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AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO Ricardo de Souza Nogueira Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas Orientador: Prof. Dr. Auto Lyra Teixeira Rio de Janeiro Fevereiro de 2011

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Page 1: AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO · 2020-02-05 · AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO Ricardo de Souza Nogueira Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira

AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO

Ricardo de Souza Nogueira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras Clássicas da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Letras

Clássicas

Orientador: Prof. Dr. Auto Lyra Teixeira

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2011

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AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO

Ricardo de Souza Nogueira

Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas

da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários

para a obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 2011.

Examinada por:

__________________________________________________________

Presidente, Professor Doutor Auto Lyra Teixeira – UFRJ/PPGLC

__________________________________________________________

Professor Doutor Fernando Brandão dos Santos – PPGLCLit-UNESP

__________________________________________________________

Professora Doutora Glória Braga Onelley - UFF

__________________________________________________________

Professora Doutora Shirley Fátima G. de A. Peçanha – UFRJ/PPGLC

__________________________________________________________

Professora Doutora Tania Martins Santos – UFRJ/PPGLC

__________________________________________________________

Professora Doutora Silvia Costa Damasceno – UFF (suplente)

__________________________________________________________________

Professora Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira – PPGCL-UFRJ (suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2011

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Nogueira, Ricardo de Souza.

As metáforas trágicas em Persas de Ésquilo/ Ricardo

de Souza Nogueira. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2011.

xi. 216f.; 31 cm.

Orientador: Auto Lyra Teixeira

Tese (doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-

Graduação em Letras Clássicas, 2011.

Referências Bibliográficas: f. 209-216

1. Persas 2. Ésquilo 3. tragédia 4. enunciado metafórico

5. imagem

I. Teixeira, Auto Lyra. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação

Em Letras Clássicas. III. Título.

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SU-SINTO

Sinto em minha construção:

Auto, lira de conhecimento,

mestre, orientador, amigo, poeta-colega.

Agradeço.

Queridas: Nely, de imensos merecimentos,

Shirley, de grande renome,

e Tania, mar de fins, santas do que sei,

mestras-colegas, e ainda Glória, de eterna kléos.

Agraciado.

Amigos: Alexandre e Brian

Carlos e Pedro, bálsamos.

Agrado.

Jessé e Antônio, augustos entre os anjos,

mestres sempre-vivos.

Agradáveis.

Ao gênio Ésquilo, em versos anapestos:

Quas’ a mim, de prazer mental me matou.

Ao divino Mozart, em musical oração:

música sublime da paz que me deu.

E ainda, a todos os meus departamentais colegas

do Tonel de Pandora de Letras Clássicas, ambígua

elpís, um sonoro bem bem comum a todos,

pelos embates saudáveis e pela paz prevalecida,

e aos genitores, pais que tornam nada tudo, e irmãos.

Agradecido.

Fim do início, início do fim, sucinto o que sinto.

Agradeço, no mar final, ao túnel do amor,

musa, com seu barco no espaço

Fátima

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AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO

Ricardo de Souza Nogueira

Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

A tese apresenta como corpus a tragédia Persas de Ésquilo, que foi traduzida em sua completude

por meio de uma técnica fundamentada na manutenção do significado das imagens externas

evocadas metaforicamente do mundo helênico. A tradução é o resultado de uma análise pragmática

feita nessa tragédia, de investigação de contexto e de receptor original do discurso literário

formado. A investigação comprovou que a maioria dos enunciados metafóricos presentes na obra

enfatizam os embates trágicos desenvolvidos em cena, daí o conceito de metáfora trágica. O

resgate em Persas do contexto do homem grego, com a presença de vários atos que ocorriam em

sua sociedade (imagens externas), teve por objetivo apresentar uma análise do significado da

metáfora, fenômeno discursivo que se firma quando esses mesmos atos externos surgem no

contexto literário esquiliano para unir-se às ações literais que acontecem no enredo (imagens

internas).

Palavras-chave: Persas, Ésquilo, tragédia, enunciado metafórico, imagem

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AS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS DE ÉSQUILO

Ricardo de Souza Nogueira

Orientador: Professor Doutor Auto Lyra Teixeira

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

This thesis has as corpus the tragedy Persians of Aeschylus, which was fully translated by means

of a technique grounded on the maintenance of the meaning of the external images metaphorically

evoked from the Hellenic world. The translation is the result of a pragmatic analysis of that

tragedy, an investigation of the context and the original receptor of the literary discourse that is

formed. This investigation proved that the majority of the metaphorical enunciations present in the

work emphasize the tragic oppositions developed on scene, thence the concept of tragic metaphor.

The rescue of the context of the Greek man in Persians, with the presence of several actions that

occurred in his society (external images), had the objective of presenting an analysis of the

meaning of the metaphor, a discursive phenomenon that is established when these very same

external actions appear in the Aeschylean literary context to join the literal actions happening in

the plot (internal images).

Key-words: Persians, Aeschylus, tragedy, metaphorical enunciation, image.

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Tenho uma estranha lucidez quando a natureza é

excepcionalmente bela. Não sou mais eu, perco a

consciência, e as imagens vêm a mim como num

sonho.

(Vincent van Gogh em carta ao seu irmão Théo.)

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SUMÁRIO:

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 10

2. FERRAMENTAS DO DISCURSO PARA ANÁLISE DA METÁFORA TRÁGICA……… 17

2.1. Imagem externa e interna…………………………………………………………… 17

2.2. Expressão nuclear e termo harmonizador de imagens……………………………. 20

2.3. A metodologia de análise de Persas............................................................................. 21

3. A IMAGEM DO JUGO E SUAS METÁFORAS…………………………………………… 24

3.1- O jugo associado à opressão………………………………………………………… 25

3.2- O jugo associado ao casamento……………………………………………………... 36

4. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS INSTITUCIONAIS……………………... 41

4.1. O Éforo……………………………………………………………………………….. 43

4.2. A Prestação de contas………………………………………………………………... 47

4.3. Os metecos residentes em Atenas…………………………………………………… 50

4.4. Os éfetas………………………………………………………………………………. 52

4.5. A pena, o castigo legalizado pela …………………………………………….. 54

4.6. A escravidão………………………………………………………………………….. 57

5. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA RELIGIÃO………………………….. 62

5.1. O adivinho……………………………………………………………………………. 64

5.2. O lugar sacro…………………………………………………………………………. 66

5.3. A mistura ritual……………………………………………………………………… 68

6. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA NATUREZA………………………... 71

6.1. A fauna, os animais domésticos e a interação humana……………………………. 73

6.1.1. O cão, a cadela……………………………………………………………………. 73

6.1.2. O caçador, seus utensílios e o animal caçado…………………………………….. 81

6.1.3. O voo do pássaro…………………………………………………......................... 84

6.1.4. O ato de chifrar, cornar…………………………………………………………… 88

6.1.5. A serpente………………………………………………………………………… 89

6.1.6. O enxame de abelhas……………………………………………………………... 90

6.1.7. O rebanho e o pastor……………………………………………………………… 91

6.1.8. A pesca…………………………………………………………………………… 95

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6.1.9. O ato de morder………………………………………………………………...… 99

6.2. A vegetação, o mar, a luz e a interação humana…………………………………… 100

6.2.1. A flor e a floração………………………………………………………………… 100

6.2.2. Os atos de ceifar e devastar………………………………………………………. 108

6.2.3. A força das ondas do mar………………………………………………………… 110

6.2.4. A chama, a luz……………………………………………………………………. 114

6.2.5. A fonte……………………………………………………………………………. 117

7. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA VIDA COTIDIANA………………... 118

7.1. As vestimentas………………………………………………………………………... 118

7.2. A prosperidade da casa……………………………………………………………… 120

7.3. As tabuinhas de leitura e o papiro………………………………………………….. 122

7.4. A balança do comércio………………………………………………………………. 126

7.5. O alicerce a base……………………………………………………………………... 129

7.6. O ferreiro, seus instrumentos e produtos…………………………………………... 131

7.7. A muralha…………………………………………………………………………….. 137

8. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DO CORPO HUMANO………………… 139

8.1. O olho, o olhar e seu brilho………………………………………………………….. 139

8.2. A doença do corpo…………………………………………………………………… 146

9. O FUNCIONAMENTO DAS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS…………………... 150

9.1- Expressões nucleares de ação……………………………………………………….. 152

9.2- Expressões nucleares nominais……………………………………………………... 153

9.3- Metáforas paradoxais criadas pelo fenômeno restritivo………………………… 155

10. TRADUÇÃO DA TRAGÉDIA PERSAS DE ÉSQUILO…………………………………... 160

11. CONCLUSÃO……………………………………………………………………………… 205

12. BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………………. 209

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1. INTRODUÇÃO

O trágico se faz na totalidade da construção de um discurso reconhecido como trágico.

É possível afirmar por isso que nenhum receptor de um discurso trágico deixará de percebê-

lo como tal por causa da inexistência de uma teoria que explique o fenômeno. Na Grécia

antiga, é correto dizer que o caráter trágico já se encontrava presente nos mitos gregos

mesmo antes da existência do gênero que, de certa maneira, definiu e estabeleceu a forma

desse tipo de manifestação: a tragédia grega. Há caráter trágico em Homero e em vários

autores gregos, anteriores ao século V, que construíram um discurso baseado em oposições

que podem ser compreendidas como construtoras de situações trágicas. Não foi por acaso que

a tragédia, no seu surgimento, adotou exatamente para a feitura de seu enredo as histórias

míticas tão conhecidas pela cultura ateniense. Havia nesses mitos os elementos potenciais

necessários ao surgimento do gênero trágico.

A tragédia se estabelece quando a roupagem da é colocada sobre tais mitos para

retratar um ambiente híbrido que apresenta um mundo mítico repleto de questões políticas1

geradoras do confronto entre homem e situação trágica. Mesmo que não existisse, no tempo

das tragédias gregas, uma teoria sobre o trágico2, o receptor desse tipo de discurso

compreendia perfeitamente a difícil situação do homem que, em meio a um problema

mundano, era obrigado a fazer escolhas que muitas vezes lhe causavam um dano irreversível.

A oposição trágica servia de exemplo para o receptor do discurso, que, na segurança

mimética dos terríveis acontecimentos que se desenrolavam em cena, podia perceber um

macroato3 de linguagem, cujo amplo significado colocava o homem no centro de questões

1 Entenda-se o termo política aqui no sentido grego que pode ser depreendido do significado etimológico da

palavra; com a presença do sufixo –, que indica relação, política pode ser definida como tudo aquilo que tem

relação com a . O significado grego é, portanto, muito mais abrangente do que o significado atual, que trata a política como uma parte da vida na cidade e não como tudo que emana dela. Pode-se afirmar que ir ao teatro

para um grego se trata de um ato político. Não é assim que o homem da atualidade compreende o ato de ir ao

teatro. 2 A poética de Aristóteles é muito mais uma análise do gênero, em seu aspecto formal, do que propriamente uma

análise do trágico. Szondi (p. 23), na introdução de seu livro, é categórico ao afirmar: Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 3 Como macroato de linguagem pode-se entender o significado da obra como um todo, a qual, tendo por

destinatário o espectador ou leitor, é composta por uma sucessão de atos que formam uma enunciação global. Cf.

definição de macro-ato: CHARADEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Domenique. Dicionário de análise do

discurso. São Paulo: Contexto, 2006. Por meio do ato de linguagem propriamente dito, há uma dupla enunciação

simultânea, a que se faz do autor para o espectador e a que se faz de um personagem para outro personagem. Cf.

MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 159-

165.

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elevadas que, ao mesmo tempo em que lhe alçavam à figura de herói transgressor, levava-o à

ruína, fazendo surgir aos espectadores ideias inerentes a sofrimento, perda e morte, que,

contudo, comportam também ideias de contemplação e alívio, geradas pela própria beleza e

mimetismo da tragédia.

Esse todo discursivo, contudo, para fins de análise, pode ser decomposto em elementos

menores de enunciação entre os personagens, ou seja, em atos de linguagem unitários e

formadores do todo, que justificam o porquê do caráter trágico da obra apreciada. O estudo

em questão enfoca um tipo de ato de linguagem que constrói o embate trágico. É um tipo de

metáfora a qual se nomeou trágica porque enfatiza exatamente as oposições e os sofrimentos

inerentes ao conteúdo de uma tragédia. Entendendo a metáfora presente na tragédia como um

ato de enunciação tanto de um personagem para outro personagem presente no contexto

literário quanto do autor para um espectador externo a esse mesmo contexto, a tese proposta

possui o objetivo de mostrar que uma tragédia grega enfatiza frequentemente o trágico de seu

discurso exatamente pela presença desse tipo de construção. A feição e o funcionamento de

tal fenômeno discursivo serão pontos de profunda análise na obra à qual a presente pesquisa

se direciona.

O corpus escolhido para se empreender tal estudo é a tragédia Persas do dramaturgo

ateniense Ésquilo. A escolha do autor se deu com base no conhecimento de que Ésquilo

emprega em suas tragédias um rico imaginário, fato proveniente ainda do caráter que une

suas obras à poesia lírica. Posicionando-se historicamente em um estágio central do

desenvolvimento do gênero trágico, gênero ao qual ele mesmo, acrescentando um segundo

ator ao único ator de Téspis, concedeu exemplos bem acabados, Ésquilo apresenta em boa

parte de suas tragédias iniciais uma narrativa que se encontra mais presente do que a ação

entre os personagens, e a compensação de tal fato se dá exatamente pela presença de um rico

imaginário que ilustra frequentemente as falas dos personagens4. Com base no que foi dito, a

escolha da obra mostra-se lógica: sendo a primeira tragédia a sobreviver ao tempo na íntegra,

Persas se insere exatamente no tipo de peça mencionada, rica de imagens e econômica em

ação. Resta dizer que, não obstante o interesse de se estudar Persas, tal análise poderia ser

feita em qualquer outra tragédia esquiliana5 ou mesmo em tragédias de Sófocles e Eurípides.

4 Cf. HALDANE, J. A. Musical Themes and Imagery in Aeschylus. The Society for Promotion of Hellenic

Studies. The Journal of Hellenic Studies, vol. 85, 1965, pp. 33-41. O helenista diz (p.33), neste artigo, que o

método de Ésquilo de usar imagens chaves para sustentar e desenvolver um tema dramático tem sido reconhecido

por muito tempo como um importante traço de seu estilo. Tal artigo possui, em seu final (pp.40-41), uma

comparação entre o método esquiliano mencionado e certas construções que aparecem em Sófocles e Eurípides. 5 Na verdade, a obra esquiliana com maior número de metáforas e com o imaginário mais variado e rico é a

tragédia Agamêmnon, que talvez seja o drama mais bem acabado e elaborado de Ésquilo.

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O fato de Persas ser um subgênero de tragédia que não vingou posteriomente entre os

atenienses, ou seja, uma tragédia de enredo histórico, diferente, portanto, de todas as outras

tragédias que sobreviveram ao tempo, foi um motivador a mais para comprovar a validade da

análise e, consequentemente, a tese.

A tragédia Persas fala da derrota naval que o exército persa, liderado pelo seu grande

rei Xerxes, sofreu nos arredores da Ilha de Salamina pelas mãos dos atenienses, em 480 a.C.

No momento em que a ação tem início no párodo6, a derrota persa já havia acontecido, mas o

coro, composto por anciãos persas, ainda ignorava o fato, apesar de se encontrar apreensivo

por causa da falta de notícias e de maus pressentimentos. A rainha Atossa, mãe de Xerxes,

que entra em cena no início do primeiro episódio, também sofre, devido a um sonho

premonitório que parece evidenciar uma catástrofe contra seu filho. O conhecimento do

desfecho da batalha se dá por meio de uma , anúncio, relato, feito por um

mensageiro ainda durante o primeiro episódio. Esse personagem havia sido testemunha

ocular dos fatos: os persas foram dizimados em Salamina. Após um breve segundo episódio,

complementam a ação o aparecimento do Fantasma de Dario no terceiro episódio, antigo rei

dos persas e pai de Xerxes, invocado do mundo dos mortos para esclarecer com sua

sabedoria, tanto terrena quanto sobrenatural, as causas da derrota, e o aparecimento de

Xerxes, na última parte da tragédia, que se afigura como um grande canto de lamento que o

personagem entoa, juntamente com o coro, em referência à juventude persa destruída em

batalha. Ao representar Xerxes como um indivíduo tomado por uma , excesso, por

incorrer no erro trágico que lhe traz um castigo irreversível (os detalhes de seus atos serão

aos poucos citados no decorrer da tese), Ésquilo, como é bem comum em seu estilo,

apresenta um mundo divino que age por trás da ação em cena. Apesar de seu tema histórico,

Persas possui um tratamento sobrenatural que não é diferente de outras tragédias do autor.

O tipo de metáfora a qual se pretende estudar nessa tese, em meio a esse corpus que

apresenta um caráter fictício e sobrenatural atado a um relato histórico, possui uma feição

bem definida. Essa feição híbrida faz a tragédia Persas transitar por um mundo profícuo de

metáforas políticas7 ou cotidianas e ainda por um mundo natural, repleto de animais e das

forças dos elementos da natureza. Quando esses elementos surgem no discurso trágico

misturando-se ao mundo estilizado da tragédia para enfatizar um embate trágico, tem-se

6 Por ser muito antiga, a tragédia Persas não possui prólogo. As outras partes da tragédia são o párodo, momento

da entrada do coro em cena, os episódios, partes em que os personagens dialogam, e os estásimos, partes cantadas

pelo coro entre os episódios. A tragédia Persas possui, um párodo, três episódios, três estásimos, e ainda uma

parte final, um êxodo que se trata de um imenso , canto de lamento, entoado pelo personagem Xerxes e o coro. 7 Mais uma vez, a palavra política está sendo utilizada em seu sentido grego. Cf. nota 1.

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exatamente uma metáfora trágica, ou melhor, um enunciado trágico, uma vez que a metáfora,

nesse estudo, deve ser compreendida como um enunciado metafórico, como se verá na

análise proposta.

Utilizando-se ferramentas discursivas que servem a uma análise pragmática da

metáfora, pretende-se estabelecer um estudo que, na medida do possível, visa a levantar a

construção do significado do discurso para o receptor ateniense do século V a.C., significado

esse que se dá em meio à lógica que se estabelece na comunicação entre os personagens no

contexto literário. Daí a dupla enunciação de que já se falou. A pragmática compreende a

linguagem como atos que são reconhecidos por um receptor exatamente porque eles ocorrem

no meio natural ou social do qual o mesmo faz parte, ou seja, em seu contexto mundano. Para

se fazer um estudo pragmático das metáforas que se constroem numa tragédia grega, é

necessário, portanto, conhecer-se a fundo a sociedade onde os atos caros aos homens da

Antiguidade aconteciam, legitimando-se em ações comuns que se desenrolavam na vida

cotidiana desses homens. Para tanto, foi necessário, primeiramente, compreender o mundo

grego para, depois, perceber a inserção figurada desse mundo, por meio de uma evocação

harmoniosa, na ação que se desenvolve no enredo trágico. Com base nisso, foi possível

depreender da tragédia Persas todas as metáforas trágicas que permeiam o seu discurso e

analisá-las quanto à sua função de produzir o efeito trágico.

Como se pode perceber na bibliografia, há um bom número de obras de historiadores da

Antiguidade8, que aparecem em união com os autores que fazem um estudo antropológico,

tanto da tragédia grega9 quanto de outros aspectos da vida do cotidiano do homem grego. A

utilização desse material tem como objetivo dar conta de dois aspectos da presente análise.

Em primeiro lugar, para se compreender uma metáfora esquiliana, é necessário se instruir

acerca do mundo grego ateniense do século V a.C., lançando um olhar ainda sobre os séculos

anteriores, que tanto influenciam os subsequentes. Em segundo lugar, é preciso também

conhecer o próprio evento histórico que é evocado em Persas. A obra, tendo sido apresentada

pela primeira vez em 472 a.C, adquire ares de uma grande comemoração cívica por meio do

fenômeno teatral, estando, portanto, ligada ao mesmo tempo ao âmbito cotidiano do homem

grego ateniense e ao acontecimento histórico em si mesmo. A proximidade entre as datas de

apresentação da obra e da batalha a que ela alude é um dado a se considerar. A peça como

8 Moses Finley e Claude Mossé são apenas dois exemplos, dentre outros autores que aparecem na bibliografia

selecionada para esta tese. 9 A escola francesa encabeçada por Jean Pierre Vernant, Vidal Naquet e Jacqueline de Romilly está no cerne desse

tipo de análise, que coloca o próprio homem grego como o elemento central que deve ser estudado para desvendar

os fenômenos sociais e históricos da antiguidade.

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um todo tinha um significado peculiar desse acontecimento que era passado ao homem grego

pela enunciação própria da tragédia.

O estudo histórico se encontra complementado por um estudo direcionado para o texto

que compõe o corpus, com ênfase especial em textos que falam da contrução do imaginário

em Persas ou da obra de Ésquilo como um todo. A obra clássica de Dumortier10

, que trata do

uso das imagens de Ésquilo em suas tragédias, mostrou-se indispensável para a pesquisa,

assim como também o livro de Moreau11

, com sua investida em certas palavras que

constroem metáforas que têm a função de estabelecer o trágico do discurso esquiliano, o que

o faz mencionar o funcionamento de alguns fenômenos discursivos. Dois livros se

direcionam unicamente para a tragédia Persas, tendo sido, por isso, considerados cruciais

para a pesquisa: o estudo de Hall12

, presente em sua tradução de Persas, com introdução e

vários comentários elucidadores das imagens criadas pelo autor, e o estudo de Michelini13

,

que se direciona para os aspectos formais dessa tragédia. Encontram-se na bibliografia

artigos, de vários autores, publicados em revistas de literatura clássica ou de filologia. Por

serem relacionados com a tragédia Persas ou com a obra de Ésquilo em geral, esses textos se

mostraram muito importantes para o desenvolvimento da tese. O artigo de Anderson14

, em

especial, trata exatamente de como se dá a contrução do imaginário em Persas.

