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La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009 117 RESUMO: O principal objetivo é verificar e problematizar a constituição de identidades femininas através da cul- tura visual, em contexto escolar, sob a luz dos Estudos Culturais em Educação numa perspectiva pós-estruturalista. Este artigo é oriundo do estudo de mestrado que aconteceu em uma escola da rede privada de ensino da zona norte de Por- to Alegre, com uma turma de 3ª série do Ensino Fundamental e apresentou inquietações referentes às imagens que invadem o cenário escolar e que contri- buem para a produção de identidades femininas. Para a operacionalização das reflexões, foram tomados por base os conceitos de: cultura visual, representa- ção, gênero, discurso e identidade. As análises desenvolvidas apontam para três pontos: 1) Regulação dos comportamen- tos femininos; 2) Produção de desejos de consumo; e 3) Constituição de pa- drões de beleza física. PALAVRAS-CHAVE: Gênero, Cultura Visual, Representação, Iden- tidade Feminina. As imagens que invadem as salas de aula: produzindo gênero! Luciana Borre Nunes * * Graduada em Pedagogia – UFRGS, Pós-Graduada em Planejamento e Gestão Escolar – PUCRS, Mestre em Educação – PUCRS, Professora da Escola São Francisco. ABSTRACT: The main aim is to check and sort out how the female identities are formed, through visual culture, in a school context, under the “Cultural studies in Education” in a post structuralist perspective. This article is part the study happened in a private school in the north zone of Porto Alegre with students from 3 rd grade of Elementary school and it showed the anxieties referred to the images which invade the school environment and that contribute to the female identities production. The concepts of: visual culture, representation, gender, speech and identity were used to base the reflect. The developed analyses aim to three axes, which are: 1) female behavior regulation 2) production of consumption desires and 3) building of physical beauty standard. KEYWORDS : Gender, Visual culture, Representation, Female identity.

As imagens que invadem as salas de aula: produzindo gênero! · 3 Segundo Barbosa (2005) a origem do termo cultura visual data da década de 90, através das publicações de Fernando

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La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009 117

RESUMO: O principal objetivo éverificar e problematizar a constituiçãode identidades femininas através da cul-tura visual, em contexto escolar, sob aluz dos Estudos Culturais em Educaçãonuma perspectiva pós-estruturalista. Esteartigo é oriundo do estudo de mestradoque aconteceu em uma escola da redeprivada de ensino da zona norte de Por-to Alegre, com uma turma de 3ª sériedo Ensino Fundamental e apresentouinquietações referentes às imagens queinvadem o cenário escolar e que contri-buem para a produção de identidadesfemininas. Para a operacionalização dasreflexões, foram tomados por base osconceitos de: cultura visual, representa-ção, gênero, discurso e identidade. Asanálises desenvolvidas apontam para trêspontos: 1) Regulação dos comportamen-tos femininos; 2) Produção de desejosde consumo; e 3) Constituição de pa-drões de beleza física.PALAVRAS-CHAVE: Gênero,

Cultura Visual, Representação, Iden-tidade Feminina.

As imagens que invadem as salas deaula: produzindo gênero!

Luciana Borre Nunes *

* Graduada em Pedagogia – UFRGS, Pós-Graduada em Planejamento e Gestão Escolar – PUCRS, Mestre em Educação– PUCRS, Professora da Escola São Francisco.

ABSTRACT: The main aim is tocheck and sort out how the femaleidentities are formed, through visualculture, in a school context, under the“Cultural studies in Education” in apost structuralist perspective. Thisarticle is part the study happened in aprivate school in the north zone ofPorto Alegre with students from 3rd

grade of Elementary school and itshowed the anxieties referred to theimages which invade the schoolenvironment and that contribute to thefemale identities production. Theconcepts of: visual culture,representation, gender, speech andidentity were used to base the reflect.The developed analyses aim to threeaxes, which are: 1) female behaviorregulation 2) production ofconsumption desires and 3) buildingof physical beauty standard.KEYWORDS: Gender, Visual

culture, Representation, Femaleidentity.

