional........................................................................................................03
1.1. A crise cclica do capitalismo e o dinheiro a partir de Marx: breve
digresso terica............................................................................................03
1.1.1. A inconvertibilidade do dlar em debate...........................................07
1.2. As formas de manifestao da crise econmica dos anos 1960-1970.....12
1.2.1 O impasse diante da crise do sistema monetrio internacional........16
2. A proposta trilateralista de reforma do sistema monetrio
internacional........................................................................................................22
2.1. Ajuste das balanas de pagamentos e convertibilidade...........................27
2.2. Balano e perspectivas.............................................................................32
2.3. O trilateralismo e o FMI: o caso da Jamaica..........................................36
2.4. A Trilateral, o Banco Mundial e a assistncia aos pases em
desenvolvimento...........................................................................................39
2.4.1. Trabalhando em interesses comuns...............................................46
2.4.2. Balano e perspectivas: 1976............................................................55
VII
3. A OPEP e o choque do petrleo de 1973.........................................................58
3.1. A poltica do petrleo e o Terceiro Mundo..............................................59
3.2. Unindo o mundo trilateral numa poltica energtica comum: a proposta
trilateralista diante da crise energtica.........................................................66
3.3. Reacomodando o mercado de commodities.............................................71
4. A Trilateral e a crise alimentar dos anos 1970.................................................76
4.1. Um programa para dobrar a produo de arroz na sia atravs da
irrigao........................................................................................................83
4.1.2. O debate sobre o programa trilateralista contra a fome.....................86
5. Concluso: repondo as contradies capitalistas em outro
patamar?...............................................................................................................88
Captulo 5 A Trilateral e a democracia: polticas de restrio e exportao........92
1. A crise do Estado e as transformaes no Estado capitalista nos anos 1960-
70.........................................................................................................................95
2. A Trilateral, a inflao e a democracia..............................................................100
3. A crise da democracia: democracia versus governabilidade.............................103
3.1. O pessimismo em relao democracia................................................106
3.2. As causas da crise da democracia.........................................................110
3.3. O colapso das instituies e os intelectuais engajados.........................120
3.4. Recomendaes aos pases trilaterais...................................................123
3.5. O debate dentro da CT sobre o Crisis of Democracy............................125
3.5.1. Os comentrios de Ralf Dahrendorf............................................125
3.5.2. Controvrsia prolongada.............................................................129
4. O trilateralismo e a democracia no Terceiro Mundo...............................................137
4.1. A doutrina gradualista da CT e as transies democrticas no Terceiro
Mundo.......................................................................................................141
4.2. O debate sobre a campanha de direitos humanos: duas abordagens...148
4.3. A doutrina gradualista da CT e as transies democrticas no Terceiro
Mundo........................................................................................................157
4.3.1. O caso da interveno de Huntington no debate sobre a
descompresso controlada no Brasil.......................................160
4.3.2 Brzezinski no pas do futuro: 1978................................................166
VIII
5. Concluso................................................................................................................169
Captulo 6 A Comisso Trilateral e as instituies internacionais: (re)moldando a
hegemonia.....................................................................................................................174
1. Organizaes internacionais e hegemonia: breve digresso terica..................175
2. A crise do sistema internacional: diagnstico e terapia trilateralista para as
instituies internacionais..................................................................................182
2.1. Uma proposta ampla de reforma das instituies internacionais.........184
2.2. A despolitizao das instituies internacionais...................................186
2.3. Newcomers, dropouts e liderana compartilhada.................................187
2.4. reas de atuao....................................................................................191
2.4.1. O escndalo da Lockheed e a proposta de uma instituio para auto-
regular as multinacionais................................................................193
2.5. Um sistema preventivo de consultas internacionais..............................197
2.6. A administrao da interdependncia global num novo sistema
internacional.............................................................................................199
2.7. Gradualismo e descentralizao...........................................................205
2.8. Desacordos em relao s propostas....................................................207
3. A Trilateral, o mundo socialista e a segurana internacional no fim dos anos
1970: duas abordagens.......................................................................................209
3.1. Unilateralismo disfarado de trilateralismo? O debate sobre a estratgia
trilateralista para o Leste..........................................................................214
3.2. A discusso sobre a reviso nas relaes com o bloco socialista: um
ponto de inflexo dentro da comisso.......................................................222
3.3. Terceira fase: vitria da posio pela nova guerra fria?......................224
4. Consideraes finais..........................................................................................225
Consideraes finais....................................................................................................228
Bibliografia...................................................................................................................242
Apndices..................................................................................................................260
PARTE I
1
Introduo
As informaes sobre a crtica dos excessos anti-democrticos de determinadas elites; as intervenes rudemente imperialistas nos pases do
Terceiro Mundo; e, ainda mais, a secundarizao e a postergao que afetam
trs quartos da humanidade tudo isso pode ser introduzido em discursos denunciatrios sem tocar, nem sequer tangencialmente, nas leis tendenciais que
regem, com uma lgica frrea e objetiva, o sistema capitalista de sempre e, com
novas leis e nova lgica, o capitalismo transnacional das grandes corporaes.
Isso possvel e Carter o fez, com mediana genialidade, durante sua campanha
eleitoral. F-lo tambm e mais discretamente, por no precisar se eleger, a
Comisso Trilateral. Os trilateralistas (entre eles [James E.] Carter), conscientes
da profunda necessidade de administrao da crise que debilita o capitalismo,
adotam uma linguagem que postula revises profundas. Em certos momentos,
essa linguagem no s ousadamente critica, como tambm apresenta
deslegitimaes fugazes do sistema visando construir uma ideologia plausvel
que legitime o reordenamento do mesmo.1
O tema desta dissertao a histria dos primrdios da Comisso Trilateral,
entidade privada fundada em 1973 que constituiu a primeira do gnero a envolver
nomes de peso do mundo poltico, empresarial e acadmico dos EUA, da Europa
Ocidental e do Japo (da os trs lados em seu nome). A iniciativa foi lanada nos
Estados Unidos pelo magnata David Rockefeller e pelo estrategista Zbigniew
Brzezinski, mas contou com os esforos de um conjunto relativamente heterogneo de
intelectuais acadmicos, polticos e grandes empresrios unidos, a princpio, sob a
mesma bandeira, o chamado trilateralismo. Tratava-se de prover uma alternativa
estratgica para um mundo que era por eles visto como convulsionado por crises de
diversas ordens e pelo fim da hegemonia que os Estados Unidos conseguiram impor
internacionalmente aps a Segunda Guerra Mundial, crise que em sua viso exigia um
alinhamento comum entre os pases centrais.
Para entender sua histria necessrio situ-la em seu contexto originrio, o
incio dos anos 1970, perodo que viveu sob a ressaca daquela dcada que parecia que
no iria ter fim. Segundo o terico literrio Fredric Jameson, os anos 1960 comeam
com a Revoluo Cubana (1959), sob a influncia da descolonizao da frica inglesa e
francesa, e com os primeiros sit-ins organizados pelo movimento negro nos EUA.
Comeando, deste modo, um pouco antes de 1961, a dcada se encerra com outra srie
1 ASSMAN, Hugo. Os trilateralistas sugerem uma chave de leitura deste livro: o terceiro mundo visto como ameaa; SANTOS, Theotnio dos; CHOMSKY, Noam (orgs.). A Trilateral nova fase do capitalismo mundial. Petrpolis: Vozes, 1979. p.8.