Por esta pesquisa fazer uso de uma abordagem pragmática do fenômeno metafórico, a

teoria da metáfora de Searle15

, com sua proposta de construção do significado para um

receptor em um contexto, será a base para o reconhecimento e análise das metáforas tratadas

em Persas, mas isso, de forma alguma, significa que não se insira, quando necessário, ecos

de outras abordagens para se complementar a análise, que contará ainda com dados acerca do

uso da sintaxe grega, no estilo de Ésquilo, como determinante para a construção do

significado metafórico. A teoria conceptual elaborada por Lakoof e Johnsen16

também se

mostrou importante, pois nela se entende a metáfora como um conceito inteligível, o que

10 DUMORTIER, Jean. Les Images dans la Poésie d‟ Eschyle. Paris: Société d’ Édition “Les Belles Lettres”,

1975. 11 MOREAU, A. Eschyle, la Violence et le Chaos. Paris: Les Belles Lettres, 1985. A definição de metáfora

paradoxal presente neste livro influenciou muito o estudo das metáforas como determinantes para a construção do

trágico. 12 AESCHYLUS. Persians. Greek text with introduction, translation and commentary by Edith Hall. Warminster:

Aris & Phillips LTD, 1996. 13 MICHELINI, Ann N. Tradition and Dramatic Form in The Persians of Aeschylus. Cincinnati: Leiden E. J.

Brill, 1997. 14 ANDERSON, Michael. The Imagery of „The Persians‟. Cambridge University Press on behalf of The Classical

Association. Greece & Rome. Second Series, vol. 19, No. 2, 1972, pp. 166-174. 15 SEARLE, John. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

A teoria acerca da metáfora encontra-se mais precisamente no cap. 4, pp. 121-181. 16 LAKOFF, George & JOHNSEN, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 2003.

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15

inspirou a necessidade de se conhecer como se apresentavam na mente dos gregos certos

conceitos metafóricos. A teoria já clássica elaborada por Max Black17

, chamada de teoria da

interação, mostrou-se também válida no entendimento da metáfora como um mecanismo cujo

resultado se faz pela dualidade. A idéia, proposta na tese, de que a metáfora é a união de dois

tipos de imagem muito se deve a Black. Dois outros autores foram muito utilizados para o

desenvolvimento da tese: Ricoeur e Maingueneau. O primeiro pela investida que faz em

todas as teorias da metáfora, fazendo uma trajetória que vai da palavra ao discurso; seu

livro18

foi, sobretudo, indispensável para um conhecimento amplo de como o fenômeno

metafórico foi compreendido através do tempo. Já Maingueneau, renomado cientista de

análise do discurso, possibilitou, à análise da metáfora pretendida nesta tese, uma série de

conceitos que tornaram mais maleável a compreensão do discurso e do enunciado que forma

a metáfora; vários livros seus se encontram na bibliografia selecionada, inclusive um que

enfoca a pragmática para fins de análise do discurso19

.

O resultado final deste estudo de metáforas foi a proposta de uma tradução de Persas

em que se tenta, na medida do possível, respeitar as imagens evocadas por Ésquilo e,

consequentemente, as metáforas produzidas por meio de seu discurso trágico. O texto

utilizado para tradução é o da edição crítica estabelecida por Hall20

, que deve muito, segundo

a própria, helenista21

, às edições de Denys Page (Oxford Classical Text, 1972) e Martin West

(Teubner, 1990). Para fins de cotejamento, utilizou-se também, principalmente, o texto

editado por Jeffrey Henderson22

, e ainda os editados por Paul Mazon23

e por Émile

Chambry24

.

A tese, em sua forma final, se apresenta dividida em várias partes. No item 2, são

expostas as ferramentas discursivas e o método pelo qual as imagens e as metáforas trágicas

de Persas serão depreendidas da obra e analisadas. Nessa parte da tese, os conceitos de

imagem interna e externa serão apresentados, assim como o conceito de termo harmonizador

17 Apud RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 134-142 18 RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 19 Vide nota 3. O livro Pragmática para o discurso literário possui todo um capítulo que trata da enunciação do

discurso teatral, pp. 159-180. 20 Vide nota 11. 21 RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 27. 22 AESCHYLUS. Supliant Maidens, Persians, Prometheus, Seven against Thebes. Greek text edited by Jeffrey

Henderson with translation by Herbert Weir Smyth. Massachusetts: Loeb Classical Library, 2001. 23 ESCHYLE. Tragédies. Tome I. Les Suppliantes, Les Perses, Les Sept contre Thèbes, Promethée Enchainé.

Texte établi et traduit par P. Mazon (1920). Paris: Les Belles Lettres, red. 1995, avec um avant. Propôs de J.

Irigoin. 24 ESCHYLE. Théâtre. Traduction nouvelle avec texte, avant-propos, notice et notes para Émile Chambry. Paris:

Librarie Garnier Frères, 1946.

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16

de imagens25

. Nas partes que vão dos itens 4 a 8, são especificadas as imagens evocadas pelo

autor. O âmbito de onde elas são retiradas dá nome a cada capítulo, enquanto as imagens

propriamente ditas dão nome aos subcapítulos. Especial ênfase foi concedida ao item 3, que

trata da imagem do jugo e das metáforas trágicas dela formadas; a importância dessa imagem

foi levantada por diversos especialistas, que a consideram como a mais importante do

contexto literário de Persas, e daí a necessidade de se fazer um capítulo especial só para se

tratar dessa imagem. Por fim, com o item 9, que se direciona para o estudo da sintaxe e da

semântica da língua grega, busca-se explicar o funcionamento do idioma helênico para

construção das metáforas trágicas, no estilo esquiliano presente em Persas.

25 Tais nomenclaturas foram criadas para a presente tese. Os conceitos de imagem interna e externa remetem à

dualidade própria do fenômeno metafórico, que foi levantada por teóricos da metáfora como I. A. Richards e Max

Black. Este último foi importante ainda, como se verá no item 2, para a criação do conceito de termo

harmonizador de imagens. As teorias da metáfora desses teóricos tornaram-se conhecidas para serem repensadas

na presente tese graças ao livro de Ricoeur, que trás dados importantes, sobretudo, em seu capítulo (estudo) III.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

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2. FERRAMENTAS DO DISCURSO PARA ANÁLISE DA METÁFORA TRÁGICA

As metáforas criadas por Ésquilo são formadas por imagens retiradas de vários

contextos do mundo grego da Antiguidade. A presença delas no texto faz com que esse

mundo possa ser compreendido por qualquer um que se proponha a interagir com os

significados inerentes à obra do tragediógrafo. Da mesma maneira que o ateniense do século

V a.C. reconhecia, em sua interação com o teatro, traços de seu cotidiano no contexto

literário criado por Ésquilo, o receptor atual, sem a mesma posição privilegiada, pode

conhecer muitos aspectos dessa realidade tão remota, mesmo tendo diante de si um texto que

hoje transmita de modo apenas parcial os complexos significados de um mundo que não lhe

pertence.

Para se compreender o significado das imagens de onde Ésquilo retira sua inspiração

trágica no intuito de formar metáforas no conteúdo literário de Persas, torna-se necessário

esclarecer e conceituar alguns fenômenos discursivos, utilizados para analisar o estilo

esquiliano de construção de metáforas.

2.1. Imagem externa e interna

Primeiramente, é preciso esclarecer, no âmbito de sua relação com a metáfora, o que

vem a ser uma imagem na análise teórica proposta neste trabalho. Imagem não é, de modo

algum, sinônimo de metáfora. A imagem é a representação de uma ação ou quadro

estagnado, cujo valor de síntese, pode abarcar vários significados de acordo com o contexto a

que sua possibilidade de expansão semântica se refere. Ela se encontra associada ao sentido

da visão, mas deste não depende para existir, uma vez que se pode formar apenas

inteligivelmente. Uma definição de imagem importante para constar nesse trabalho, por ter

sido cunhada em meio a um estudo da análise do imaginário de Persas, estando, portanto,

inserida no âmbito cênico, é a de Anderson (1972, p. 167):

Vale lembrar também que no teatro o espetáculo apresentado à audiência

talvez seja a chave para uma imagem na qual o estudo das palavras sozinhas

não pode prover. Em resumo, uma imagem é qualquer quadro mental evocado

pelo leitor ou espectador no que diz respeito a como funciona em nossa

imaginação de uma maneira mais sutil e indireta.

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A tragédia, sendo representação, pode ser compreendida como uma grande imagem,

pois é a apresentação sintética e mimética de um fato aos olhos do espectador. Contudo, essa

imagem como um todo, assumindo-se como realidade para os personagens que a compõem e

a levam ao seu fim, desmembra-se em outras imagens, construídas por esses mesmos

personagens, seja por suas ações seja por suas narrações em meio à ação. O quadro mental

produzido tem um significado tanto para o mundo dos personangens em cena quanto para o

do espectador. Dependendo da profundidade desse significado, a imagem produzida pode

adquirir o estatuto de símbolo. A imagem de um soldado marchando, solta na mente por

meio da evocação de um contexto bélico, pode não ser mais do que isso, ou seja, a imagem

de um soldado marchando, mas se esse mesmo soldado adquire na mente valores que vão

além de sua própria imagem, ele se torna um símbolo. A imagem de um soldado, por

exemplo, pode ser um símbolo de coragem.

É necessário que haja mais de uma imagem para construção de uma metáfora, pois,

atuando sozinha, a mesma não possui a duplicidade necessária à constituição desta última.

