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 As forças de autodestruição do ser humano Mário Ferreira dos Santos – Palestra no Centro Convivium, 1964 Elas são inegáveis, típicas da criatura e do ser composto, porque os elementos componentes que formam uma nova estrutura são subordinados ao interesse da totalidade, porém cada um deles tem, também, o seu interesse próprio, da sua parte que colide com o interesse coletivo. Por isso nos decompomos e, tudo quanto é físico, decompõe-se e se destrói. Será possível, será suficiente que a nossa coragem possa enfrentar esta autodestruição? Só posso responder com respostas contingentes, porque se quisesse uma resposta necessária, cairia na fé e não estaria me colocando numa posição filosófica, pois é possível que sim e é possível que não. Mas entre estas duas possibilidades podemos escolher a daqueles que crêem que é possível, que sim, estamos nos comprometendo em atuar dentro dessa possibilidade. Se malograrmos ficará, pelo menos, a satisfação dentro de nós de termos cumprido o nosso dever e realizado uma possibilidade nossa e, se amanhã houver um outro ser inteligente que possa saber da nossa história, poderá olhar para aqueles que amaram a coragem e que tiveram o gesto heróico de lutar contra a própria autodestruição com respeito por estes homens. Podemos nos engajar deste lado, já que estamos numa época em que todos querem se engajar, mas para o lado construtivo, para o do bem, que crê numa nova esperança, em valores superiores e que não proclama, de antemão, a sua derrota, porque então é ela uma dupla derrota. O que não se pode é tratar do tema de Deus e Satã fazendo chalaça, e procurando resolver pelas formas primárias de uma concepção que não tem fundamento. É necessário que compreendamos bem que a criatura quanto toma consciência de si mesmo, julgando-se pela sua unidade, tem uma tendência a considerar-se igual ao Criador, porque a criatura de certo modo participa das perfeições divinas, mas participa limitadamente, por isso é parte. Participação é uma parte das perfeições, porque sendo um ser limitado, um ser deficiente, um ser imperfeito, os atributos que possui, que constituem a sua própria estrutura não podem, de modo algum, ter a perfeição do Ser Supremo.

As Forças de Autodestruição Do Ser Humano

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As Forças de Autodestruição Do Ser Humano

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  • As foras de autodestruio do ser humano

    Mrio Ferreira dos Santos Palestra no Centro Convivium, 1964

    Elas so inegveis, tpicas da criatura e do ser composto, porque os elementos

    componentes que formam uma nova estrutura so subordinados ao interesse da

    totalidade, porm cada um deles tem, tambm, o seu interesse prprio, da sua parte

    que colide com o interesse coletivo. Por isso nos decompomos e, tudo quanto fsico,

    decompe-se e se destri. Ser possvel, ser suficiente que a nossa coragem possa

    enfrentar esta autodestruio?

    S posso responder com respostas contingentes, porque se quisesse uma

    resposta necessria, cairia na f e no estaria me colocando numa posio filosfica,

    pois possvel que sim e possvel que no. Mas entre estas duas possibilidades

    podemos escolher a daqueles que crem que possvel, que sim, estamos nos

    comprometendo em atuar dentro dessa possibilidade.

    Se malograrmos ficar, pelo menos, a satisfao dentro de ns de termos

    cumprido o nosso dever e realizado uma possibilidade nossa e, se amanh houver um

    outro ser inteligente que possa saber da nossa histria, poder olhar para aqueles que

    amaram a coragem e que tiveram o gesto herico de lutar contra a prpria

    autodestruio com respeito por estes homens.

    Podemos nos engajar deste lado, j que estamos numa poca em que todos querem se

    engajar, mas para o lado construtivo, para o do bem, que cr numa nova esperana,

    em valores superiores e que no proclama, de antemo, a sua derrota, porque ento

    ela uma dupla derrota.

    O que no se pode tratar do tema de Deus e Sat fazendo chalaa, e procurando

    resolver pelas formas primrias de uma concepo que no tem fundamento.

    necessrio que compreendamos bem que a criatura quanto toma conscincia de si

    mesmo, julgando-se pela sua unidade, tem uma tendncia a considerar-se igual ao

    Criador, porque a criatura de certo modo participa das perfeies divinas, mas

    participa limitadamente, por isso parte.