2
de eventos que atingem seu pice em 1973, ano em que fundada a Comisso
Trilateral.2
Nos EUA, o fim do alistamento obrigatrio e o incio da retirada das tropas do
Vietn, em 1973, significaram o fim do maior movimento anti-belicista e de
solidariedade a um pas de Terceiro Mundo que j existira naquele pas; ao mesmo
tempo em que a chamada Nova Esquerda j dava sinais de crise desde a dissoluo da
Students for a Democratic Society, em 1969. Na Europa, a expanso do chamado
eurocomunismo parecia vir para enterrar de vez as formas de atividade poltica
associadas ao Maio de 68, cujo significado ficaria em disputa por muito tempo.3
Concomitantemente, assinala Jameson, os intelectuais do establishment,
particularmente nos EUA, comeam a sair de uma postura um tanto atemorizada e
passariam a erguer suas vozes contra o barbarismo poltico e cultural dos anos 1960
que, mesmo com a entrada da nova dcada, pareciam no ter terminado. Entretanto,
continua Jameson, em julho de 1973,
certos intelectuais de um tipo bem diverso, representando vrias formas concretas de poder poltico e econmico, comearo a repensar o fracasso do
Vietn em termos de uma nova estratgia global para a afirmao dos interesses
dos Estados Unidos e do Primeiro Mundo. O estabelecimento da Comisso
Trilateral, por eles promovido, ser pelo menos um marco significativo na
recuperao de um impulso pelo que deve ser chamado de a classe dirigente.4
bastante recorrente entre os analistas assinalar o curto perodo entre fins da
dcada de 1960 e incio de 1970 como um perodo central para a compreenso de uma
srie de caractersticas do capitalismo contemporneo, nas mais diversas searas:
economia, poltica, cultura, ideologia; e as perturbaes econmicas que se manifestam
com fora em 1973 como comparveis s crises de 1873 e 1929, embora com
caractersticas muito diferentes.5
Os movimentos organizados e os grupos de resistncia armada cresceriam? A
crise econmica passaria ou se aprofundaria? Haveria petrleo suficiente para a
2 Assim como Antonio Gramsci e Eric Hobsbawm situaram o Sculo XIX entre a Revoluo Americana
at a ecloso da Primeira Guerra Mundial, numa escala de tempo menor, nos pareceu adequada a
periodizao para os anos 1960 proposta por Jamenson. Ver JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In. HOLLANDA, Helosa Buarque de (org.). Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p.81-126. 3 Idem, p.120. 4 Idem, p.120. 5 Eric Hobsbawm, por exemplo, em sua histria do sculo XX localizou justamente ai o fim da Era de Ouro e o incio do Desmoronamento. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve sculo XX (1914-1991). So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
3
produo industrial nos nveis que os pases avanados demandavam? As relaes com
o chamado bloco comunista esfriariam mais ou recrudesceriam? E as relaes entre os
principais pases capitalistas, poderiam evoluir para uma situao de conflito aberto? O
mundo sobreviveria ameaa nuclear? Estas eram apenas algumas das questes que
perturbavam qualquer noo de estabilidade. Acima de tudo, ainda havia a prpria
noo de que o mundo poderia ser outro, coisa que aparentemente ficaria soterrada com
a avalanche neoliberal a partir dos anos 1980 quando, como bem ilustraram o mesmo
Jameson e Slavoj iek no incio dos anos 1990, passou a ser mais fcil imaginar um
mundo ps-humano do que um mundo no regido pela mercadoria.6
Alguns autores, como A. Argumedo, assinalam que a coincidncia entre as
mudanas no plano internacional e a crise econmico-financeira assinala o que ela
chamou de crise epocal, que inclui tanto o mundo ocidental quanto o mundo socialista
antagnico, e cuja resoluo assinalar, sem dvida, uma etapa crucial no devir
humano.7
A reorganizao do capitalismo em uma situao de crise como aquela dos anos
1960/1970, que no se constitua apenas de uma crise econmica, mas poltica,
ideolgica, envolvendo a totalidade social, no poderia se basear simplesmente numa
adoo de uma nova poltica econmica. Exigia tambm, e talvez sobretudo,
modificaes nas estruturas do Estado, tal como havia ocorrido na ltima grande
depresso (nos anos 1930) em diversas latitudes do planeta. A preocupao da Trilateral
com a evoluo do regime democrtico tanto nos pases centrais como nos pases
perifricos especialmente reveladora de sua conscincia totalizante a este respeito: no
que se refere aos pases centrais, no era possvel superar a crise sem alterar as
estruturas daqueles regimes consolidados no ps-Segunda Guerra. O neoliberalismo,
quando da implantao de suas terapias de choque, sempre exigiu, alis, tal
modificao profunda na estrutura do Estado. No entanto, assinale-se que a Trilateral
6 Parece-nos mais fcil hoje imaginar a completa deteriorao da terra e da natureza do que a quebra do capitalismo tardio, mesmo que isso se deva a alguma debilidade de nossas imaginaes. JAMESON, Fredric. Antinomias da ps-modernidade. In. A virada cultural. Reflexes sobre o ps-modernismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006 [1991], p.91. IEK, Slavoj. O espectro da ideologia (Introduo). In. IEK, Slavoj (org.). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.7. 7 Crisis em la possibilidad de lograr consenso para um proyecto de desarrollo econmico, social y cultural, que se manifiesta con incrementada fuerza em el escenario mundial.(...) La formacin misma de
la Comissin Trilateral a comienzos de los aos setenta (...) es expressin de um proyecto que convoca a
sus ms lcidos intelectuales organicos para debatir ls respuestas posibles ante esta situacin critica. ARGUMEDO, Alcira. Los labirintos de la crisis. America Latina: poder transnacional y comunicaciones.
Buenos Aires: Folios Ediciones, 1984.
4
no se caracterizou especialmente ou unicamente por ser uma entidade neoliberal, como
outras que surgiram nos anos 1970; ao contrrio, em seus primrdios defendia propostas
historicamente keynesianas, como a criao de um Banco Central Mundial.
importante assinalar, a esta altura, que uma situao de crise no significa
paralisia, esgotamento do capitalismo, tampouco colapso; ao contrrio, pode significar
um ponto a partir do qual as relaes capitalistas se expandem, aprofundando ainda
mais seu desenvolvimento desigual.8 Em segundo lugar, partimos do pressuposto que,
por mais organizadas e poderosas que sejam as classes capitalistas, elas esto
igualmente sujeitas s contradies do capitalismo, no possuindo nenhum poder
especial de se pr acima destas. Ao contrrio, observaremos como as estratgias mais
bem elaboradas daquilo que chamaremos de elite orgnica transnacional, se defrontam
permanentemente com resistncias.
No entanto, observamos tambm que as formas de organizao das elites
orgnicas desenvolveram-se, aprofundaram-se, internacionalizaram-se, e procuraram
estar altura dos desafios colocados hegemonia do grande capital. A histria das
entidades privadas das elites orgnicas capitalistas comea no incio do sculo XX, e
conhecem um momento particularmente frutfero entre meados e fins dos anos 1960 e o
incio dos anos 1970. Como assinalamos, justamente o perodo em que gestada a
Comisso Trilateral, a primeira entidade que se pretendia, de fato, transnacional.
Outra coisa importante a assinalar aqui que o uso do termo Terceiro Mundo
neste trabalho no tem sentido categorial, terico, mas sim meramente descritivo.
Estamos, aqui, plenamente de acordo com Aijaz Ahmad quando este aponta a
mistificao existente na teoria dos trs mundos em todas as suas verses.9
8 (...) o fato de a lgica capitalista lanar a humanidade em crises sucessivas e cada vez mais profundas
no significa que o capitalismo esteja em processo de recuo ou de estreitamento de suas bases sociais. FONTES, Virgnia. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e Histria. Rio de Janeiro:
EdUFRJ/Fiocruz, 2010.p.42. 9 Uma formao ideolgica que redefiniu o anti-imperialismo no como um projeto socialista a ser realizado pelos movimentos de massa das classes populares, mas como um projeto desenvolvimentista a
ser realizado pelos Estados mais fracos das burguesias nacionais durante sua competio colaborativa
com os Estados mais poderosos do capital avanado serviu ao interesse tanto de tornar os movimentos de
massa subservientes ao Estado burgus nacional quanto de fortalecer as posies de negociao daquele
tipo de Estado em relao aos Estados e entidades corporativas do capital avanado. Foi essa competio
setorial entre capitais atrasados e avanados, realizada diferencialmente no mundo, devido em parte
prpria histria colonial, que era agora advogada como o cerne de lutas anti-imperialistas, enquanto o
Estado burgus nacional era ele prprio reconhecido como representante das massas. AHMAD, Aijaz. Teoria dos trs mundos: fim de um debate. In. Linhagens do presente. Ensaios. So Paulo: Boitempo, 2002. p.173.
5
precisamente este ponto, alis, que nos diferenciamos de parte da literatura que estudou
a Trilateral, de um ponto de vista que ficou conhecido como terceiro-mundista.
Como explica Luis Maira, o primeiro impulso do interesse de cientistas sociais
acerca da Comisso Trilateral refluiu com o desgaste do governo Carter, o governo que
representou a chegada ao poder da plataforma trilateralista. A derrota dos democratas
nas eleies de 1980 parecia enterrar de vez as pretenses trilateralistas, o que gerou
uma desvalorizao quase completa da importncia da Comisso Trilateral, dando-se
quase por certo que suas iniciativas haviam experimentado uma perda de significado
definitiva.10 Raciocinar desta maneira, porm, afirma Maira, seria cometer um grave
erro. O verdadeiro significado da estratgia trilateral sua convocatria aos setores
mais eficientes das burguesias nacionais dos pases do centro para somar esforos na
definio e aplicao de polticas comuns que sirvam a seus interesses fundamentais.11
Da que o seguimento de seu estudo, alerta o autor, deve prosseguir com uma alta
prioridade. Outro motivo, acrescentaramos, que o tema no fique nas mos da
prolfera literatura conspiracionista, que propaga uma viso de mundo explicitamente
conservadora.