Ainda tomando-se como exemplo a imagem do soldado que marcha, pode-se dizer que tal

imagem não se apresenta, por si só, como uma metáfora, pois, para a constituição da mesma,

é preciso haver um exercício intelectivo em que a imagem desse soldado é evocada para

servir a um contexto em que certo receptor irá perceber o fenômeno como metafórico. O

contexto, não sendo próprio do soldado, não vai possuir essa figura de forma real, e assim

sua imagem é evocada para se dizer outra coisa diferente de um soldado literal. O chefe de

um jornal poderia dizer que um de seus repórteres é um verdadeiro soldado que marcha,

incansavelmente, em busca de notícias, construindo, assim, uma metáfora, que se forma

nessa associação entre duas ideias. Como esse repórter não é um soldado real, há a

necessidade de o receptor do enunciado decodificar o significado metafórico que se apresenta

por meio do contexto. Por sua capacidade de se referir a mundos diferentes daqueles que se

poderia esperar em certo contexto, toda metáfora necessita, no mínimo, de uma associação de

duas imagens, uma que é evocada (no exemplo proposto, trata-se do soldado que marcha) e

outra que está presente no contexto (no mesmo exemplo, é o repórter que busca notícias), que

se constitui o elemento literal do mesmo. Para o funcionamento da metáfora, ambas as

imagens precisam se harmonizar de maneira lógica por meio do discurso, fato que torna

coerente dizer que uma imagem é apenas uma parte da metáfora. Ao se falar de imagem na

análise proposta, será feita menção tanto às que têm o poder de evocar ideias para formação

da metáfora quanto às que já se encontram inseridas no contexto literalmente. Essa imagem

literal será denominada interna por se encontrar, de fato, de maneira lógica e real inserida no

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contexto literário, enquanto o outro tipo de imagem, indispensável para a formação da

metáfora, será denominada externa, por não se encontrar, na verdade, inserida de modo real e

literal no contexto literário, que depende, contudo, desse elemento, aparentemente estranho,

para ter o seu significado compreendido. O receptor do enunciado esse repórter é um soldado

que marcha, incansavelmente, em busca de notícias precisa saber o que é um soldado

marchando, com as ideias que tal ato figurado poderia acrescentar ao contexto. A riqueza da

metáfora é abrangente, de modo que percepções como coragem, organização e força

poderiam muito bem estar inseridas na evocação externa do ato do soldado. Imagens externas

como a do soldado que marcha nada mais são, quando inseridas na comunicação linguística,

do que atos de fala que são compreendidos por um receptor simplesmente porque tais ações

ocorrem na sociedade dos falantes.

A metáfora é, então, uma imagem evocada, associada ao mundo presente no contexto

literário no qual certo autor constrói, ou seja, uma união de duas idéias, uma evocada de certa

imagem externa e outra de presença lógica no contexto, que é a imagem interna. Daí a

necessidade do entendimento da metáfora como enunciado, usando-se a designação de

enunciado metafórico, pois a metáfora, não sendo apenas uma palavra, só se define em meio

a essa complexidade de relações. Imagens que seriam externas ao contexto, ou melhor,

estranhas, fazem com que o enunciado seja defectivo se compreendido literalmente pelo

receptor, que terá que, nessa associação entre duas ideias, buscar um significado cuja pista

lhe é dada por esse mesmo contexto, que nada mais é do que o discurso elaborado pelo autor.

Nessa decodificação pelo receptor do discurso, a palavra deixa de ser estranha se o discurso a

harmonizou bem, tendo-se, então, uma metáfora bem sucedida. É possível afirmar que, num

enunciado metafórico, o absurdo ganha lógica por meio do contexto. Quanto mais original,

ousada e harmoniosa se mostra essa relação entre duas imagens, maior é o efeito estilístico da

construção da metáfora. Pode-se dizer que uma boa metáfora se dá quando seu autor

consegue, ao mesmo tempo, originalidade, harmonia e compreensão de seu receptor, na

forma de expressão do gênero literário a que pertence seu discurso. O termo metáfora será

utilizado nesse trabalho, então, para fazer menção a essa espécie de mistura que se dá entre a

imagem evocada (externa) e a imagem real (interna) presente no contexto literário, sendo

entendida, esta última, como o elemento literal do fenômeno metafórico. A metáfora ao ser

compreendida como enunciado necessita, assim, também de termos literais em sua formação

para ter o seu sentido complementado e entendido plenamente. Somente depois que ocorre

essa junção, ou seja, apenas depois que a imagem evocada mais o conteúdo literal do

contexto literário se unem, é possível haver metáfora, com a probabilidade de que a mesma

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adquira a função de determinar o caráter trágico do discurso presente numa tragédia grega.

Nessa expressão do trágico, reitera-se que a metáfora só pode ser compreendida enquanto

enunciado, uma vez que depende do mesmo para sua existência.

2.2. Expressão nuclear e termo harmonizador de imagens

O enunciado é construído por palavras unidas de forma lógica, e isso significa dizer

que tais palavras ou termos são, igualmente, muito importantes na elaboração do fenômeno

metafórico, entendido ele mesmo como enunciado. Uma palavra não possui um significado

fora de um contexto. Qualquer pessoa sabe o que é uma mesa, mas apenas quando a tal

palavra é associado o objeto ao qual a mesma se refere, e essa associação nada mais é do que

uma contextualização. Recebendo seu significado de vários contextos, a palavra

contextualizada, sozinha ou acompanhada de outras, adquire o estatuto de expressão

determinadora de certos atos do cotidiano de uma comunidade. Como elemento externo, ela

tem, assim, a capacidade de fazer a evocação que produz o enunciado metafórico. No

embasamento teórico proposto, esse elemento, sendo apenas uma palavra ou expressão mais

complexa, será denominado expressão nuclear, termo mais condizente para uma análise que

toma a metáfora como enunciado. O termo expressão nuclear será utilizado, portanto, para

fazer menção à palavra ou expressão, cuja importância é capital para trazer um novo contexto

a um contexto já existente. Assim funcionando, a expressão nuclear não é a metáfora e nem

a imagem, mas a ferramenta léxica, cuja utilidade é conduzir as imagens externas para o

contexto literário e assim formar as metáforas por meio do significado de certa forma adverso

ao que está sendo dito, mas que, paradoxalmente, faz estabelecer um contexto harmonioso.

Nem sempre é simples num enunciado metafórico perceber as expressões nucleares

de um discurso literário que prima pela complexidade. Em alguns casos, fica difícil optar por

considerar a palavra presente no discurso como sendo parte da imagem externa ou parte da

interna. Para solucionar esse problema não muito comum, mas imposto por algumas

construções literárias esquilianas, criou-se aqui o conceito de termo harmonizador de

imagens, uma outra ferramenta discursiva que serve para fazer referência a determinadas

palavras que, ao mesmo tempo que evocam uma imagem externa, também se encontram,

literalmente, no contexto literário apresentado, fazendo parte, portanto, também da imagem

interna. Pode ocorrer ainda que, em alguns casos, o termo harmonizador venha a fazer

referência a duas imagens externas, unindo-as perante os elementos internos do contexto,

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mas isso só pode acontecer quando a evocação se faz em âmbitos distintos. Tal conceito foi

inspirado pela Teoria da Interação de Max Black, com algumas variações. Por essa teoria, a

metáfora, entendida como enunciado, forma-se pela interação dos significados de duas

palavras, que atuam juntas para formar um ser híbrido. Com a diferença de que essa

ferramenta não serve para dar conta do todo metafórico discursivo, usou-se a ideia presente

em tal teoria nas palavras que parecem portar mais de uma imagem, encerrando em si

mesmas a dualidade que forma a metáfora.

Para construir as metáforas presentes em Persas, Ésquilo buscará expressões

nucleares cuja inspiração é retirada de vários contextos externos que se misturam ao enredo

que se desenvolve em suas tragédias. Ambientes dos mais variados tipos são evocados por

palavras ou expressões que portam as mais diversas imagens do mundo da Antiguidade,

verdadeiros atos de um mundo vivo cheio de características próprias.

2.3. A metodologia de análise de Persas

Tendo em vista a complexidade do mundo grego, um primeiro passo da análise que

irá ser desenvolvida nos próximos capítulos vai se constituir de um breve comentário acerca

do âmbito geral do contexto mundano que possibilita a existência de certos atos e, por isso

mesmo, de certas imagens. Essa parte responde sucintamente pelo que vem a ser, no mundo

grego, as instituições, a religião etc. Esses esclarecimentos a serem feitos dão nome aos

capítulos que se seguem.

Em seguida, será a vez de se direcionar para a imagem extraída por Ésquilo desse

contexto mundano, especificando os seus valores semânticos e simbólicos ainda nesse

âmbito. Esse elemento, que é a imagem externa, aparecerá citado em negrito para que se

especifique sua associação com a totalidade do mundo grego. Essa segunda parte visa a

esclarecer, em associação com a primeira, as possibilidades semânticas e simbólicas das

imagens que serão utilizadas por Ésquilo, e, para tanto, esse procedimento de análise vai

responder o que vem a significar o éforo, o cão etc. em meio à sociedade grega da

Antiguidade.

Por fim, para cada imagem externa citada, será apresentada, também em negrito, no

texto grego original seguido de tradução, a expressão nuclear do texto esquiliano que a

evocou. Como apenas a imagem externa será colocada em negrito, tudo o que aparecer no

enunciado metafórico além dela deve ser entendido como parte da imagem interna. Os

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termos harmonizadores de imagens, quando aparecerem, também serão citados juntamente

com as imagens externas, uma vez que têm também a função de evocá-las. Uma série de

comentários sobre os significados produzidos por Ésquilo quando a imagem externa se

associa à interna irá girar em torno do enunciado metafórico, que será citado em sua

completude, com texto original e tradução. Uma relação será estabelecida entre os valores

presentes na imagem trazida por certa expressão nuclear e o contexto trágico interno de

Persas que irá acolher harmoniosamente tal imagem, graças ao fenômeno metafórico.

Comentar-se-á, por vezes, também a relação entre o figurado, imagem externa, e o literal,

imagem interna, presente no enunciado metafórico, que depende dessa duplicidade para

existir (por vezes, pode haver no enunciado metafórico a presença de mais de uma imagem

externa). Quando houver, será feita menção também ao termo harmonizador que abarca em si

mesmo as duas imagens, tanto a externa quanto a interna.

Sendo a metáfora entendida como enunciado vale ressaltar que a mesma será citada

com o mínimo de elementos a produzirem uma frase lógica. Isso significa dizer que o agente

da ação faz parte do enunciado metafórico, assim como também sua ação, e o objeto sobre o

qual seu ato recai. No caso dos enunciados nominais, deve-se ter em conta o sujeito e as

qualificações que ele recebe. Em todas essas construções, já que a tragédia é teatro, deve-se

notar quem é o personagem que emite o enunciado metafórico, pois ele faz parte da metáfora

como um elemento literal interno do contexto literário. Isso significa dizer que, nas metáforas

mais complexas e enigmáticas, a focalização de quem fala, irá ajudar a entender a construção

metafórica.

Optou-se por delimitar as expressões nucleares que evocam imagens de acordo com

sua importância no texto. Num discurso assumidamente trágico, como o de Ésquilo, entende-

se que tal importância não é apenas medida pelas imagens que mais são evocadas, como, por

exemplo, a do jugo, que será tratada num capítulo separado de todas as outras, mas,

sobretudo, por aquelas que enfatizam e determinam os embates presentes no enredo da peça,

sem os quais não haveria tragédia. Em suma, as imagens mais importantes num texto

esquiliano são aquelas que produzem o que se poderia chamar de metáforas portadoras do

trágico.