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ApresentaçãoAs imagens, como artefatos que produzem conhecimentos e que contribu-

em para a constituição de nossas representações1 , falam sobre como são (oudevem ser) os meninos e as meninas. Formam um imaginário social sobre oscomportamentos aceitáveis para cada gênero, instituindo falas e gestos para asmais diversificadas situações sociais. Nas salas de aula, as imagens ganham rele-vância de trabalho pedagógico no momento em que percebemos suas influênciaspara com as crianças. Essas não só vivenciam uma nova cultura visual comotambém interagem e corporificam os discursos por ela produzida e transmitida.As crianças carregam suas percepções do mundo visual em seu cotidiano e apre-sentam conflitos sobre relacionamentos interpessoais importantes de serem tra-balhados.

Diante disso, apresento reflexões sobre as imagens que invadem as salas deaula e que contribuem para a produção de identidades2 femininas. As problema-tizações são oriundas das análises realizadas na dissertação “Meninas são doces ecalmas”: um estudo sobre a produção de gênero através da cultura visual, apresentada emdezembro de 2008 na PUCRS. A pesquisa foi realizada em uma escola da redeprivada de ensino da zona norte de Porto Alegre, com uma turma de 3ª série doEnsino Fundamental.

Por isso, o principal objetivo deste artigo é pensar sobre: como a culturavisual contribui para a constituição de identidades femininas? Como as meninascompreendem sua formação social através das imagens? Como as meninas deuma turma de 3ª série do Ensino Fundamental manifestam suas representaçõesde feminilidade no âmbito escolar? Quais as imagens que invadem o cenárioescolar e que contribuem para a produção de subjetividades femininas?

É importante ressaltar que a fundamentação dessas problematizações estáalicerçada pelas reflexões dos Estudos Culturais em Educação, numa perspectivapós-estruturalista. As pesquisas nesse campo têm-se desenvolvido sobre temáti-cas diversificadas. Entre elas são encontrados assuntos relacionados à etnia eraça, sexualidade, gênero, indígenas, natureza, infância, portadores de necessida-des especiais, entre outros. Essas vozes buscam a legitimação de suas expressõese não querem mais serem vistas como inferiores a uma cultura hegemônica. Atra-vés dos Estudos Culturais buscam argumentos para desnaturalizar concepçõesque defendem uma única percepção de verdade e para deslocar significados ar-raigados.

1 Para o pós-estruturalismo “a representação é concebida como um sistema de significação” (SILVA, 2000, p. 90). Asrepresentações denunciam os sentidos que damos às coisas, pois as concretizamos através de nossas falas, gestos e ações,mesmo que de maneira informal e corriqueira.2 Silva (2000, p. 97) amplia a significação sobre a identidade ao dizer que somos sujeitos culturais e que nossas identidadessão produzidas discursivamente.

NUNES, Luciana Borre

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No contexto da educação, pretendem refletir sobre questões referentes àescola e sobre tudo aquilo que implica na constituição dos sujeitos envolvidos.Buscam questionar as práticas educativas e ressignificá-las através de constantesanálises e problematizações. Percebem que diversas temáticas englobam o cotidi-ano da escola. Costa (2003, p. 56) apresenta importante apreciação sobre a influ-ência direta dos Estudos Culturais na educação brasileira:

Entre nós, no Brasil, as contribuições mais importantes dos Estudos Culturaisem Educação parecem ser aquelas que têm possibilitado: a extensão das no-ções de educação, pedagogia e currículo para além dos muros da escola; adesnaturalização dos discursos de teorias e disciplinas instaladas no aparatoescolar; a visibilidade de dispositivos disciplinares em ação na escola e foradela; a ampliação e complexificação das discussões sobre identidade e diferen-ça e sobre processos de subjetivação. Sobretudo, tais análises têm chamado aatenção para novos temas, problemas e questões que passam a ser objeto dediscussão no currículo e na pedagogia.