Felizmente, para alm da literatura conspiracionista, cujas bases sociais,
polticas e ideolgicas sero mencionadas no captulo 3 deste trabalho, alguns estudos
profundos j foram feitos sobre a Trilateral. Em 1979, a primeira obra sobre a Comisso
Trilateral publicada no Brasil. Voltando-se para entender criticamente o fenmeno do
governo Carter em um continente marcado por ditaduras militares, o livro, fruto de uma
iniciativa de intelectuais latino-americanos e colaboradores estadounidenses, trazia uma
perspectiva a partir do Terceiro Mundo, focando nas modificaes que uma plataforma
trilateralista traria para o continente.12 Um ano depois, nos EUA, o segundo livro a
condensar diversas contribuies sobre o tema foi o da cientista poltica americana
Holly Sklar, publicado em 1980.13 O livro de Sklar, reunindo numerosos autores, a
maioria estadounidenses, e diversas temticas relacionadas ao trilateralismo, era
10 MAIRA, Luis. La vigencia estrategica del proyeto trilateral y las tendencias a la internacionalizacion politica de America Latina. In._________. America Latina y La crisis de hegemonia norte-americana. Lima, Peru: Desco/Centro de Estudios y promocion del desarollo, 1982. p.195. 11 Idem, p.195. 12 ASSMAN et all,. Op. Cit. O livro uma compilao de obra de dois tomos e 18 autores: ASSMAN,
Hugo (Ed.) Carter y La logica del imperialismo. Costa Rica: Editorial Universitaria Centro-americana
(EDUCA), 1978. 2 tomos. 13 SKLAR, Holly (org.). Trilateralism: managing dependence and democracy. Boston: South and Press,
1980.
6
bastante heterogneo do ponto de vista terico, assim como o primeiro. O terceiro e
ltimo grande estudo sobre a Comisso foi feito por Stephen Gill, autor do campo das
Relaes Internacionais que, juntamente com outros autores que, seguindo as
proposies de Robert Cox, trouxe as idias de Antonio Gramsci para suas anlises.
Publicada exatamente uma dcada depois do livro de Sklar, a obra de Gill sobre a
Comisso Trilateral focava na discusso sobre a hegemonia americana.14 Muitos artigos
importantes que nos referiremos ao longo do texto foram produzidos desde ento,
porm nenhum outro estudo de flego foi levado a cabo.
Comeando do comeo: quem a Comisso Trilateral?
O atual Comit Executivo da Comisso Trilateral (janeiro de 201515)
composto, pela parte europia, por Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central
Europeu entre 2003 e 2011 (incluindo portanto o perodo da Troika); Vladimir Dlouhy,
Ministro da Indstria e Comrcio da Repblica Tcheca entre 1992 e 1997, economista e
conselheiro internacional do Goldman Sachs16; e Michael Fuchs, diretor de uma srie de
associaes empresariais na Alemanha, entre elas a Confederao dos empregadores
alemes, e chefe do CDU-CSU17 (coalizo poltica de Angela Merkel, majoritria) no
Parlamento Alemo.
Do escritrio norte-americano, o presidente Joseph Nye, professor de Relaes
Internacionais de Harvard18; Jaime Serra, figura chave na implantao do Nafta no
Mxico; e John Manley, figura de destaque do Partido Liberal no Canad, tambm
diretor da Canadian Council of Chief Executive (CCCE), uma das maiores organizaes
empresariais do pas.
David Rockefeller o fundador e presidente honorrio; tambm so presidentes
honorrios o irlands Peter Sutherland, atual presidente da Goldman Sachs e diretor da
British Petroleum, e primeiro presidente da Organizao Mundial do Comrcio (1993-
1995); o francs Georges Berthoin, figura de peso no processo de unificao europia;
Paul Volcker, presidente do FED americano entre 1979 e 1987 e conselheiro para
14 GILL, Stephen. American Hegemony and the Trilateral Commission. Cambridge: Cambridge
University Press, 1990. 15 Retirado da pgina oficial da entidade, www.trilateral.org. 16 Tentou ser candidato presidncia em 2013 pela Civic Democratic Alliance, mas no conseguiu ter a
candidatura homologada. 17 Siglas em alemo para Unio Democrata Crist e Unio Social-Crist, conhecidas no Bundestag como
a Unio. 18 Veremos no captulo 3 sobre o perfil de Nye.
7
recuperao econmica de Barack Obama; Mario Monti, ex-primeiro ministro italiano
e conselheiro da Goldman Sachs e Yotaro Kobayashi, ex-presidente da Fuji-Xerox e
nome conhecido no mundo empresarial japons.
No quadro de membros regulares, tambm se encontram Lucas Papademos, ex-
Primeiro-Ministro da Grcia, (vice-presidente do Banco Central Europeu de 2002 a
2010 e membro da CT desde 1998); Jorge Braga de Macedo, ex-ministro das Finanas
de Portugal; e Marek Belka, ex-primeiro-ministro, Ministro das Finanas e atualmente
Presidente do Banco Nacional da Polnia, e ainda Diretor do Departamento Europeu do
FMI.
Do quadro americano so membros a ex-secretria de Estado Madeleine K.
Albright, Santiago Levy, diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento,
Andrew Liveris, presidente da Dow Chemical; Roy MacLaren, ex-ministro do
Comrcio Internacional do Canad; John Negroponte, ex-diretor da National
Intelligence e ex-embaixador dos EUA na ONU, em Honduras, Mxico, Filipinas e
Iraque (um dos principais nomes no planejamento e execuo da invaso ao Iraque em
2003).
So membros da CT inmeras figuras de proa do governo Barack Obama, entre
eles, o Secretrio do Tesouro; dois Secretrios de Estado; o porta-voz da Cmara dos
Deputados; o Secretrio de Defesa; o Comandante-em-chefe do Comando do Pacfico (a
maior diviso militar do pas); o Presidente Executivo do Federal Reserve Bank of New
York; o presidente e um diretor do Conselho Econmico; o Diretor de Planejamento de
Polticas do Departamento de Estado e Presidente do Council on Foreign Relations19
para no mencionar aqueles que so figuras influentes no Estado, mesmo sem ocupar
cargos oficiais. Alguns personagens centrais de governos recentes do Mxico, como o
Secretrio de Comrcio e Desenvolvimento Industrial; o ministro da Sade; o Secretrio
de Transportes e Comunicaes, e o diretor do fundo mexicano do NAFTA (e secretrio
de finanas do Mxico entre 1984 e 1996, no auge da neoliberalizao do pas),20 esto
na Comisso.
Do significativo elenco europeu, faziam parte da liderana da CT, em outubro de
2013, alm dos j mencionados, os Primeiros-ministros da Finlndia, Romnia e
19 Respectivamente, C. Fred Bergsten; Strobe Talbott e Madeleine K. Albright; Thomas S. Foley; Graham
Allison; Adm. Dennis B. Blair; William C. Dudley; Austan Goolsbee e Lawrence H. Summers; Richard
N. Haass e John D. Negroponte. 20 Respectivamente, Herminio Blanco Mendoza; Julio Frenk; Luis Tllez Kuenzler e Jaime Serra.
8
Irlanda; o Presidente da Repblica da Bulgria; o Presidente do Banco Nacional da
Hungria; o Presidente do Conselho de Diretores do Banco Nacional da Dinamarca; o
Ministro de Estado e Diretor do Banco Nacional da Blgica; o ministro da Defesa da
Noruega; o secretrio-geral da Conveno Europia e tambm membro da Cmara dos
Lordes da Inglaterra; e a ministra de Assuntos Europeus e Internacionais da ustria.21
Representando o Pacfico e a sia, da lista de 2013 constavam os presidentes das
maiores corporaes japonesas e asiticas, como Fuji-Xerox, Sony e Nippon; o dono do
maior grupo de mdia da Coria do Sul, o JoongAng Media Network, e ainda, o
conselheiro-snior do Banco de Tokyo-Mitsubishi (o maior do Japo) e o Secretrio de
Finanas das Filipinas.22
Atualmente, a comisso criou a figura dos trienium participants para receber
em seus encontros regulares participantes de outras reas. Em 2013, constavam como
trienium participants Jacob A. Frenkel, presidente do JP Morgan Chase International, e
ex-presidente do Banco de Israel; El Hassan Bin Talal, presidente do Clube de Roma,
moderador da World Conference on Religion and Peace, e presidente do Arab Thought
Forum, de Am (Jordnia); Ricardo Hausmann, professor de Harvard, ex-ministro
venezuelano de Planejamento e membro do conselho do Banco Central da Venezuela
(1993-1994), economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (1994-
2000); Sergei Karaganov, editor de Russia in Global Affairs, Moscou; Andnico
Luksic Craig, vice-presidente do Banco do Chile, Santiago; Rsd Saracoglu,
presidente da Makro Consulting, Istambul, ex-ministro de Estado e membro do
Parlamento turco, e ex-presidente do Banco Central da Turquia; Roberto Egydio
Setubal, presidente e chefe executivo do Banco Ita S.A. e Banco Ita Holding
Financeira S.A., So Paulo; entre outros.23
Parece fora de dvida, s com esta lista prvia, que a comisso consegue reunir,
de fato, nomes que esto no cerne da poltica e das decises estatais nos pases centrais
certamente um nmero representativo deles comparece aos encontros e acompanha as
atividades da comisso.24 Ainda que consideremos a atuao da comisso como mera
21 Respectivamente: Esko Aho, Mugur Isarescu e John Bruton; Petar Stoyanov; Gyrgy Surnyi; Nils
Bernstein; Luc Coene; Grete Faremo; Lord Kerr of Kinlochard; e Ursula Plassnik. 22 Respectivamente, Yotaro Kobayashi, Hong SeokHyun, Toyoo Gyohten e Roberto F. de Ocampo. 23 Cargos ocupados quando da publicao da lista, em maro de 2013, destacados pela prpria comisso;
lista acessada em www.trilateral.org, 30 de maro de 2013. 24 Evidentemente, com isso no se est dizendo que tudo passa pela comisso, somente que ela se
conserva como um lcus importante de debates intra-classe dominante.