Não se desejando ir a fundo às definições do trágico, algo de interesse e

complexidade tão grandes que, ultrapassando o âmbito dos estudos clássicos, abarca outras

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áreas de interesse, deseja-se apenas expor, sucintamente, a teoria de Gumbrecht26

. O trágico

se forma por uma oposição a um agir. Toda agência27

tem um objetivo que é exatamente a

finalização de uma ação. Se esse objetivo é frustrado por algo, tem-se a oposição a tal

agência. O trágico surge dessa oposição quando a agência frustrada adquire uma dimensão de

grande gravidade, em que há envolvimentos relacionados com morte ou com outras

ocorrências de grande impacto. Direcionando tal teoria para o mundo idealizado da tragédia

Persas de Ésquilo, poder-se-ia dizer que as metáforas trágicas que serão citadas têm a função

de criar e enfatizar no discurso esquiliano oposições, que, em Persas, mostram, sobretudo, a

oposição genérica entre gregos e bárbaros e a oposição entre Xerxes e forças sobrenaturais.

As imagens que não possuem essa função trágica só serão citadas quando forem de

grande interesse por sua criatividade e beleza ou quando servirem para se compreender com

mais clareza as metáforas trágicas propriamente ditas.

26 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Os lugares da tragédia. In Filosofia e Literatura: o trágico. Organizado por

Kathrin Holzermary Rosenfield, com a colaboração de Francisco Marshall. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,

pp. 9-19. 27 Ibidem. O termo agência é utilizado por Gumbrecht para designar o próprio agir de um indivíduo em meio a

uma ordem objetiva de mundo.

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3. A IMAGEM DO JUGO E SUAS METÁFORAS

Por tudo o que significa, pela complexidade dos enunciados formados e pelo seu

número de ocorrências no texto, a imagem do jugo pode ser considerada a mais importante

de todas as que se mostram presentes no contexto literário da tragédia Persas. Mas essa

importância deve ser considerada, sobretudo, porque tal imagem forma metáforas que

enfatizam fortemente, no discurso esquiliano, a oposição entre gregos e bárbaros, seja em

uma oposição que parte, primeiramente, do povo helênico, seja em outra que parte dos

persas. O que determina a origem dessas ações opositivas é o significado que o contexto

confere à imagem evocada do jugo.

Dois contextos que se complementam na ação trágica expressa em Persas serão

abordados nesse capítulo, formando o que se poderia resumir como um mau jugo e um jugo

que, apesar de não ser necessariamente bom, evoca algo bom. O primeiro tipo de jugo, mais

comum nessa tragédia, simboliza uma opressão gerada pela escravidão, e, assim sendo,

apresenta uma oposição que, partindo dos persas, tem um alvo sobre os gregos, uma vez que

é o exército bárbaro, comandado pelo seu rei Xerxes, que tem a intenção de dominar a Grécia

ocidental. Contudo, os persas foram frustrados em sua tentativa de dominação ao serem

encurralados pelos atenienses nos arredores da ilha de Salamina. Ao terem seu exército

destruído quase que por completo na batalha naval, a ordem do trágico se inverte, pois são os

persas que se encontram numa situação trágica gerada por tais mortes. A oposição trágica,

então, parte agora dos gregos que, além de serem os causadores passivos da ida do exército

persa para Grécia, impõem essa terrível derrota aos bárbaros que é o mote de toda a ação

trágica que se desenvolve na peça. Em meio a essa oposição, a imagem do jugo é evocada

para adquirir o significado de casamento, em um contexto que enfatiza, tragicamente, a ideia

de rompimento dessa união conjugal. Nas duas passagens de Persas em que o jugo aparece

expressando essa ideia, ele apresenta nuances de significado consideráveis que serão

abordados no momento propício. É o coro de anciãos persas que cita, nos dois momentos, as

jovens mulheres bárbaras como aquelas que mais irão sofrer diante das perdas dos maridos

que foram combater em Salamina. Em princípio, a ideia da perda dos maridos se forma,

simplesmente, diante do afastamento deles para a Grécia, mas, depois, com a chegada do

mensageiro em cena, vem o conhecimento de que a morte chegou para esses homens.

Na sequência, serão arroladas, em sua ordem de aparecimento no texto, as passagens

que são construídas sobre a égide desses dois tipos de jugo. Em primeiro lugar, após um

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extenso exame sobre o papel do jugo como instrumento na Antiguidade, com uma

amostragem de seus valores concretos e figurados, serão levantadas as expressões nucleares

que evocam as imagens formadoras das metáforas do jugo que significa a opressão da

escravidão, sendo citadas e comentadas as passagens propriamente ditas em que tais

metáforas se formam. Em seguida, será a vez de citar os exemplos comentados acerca do

jugo relacionado com o casamento, com as nuanças de significado que lhe são colocadas pelo

contexto literário construído por Ésquilo.

3.1. O jugo associado à opressão

Diferentemente do que ocorre, por exemplo, com o enunciado metafórico formado em

torno da expressão nuclear , adivinho de males, que será analisado no capítulo 5,

em que a oposição trágica parte dos gregos, gerando uma situação de gravidade para os

persas, os enunciados metafóricos do jugo como uma ideia que remete a uma opressão

determinada pela escravidão estabelecem uma oposição trágica de sentido inverso, visto que

a mesma parte dos persas, que se opõem metaforicamente aos gregos pela evocação dessa

imagem do jugo. Nos casos das duas metáforas, existe uma ordem objetiva: os anciãos persas

desejam que tudo esteja bem com seu exército, apesar de temerem o pior (os gregos opõem-

se a essa ordem), já os gregos desejam viver em liberdade (os persas opõem-se a isso). De

fato, a luta dos gregos contra uma opressão que lhes seria imposta pelos persas é uma das

ideias mais fortes que se desenvolvem na tragédia, e são as metáforas formadas pelo jugo que

melhor refletem essa oposição. O que se verá agora é como Ésquilo constrói as metáforas

desse tipo de jugo figurado e como o próprio jugo era entendido por um homem grego do

século V a.C., quando sua imagem lhe era evocada, seja como um instrumento útil ao

trabalho do boieiro ou do cavaleiro seja como um símbolo de uma opressão infligida pela

escravidão.

Pode-se dizer que o jugo, nos dias atuais, tornou-se muito mais um substantivo

abstrato do que concreto apesar de sua utilização ainda hoje no meio rural. Tanto isso é

verdade que, nos tempos modernos, é possível formar enunciados sem a compreensão de que,

na verdade, um jugo seria, em seu sentido concreto, certo instrumento utilizado para atrelar

bois ou cavalos a uma carroça. Pode-se formar enunciados de posse apenas da noção abstrata

figurada em que o jugo significa simplesmente opressão. Em Ésquilo, ocorre algo bem

diferente, pois o tragediógrafo, em todos os momentos em que as expressões nucleares

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26

portadoras da imagem do jugo aparecem, cria enunciados metafóricos que refletem

exatamente essa ação dos homens que atrelam animais domésticos em carros por meio do

instrumento denominado jugo. A relação entre o concreto e o abstrato é absoluta no discurso

esquiliano e interdependente, pois só há metáfora porque existe o instrumento, ou melhor, a

ação que é feita por meio do instrumento. Não é possível compreender bem a metáfora do

jugo metafórico, em Ésquilo, se o receptor do discurso desconhece o que é um jugo concreto,

ou melhor, um jugo no sentido literal. O uso do imaginário apresenta-se aqui de forma

concreta e como tal, para haver metáfora, é necessária uma compreensão dependente de uma

visualização do instrumento num âmbito estranho a esse próprio instrumento, ou melhor, em

um contexto em que esse instrumento não possa existir concretamente, sendo, contudo,

necessária a evocação de sua imagem para o entendimento do enunciado.

Desde tempos bem remotos, a atrelagem havia se tornado uma verdadeira , arte

dependente da técnica, para o homem helênico e, assim sendo, adquire um estatuto que

concede grande autoridade àquele que domina todos os passos que permitem atrelar animais

a um carro. Pode-se considerar uma prova da importância dessa técnica da atrelagem na

Antiguidade o fato de Sófocles citá-la entre os grandes feitos do homem no célebre primeiro

estásimo da tragédia Antígona (vv. 350-352), cantado pelos anciãos tebanos que compõem o

coro nessa tragédia:

(...) (...) e o cavalo de pescoço

peludo (ele) acalmou sob o jugo que rodeia a cerviz

e o incansável touro montanhês.

Já é possível perceber nessa verdadeira homenagem à , arte, do cavaleiro ou

boieiro os tipos de animais que recebem o jugo, mais comumente os do porte de cavalos e

bois, e ainda a região onde o jugo é ajustado, o , pescoço, e a própria curvatura do jugo

com suas amarras, especificada pelo adjetivo composto , que rodeia a cerviz.

Contudo, é preciso ir a Homero para que se veja com mais detalhes tanto a ação da

atrelagem quanto a própria feição do jugo na Antiguidade, pois, se nesse poeta, o jugo nunca

aparece metaforizado, o uso de sua imagem, num sentido puramente literal, é muito comum.

Para citar como exemplo, por sua riqueza de detalhes acerca dos elementos componentes do

carro grego, escolheu-se, primeiramente, a passagem da Ilíada em que o herói Eumelo, na

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corrida de carros em honra a Pátroclo, é derrubado de seu carro por intervenção divina de

Afrodite (23, vv. 391-394):

ela foi, rancorosa, até o filho de Admeto, e a deusa quebrou o jugo dos cavalos; os cavalos

dispersam-se para fora do caminho, e o timão rola sobre a terra;

e ele, do assento, caiu ao lado da roda,

Na passagem, percebe-se a importância do jugo, que, quando rompido, causa o

desastre, ao desorganizar o equilíbrio do carro. A relação entre o jugo e o controle que ele

impõe já é um exemplo de como, de maneira figurada, o jugo poderá significar, nos autores

gregos, uma opressão gerada por um controle ferrenho ou ainda uma ideia de liberdade

quando o contexto remete à ação de sua quebra. Além do próprio , jugo, outros

elementos entram na narrativa para gerar a representação do carro grego, o , timão, o

, assento (na verdade, a própria caixa onde o cavaleiro sentava, daí também o sentido

mais amplo de carro), e o , a roda, todos componentes importantes para gerar a

estabilidade do carro diante dos cavalos subjugados.

Quanto à atrelagem propriamente dita, há, também em Homero, uma amostragem de

sua ação, num exemplo rico em vocabulário técnico. O poeta canta, na Ilíada (24, vv. 266-

274), de forma meticulosa, a ação dos filhos de Príamo, que, por exigência do rei, atrelam as

mulas ao carro para que o mesmo parta para o resgate do corpo de Heitor:

levaram para fora a bela carroça de boas rodas puxada

por mulo, recém-construída, e ataram uma cesta sobre ela,

e dependuravam em um prego o jugo próprio para o mulo,

centralizado no buxo, que foi bem ajustado nas suas argolas;

e trouxeram para fora, com o jugo, a correia de nove côvados.

E o ajustaram bem (o jugo) sobre o timão bem trabalhado,

sobre a extremidade primeira, e lançavam o anel (do jugo) ao eixo( do timão),

e três vezes, em cada lado, prenderam sobre o umbigo, em seguida, então, de modo contínuo, prenderam toda volta, e contornaram a extremidade por baixo.