    Participao uma parte das perfeies, porque sendo um ser limitado, um ser

    deficiente, um ser imperfeito, os atributos que possui, que constituem a sua prpria

    estrutura no podem, de modo algum, ter a perfeio do Ser Supremo.

  • Mas, quando o homem envaidecido, orgulhando-se de si mesmo (como o homem um

    ser racional, um ser inteligente), julga-se igual ao Criador porque capaz de pensar,

    porque tem conscincia de si, comete ento o seu grande pecado: o pecado do

    orgulho.

    Sat significa a criao csmica quando ela julga-se mais do que realmente , isto ,

    quando perde a sua humildade e julga-se, ento, possuidora de um valor to alto

    quanto o valor do Criador.

    Este o smbolo de Sat examinado dentro da Simblica. Aqueles que querem fazer de

    Sat uma determinada criatura, um ser com conscincia de si mesmo uma questo

    de ponto de vista discutvel, mas ns como filsofos no podemos tratar deste tema a

    no ser filosoficamente, porque doutro modo trat-lo dentro do campo das religies

    e como estamos fazendo filosofia da religio, que o fundamental desta palestra de

    hoje, no podemos fugir do campo da prpria filosofia; portanto, Sat dentro da

    filosofia deve ser assim compreendido.

    A quem devemos modificar: o homem ou a sociedade?

    Esta pergunta fundamental em nossa poca, pois sabemos que h uma necessidade

    de modificao, tendo em vista uma srie de erros que tem sido cometidos em

    prejuzo de grupos humanos e, todos aqueles que desejam que as relaes sociais

    sejam as mais positivas possveis, procuram saber o que devemos fazer para evitar

    que estas relaes nocivas se perpetuem.

    No podemos conceber a sociedade como um ser de per si, subsistente, temos que

    compreender a sociedade como algo que constitudo de indivduos, por seres

    humanos. Tambm no se poder dizer que a sociedade uma mera abstrao.

    Quando o marxismo, por exemplo, coloca a sociedade como uma nica realidade, e o

    indivduo como algo abstrato, podemos fazer uma inverso, considerar o indivduo

    apenas a parte concreta e a sociedade a parte abstrata.

    A sociedade tambm tem uma concreo, tem uma tenso, que so aquelas

    totalidades que tem uma coerncia intrnseca, uma fora de coeso e, ao se

    constiturem, tornam-se de certo modo distintas dos elementos que as constituem,

  • quer dizer, tem uma forma que outra que a forma dos indivduos ou dos elementos

    constituintes.

    Vamos dar um exemplo muito simples: o da gota d'gua. Uma molcula de gua

    composta de hidrognio e oxignio em determinadas propores de dois para um;

    sabemos que o hidrognio e o oxignio so especificamente distintos, mas a gota

    d'gua no apenas uma conjuno, uma aglomerao destes dois elementos pois

    estes, de certo modo, se virtualizam e a molcula de gua constitui uma tenso

    prpria, uma substncia prpria com suas propriedades.

    Consequentemente, forma uma tenso em que subordina os elementos componente,

    numa nova analogao em que eles se harmonizam, mas que o interesse do

    funcionamento do todo domina sobre o interesse da parte. Assim, por exemplo, o

    homem, o ser humano, constituinte de uma famlia, de certo modo virtualiza-se, a

    famlia forma uma totalidade coerente, que tem o seu interesse prprio e que, de certo

    modo, subordina o interesse do indivduo a coletividade para poder dar aquela

    harmonia necessria.

    No podemos assim ficar em nenhuma das duas posies abstratas, que a concreo

    fosse o homem e a sociedade abstrata, ou que a concreo fosse a sociedade e o

    homem abstrato. Temos que olhar o homem concretamente e a sociedade tambm,

    porque, tanto um como o outro, so duas realidades que compem uma nova

    realidade.

    A sociedade uma nova realidade, composta da realidade dos indivduos, e os

    indivduos de certo modo tero que virtualizar muito dos seus interesses que colidem

    com os interesses coletivos para poderem permanecer dentro desta nova unidade. Isto

    no vem em defesa das concepes totalitrias como muitos julgaram e quiseram

    provar, que o indivduo no tem mais a sua plenitude, porque de certo modo tem que

    se submeter ao interesse coletivo.