9
troca de idias intra-elites, percebe-se que ela tem capacidade de reunir representantes
significativos em posio de exercer forte influncia em seus respectivos pases e nos
organismos internacionais. Esta influncia, no entanto, no deve nem de longe ser
percebida como alardeia a literatura conspiracionista, e sim dentro do contexto da
histria dessa organizao.
O que a Comisso Trilateral e o trilateralismo
Se pudssemos apontar quatro fatos concretos impulsionadores da elaborao do
trilateralismo e da criao da Comisso Trilateral, estes fatos seriam, que, em ordem
cronolgica, mas no de hierarquia, seriam:
1. Os movimentos estudantis e populares, greves e agitaes urbanas que
varreram o mundo capitalista avanado que tiveram seu cume em 1968-
1969, rompendo com a relativa calmaria poltica que se seguiu
estabilizao econmica e a implantao das variantes de estados de bem-
estar social aps a Segunda Guerra Mundial;
2. A ruptura unilateral, pelo governo Nixon, do padro ouro-dlar, em agosto
de 1971, juntamente com outras medidas que visavam corrigir o dficit da
balana de pagamentos americana; os chamados choques de Nixon foram
institudos sem consultas internacionais e enfureceram os parceiros
comerciais dos EUA, que se aproveitavam da posio internacional do dlar.
Embora este fosse um processo cumulativo, que j vinha ocorrendo, as
atitudes do governo foram consideradas pouco favorveis para a manuteno
da estabilidade do sistema monetrio internacional; nos EUA, o escndalo de
Watergate geraria ainda mais dissenso intra-capitalista naquilo que ficou
conhecido como grande crise de confiana que prossegue at o fim da
dcada;
3. A derrota dos EUA no Vietn, que aprofundou a mesma crise de confiana
e fez pender a correlao de foras internacionais, demandando do
stablishment de segurana nova abordagem estratgica;
4. O embargo da OPEP em 1973 com a conseqente elevao dos preos do
petrleo, que sinalizava uma mudana num dos mais importantes regimes
internacionais de commodity, afetando, a partir de uma posio poltica
unificada de pases produtores de petrleo do Terceiro Mundo, toda a
10
indstria dos pases capitalistas avanados, em especial Japo, Europa
Ocidental e os EUA.
Segundo Richard Falk, um pensador liberal reformista, a formao pblica da
Comisso Trilateral foi virtualmente um partido para fora (coming out party) para as
classes dominantes. Sua criao teria refletido a convico desses lderes que seu estilo
encoberto e indireto de dominar era insuficiente para atender a nova agenda de desafios
nos principais pases capitalistas do mundo. Assim, tornou-se necessrio para a classe
dominante americana exercer uma influncia direta sobre o processo administrativo e
faz-lo no esprito de uma classe dominante transnacional preocupada com manter o
capitalismo mundial saudvel.25
A principal ameaa imediata que levou formao da Trilateral foi o medo das
crescentes tenses entre os Estados capitalistas da Amrica do Norte, Europa Ocidental
e Japo acerca da diviso dos mercados e acesso a matrias-primas. A estrutura de
comrcio e investimento poderia conduzir a uma era de competio destrutiva, ao
nacionalismo econmico, e possivelmente prpria guerra. Havia tambm uma
preocupao crescente com o Terceiro Mundo, centrada na vulnerabilidade diante das
presses da OPEP, e que estendia-se ao objetivo de criar uma fenda nos reclamos por
uma Nova Ordem Econmica Internacional.26
Em pouco tempo, os trilateralistas se moveram de suas preocupaes
administrativas acerca da economia mundial para proclamar, tambm, a crise da
democracia em casa que, na viso de Falk, consistia de uma variedade de demandas
por reformas de ativistas indisciplinados que estaria minando a coerncia ideolgica
requerida para reconciliar o capitalismo maduro-senil (mature-to-senil) com a
existncia de procedimento democrtico.
25 FALK, Richard. Preface. In SHOUP, Laurence H. The Carter presidency and beyond. Power and Politics in the 1980s. California: Ramparts Press, 1980. p.7. Um dos principais mritos deste trabalho de Shoup, segundo Falk, era o de mostrar como esse setor dominante das classes dominantes nos EUA no
podem ser confundidos com a imagem reacionria da direita tradicional, que alis, os acusa de
comunismo e coisas afins. Afinal, a direita tradicional prope um set de polticas que promovem os interesses e valores do capitalismo nacional, favorecendo protecionismo, baixos impostos, a eliminao
dos programas de welfare, e o nacionalismo old style. Idem, p.10. 26 A Nova Ordem Econmica Internacional era um conjunto de propostas elaboradas no mbito na Assemblia Geral das Naes Unidas ao longo de 1974, impulsionada por pases do Terceiro Mundo com
vistas a garantir melhores condies de negociao com os pases centrais em diversas reas como
estabilidade no preo de matrias-primas, acesso aos mercados dos pases desenvolvidos, transferncia
tecnolgica, regulao de corporaes transnacionais, entre outros.
11
Os policy-makers americanos, impactados pela derrota no Vietn, reconheceram
que os EUA no eram capazes de sustentar as redes econmicas, polticas e militares
necessrias para manter o sistema imperial no Terceiro Mundo. Mais do que isso, os
EUA estavam encarregados de uma fatia desproporcional dos custos militares, enquanto
a Europa Ocidental e o Japo estavam apenas investindo em atividades produtivas e
aumentando suas vantagens competitivas.27 Claramente, os EUA estavam arcando com
os custos da dominao do Terceiro Mundo, enquanto a Europa e o Japo colhiam os
frutos.
O antigo sistema de poder inquestionvel dos EUA dentro do mundo capitalista
erodia, mesmo que os EUA continuassem, comparativamente, o pas capitalista mais
poderoso. Nesse sentido, como resume Petras, A Comisso Trilateral foi um esforo de
criar uma liderana coletiva para coordenar e sincronizar as polticas entre as potncias
capitalistas como um modo de minimizar a frico interna e maximizar os ganhos no
Terceiro Mundo. 28
A preocupao da CT procuraria ser sempre dupla: uma espcie de exerccio
voluntrio de ultraimperialismo no centro,29 que supriria o declnio do domnio norte-
americano; e uma cooptao ou transformismo das elites dos estados semi-perifricos e
perifricos (incluindo os Estados em que imperavam os regimes ditos comunistas). Mas,
sobretudo, de acordo com Ren Armand Dreifuss,
(...) a Comisso Trilateral pretendia inaugurar uma nova fase de transnacionalizao, que prescindiria num grau ainda maior de certos aspectos
da intermediao poltico-ideolgica e econmica dos Estados nacionais,
alicerando esse enfoque e sua prtica na coordenao e controle poltico
atravs da ao privada do empresariado transnacional.30
Mais do que apenas recomendar polticas especficas, Essas elites
transnacionais seriam responsveis pelo rule-making (a criao de regras do jogo), isto
, o estabelecimento de parmetros, regras, padres e procedimentos31, de forma
27 Em 1970, os EUA estavam gastando 8% de seu Produto Nacional Bruto com gastos em defesa,
enquanto o Japo gastava apenas 0,8%. PETRAS, James. The Trilateral Commission and Latin American Economic Development. In. _________. Class, State and Power in the Third World. With case studies on class conflict in Latin America. Londres: Zed Press, 1981. p.87. 28 PETRAS, Op. Cit., p.88. 29 O conceito de imperialismo, seu debate subjacente e proposies como a de ultraimperialismo, so discutidos no captulo 1. 30 DREIFUSS, Ren A. A Internacional Capitalista. Estratgias e tticas do empresariado transnacional
(1918-1986). 2 edio. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1987, p.87. 31 Idem, p.87.
12
bastante coerente, alis, com o vis institucionalista de muitos dos intelectuais
participantes da comisso.