Pensar sobre as imagens que estão presentes em nosso cotidiano sob a luzdos Estudos Culturais pressupõe um olhar atento e reflexivo diante de uma cul-tura visual3 que contribui para a formação de nossas representações e que, por-tanto, tem muito a revelar sobre nossos relacionamentos sociais. Os EstudosCulturais compõem um campo reflexivo que não se encontra definido e que acolheas novas indagações propostas pela cultura visual, pois seus assuntos e temáticaspodem mudar de acordo com o contexto social. Não tem uma definição ou umanarrativa única, como relata Nelson (1995, p. 11): “Os Estudos Culturais precisamcontinuar abertos a possibilidades inesperadas, inimaginadas ou até mesmo não-solicitadas. Ninguém pode esperar controlar esses desdobramentos”.

Os Estudos Culturais problematizam situações usuais, que estão acontecendoe merecendo discussão. Também não pretendem permanecer somente no campodas discussões, mas acreditam que é através dessas que as transformações ocorre-rão. Procuram mudanças que sempre podem ser reconfiguradas. Nelson (1995,p. 17) contribui novamente afirmando que: “Os Estudos Culturais acreditam, pois,que a prática importa, que se espera que seu próprio trabalho intelectual possa fazeruma diferença. Mas suas intervenções não são garantidas; não se esperam que elasdurem para sempre”. Não buscam mudanças bruscas, mas também tem a intençãode interferir no que é comumente aceito como natural, pois no momento em quecerta situação é analisada já se criam mecanismos de transformações.

As imagens presentes em nosso cotidiano compõem um dos assuntos perti-nentes para reflexões dos profissionais envolvidos com a área da Educação. Porisso, passo a examinar e analisar algumas situações de sala de aula que evidenciam

3 Segundo Barbosa (2005) a origem do termo cultura visual data da década de 90, através das publicações de FernandoHernández que procura romper com o “alfabetismo visual” para que os sujeitos possam analisar, interpretar, avaliar ecriar conhecimentos ligados às imagens:

As imagens que invadem as salas de aula: produzindo gênero!

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a produção de identidades femininas através da cultura visual. Os próximos trêspontos de reflexões são intitulados a partir de algumas falas ilustrativas das crian-ças com as quais trabalhei durante a pesquisa de mestrado. São elas: “Meninassão mais doces!”: atribuição de comportamentos femininos; “Eu já sei o que voucomprar!”: desejos de consumo e; “Eu queria ser igual a elas!”: a busca pelabeleza.

“Meninas são mais doces!”: atribuição de comporta-mentos femininos

As imagens que os estudantes trazem para a sala de aula ilustram e promo-vem, com certa “precisão”, os gostos, os desejos e os comportamentos aceitospara cada gênero. As crianças, através de suas preferências por determinadosbrinquedos, personagens e materiais escolares, demonstram que vivenciam di-versas experiências visuais que delimitam o que meninas e meninos podem fazer,pensar e desejar. Isso denota aquilo que Hernández (2000, p. 133) afirma:“... fazemos parte da cultura visual e estamos inundados por uma extraordináriavariedade de imagens e, sobretudo, de imaginários visuais”.

As meninas se identificam com suas personagens preferidas no que se referetanto a aspectos físicos e estéticos (roupas, acessórios, beleza corporal) quanto amaneiras de ser e de agir (gestos delicados e realização de atividades mais “cal-mas”). Através disso, elas acabam incorporando atitudes sociais que são ditascomuns às meninas, como docilidade, meiguice e recato.