    Mas, note-se o seguinte: o que o indivduo virtualiza precisamente aquilo que

    colide com os interesses de outros indivduos, e na formao da sociedade o que ele

    atualiza o que conveniente ao grupo social do qual faz parte; portanto o que

    virtualiza a parte negativa, e a parte opositiva, e o que atualiza a sua parte

    positiva, a parte construtiva.

    Neste caso no h nenhuma deficincia para o homem, ao contrrio, h uma

    elevao perfectiva do homem. E aquele que melhore esta parte de conviver com a

  • sociedade ser um homem perfectivamente superior quele que no pode viver dentro

    do seu grupo social.

    Temos que compreender que a modificao conseqentemente da sociedade

    exige (primariamente) a modificao do homem, isto no tem a menor dvida, porque

    ele o elemento fundamental, o que constitui a matria desta sociedade, e a

    modificao da sociedade s poder se processar dentro desta realidade.

    Ento o problema humano passa a ser o problema do conhece-te a ti mesmo,

    porque o conhece-te a ti mesmo no apenas uma indicao de uma necessidade,

    uma introspeco humana, mas o conhecimento do homem em todas as suas

    tendncias, em todas as suas inclinaes, em todas as suas propenses, ou seja, numa

    linguagem filosfica, o homem olhado pelas suas disposies.

    Nesta disposio vai adquirir os hbitos proporcionados a ela, quer dizer, o

    homem no pode adquirir hbitos que no estejam proporcionados as disposies que

    ele tem, como o caso do problema do orgulho. Em que consiste propriamente o

    orgulho?

    Propriamente na criatura sentir-se ou hipervalorizar-se alm das suas

    realidades; isto , julgar-se como possuidora de uma valor superior ao valor real que

    ela tem. Este o pecado de todo ser considerado na sua singularidade e na sua

    unidade, quando ele procura impor-se. Trata-se de uma lei csmica que revelada na

    prpria unidade.

    Ela procura impor-se, quer perdurar, quer continuar, quer expandir-se, quer

    dominar, e este sentido dela querer mais o pecado do orgulho, caracterizado pela

    figura de Sat; o pecado satnico. Sat um smbolo que, no sentido popular, passa

    a ter um sentido pessoal; apenas um smbolo; apenas o sentido do orgulho, o

    mpeto que toda unidade que existe tem para se afirmar, de um modo a impor-se ante

    os outros, a ponto at de subordinar e dominar aqueles que se lhe antepem.

    Encontramos o orgulho j nas origens fundamentais do homem. Todo ser

    humano quer prestigiar-se socialmente sobre os seus semelhantes, quer ser mais,

    quer impor-se, s vezes, quando no pode impor-se pelo saber ou pela cincia, pela

    astcia ou at pela sua prpria malcia considerando-se superior por ser ruim, por ser

    um criminoso mais completo do que os outros.

    No fundo uma nsia de prestgio, ainda uma manifestao deste orgulho

    primevo, prprio de todo ser finito, que no se contm dentro dos seus limites e que

    deseja ampliar-se; o que Nietzsche chamava o merwollen, aquele querer mais, mais

    tarde a vontade de potncia; mpeto para conter-se, de tender para mais, que

    prprio de todo ser vivo, de toda unidade.

  • Em que consiste a humildade? Esta consistiria no conhecimento das suas

    prprias possibilidades, do seu real valor. Ser humilde que no se apresenta como

    mais do que realmente e reconhece o valor alheio e no procura desmerec-lo,

    procurando realizar o que est dentro das suas reais possibilidades.

    Ele pode at ser vicioso na humildade a ponto de desmerecer-se, de julgar-se

    aqum do que realmente , mas ento j ser um erro que comete, uma forma viciosa

    da humildade, mas a justa a humildade equilibrada, conhecimento das suas

    prprias possibilidades, o desejo de afirmar-se sem que esta afirmao se faa a

    custa da realidade alheia. Precisamente por falta desta humildade que a humanidade

    sofre, porque precisamente o orgulho daqueles que querem impor-se aos seus

    semelhantes, que criaram o problema social em todos os tempos da humanidade.