Cabe-nos principalmente indagar sobre o lugar que a Trilateral e o trilateralismo,
dentro daquilo que chamaremos, a partir de Dreifuss, de elites orgnicas internacionais,
ocupou como possibilidade de resposta s crises de diversas ordens que se cruzaram no
perodo em tela.
O que pretende este trabalho
No pretendemos neste trabalho avaliar em que medida o vasto e heterogneo
conjunto de propostas concretas da CT foi posto em prtica; tal anlise exigiria uma
vasta pesquisa no somente a partir de seus prprios documentos, mas,
fundamentalmente, porque muito dificilmente encontraremos nos documentos
institucionais das outras instituies as quais a Trilateral influenciou o reconhecimento
de uma influncia da comisso. Pretendemos, ao invs, destacar a relao entre
diagnstico terico e prognstico poltico, entre o conjunto terico-ideolgico
identificado de alguma forma com o trilateralismo e as propostas concretas da
Comisso Trilateral de forma a localizar o lugar das idias da Comisso Trilateral no
mundo das elites orgnicas transnacionais, nos anos 1970. Destacamos, assim, o papel
da Comisso tanto como propositora de projetos como de lcus de formao intra-
classes dominantes.
Assim colocado, este trabalho rejeita tanto as concepes identificadas com a
direita anti-globalista e anti-liberal, que acusa a Trilateral de querer formar um governo
mundial acima das naes; quanto vises difusamente crticas globalizao e
Nova Ordem Mundial, igualmente, superdimensionam o poder efetivo de entidades
como a Trilateral, compartilhando de alguma forma com a mesma viso de fundo
obscurantista. Nesse sentido, importante retomarmos aqui a distino tradicional entre
projeto e processo, alertando que o foco de nosso trabalho no projeto, mas no porque
este tenha alguma prioridade essencial, mas por uma questo de recorte analtico32.
32 Utilizaremos a definio de projeto estratgico de Argumedo, para quem os projetos estratgicos constituem as grandes linhas articuladoras de uma viso de mundo em suas diversas expresses, os
objetivos ideolgicos mais abrangentes e fundantes, a partir dos quais se vo definindo as metas
especficas e as formas de implementao de um determinado modelo de sociedade no econmico, no
social, no militar, no comunicacional, no governamental, dentro das distintas realidades nacionais ou
regionais e no cenrio internacional. Um projeto estratgico expressa assim dos modos mais amplos de
vertebrao da ideologia e os interesses econmicos e culturais de determinados setores sociais, tanto
13
Tambm no pretendemos afirmar que a Trilateral seja uma entidade mais importante
que as outras do gnero, e sim basicamente assinalar suas particularidades,
especialmente de seu arcabouo poltico-ideolgico.
Nosso objetivo analisar a entidade e o trilateralismo em seus prprios termos, e
entender como seu surgimento esteve relacionado com um contexto de crise econmica,
poltica e social que marcou a virada dos anos 1960 para os anos 1970, impactando
decisivamente na maneira como as elites orgnicas mais internacionalizadas pensavam
questes como o sistema monetrio internacional, os regimes polticos democrticos e
as prprias instituies internacionais. nfase ser dada, portanto, relao entre as
teorias defendidas pelos intelectuais orgnicos ligados entidade e o diagnstico/terapia
por ela propostos.
Periodizao
A delimitao temporal aqui adotada abarca do ano de 1973, data de fundao
da comisso, a 1979, ano em que uma srie de eventos leva a uma guinada nas elites
orgnicas principalmente nos EUA, com a crise do governo Carter. A ocupao
sovitica no Afeganisto e a crise dos refns no Ir, ambas em dezembro de 1979,
fortaleceram os setores conservadores que vinham crescendo ao longo de toda a dcada,
e fizeram com que os temas de segurana voltassem ao centro do debate pblico,
estimulando o revanchismo anti-comunista e anti-Terceiro Mundo. Esse sentimento
seria o caldo de cultura para vitria acachapante do ex-ator republicano Ronald Reagan
na disputa pela presidncia em fins de 1980. Ao mesmo tempo, a revoluo
nicaragense parecia ressuscitar mais um fantasma cubano na Amrica Central, assim
como a revoluo de Maurice Bishop em Granada, tudo no mesmo ano em que a VI
Conferncia dos Pases No-alinhados ocorria em Cuba, elegendo Fidel Castro como
seu presidente.
Em outubro de 1979, outro evento que alteraria drasticamente os rumos do
capitalismo mundial foi lanado por Paul Volcker, economista indicado por Carter para
a presidncia do Federal Reserve em julho do mesmo ano, tambm membro da CT: o
como os princpios doutrinrios que estabelecem os objetivos e eixos de alianas nacionais e
internacionais. Constitui a sistematizao de uma proposta representativa, sentida como prpria, por um
conjunto de fraes sociais cujos interesses ainda que contraditrios podem organizar-se dentro de um contexto de relaes antagonismos, enfrentamentos ou alianas com outro ou outros blocos poltico-sociais. ARGUMEDO, Op. Cit., p.33.
14
chamado choque Volcker. Este consistiu no aumento sbito das taxas de juros
praticados pelo FED, o que gerou uma reao em cadeia de enxugamento de crditos e
nos anos 1980 desencadearia a crise da divida em numerosos pases do Terceiro Mundo.
Ainda no incio do ano, a lder conservadora Margareth Thatcher vencera o partido
trabalhista de James Callaghan, cujo gabinete se arrastou por longa crise, e assumiu o
posto de primeira-ministra em 4 de maio. Essas duas vitrias eleitorais abririam afinal
um caminho para o avano do neoliberalismo no mundo desenvolvido, anos aps seus
primeiros laboratrios sangrentos na Amrica Latina, especialmente no Chile e na
Argentina. 1979 tambm foi o ano do primeiro projeto de emprstimo condicionado do
Banco Mundial, o que sinalizava a prioridade em manter os pagamentos das dvidas do
Terceiro Mundo em dia.33
Alm disso, existe uma cronologia prpria da histria da Trilateral,
profundamente relacionada a esta conjuntura. Neste ponto, seguiremos a cronologia
proposta por Luis Maira, segundo a qual os anos iniciais da comisso podem ser
distinguidas tanto pela prioridade estratgica dada ao Terceiro Mundo ou URSS,
quanto prpria composio da comisso. De 1973 a 1977 predomina a viso globalista
das corporaes, a perspectiva de ampliar a detnte com o mundo sovitico com vistas a
abrir esta parte do mundo para os negcios. a prpria vitria de Carter que gera um
movimento, em 1977, de ingresso, na comisso, de uma srie de personagens
republicanos e mais fortemente ligados ao complexo industrial-militar.34 De 1977 a
1979, ter-se-ia dentro da comisso duas posies bem diferentes, que embora tivesse,
claro, diversos pontos em comum, divergiam acerca da poltica em relao URSS ao
sistema internacional como um todo. Segundo Maira, depois disso a comisso teria
perdido sua relativa homogeneidade poltico-ideolgica inicial.35
Fontes
O principal conceito deste trabalho o de elite orgnica, o qual apresentaremos
no primeiro captulo. Mas, em nosso entendimento, este conceito precisa estar acoplado
33 PEREIRA, J.M.M. O Banco Mundial como ator poltico intelectual e financeiro. 1944-2008. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010. p.233. 34 Entre eles, George Bush (pai), William Scranton (governador da Pensilvnia), James Thompson,
governador de Illinois, e Arthur Burns, um dos principais especialistas republicanos em assuntos
econmicos e financeiros. 35 MAIRA, Op. Cit., p.210-215.
15
categoria imperialismo, que em nosso ver permanece atual, como tambm
desenvolveremos no primeiro captulo.
A parte principal de nosso corpo de fontes composta pelos documentos
disponveis no stio eletrnico da prpria instituio (www.trilateral.org), distribudos
em trs categorias: relatrios de Task Forces, (foras-tarefas, isto , grupos
especialmente dedicados a analisar um assunto especfico); os boletins de regularidade
variada (Trialogues); e relatrios de encontros anuais. No perodo compreendido,
analisamos o total de 21 Trialogues e 20 Task-Force Reports compreendidos entre 1973
e1979, sistematizados nos apndices. Os Trialogues tm por objetivo tanto repercutir os
debates dentro da comisso em seus encontros, como convidar figuras de fora da
comisso para opinar sobre seus relatrios (muitas vezes opinies bastante diversas
quelas apresentadas pelos comissionrios).
Note-se que os Task-Force Reports so formalmente assinados somente pelos
autores convidados pela comisso para elabor-los, e configuram estudos mais densos
com anlises e propostas sobre o tema em questo. Trabalhamos tambm com aquilo
que era chamado pela comisso de processo trilateral, isto , o perodo normalmente
extenso (no mnimo alguns meses) em que os autores dos Task-Force Reports, os
comissionrios e outros especialistas se encontram para discutir as verses preliminares
publicao e discusso nos mbitos dos encontros peridicos formais da comisso.