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Se no primeiro exemplo de Homero foi possível vislumbrar a importância do jugo,

durante o seu uso, exatamente pela falta que o mesmo faz ao ser danificado, nesse último

exemplo nota-se toda a ação preparatória que antecede sua utilização junto ao carro. A

narrativa, de forte teor descritivo, é uma imagem repleta de detalhes sobre o modo como o

jugo era preparado e sobre sua feição. Algo curioso é notar que o jugo só era colocado no

animal no momento da partida do carro. Quando os filhos de Príamo buscam o carro, o jugo

vem, juntamente com ele, fora do pescoço do animal, pendurado num , prego em

forma de gancho, que servia para esse fim; o próprio jugo possuía orifícios denominados

, argolas, que serviam para que fosse pendurado ao . Além do que já se

citou no exemplo anterior, outros instrumentos relacionados com o jugo ou ainda suas partes

são apresentados por Homero, formando uma verdadeira imagem do aparato utilizado na

atrelagem: o , correia do jugo (que o prende ao , timão), a ,

extremidade do timão, o , anel (do jugo), que ficava na parte saliente do jugo e servia

para fixá-lo ao timão, e, finalmente, o , eixo, pertencente ao timão (na verdade, a parte

do timão denominada cavilha, que adapta o mesmo ao jugo).

Esse detalhamento se mostra importante porque colocar o jugo em um animal e

retirá-lo são ações que, de modo figurado, dizem respeito, respectivamente, à opressão e à

libertação. O verbo , lançar, citado por Homero (v. 272) para indicar a união do jugo

ao timão do carro, também será utilizado por Ésquilo, mas de maneira figurada e em

composições que lhe dão um sentido completamente diferente, apesar da manutenção da

ideia de algo sendo preso.

A narrativa homérica permite, assim, reconstruir um vívido retrato do jugo na

Antiguidade, especificando sua utilização no âmbito do carro grego. O helenista Jean

Dumortier (1975, pp. 12 e 13) descreve esse jugo concreto e, assim fazendo, acrescenta um

novo dado importante que se liga ao caráter duplo do jugo:

... o jugo era a peça principal do arreamento dos animais de carga – bois ou cavalos. –

Ele era colocado sobre o garrote, e era unido à caixa do carro pelo timão. Uma cinta

de couro, que rodeava o ventre, e uma coleira de couro flexível, que comprimia o

pescoço do animal, submetia-lhe o jugo. O próprio jugo era duplo, sendo formado pela

junção de duas cangas, .

O conhecimento dessa duplicidade do jugo tornar-se-á muito útil para a compreensão

do jugo esquiliano, como se verá. Deve ficar claro, então, que, sendo a canga,a

parte do jugo que se ajusta ao pescoço do animal, um , jugo, inteiriço é formado por

duas , que se adaptam ao pescoço de dois animais ao mesmo tempo, bois ou cavalos.

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De posse da imagem desse jugo concreto, elogiado por Sófocles, quase esgotado por

Homero e definido por Dumortier, é possível compreender claramente não só os enunciados

metafóricos criados por Ésquilo como também as passagens em que esse mesmo jugo se

encontra especificado de maneira literal. Curiosamente, é uma das passagens mais alegóricas

e simbólicas de Persas que mostra um jugo de maneira literal, em meio a alguns dos aparatos

que o compunham juntamente ao carro grego. Tal passagem se dá quando a rainha Atossa

narra o seu sonho para o corifeu, antes ainda da entrada do mensageiro, que será o portador

da terrível notícia de que todo o exército persa sucumbiu diante dos atenienses. O sonho traz

a imagem de duas mulheres presas a um carro como se fossem cavalos ou bois (vv. 181-196):

Pareceu-me que duas mulheres ricamente vestidas,

uma adornada com um vestido persa

e a outra, por sua vez, com um dórico, chegaram diante de meus olhos,

muito superiores em grandeza às de hoje

e em beleza irrepreensível; as duas eram irmãs da mesma

família, mas uma habitava a pátria grega,

pois havia obtido por sorte essa terra, e a outra, a bárbara.

Ambas, como eu parecia ver, discutiam entre si

sobre uma questão; o meu filho, percebendo isso,

tentava contê-las e amansá-las, e subjuga as duas

aos carros e coloca correias em seus pescoços. Enquanto uma se orgulhava desse aparato

e possuía nas rédeas uma boca fácil de comandar,

a outra agitava-se; com as mãos dilacera os arreios

do assento, agarra tudo junto com força,

e, sem amarras, quebra o jugo ao meio.

Apesar de a simbologia ser absoluta na passagem, o que a forma não é o carro em si

mesmo, mas sim a presença estranha das duas mulheres atreladas a um carro, em que uma

delas claramente representa a Grécia, avessa à ideia de escravidão, e a outra, o Império Persa,

acostumado a essa mesma ideia, de acordo com o contexto literário. Excluindo-se esse

elemento estranho, o que se tem é, de fato, a presença, no sonho da rainha, de um carro

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grego, daí seu valor literal. Outros substantivos pertencentes à representação de um carro

grego aparecem, além dos citados na Ilíada, tais como as , correias, as ,

rédeas, e os , arreios. A dualidade que faz do jugo um instrumento que prende dois

animais está presente na imagem exatamente das duas mulheres simbólicas. O detalhismo da

ação de atrelar colocando o jugo sobre o , pescoço, do animal se encontra expresso não

apenas pela presença do instrumento denominado , jugo, mas também pelo

aparecimento do próprio verbo cognato ao substantivo, , subjugar, colocar o jugo.

O jugo, ao ser quebrado, faz com que aquele que o usa perca o controle diante daqueles que

se encontram subjugados, e isso ocorre tanto na Ilíada, no exemplo do herói Eumelo, como

na alegoria surrealista da rainha, mas, na tragédia Persas, a ideia fundamental é que o

elemento liberto do jugo escapa da opressão da escravidão. Tal concepção, presente mesmo

nesse jugo concreto do sonho da rainha, vai ser utilizada também nas metáforas em que o

jugo é evocado como imagem, pois há elementos concretos mesmo na forma de expressão

figurada. Como já foi mencionado anteriormente, nos exemplos metafóricos, não haverá a

presença do carro, e, logicamente, nem do jugo, mas sim a evocação da imagem que é

necessária, por sua ideia, à compreensão do enunciado. Contudo, mesmo nas metáforas, é

possível perceber, implicitamente, várias partes de seu aparato concreto, em meio às ações

que Ésquilo pretende representar por meio desse jugo simbólico. Apresentando-se como um

macro-ato de linguagem, a tragédia Persas pode ser entendida como a quebra de um jugo que

não chegou a se concretizar, e daí a importância dessa metáfora no contexto literário

construído por Ésquilo.

Expressão nuclear 1: , lançar o jugo em torno

O primeiro enunciado metafórico presente em Persas utiliza-se claramente da imagem

da ação do boieiro ou cavaleiro colocando o instrumento denominado jugo em torno do corpo

animal. Aqui já é possível perceber, implicitamente, a presença do , correia,

citado por Homero na Ilíada (24, v. 270) e desenvolvido por Dumortier. O coro, composto

por anciões persas, menciona o desejo de opressão pertencente a alguns bárbaros do exército

de Xerxes, no párodo da tragédia, exatamente com a ideia de um jugo se prendendo aos seus

inimigos (vv. 49 e 50):

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Os vizinhos do sagrado Tmolo prometem

lançar em torno da Grécia o jugo da escravidão

Não é apenas a palavra , jugo, que é a metáfora, nem a expressão que evoca a

ação de atrelar , lançar em torno o jugo, mas o enunciado inteiro, que

expressa uma ação que se poderia dizer absurda, se não fosse um contexto que a acolhe

harmoniosamente: a associação arrojada entre o ato de atrelar um animal e a ideia de

escravização territorial. A metáfora se faz exatamente por esse ato se dar, no contexto

literário, não sobre um animal, mas sobre toda uma porção territorial que é a Grécia. O

enunciado da ação do boieiro é tão inteiriço e extenso que chega a parecer que a palavra

estranha ao contexto é , Grécia. De fato, ao contexto do boieiro ou cavaleiro, essa

seria a palavra estranha, pois toma o lugar do animal subjugado; contudo, o contexto literário

fala mesmo é de escravização territorial (é isso que se quer significar) e não de atrelagem, daí

o fato de ser o único termo literal do enunciado, o que não o torna menos importante

para a expressão metafórica, uma vez que tal termo também compõe a metáfora, que só pode

existir quando todos esses elementos se encontram interligados de maneira lógica no

enunciado, ou seja, quando a imagem externa da ação do boieiro ou cavaleiro e a idéia de

opressão territorial trazida pelo termo , pertencente à imagem interna,se relacionam.

Uma paráfrase, sempre insatisfatória por sua perda de valor cognitivo e semântico, poderia

ser simplesmente, sem nenhuma evocação ao mundo do boieiro, escravizar a Grécia. A

pobreza da paráfrase comparada à riqueza da construção esquiliana é evidente. A ação

cotidiana do boieiro é evocada assim para expressar um dos temores mais trágicos de toda a

peça, a luta dos gregos contra uma possível escravidão que seria imposta pelos persas. Os

dois lados em oposição formam um embate que se firma como um temor para os gregos e um

desejo para os persas, desejo esse que causa a perdição dos últimos em vez de uma vitória.

Como se pode ver as possibilidades de expressão do trágico são variadas, uma vez que,

dependendo do foco, é possível perceber o trágico tanto para os gregos quanto para os persas.

Sobre esta passagem resta apenas dizer que sua inspiração parece se dever ao poeta

elegíaco Teógnis de Mégara, que apresenta a mesma associação do monte Tmolo com o jugo

exposta por Ésquilo, fazendo também amplo uso do modo como esse instrumento era

utilizado nos animais. Contudo, no discurso poético-político utilizado por Teógnis, a voz do

poema coloca-se no lugar do animal que recebe o jugo, enfatizando, contudo, que nunca

admitiria tal submissão a esse instrumento figurado de opressão (Elegia 1, 1023-1024):

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.28

jamais aos inimigos concederei o meu pescoço ao jugo

insuportável na cerviz, nem mesmo se o Tmolo estiver sobre minha cabeça.

Além da referida similaridade, Teógnis também apresenta em seu enunciado

metafórico o substantivo , pescoço, que será muito importante para a formação da

próxima metáfora esquiliana a ser comentada.