Ao falar sobre a Moranguinho, por exemplo, algumas meninas demonstra-ram que almejam e admiram os traços de feminilidade apresentados pela perso-nagem. Perguntei os motivos que as levam a gostarem da personagem e obtive asseguintes respostas: Gosto da Moranguinho porque ela gosta de morangos e de bichinhos quenem eu. Ela se veste bem e usa sainha, blusinha da moda que gurias gostam, coisa de menina.Eu sô que nem ela! (Elisa)4 . Outra menina fala: Eu queria ser igual a ela porque ela é bemguriazinha, bonitinha, delicadinha, queria me arrumar que nem ela. Olha as roupas dela, sãobonitas e brilhosas, enfeitadas, modernas e charmosas (Lúcia). E ainda: Eu me acho atéparecida com a Moranguinho, com o jeito dela, eu também gosto dos animais e porque as minhasroupas são iguais as dela (Gabriela).

Os imaginários das estudantes buscam uma identificação com as suas perso-nagens preferidas e um desejo de tornarem-se semelhantes a elas. As criançasdemonstram que suas vidas apresentam inúmeros aspectos que procuram “imi-tar” o jeito de ser instaurado, por exemplo, pela Moranguinho. As meninas bus-cam ser “iguais” ou semelhantes ao que consideram bom e bonito, mas que tipode comportamentos a personagem acaba por provocar? As meninas corporifi-

4 Todos os nomes das crianças participantes, citados nesse estudo, são fictícios.

NUNES, Luciana Borre

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cam e reproduzem o discurso transmitido pela Moranguinho evidenciando issona seguinte afirmação: Meninas têm que ser delicadas igual a Moranguinho, não dá prafazer as coisas de menino porque ele gosta de coisa mais agitada, luta. Menina é calma! (Yas).

É relevante e instigante notar que tal personagem, juntamente com outras,como a Barbie e as Princesas da Disney, convivem de maneira interativa com asmeninas da turma, pois essas não consomem somente o livro de imagens paraserem pintadas, as mochilas ou os cadernos que estão na sala de aula. Elas tam-bém interagem com um extenso repertório visual que inclui filmes, livros infan-tis, sites específicos e grupos de relacionamentos virtuais (comunidades no orkut,por exemplo).

As personagens femininas (representadas pela Barbie, Moranguinho, HelloKitty, Pucca e Princesas) apresentam padrões comportamentais que instituem“elegância” e cordialidade para com os outros, recato nas palavras proferidas, usode determinadas roupas, maneiras de movimentar-se corporalmente, entre ou-tros atributos.

As meninas são seduzidas e convidadas por suas personagens a entrarem emum mundo imaginário de histórias fantásticas, através de um articulado sistemade produção de sentidos. Por exemplo: o contexto da Barbie é formado pelosseus inúmeros filmes, músicas, álbum de figurinhas, acessórios, roupas, livros

Imagem 2: Menina com caderno da Cinderela

Fonte: A autora (2008)

Imagem 1: Menina pintando a Moranguinho5

Fonte: A autora (2008)

5 As fotografias apresentadas neste artigo representam parte do material coletado durante a pesquisa de mestrado.

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infantis, materiais escolares, e pela interação proporcionada pelos sites (nos quaisas meninas “ganham” autonomia para montar histórias e figurinos). Esse arsenalvisual “ensina e produz certas formas de pensar, de agir, de estar e se relacionarcom o mundo” (THEODORO, 2008, p. 6).

Os sentimentos de docilidade, de amizade e de ternura são moldados comoalgo inerente ao feminino. Em seu estudo sobre os desenhos infantis, Rael (2007)afirma que muitas histórias apresentam o feminino conectado diretamente com aafetividade (ao coração) e que esses discursos naturalizam que as mulheres sãomais dóceis, emotivas e fracas.

Junto a isso, as crianças ressaltam a docilidade das personagens femininas e aagressividade dos personagens masculinos. Eles relatam que os brinquedos, osfilmes e os desenhos animados dos meninos geralmente possuem super-poderesporque seu enredo (estilo de vida) exige isso, afinal, eles convivem com constanteslutas, com o combate ao mal e com competições que necessitam de poderes sobre-naturais para aquisição de sucessos em suas histórias. Com isso, há a consolidaçãoda distinção entre atribuições sociais destinadas às meninas e aos meninos.