O segundo conjunto do corpo de fontes compe-se das obras (livros, artigos,
etc.), dos intelectuais ligados Trilateral, entre eles, Zbigniew K. Brzezinski,36 Joseph
Nye e Robert Keohane, passando pelas obras de autores que foram trazidas ao debate
destes intelectuais orgnicos, como Daniel Bell. O debate acadmico em torno das
proposies desses autores deve tambm ser considerado, por isso faremos tambm
incurses a alguns peridicos norte-americanos no qual estes debates circulavam,
especialmente a revista Foreing Affairs (peridico ligado ao Council of Foreign
Relations), mas tambm imprensa internacional de forma geral.
Diviso dos captulos
Este trabalho estar dividido em duas partes. Na primeira, procuramos
apresentar e debater o que a Comisso Trilateral e o trilateralismo em seu nascimento,
36 BRZEZINSKI, Zbigniew. Entre duas eras. Amrica: Laboratrio do mundo. Rio de Janeiro: Artenova,
1971.
16
sua relao com outras entidades das elites orgnicas, a partir de uma problematizao
deste conceito.
No primeiro captulo, debateremos as contraposies existentes entre as
concepes liberais clssicas em relao ao sistema internacional e s organizaes
internacionais. Daremos destaque ao debate dentro do marxismo, que compreende desde
o debate do imperialismo, do debate clssico s interrogaes contemporneas sobre a
validade dessa categoria, sublinhando a questo terica do ultraimperialismo.
Apresentaremos sucintamente as matrizes de pensamento provenientes do marxista
sardo Antonio Gramsci e do politlogo Nicos Poulantzas, destacando as contribuies
recentes elaboradas por autores que se colocam de alguma forma nessas matrizes. Por
fim, trabalharemos o conceito de elite orgnica formulado pelo cientista poltico
uruguaio Ren Dreifuss, retomando um pouco a histria do conceito de elite desde
Mosca e Pareto, a Gramsci e Ralph Miliband.
No segundo captulo, apresentaremos um pouco da histria das entidades
privadas das elites orgnicas dos pases centrais no sculo XX. Ser dado destaque s
primeiras redes de entidades que tinham pretenses transnacionais, e a relao entre o
Projeto para os anos 1980 do Council of Foreign Relations (CFR) e a criao da
Comisso Trilateral. Tambm faremos um painel sobre o ativismo corporativo do
perodo, dando nfase sua corrente cosmopolita liberal, e localizando os distintos
matizes da ideologia da obsolescncia do Estado-nao.
No terceiro captulo, analisamos as razes da Comisso Trilateral em seus
aspectos formais e poltico-idegicos. Procuramos entender a sntese trilateralista que
surgiu da mescla entre o pensamento estratgico de Z. Brzezinski, o principal fundador
prtico da Trilateral, e o conceito de interdependncia, tal como desenvolvido pelos
tericos de Relaes Internacionais Joseph Nye e Robert Keohane, eles mesmos
colaboradores da entidade.
Na parte II deste trabalho, abordamos os temas trabalhados pela comisso no
perodo em tela. A diviso entre os captulos na parte II corresponde s trs grandes
temticas trabalhadas pela comisso no perodo: as questes econmicas, especialmente
monetria, do petrleo e a chamada crise alimentar (captulo 4); a questo
democrtica nos pases centrais concentrada na elaborao e debate do famoso
documento The crisis of Democracy, de Samuel Huntington, Michel Crozier e Joji
Watanuki, juntamente com a questo democrtica no Terceiro Mundo, especialmente no
17
debate sobre a campanha dos direitos humanos do mandato do trilateralista J. Carter
(captulo 5); e a reforma das instituies internacionais, articulada ao debate sobre a
relao entre o mundo trilateral e o bloco socialista (captulo 6). Nesses captulos,
procuraremos dar voz s prprias elaboraes da entidade, entendendo como estavam
relacionadas a uma forma de resposta das elites orgnicas transnacionais conjuntura de
crises que mencionamos no incio desta Introduo.
Palavras iniciais
A histria da Comisso Trilateral parece singular na trama das contradies e
das lutas intra-classe do capitalismo contemporneo. O presente trabalho nasceu do
interesse em, a partir de Marx, contribuir com a pesquisa relativa configurao das
classes dominantes no capitalismo contemporneo no plano internacional, em particular
acerca das formas de organizao e atuao poltica atravs de entidades privadas que
podemos definir, latu sensu, como aparelhos privados de hegemonia, nos termos de
Antonio Gramsci.
O objetivo principal , essencialmente, contribuir para o estudo de como os
representantes de determinadas fraes capitalistas se organizam nessas entidades, e
como esses agentes pensaram, pensam e agem sobre determinadas questes-chave do
capitalismo contemporneo, como a questo das crises, da democracia e do
funcionamento do sistema interestatal.
Com isso no pretendemos deslocar a centralidade do conflito entre capital e
trabalho ou sobrepor sobre este conflito as disputas inter-capitalistas ou inter-
imperialistas, mas sim tentar entender em que medida estas ltimas se desenvolveram
neste contexto histrico marcado, alis, pela forte presena dos subalternos no cenrio
poltico mundial.
18
Captulo 1 Imperialismo, Estado e elite orgnica: um debate
introdutrio
A proliferao de entidades e agncias internacionais37 ao longo das dcadas de
1970 e 1980 ocupou muitos historiadores e cientistas sociais. O historiador ingls Eric
Hobsbawm no deixara escapar o tamanho do problema, destacando em sua Era dos
Extremos a multiplicao, nesse perodo, de organizaes internacionais de variados
tipos, mas com destaque para aquelas cuja ao transcendia o escopo dos Estados
Nacionais. Segundo Hobsbawn,
organizaes cujo campo de ao era efetivamente limitado pelas fronteiras de seu territrio, como sindicatos, parlamentos e sistemas pblicos de rdio e televiso
nacionais, saram portanto perdendo, enquanto organizaes no limitadas desse jeito,
como empresas transnacionais, o mercado de moeda internacional e os meios de
comunicao da era do satlite, saram ganhando. O desaparecimento das
superpotncias, que podiam de qualquer modo controlar os Estados-satlites, iria
reforar essa tendncia. (...) A simples necessidade de coordenao global multiplicou
as organizaes internacionais mais rpido do que nunca nas Dcadas de Crise [1970 e
1980]. Em meados da dcada de 1980, havia 365 organizaes intergovernamentais e
nada menos que 4615 no-governamentais, ou seja, acima de duas vezes mais que no
incio da dcada de 1970. 38
J faz algum tempo tambm que o tema das Organizaes No-Governamentais
Internacionais (ONGIS, na sigla adotada pela Unio das Associaes Internacionais, a
UIA) so tema relevante dentro da disciplina de Relaes Internacionais, por exemplo.
Se definidas meramente a partir de seu carter internacional e no-estatal, as
associaes privadas internacionais, seja com objetivos humanitrios, cientficos,
polticos, etc, existem pelo menos desde o sculo XIX.39 A clssica diviso feita dentro
dessa disciplina entre liberais e realistas marcou esse debate sobre as organizaes
internacionais. Se para os realistas as organizaes internacionais refletem o poder
37 Utilizaremos o termo entidade para organizaes de carter privado, como a Trilateral; e agncias para organizaes de carter intergovernamental, como o sistema de agncias da ONU, o FMI, etc. 38 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. O breve sculo XX (1914-1991). So Paulo, Companhia das
Letras, 1995. Respectivamente, as passagens esto na p. 413 e na p. 419. Note-se que Hobsbawn localiza
as dcadas da crise como as de 1970 e 1980, periodizao diferente da que ser adotada aqui. Na mesma passagem, Hobsbawn afirma que Quando a economia transnacional estabeleceu seu domnio sobre o mundo, solapou uma grande instituio, at 1945 praticamente universal: o Estado-nao
territorial, pois um Estado assim j no poderia controlar mais que uma parte cada vez menor de seus
assuntos. Discutiremos este ponto mais frente neste captulo. 39 Segundo Herz & Hoffman, um marco fundamental na histria das ONGIS foi a Conveno Mundial
anti-escravista, de 1840. HERZ, Monica & HOFFMAN, Andrea Ribeiro. Organizaes Internacionais:
definio e histria. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2004. p.35.
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das potncias, para os liberais, especialmente em sua vertente institucionalista, elas
podem, atravs do estabelecimento de normas e regras, contrariar os interesses das
potncias e assim ajudar a gerar estabilidade no sistema.40 Dentro das Relaes
Internacionais, no entanto, apesar de terem conquistado espao algumas correntes
crticas, geralmente no se considera o largo debate desenvolvido a partir da perspectiva
marxista.