Expressão nuclear 2: , após lançar o jugo em torno do pescoço

A mesma ação do boieiro ou cavaleiro se amplia no próximo enunciado metafórico,

uma vez que o tragediógrafo inclui na frase, o substantivo , pescoço, ou seja, a própria

parte do animal em que o jugo é ajustado. A imagem do arreamento de bois e cavalos torna-

se assim ainda mais evidente e concreta, o que de forma alguma torna o enunciado literal,

pelo contrário, isso faz com que a ação metafórica também se apresente mais complexa,

tendo em vista a associação da referida ação com a construção da ponte de botes feita por

Xerxes. É ainda pela boca dos anciãos persas, no Párodo da tragédia, que o enunciado

metafórico se constrói (vv. 71 e 72):

após lançar o jugo, uma passagem de muitos pregos, em torno do pescoço do mar

É possível perceber pelo enunciado metafórico que o termo mar está no lugar do

animal no qual o boieiro ou cavaleiro coloca o jugo em torno do pescoço. A ideia central

agora passa da generalizante oposição entre gregos e persas para uma posição mais

particular, que coloca Xerxes como figura central. Na verdade, o que se tem de forma direta

no contexto é a oposição recíproca entre Xerxes e as forças divinas, uma vez que o mar é

entendido no contexto da tragédia, como se verá nos próximos exemplos, como um ambiente

divino, pertencente ao deus Posêidon. Nessa ação de oprimir o mar, o ,

passagem de muitos pregos (a ponte de botes construída por Xerxes para transpor o

Helesponto), representa o jugo que é colocado sobre o pescoço do animal. A riqueza da

metáfora formada é enfatizada pelo fato de o Helesponto, por ser um estreito, assemelhar-se

geograficamente a um pescoço. Uma paráfrase literal, com perda semântica, já que a

28 DIEHL, E; YOUNG, N. Theognis. 2ª ed. Leipzig: Teubner, 1971, p. 1-83.

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metáfora é insubstituível, seria: construindo uma ponte, uma passagem de muitos pregos,

sobre o estreito do mar. Nesse enunciado literal, retirou-se tudo que estivesse no âmbito do

arreamento de bois e cavalos, e, apesar de ser tal enunciado perfeitamente lógico, percebe-se

o vazio reinante em comparação à força do enunciado metafórico, cuja inserção da imagem

do ato de atrelar por meio do jugo produz, de maneira muito mais forte, a oposição própria da

tragédia. A grande , excesso, de Xerxes em Persas é exatamente a construção dessa

ponte, que acumula oposições que vão dos gregos às forças divinas, e daí a importância da

metáfora que visa a enfatizar um discurso trágico repleto de oposições. Veja-se que o literal

construindo uma ponte sobre o estreito do mar causaria muito menos força de oposição e

impacto do que a contrução com a expressão nuclear externa lançando o jugo em torno do

pescoço.

Nos dois exemplos metafóricos citados até aqui, algo que reforça a veracidade do

enunciado se mostrar de modo figurado é o fato de o próprio contexto, se percebido de

maneira mais ampla, evidenciar que não são boieiros ou cavaleiros que estão fazendo uso do

jugo, uma vez que, na verdade, um jugo concreto não existe no contexto. O que aparece, de

fato, são ações metafóricas que geram oposição, ao serem expressas pela imagem evocada do

jugo, ações essas que pertencem aos guerreiros persas, no primeiro exemplo, e ao seu rei,

Xerxes, no segundo exemplo. A relação entre o sujeito e sua ação se mostra muito importante

para o entendimento das variantes do emprego do jugo metafórico. No caso das duas ações

citadas, que enfatizam o desejo de escravizar um povo por meio da evocação do processo de

atrelagem, a ação opositora é da alçada dos persas, já que são eles que têm a intenção de

escravizar os gregos.

Expressão nuclear 3: , o jugo foi desatado

A evocação da imagem de um jugo sendo desatado é expressa pelo coro, no primeiro

estásimo de Persas, num canto que enfatiza, assim, a vitória grega contra o exército dos

bárbaros. De fato, esse estásimo se dá após o episódio em que o mensageiro persa relata tudo

o que ocorrera em Salamina, fazendo com que a dura verdade se alastre para o conhecimento

da rainha e dos anciãos, componentes do coro. A frase inteira cantada pelo coro (vv. 592-

594), com o enunciado metafórico em questão (v. 594), se mostra paradoxal em seus

intentos, pois, se a peça quer louvar a vitória grega, o faz por meio exatamente da trágica

situação de lamento em que se encontram os persas, agora conhecedores dos fatos:

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(...) (...)pois liberto encontra-se livre o povo para falar,

já que o jugo do poder foi desatado.

Em meio a esse discurso de liberdade, é possível vislumbrar no enunciado metafórico

do verso 594 a imagem de uma ação inversa àquela que apareceu nos exemplos anteriores. A

imagem evocada é o término do processo de atrelagem, e, por isso mesmo, ao se evocar

exatamente o ato final da atrelagem, o discurso literário se reveste de um significado de

liberdade. A desconstrução das ações anteriores é possibilitada pela própria narrativa, que

passa de uma menção à jactância de Xerxes e de seu exército, citada no párodo, para uma

realidade em que os mesmos se encontram derrotados, daí a imagem de alguém retirando o

jugo do pescoço de um animal. O verbo , desatar, que aparece duas vezes na passagem,

remete, ligado ao jugo, à ideia da presença de , correias, e , arreios, os

instrumentos que servem para prender o jugo ao animal. Tais palavras aparecem

mencionadas no sonho da rainha, na apresentação do carro concreto, e, apesar de não serem

citadas, na expressão metafórica do jugo, nem aqui e nem nos exemplos anteriores, por não

serem, na verdade, necessárias ao que o contexto literário quer mostrar, elas pairam por cima

do enunciado, uma vez que as ações de , lançar em torno,e , desatar,

dependem dos referidos instrumentos.

Mais uma vez, percebe-se, na tentativa de se apresentar uma paráfrase literal, grande

dano semântico, que prejudica a própria ação trágica em curso. Retirando o universo do

boieiro ou cavaleiro, poder-se-ia ter algo como já que a opressão do poder foi perdida. A

paráfrase, por si só, evidencia o quanto as ações simbólicas referentes ao jugo são

importantes para a expressão do discurso trágico de Ésquilo. Perder as imagens inerentes ao

jugo é perder todo valor simbólico que ele traz à peça.

Expressão nuclear 4: , colocou um jugo

Como ocorrera de forma literal no sonho da rainha, também o verbo cognato ao

substantivo , jugo, se mostra presente nessa expressão nuclear, só que de forma

metafórica. Trata-se do verbo , colocar o jugo. A 3ª pessoa do singular deixa claro

que o sujeito da frase é Xerxes, numa fala emitida pela rainha para o fantasma de seu falecido

esposo, Dario, que se dá no terceiro episódio, quando esse último lhe pergunta, de forma

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perplexa, como o filho conseguiu fazer sua investida à parte ocidental da Grécia. Novamente,

a malfadada ponte do jovem rei se coloca como o centro das atenções para justificar uma

atitude impensada e repleta de excesso que só poderia gerar uma oposição divina ao seu

idealizador (v. 722-724):

Rainha – Por meios engenhosos, colocou um jugo no estreito de Hele, para ter a passagem.

Dario – E realizou isto, de modo a fechar o grande Bósforo?

Rainha – Assim foi; de alguma maneira, uma entre as divindades atracou-se ao seu espírito.

O enunciado metafórico encontra-se no verso 722, mas se resolveu citar também os

dois versos seguintes por sua utilidade para explicação da metáfora. A gravidade do feito é

visível na surpresa presente na fala de Dario, e, na fala final da rainha (v.724), é especificado

o que levou Xerxes à construção da ponte, ou seja, a atuação divina opositiva que vai

ocasionar tal feito, que antecede a própria oposição divina causadora do castigo. As

oposições assim se multiplicam. O contexto literário deixa claro não só aqui, mas em vários

outros momentos, que, antes mesmo da feitura da ponte, uma força divina maligna havia

dominado Xerxes, que, por causa dela, tem o ímpeto de construir uma engenhosa, e

desrespeitosa para os deuses, ponte de botes, que por si só se coloca como uma oposição ao

divino. A questão indissolúvel que fica no tocante a essa primeira ação divina é se Xerxes,

por já ser um homem dado ao excesso, recebeu como castigo essa divindade maléfica, ou

tornou-se um homem em excesso apenas após a divindade possuí-lo. Deixando de lado essa

questão, nisso tudo, o importante é a percepção de que por duas vezes o divino age contra

Xerxes, primeiro insuflando-lhe uma loucura que é a própria presença da divindade maléfica

e, num segundo momento, castigando-o, na figura do deus Posêidon.

Quanto ao enunciado metafórico propriamente dito, ele se forma pela presença da

expressão nuclear ,sem elementos em sua composição. Todos os outros termos que

compõem a metáfora encontram-se em seu sentido literal, tornando a evocação da imagem

menos rica do que nos dois exemplos precedentes, o que, de forma alguma, torna o

enunciado menos expressivo para o surgimento do caráter trágico inerente à oposição que

está em jogo no contexto.

Por fim, é interessante notar que o termo, estreito, que aparece no enunciado

metafórico estudado aqui, seria exatamente a palavra literal que poderia ser utilizada para

substituir o termo , pescoço, que aparece na expressão nuclear 2.

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Expressão nuclear 5: , que subjuga as duas

Ésquilo faz uso dos mais variados termos cognatos para evocar o universo em que se

encontra inserido o jugo grego. Após a utilização do próprio substantivo e do verbo

, dessa vez, é o adjetivo que aparece em um enunciado

metafórico, numa fala da rainha que dá continuidade ao terceiro episódio (v. 736):

Felizmente, chegou à ponte que subjuga as duas terras.

Novamente, a ação do arreamento produz uma metáfora bem complexa, por causa,

precisamente, da presença do numeral , que traz a idéia da duplicidade do jugo. Sendo

formado por duas partes, o jugo pode metaforicamente unir as duas terras, que estariam

tomando o lugar dos animais atrelados, no universo do arreamento. A ponte é novamente

apresentada como um jugo, mas, dessa vez, o que seria o pescoço do animal não é o estreito

do Helesponto e sim as duas porções de terra, o que deixa mais evidente a imagem das duas

, cangas, que eram ajustadas ao pescoço dos animais, prendendo-os. Apenas no

sonho da rainha, em que aparece um jugo literal atrelado a duas moças simbólicas, é possível

perceber, como ocorre aqui metaforicamente, a presença tão clara das duas . Há

certa ironia no enunciado, que se forma pela desconstrução do símbolo de força e arrogância,

que é a ponte de Xerxes. Essa mesma ponte, audaciosa passagem para conquista territorial,

torna-se o único caminho de salvação para o rei. A situação formada pelo enunciado

metafórico mostra-se estritamente trágica, por meio da ênfase que a evocação da imagem

externa do jugo traz ao contexto literário.