Os personagens instauram padrões de comportamentos masculinos que con-dizem a atitudes de agressividade, de dinamicidade, de “adrenalina” e com emo-ções fortes (necessitando assim, do auxílio dos superpoderes). As personagensdas meninas, porém, não precisam de tais poderes porque suas histórias falam deuma rotina mais “comum” (passeios e conversas entre amigas) e sem grandesaventuras ou turbulências. Em um momento de discussão, uma menina ressalta:As meninas são mais delicadas e elas não são igual aos meninos que lutam. Elas não temarmas poderosas pra lutar (Yas).

Imagem 4: Meninas com seus cadernos

Fonte: A autora (2008)

Imagem 3: Menino com seus materiais

Fonte: A autora (2008)

NUNES, Luciana Borre

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Padrões de gênero são demarcados e delimitados pela cultura visual que,atualmente, atende a um mercado de consumo cada vez mais específico para asmeninas. Elas não só corporificam as maneiras de ser de suas personagens, comotambém desejam adquirir os seus diversos produtos. Assim, o consumo de pro-dutos específicos pelas crianças é a reflexão que segue no próximo item.

“Eu já sei o que vou comprar!”: desejos de consumoPercebi que os estudantes apresentam a necessidade de aquisição constante

de produtos que têm destaque e significativa circulação entre os componentes daturma em sala de aula. Eles procuram adquirir materiais, roupas, brinquedos eacessórios relacionados aos seus personagens preferidos ou aos produtos queestão na moda. Esse desejo de aquisição é fomentado por uma avalanche deimagens que circulam, articuladamente, na mídia televisiva (propagandas e dese-nhos animados), na mídia impressa (jornais ou revistas), na internet e, principal-mente, na mochila e na casa dos colegas. Toda a novidade que surge em sala deaula acaba se transformando no objeto de desejo de todos, ganhando a insistên-cia para a compra no âmbito familiar. Caso a aquisição não seja realizada surge osentimento de não pertencimento ao grupo com quem convivem. Isso pode servisualizado na seguinte fala: Se eu troxer o livro amanhã eu posso brincar com vocês? (Nata-cha). Nesse caso, as condições de consumo determinam os relacionamentos sociais,já que a menina seria inserida na brincadeira de pintura se possuísse o material.

Momo (2008, p.6) ressalta que a nossa sociedade está organizada para o con-sumo de bens materiais e culturais: “O mundo de hoje engaja seus membros nasociedade em função de sua condição de consumidor”. Com isso, o consumo éuma temática que apresenta reflexões diferenciadas para as gerações que estãoinseridas nas escolas, especialmente para aquelas que estão na Educação Infantilou nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Isso acontece porque as criançasestão submersas num articulado sistema social no qual se vende aquele produtoque apresenta a propaganda mais eficiente, e se insere num grupo aquele sujeitoque consegue comprar.

As possibilidades de compra do mundo infantil são inesgotáveis e com fácile rápido acesso. É possível obter qualquer produto com rapidez, usufruir delepor pouco tempo, descartá-lo e procurar um novo material para voltar a adquirir(considero que isso se aplica a todas as classes econômicas). Os desejos de com-pra das crianças são dinâmicos e mutáveis, ou seja, se antes um brinquedo, ummaterial escolar, uma roupa ou a preferência por um determinado personagemperdurava por longos meses ou até anos, agora os estudantes expõem que seusanseios de consumo e suas preferências mudam em questão de poucas semanas.

A publicidade busca atrair a criança para a compra de produtos específicos,produzindo o seu desejo de consumo. Ao mesmo tempo, as opiniões das crian-ças determinam as estratégias de marketing veiculadas pela mídia em geral. Com

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isso, a chamada sociedade do consumo é produzida por um jogo sedutor queenvolve os sentimentos de querer, obter e descartar. Todos os materiais que sãolevados para a escola representam os produtos que estão circulando pela mídiaem geral, e as crianças mostram suas potencialidades de interação constante comnovos lançamentos.