O fato que, para pensar no que significa uma organizao internacional do tipo
que a Trilateral, ou qualquer outra, necessrio em primeiro lugar discutir o sistema
internacional no qual ela se insere; preciso, tambm, mapear o pensamento em que
esta organizao vai fincar razes. Neste captulo, discutiremos criticamente as matrizes
tericas de alguns aportes conceituais fundamentais na anlise do trilateralismo e da
Comisso Trilateral, que se relacionam, em primeiro lugar, com a histria do
posicionamento liberal em relao ao sistema internacional, assim como de seus
crticos.
Porm, a histria do pensamento crtico s teorias liberais sobre o mesmo
sistema internacional tambm longa, nela destacando-se as teorias marxistas do
imperialismo. Como veremos, alis, um debate que cerca a interpretao sobre a
Trilateral , inevitavelmente, aquele que remete ao ultraimperialismo de Karl
Kautsky. Por isso, neste captulo tambm apresentaremos sucintamente alguns
momentos do debate marxista sobre o imperialismo, de modo a contextualizar tanto o
debate clssico do imperialismo, iniciado na virada para o sculo XX, quanto o debate
contemporneo.
Dois autores que destacamos no marxismo, e que tiveram vrios de seus
conceitos apropriados no debate mais recente sobre o imperialismo e o sistema
internacional so Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas. O primeiro, embora no tenha
elaborado especialmente o sistema internacional, teve diversos de seus fecundos
conceitos apropriados por autores que tencionaram de pensar o tema. De Poulantzas,
reteremos a relao que o autor apresenta entre internacionalizao do capital e
40 Costuma-se apontar como principal oposio, no campo das Relaes Internacionais, aquela entre
realistas e liberais. Enquanto no realismo, apoiado em Hobbes e Maquiavel, parte-se da aplicao do princpio da essncia ruim da natureza humana para o sistema internacional (que seria por natureza
anrquico e composto por Estados unitrios, coesos e hierrquicos), no liberalismo, apesar da existncia da anarquia, os Estados so concebidos de maneira similar mas podem cooperar uns com os outros e
assegurar a paz. Embora no pretendamos nos aprofundar nessa questo, note-se que a raiz de ambas as
concepes pode ser considerada liberal, na medida em que transpem para o sistema internacional as
noes do direito natural clssicas do liberalismo histrico.
20
internacionalizao do Estado esta ltima, fundamental para compreender as
ideologias burguesas sobre o fim do Estado-Nao, as quais apresentaremos no final
do captulo 2. Alis, as teorias explicativas do Estado so algo que permeia qualquer
interpretao sobre o sistema internacional, e por isso nos remeteremos a elas.
Finalmente, pretendemos apresentar o conceito de elite orgnica, de Ren
Dreifuss, que adotamos para nossa prpria anlise da Comisso, nos detendo em sua
apresentao e problematizao. As matrizes deste conceito, como veremos, esto
tambm em Gramsci e Poulantzas.
Vale assinalar mais uma vez que no nossa inteno apresentar a totalidade
destes longos e complexos debates. Nosso recorte bibliogrfico, necessariamente
subjetivo em algum grau, visa explicitar o quadro conceitual usado para este trabalho,
utilizando como critrio a contribuio direta ou indireta em relao ao tema das
organizaes e do sistema internacionais, alm, claro, de seu prisma terico. Vale
sempre lembrar que, no registro terico-epistemolgico em que nos inserimos, nenhuma
das vises que sero aqui abordadas so axiologicamente neutras; todas elas possuem
uma viso de mundo, ou nos termos do historiador catalo Josep Fontana, uma
economia poltica, no sentido de portar tanto uma viso do passado e do presente e
um projeto de futuro, seja ele de preservao do status quo, seja ele contrrio a este
status quo.41
1. O sistema internacional na perspectiva liberal clssica
O liberalismo clssico, a partir da idia de contrato social e dos direitos naturais
do homem, prezava pela busca dos indivduos livres felicidade e riqueza, e essa
busca individual produziria um resultado coletivamente positivo.42 A razo humana, em
41 Sobre tal uso do conceito de economia poltica, ver FONTANA, Josep. Histria anlise do passado e projeto social. Bauru (SP): Edusc, 1998. Em relao ao tema da neutralidade axiolgica do
conhecimento em cincias humanas, nos referenciamos nas posies expressas em LOWY, Michel. As
aventuras de Karl Marx contra o Baro de Munchausen. Marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento. So Paulo: Cortez, 2003; DUAYER, Mario. Anti-realismo e absolutas crenas relativas. Margem Esquerda, n.8. So Paulo: Boitempo, 2006; e CARDOSO, Ciro Flammarion. Um historiador
fala de teoria e epistemologia. Ensaios. Bauru: Edusc, 2005. 42 Segundo a clssica proposio de Locke, por exemplo, o ser humano, seguindo seus instintos, isto ,
sua essncia natural por mais hedonista que esta possa ser leva boa convivncia e prosperidade geral, com manuteno completa da liberdade. Haveria, aqui, um mecanismo da prpria sociedade civil
capaz de transformar vcios individuais em benefcios pblicos (mecanismo este que, para Adam Smith,
seria o mercado).
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suma, poderia fazer com que as instituies da sociedade garantissem o equilbrio e a
auto-regulao.
O Estado, no caso, seria o principal mecanismo para garantir a defesa de direitos
fundamentais como o direito propriedade. No entanto, a relao do liberalismo com o
Estado seria sempre um tanto ambgua, considerando-o como uma espcie de mal
necessrio, a ser visto com desconfiana, especialmente suas possveis tendncias
autoritrias.43
De acordo com a sntese da historiadora Snia Regina de Mendona,
O conceito de Estado na matriz liberal parte de dois princpios-chave. O
primeiro, que seu estudo deve decorrer do direito e o segundo, que esse direito,
fundamento do prprio Estado, pertence ao domnio da natureza, assim como os demais
fenmenos sociais. Em teoria, os homens abririam mo de sua liberdade e suas
prerrogativas individuais em nome de um governante exterior e acima deles que refrearia as conseqncias funestas do estado natural (...) O Estado assumia, assim, um aspecto ambivalente. Por um lado, ele regulava a todos da mesma forma, de modo
neutro e acima dos interesses particulares que haviam prevalecido at ento. Dessa forma, tornava-se uma espcie de Sujeito, pairando acima e fora da sociedade como
um todo tornando-se Estado e governo naturalmente sinnimos.44
Uma das principais funes do Estado, a garantia da segurana dos cidados
contra ameaas externas, poderia entrar em contradio com as aspiraes polticas
desses mesmos cidados, na medida em que a guerra provoca uma situao na qual o
poder estatal reforado. Nesse sentido, seria do interesse geral que o sistema
internacional se tornasse cooperativo ao invs de conflituoso, e a histria do
pensamento liberal no quesito das relaes entre os Estados girou, em grande parte, em
torno questo de como atingir esse objetivo.
Segundo Joo Pontes Nogueira e Nizar Messari, embora do ponto de vista das
teorias propriamente de RI s se poderia falar em uma teoria liberal a partir do sculo
43 Vale lembrar que, embora o termo liberalismo s aparea no inicio do sculo XIX, o contexto de
nascimento do pensamento liberal justamente o da crtica iluminista aos regimes absolutistas na Europa.
Estamos tratando de liberalismo aqui neste sentido histrico, e no no sentido poltico-ideolgico particular que nos EUA o termo assume. 44 MENDONA, Snia Regina. Estado. (verbete) In. CALDART, R.S.; PEREIRA, I.B.;
ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. (orgs.). Dicionrio da Educao no campo. Rio de Janeiro/So
Paulo: EPSJV/Expresso Popular, 2012. Nas palavras de Fontes, abandonando as formas saturadas de pensamento religioso que perduravam na reflexo sobre a origem do poder poltico (embora j existissem
diversas manifestaes de pensamento laico sobre o exerccio do poder, como Maquiavel), Hobbes a
explicaria a partir dos dolorosos atributos que definiu como naturais da humanidade, e que a impeliriam a conter-se, a dominar-se atravs de um acordo to ou mais violento do que a violncia que o
pacto deveria conter. Tratando-se de um contrato, era, portanto, realizado entre homens e sem
intervenincia de princpios ou agentes externos humanidade. Esse acordo, decorrendo de uma natureza
humana agressiva e marcada pela escassez (a fome e a insegurana), outorgaria a um dentre os homens (o
Soberano) o atributo singular do exerccio da violncia e deveria assegurar a pacificao entre eles pela
demarcao ntida de um nico poder que deveria pairar e exercer-se sobre todos. FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e Histria. Rio de Janeiro: Edufrj/EPSJV, 2010. p.124
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XX, mais especificamente aps a Primeira Guerra Mundial, fato que todo o debate dos
liberais, mesmo em suas vertentes mais recentes e menos otimistas, remete aos
fundamentos e aos dilemas de alguns autores liberais clssicos.
Messari e Nogueira destacam trs pontos fundamentais entre aqueles que foram
historicamente prezados pelos liberais na busca por um sistema internacional
harmnico. O primeiro deles a defesa do livre comrcio. O pensamento liberal, desde
o sculo XIX, defende a idia de uma incompatibilidade fundamental entre o comrcio e
a guerra. Partindo do pressuposto daquilo que economista poltico ingls David Ricardo
(1772-1823) chamou de vantagens comparativas, o comrcio internacional
beneficiaria a todas as naes, e como elemento central para a prosperidade, tambm
possibilitaria a criao de laos intensos entre as sociedades, diminuindo sua propenso
a guerrear entre si.45 nesse sentido que os liberais seriam crticos do mercantilismo e
do protecionismo, encarando-os como polticas que favoreciam apenas os grupos
interessados em aumentar o seu prprio poder econmico atravs do Estado, e assim
ampliando sua tendncia guerra.46
O segundo ponto diz respeito a outra idia forte do liberalismo: a repblica como
antdoto guerra entre as naes, expressa por Kant. Para Kant, a repblica moderna,
entendida como um regime de governo no qual h a representao de diversos interesses
coletivos, consolidado por um estado de direito, era uma forma de governo que
dificultava a entrada de um pas numa guerra. A origem das guerras estaria, assim, nas
formas imperfeitas de governo; sua critica era dirigida especialmente contra os Estados
45 RICARDO, David. Princpios de Economia Poltica e Tributao. So Paulo: Nova Cultural, 1988
[1817]. 46 Normalmente se pensa o mercantilismo como pensamento necessariamente oposto ao liberalismo; no
entanto, segundo Maurcio C. Coutinho, o mercantilismo pressupunha um Estado forte (hobbesiano, se quisermos), que garante a ordem poltica e a livre concorrncia internas, ao mesmo tempo em que se
projeta para o mundo, nos interesses do Rei e da Nao (que aqui coincidem); e por isso defendia, grosso
modo, uma poltica protecionista, para fora, e uma poltica liberal, para dentro. Nessa viso, o modelo
mercantilista, mesmo sendo amplamente baseado num forte protecionismo, no fundamentalmente
contraditrio com o liberalismo, muito embora tenha sido na crtica s posies mercantilistas que se
fortalecera o liberalismo econmico. Para Coutinho, partir de ento que a reflexo econmica passar
lentamente de uma cincia do bom governo, enquanto disciplina administrativa, de preocupao com a boa fiscalidade, etc, para o tema da riqueza da nao entendida j em termos privados. Em suas palavras, os economistas mercantilistas, ou ao menos os de formao filosfica e cientfica mais forte, assumiram os pressupostas da filosofia jusnaturalista e das cincias da natureza que viriam a caracterizar
a economia poltica clssica. (...) No obstante e em grau diverso no conseguiram libertar-se inteiramente da forte presena do Estado nacional, e de um conceito de riqueza monetria bastante
permevel ao estabelecimento da confuso entre poder nacional e progresso. COUTINHO, Mauricio Chalfin. Lies de Economia Poltica Clssica. So Paulo: Hucitec; Campinas (SP): Ed.Unicamp, 1993,
p. 35.
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monrquicos absolutistas, que como tais no deviam satisfaes a seus povos em
decises de poltica externa.
Embora Kant e os liberais de seu tempo no tivessem nenhum apreo por aquilo
que se convencionaria chamar de democracia no sculo XX, o discurso liberal sobre
esse regime frequentemente defende o mito de uma linha continua de defesa da
democracia.
Tratado pelo discurso liberal corrente como praticamente sinnimos, a verdade
que a relao entre democracia e liberalismo mais problemtica do que parece, como o
demonstraram cabalmente autores como Crawford B. Macpherson,47 Ellen M. Wood48 e
Domenico Losurdo.49 Autores fundadores da tradio liberal como John Locke,
Immanuel Kant e Benjamin Constant50 se opuseram fortemente extenso dos direitos
polticos aos grupos sociais sem propriedade e mulheres, quando hoje qualquer
definio minimamente aceita para o regime democrtico inclui a extenso do direito ao
voto ao conjunto dos cidados maiores de idade. Movimentos capitais para a extenso
dos direitos polticos como o Cartismo na Inglaterra entre 1838-1848, e a primeira onda
do feminismo, o sufragismo, so em geral obliteradas nas narrativas laudatrias do
liberalismo. Sem falar que questes como a participao cidad no processo poltico
via de regra enquadrado ameaa democracia por liberais como J. L. Talmon, que
chegou a enquadrar Jean-Jacques Rousseau para quem a participao cidad era cara
como precursor do totalitarismo.51
De acordo com a nova verso dessa proposio, os Estados democrticos tendem
a manter relaes pacficas entre si, e, quanto mais Estados caminhem para regimes
democrticos, a probabilidade das guerras automaticamente diminuiria, j que a deciso
de partir para a guerra seria muito mais difcil em regimes nos quais o poder est
baseado na representao de mltiplos interesses.52 Nesse sentido, a chamada opinio
47 MACPHERSON, C.B. A democracia liberal. Origens e evoluo. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 48 WOOD, Ellen M. Democracia contra capitalismo. So Paulo: Boitempo, 2003. 49 LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo? Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; So Paulo:
Ed.UNESP, 2004. 50 No confundir com seu homnimo brasileiro, o militar positivista Benjamin Constant. 51 De acordo com Carlos Nelson Coutinho, o pensador liberal brasileiro Jos Guilherme Merquior se ops
a essa caracterizao de Talmon tachando-o de ltimo difamador influente de Rousseau. COUTINHO, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria poltica. So Paulo: Boitempo, 2011, p.27. 52 Nesse ponto, a retomada do pensamento de Kant clara, especialmente a partir de sua noo de
federao pacfica. KANT, I. A paz perptua. Porto Alegre: L&PM, 1989 [1795]. Por outro vis, Kant defenderia a construo de um edifcio jurdico internacional e cosmopolita no qual os imperativos ticos
inerentes Razo se manifestariam.
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pblica, nacional e internacional, teria uma influncia importante sobre as decises
tomadas no mbito estatal.53
Uma terceira idia de fora no pensamento liberal a de que as instituies
fortes podem ajudar a conciliar as obrigaes de Estado com relao aos habitantes das
demais naes. Com o Iluminismo, ganhou fora o cosmopolitismo (termo resgatado do
debate grego clssico) e sua noo de que todos os seres humanos, sendo iguais e
racionais, tm capacidade de buscar o bem comum assim como seus interesses.54
Encontraremos nas anlises e prognsticos da Comisso Trilateral essas trs
idias-fora, as quais, alis, constituem trs grandes eixos temticos trabalhados pela CT
ao longo dos anos 1970: a liberalizao das economias (com instituies econmicas
internacionais fortes para sua regulao); o fortalecimento da democracia (aqui j
reelaborada); e o fortalecimento das instituies internacionais, especialmente as de
carter multilateral.
no contexto do surgimento dos primeiros tratados internacionais sobre o
Direito das Naes que alguns juristas liberais produziriam as obras que falavam sobre a
necessidade de organizaes de carter supranacional para regular uma ordem mundial
pacfica e estvel.
Est na raiz dessas obras o jusnaturalismo, que em seu nascedouro (sculos XVII
e XVIII) provm da divergncia com a filosofia do direito positivo, concentrando-se na
procura de jurisprudncias no sentido de legalidades universais, com base numa
essncia humana, isto , algo que definisse o homem independentemente de sua
manifestao especfica, histrica e geogrfica (algo que era central no direito positivo).
Como filosofia moral, o jusnaturalismo preocupa-se em compreender as legalidades do
comportamento humano em sua essncia, considerada como natural e a-histrica.
Destacam-se a os nomes do holands Hugo Grotius (1583-1654), considerado
autor da primeira grande obra do direito internacional, e do suo Emmerich de Vattel
(1714-1767). De acordo com Nogueira e Messari, Grotius se afastava da posio
53 Para uma crtica a esta acepo de opinio pblica, ver BOURDIEU, Pierre. A opinio pblica no existe. In: THIOLLENT, Michel. Crtica Metodolgica, investigao social e enquete operria. So Paulo: Polis, 1981. p. 137-151. 54 Gramsci produziu interessantes reflexes sobre o cosmopolitismo na Itlia, diferenciando-o do
internacionalismo proletrio. Sobre isso, Fontes explica que Gramsci emprega a expresso cosmopolitismo em diversos contextos. Diferentemente do internacionalismo, o cosmopolitismo derivaria
do papel de centralizao medieval desempenhado pela Igreja. Em seguida, adotaria um perfil idealizado,
adotado por elites dominantes internamente, porm incapazes de forjar um esprito nacional-popular
efetivamente internacionalista. FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo, Op. Cit., p.123.
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cosmopolita ao defender que os principais sujeitos do Direito das Naes so os
Estados, destacando-se na sua obra a conciliao entre o Direito natural e o Direito das
Naes.55 Ressalte-se