Diante disso, que representações de feminilidade as crianças estão consu-mindo (e produzindo) através da aquisição dos produtos relacionados aos seuspersonagens preferidos? O que tais produtos falam e ensinam sobre ser menina?O que uma menina realmente consome quando afirma: Eu tenho tudo da Barbieporque eu brincava... A única coisa que eu não tenho é o sapatinho (Nicole).

Enquanto pesquisadora e educadora, percebo que os estudantes tornam-seconsumidores eficientes e habilitados a adaptarem-se às novidades do mercado,pois eles classificam os produtos que condizem com a sua faixa etária, conso-mem aquilo que julgam que será bem aceito pelo grupo de colegas e determinamo local que querem comprar. Eles são, realmente, instituídos enquanto consumi-dores e sabem que a obtenção de determinados produtos qualifica a sua interaçãono grupo. Segundo Momo (2008, p. 10): “As crianças vivem o mundo das visibili-dades no qual, mais do que ter, é importante parecer: parecer ter, parecer ser.”

Outro ponto que considero importante para problematização deu origem aopróximo item, que é o consumo de determinados padrões de beleza. As meninasparticipantes da pesquisa evidenciaram que buscam, constantemente, se enqua-drarem nos padrões vigentes de moda.

Imagem 6: Menina com materiais da Barbie

Fonte: A autora (2008)

Imagem 5: Meninas brincando com lap-top

Fonte: A autora (2008)

NUNES, Luciana Borre

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“Eu queria ser igual a elas!”: a busca pela beleza

Imagem 8: Mochila das Princesas da

Disney e Barbie

Fonte: A autora (2008)

Imagem 7: Meninas caminhando com

mochilas

Fonte: A autora (2008)

Imagem 10: Menina folheando a revista Quem

Fonte: A autora (2008)

Imagem 9: Menina observando uma revista

Fonte: A autora (2008)

Que tipo de padrão estético de beleza a boneca Barbie e a Moranguinhoconstroem? Quais as imagens femininas mostradas pela maioria das revistas?Como o corpo feminino está presente na publicidade? Como as meninas consti-

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tuem um desejo de consumir e alcançar determinados padrões estéticos de bele-za? Quais os corpos que não estão presentes nas personagens preferidas dascrianças e nas imagens publicitárias das revistas? Que corpos são fabricados poressas imagens? O que essas imagens falam constantemente para as meninas? Comoo padrão estético atual ganhou legitimidade social?

Essas questões emergem e provocam-me, de maneira peculiar, no momentoem que vivencio a angústia de alunas (com apenas 8 ou 9 anos de idade) relacio-nadas à sua aparência física. Diversas vezes, as meninas expressaram intensasinquietações e frustrações sobre seu corpo, manifestando o desejo de fazeremdietas, de usarem roupas que valorizem determinadas partes do corpo (sutiãscom enchimento, por exemplo), de esconderem-se atrás dos colegas para tiraruma foto (para não deixarem que registrem o suposto peso indesejado) ou dechorarem diante de ofensas dos meninos, que também sabem expressar seuspadrões estéticos preferidos. Tudo isso em um universo infantil em que a aparên-cia física magra é almejada por todas as meninas e reverenciada pelos meninos.

As meninas “sofrem” com a ditadura da beleza ao mesmo tempo em quebuscam enquadrarem-se aos padrões determinados. Durante um momento emsala de aula, no qual a discussão foi gerada a partir da pergunta: como são oshomens e as mulheres dessas revistas? uma menina evidenciou seu desejo deadequar-se a um padrão estético de beleza física ao dizer que: Eu queria ser igual aelas porque elas são lindas, elas são modelos, são modernas e usam roupas extravagantes (Bia).

O corpo é produzido pela rede de significados culturais na qual estamosinseridos. Com isso, cuidar de um corpo feminino é, certamente, diferente decuidar de um corpo masculino, porque as exigências, mesmo que sejam seme-lhantes no que diz respeito à necessidade de investimento na saúde, não são asmesmas. A idéia da busca constante da beleza tem sido expandida como algoinerente ao feminino. Segundo Felipe (2007, p. 54): “Ao longo da história e nasmais diferentes culturas, o corpo tem sido pensado, construído, investido, produ-zido de diferentes formas... Corpos femininos e masculinos não têm sido perce-bidos e valorizados da mesma forma.”

As meninas da turma na qual desenvolvi essa pesquisa demonstraram queconvivem, intensamente, com inúmeras imagens que mostram como deve serum corpo feminino. Os meninos também evidenciaram isso através de suas falase atitudes que valorizam determinados padrões estéticos, sendo bastante incisi-vos em suas opiniões sobre beleza. Quando questionados sobre suas opiniõesacerca da aparência física das mulheres que aparecem nas revistas, um deles rela-tou: Só não é feia se tiver um corpo bonito, com pele branca, seios volumosos, com silicone, pénormal, 100% cheio de silicone. Isso é ser bonita! (Lucca). Outro menino complementa:...mulher tem que ser bonita e magra (Nico).

Moda, corpo magro e modelado, sorriso clareado, estilo de vida dinâmico emeiguice, são perspectivas que invadem o cotidiano das salas de aula através dasinúmeras imagens que as crianças vivenciam. Eis questões que já não podem estarfora das discussões e das reflexões dos educadores e educadoras em geral.

NUNES, Luciana Borre

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Palavras finaisComo portadoras de inúmeros textos e produtoras de muitas significações,

as imagens não foram trabalhadas, nesse artigo, como simples acessório ou mate-rial complementar para as reflexões realizadas. Ao contrário, elas foram os prin-cipais alvos de problematizações. As fotografias registraram a existência de deter-minadas representações de gênero e a instauração de algumas verdades sobre sermulher na contemporaneidade.

Essas “verdades” mostram que o universo visual exerce pedagogias, pois asimagens nos ensinam a olhar as situações sociais, nos educam. Elas dizem quaisos produtos que devem ser desejados e consumidos pelas crianças, produzem oimaginário de beleza física ideal e ensinam os comportamentos adequados paracada gênero.

Diante dessas considerações, minhas inquietações tornam-se ainda mais fe-cundas, pois, enquanto professora, também apresento responsabilidades e com-prometimentos perante a educação dos olhares sociais dos estudantes. Hernán-dez (2007, p. 77) ressalta a importância que os educadores detêm na incumbênciade promover novos e diferentes olhares sobre a constituição de gênero: “...é ne-cessário que os professores auxiliem as meninas a compreenderem que as ima-gens das mídias e da cultura visual sobre a feminilidade e sobre o que é ser mu-lher dão forma a suas identidades e influenciam meninos e rapazes na construçãode sua masculinidade.”

Por isso, as análises realizadas desconfortam as posições adotadas pelas ins-tituições escolares, pois as fazem pensar sobre os relacionamentos interpessoaiscontemporâneos, sobre os “novos” sujeitos que estão inscritos no âmbito esco-lar, sobre as diferentes realidades culturais atravessadas pela tecnologia, sobre aconfiguração recente do consumo, sobre como o corpo é, atualmente, moldado,e sobre o imenso repertório visual no qual todos estamos imbricados.

ReferênciasBARBOSA, A. M. Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. SãoPaulo: Cortez, 2005.COSTA, M. V.; SILVEIRA, R. H.; SOMMER, L. H. Estudos culturais, educaçãoe pedagogia. Revista brasileira de educação. Cultura, Culturas e educação, maio/ju-nho/julho/agosto, nº 23, 2003.FELIPE, J. Erotização dos corpos infantis. In: LOURO, G. L.; FELIPE, J.;GOELLNER, S. V. Corpo, gênero e sexualidade: Um debate contemporâneo na edu-cação. Petrópolis(RJ): Vozes, 2007.HERNÁNDEZ, F. Cultura visual, mudança educativa e projeto de trabalho. Porto Ale-gre: Artmed, 2000.

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NUNES, Luciana Borre