3.2. O jugo associado ao casamento

O que se verá agora é a evocação do jugo para criar metáforas que estabelecem no

contexto literário a ideia de união conjugal. Na verdade, trata-se de um tipo de união

conjugal com suas características próprias, surgindo daí a ideia de dois seres unidos, em

felicidade, que se sustentam carregando, para se manter a linguagem figurada, um mesmo

fardo. A ênfase no trágico está no fato de que, em Persas, as mulheres bárbaras terão que

carregar sozinhas o seu jugo. O gênero em questão é uma tragédia, de modo que o que se

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poderia chamar de um bom jugo, por trazer ideias relacionadas com a felicidade conjugal,

torna-se a expressão do sofrimento que é imposto à mulher que tem seu casamento desfeito

por forças externas. Apesar de trazer ao contexto a árdua labuta dividida entre dois

indivíduos, o jugo do casamento traz ideias referentes à felicidade conjugal, que,

paradoxalmente, pela ação que se desenvolve em cena, criam uma situação que chega a ser

mais trágica do que a do jugo que simboliza a opressão. De fato, enquanto a escravidão dos

gregos é algo que não se concretiza, a derrota dos persas e, consequentemente, a morte de

jovens homens que deixam suas mulheres sem alento são fatos que, aos poucos, vão se

revelando aos personagens em cena. Isso mostra, mais uma vez, a necessidade de todos os

personagens serem persas nessa obra, uma vez que não haveria tragédia se Ésquilo colocasse

em cena gregos constatando tais fatos em relação aos persas. O sujeito trágico é fundamental,

de modo que é pela boca dos bárbaros que o trágico, em todos os seus aspectos, se mostra

expresso em Persas.

Expressão nuclear 1: , é deixada sozinha ao jugo

A imagem do jugo transfere-se, então, para um contexto de união conjugal, adquirindo,

como metáfora, o significado de um casamento que enfatiza, ao, mesmo tempo, a labuta, que

passa a existir quando dois seres se unem para se dar, mutuamente, o sustento e os momentos

de felicidade. De um modo trágico, Ésquilo enfatiza a perda dessa união, nesse primeiro

momento, unicamente pelo afastamento do marido persa devido a sua partida para a Grécia.

Se o próprio jugo associado à ideia de casamento já pode, como ocorre no texto esquiliano,

levantar significados de dor inerentes a uma vida árdua em conjunto, a presença desse jugo

em que uma das partes está ausente se mostra mais trágica ainda. Percebe-se a necessidade de

labuta das mulheres persas devido à falta de amparo, situação que fica destinada a elas

quando se veem privadas de seus maridos, ocupados em sua luta contra os gregos. É o coro

de anciãos persas, desconhecedor ainda do verdadeiro destino legado ao exército de seu

povo, que canta tal situação, ao final do párodo (vv. 135-139):

Persas de delicada dor, cada uma,

com saudade do amor marital

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em relação ao impetuoso esposo hábil na lança

que foi enviado para longe,

é deixada sozinha com o jugo.

A metáfora se firma quando a ação , é deixada sozinha com o jugo,

que evoca a ideia do animal que porta o jugo, surge na situação trágica de um casamento

separado por causa da guerra29

. O jugo representa, nesse contexto, o casamento, uma união

para construção de uma vida em comum, mas com toda labuta que é necessária a isso. A

ideia de dois indivíduos unidos pelos laços do casamento permite a evocação de um jugo

tradicional, com duas , cangas, que os une. Diferentemente do que ocorre no jugo

que representa a opressão da escravidão, o jugo que representa o casamento se apresenta

como algo bom, símbolo de uma união necessária e feliz. Só um discurso do tipo trágico

pode deformá-lo para expressar um mal, e é por isso que a metáfora trágica só funciona

dentro de um enunciado que possa criar um contexto trágico. Há a necessidade do jugo

aparecer juntamente com o verbo , deixar, abandonar, e o elemento , sozinho,

formando a ação que determina o caráter trágico de um contexto em que as mulheres persas

são deixadas sozinhas. Torna-se possível perceber aqui a evocação de uma vazia, em

que a percepção de um animal deixado sozinho no jugo, com todos os problemas que

surgiriam desse fato, serve, no plano humano, para enfatizar exatamente a idéia trágica de

falta de amparo e de solidão destinadas às mulheres persas.

Nesse momento, o coro apenas menciona o afastamento gerado pela ida dos homens

para a guerra. A consciência de que, na verdade, ocorreu algo muito pior, a morte de todos

eles pelas mãos dos gregos, só é tomada posteriormente, e isso modifica a situação em que as

mulheres persas se encontram, levando-se em conta o próximo exemplo em que o jugo se

associa à união conjugal.

Expressão nuclear 2: , jugo recente

A dor da saudade pela partida, expressa no exemplo anterior, pelo elemento ,que

está na composição de , de delicada dor, dá lugar, na próxima passagem, ao

, gemido, pranto, que também aparece numa composição com o adjetivo ,

formando o composto , de delicado gemido. Como se pode perceber, essa nova

29 Vale ressaltar que o termo do português cônjuge traz o radical do termo jugo em sua composição, o que traz a

ideia dos laços inquebráveis do casamento. Porém, tal termo, normalmente, com o prefixo de união com- nada traz

de trágico, ao contrário da composição , que, com o elemento , único, enfatiza uma ideia de solidão

e falta de amparo.

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composição, expressa numa constatação do coro no 1º estásimo (vv. 541-5), só se mostra

possível depois que os anciãos do coro se tornam cônscios de que as mulheres persas

perderam seus maridos da forma mais brutal, uma vez que os jovens homens que compõem o

exército de Xerxes foram dizimados pelos gregos em Salamina:

As persas de delicado gemido, saudosas

para verem a união conjugal com seus homens, os leitos de camas com finas cobertas,

o prazer de sua feminina juventude, afastadas,

choram com os mais insaciáveis gemidos.

Os apostos formados nos versos 543 e 544 definem o que é essa , jugo

recente, citado pelas mulheres persas, o que permite mostrar como se afigura, de fato, esse

jugo bom, que se poderia denominar jugo do casamento e que, por isso mesmo, se opõe ao

mau jugo, visto anteriormente, com sua ideia de opressão; a presença dos termos ,

leitos, e , prazer, com suas respectivas qualificações, criam um contexto mundano

feliz, com o primeiro termo remetendo à própria ideia do quarto nupcial e o segundo ao

prazer inerente ao casamento. O trágico advém do fato constatado de que esses momentos de

alegria se perderam com a morte do marido. A , jugo recente, como o próprio

nome indica, faz menção a um casamento recente, tendo em vista que os homens persas que

foram mortos em Salamina eram indivíduos jovens, que, por isso, se casaram recentemente.

O verbo , estar com saudades, faz menção exatamente à falta dolorosa que esse

mundo formado por um casamento de jovens faz para as mulheres persas. Percebe-se nessa

situação, claramente, a ordem objetiva do casamento sendo abalada por uma oposição

trágica, pois o jugo recente é abalado pela morte do marido, advindo daí uma saudade que se

perpetuará. O desejo das jovens mulheres, seu objetivo, era ter novamente consigo o seu

cônjuge, algo impossível devido à oposição trágica que causou a morte deste. Por meio do

discurso trágico esquiliano, estabelece-se a impossibilidade da volta desse jugo matrimonial

por causa da morte violenta do homem que o compunha juntamente com a mulher.

Por fim, é interessante comparar os significados da presença do jugo nessas duas

passagens em que o mesmo aparece num sentido matrimonial. Percebe-se que, no primeiro

exemplo, o jugo se associa de forma mais forte à ideia de labuta, enquanto, no segundo

exemplo, faz menção mais claramente à ideia de casamento e de felicidade advinda de tal

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união. Uma tentativa de parafrasear o primeiro exemplo causaria sério dano ao significado do

enunciado, pois, ao se dizer que cada uma das persas é privada do casamento ao se ver só,

perde-se a ideia de labuta que o termo evoca e, igualmente, seria inapropriado usar a

paráfrase cada uma das persas é deixada sozinha na labuta, por se perder toda a ideia

relacionada com o casamento. No segundo exemplo, apesar de a substituição sempre gerar

dano ao significado do enunciado, a perda semântica é mais amena numa paráfrase do tipo

saudosas para verem o casamento recente. Isso ocorre porque , de fato, possui no

contexto o significado de um casamento que se deu há bem pouco tempo, com todos os

momentos de felicidade que uma relação entre dois belos jovens poderia produzir. Perde-se,

contudo, na paráfrase, inteiramente, a rica imagem que evoca o mundo da atrelagem.

O que diferencia, de fato, os dois exemplos citados do jugo que significa casamento é,

na verdade, o modo como Ésquilo transmite em cada passagem a solidão e suas

consequências, seja pela falta dos maridos que foram para guerra, em ,

seja, de uma maneira mais trágica ainda, pela constatação da morte deles, em . As

duas passagens possuem semelhanças acentuadas, no tocante à forma do enunciado. O traço

feminino das mulheres, em ambos os exemplos, é definido pela presença do elemento

, delicado, que aparece em composição com termos que lhe acrescentam um caráter

trágico. As semelhanças entre as passagens prosseguem tendo em vista que o primeiro

exemplo traz o substantivo , saudade, e o segundo apresenta o particípio do verbo que

lhe é cognato, , saudosas. Tais elementos se unem, em suas respectivas passagens,

para expressar o trágico da maneira mais eficiente possível, tendo em vista o desenrolar da

situação trágica em cada um dos momentos em que o jugo do matrimônio aparece.

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4. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS INSTITUCIONAIS

Mostra-se elevado na tragédia grega em geral o número de expressões que,

metaforicamente, dizem respeito ao mundo das instituições gregas. A tragédia grega, com

seu discurso inserido na ateniense, apresenta muitos termos extraídos de campos

semânticos de tribunais e de outros estabelecimentos políticos que tinham a função de

organizar a cidade. Todo um vocabulário técnico formado pelo desenvolvimento do direito

na muitas vezes determina as oposições trágicas das peças que se desenrolavam aos

olhos do público ateniense, que reconhecia, na sua interação com o teatro, parcelas das

instituições que regiam suas próprias vidas no seio da .

A , justiça, se faz presente, na obra de Ésquilo, por mecanismos jurídicos advindos

de um direito que se encontrava em pleno desenvolvimento na Atenas do século V a.C. A

tragédia esquiliana, da mesma maneira que as de Sófocles e Eurípides, apresenta, contudo,

mais questões acerca da justiça do que soluções, uma vez que o seu mote é a problemática do

ser e do agir do herói em oposição, muitas vezes, às regras da ,que são evocadas para

preencher o enredo trágico. Os problemas ao redor do herói trágico determinam o seu modo

de agir, levantando questões que também poderiam assolar a mente de muitos cidadãos

atenienses, já que eles viviam num mundo politizado em constante transformação que exigia,

igualmente, uma adaptação a certas normas jurídicas e, por vezes, uma oposição a elas,

dependendo das situações que lhes apareciam. Os mecanismos jurídicos, definidos por vários

termos cunhados devido a uma necessidade constante de organização da , construíam a

lei que determinava, por meios das instituições gregas, os atos dos cidadãos atenienses.

Levantando questões concernentes ao surgimento do fenômeno tragédia na Atenas do século

V a.C. e à própria feição do que vem a ser o trágico, Vernant (1999, p. 2 e 3) enfatiza o

caráter de elaboração de um vocabulário técnico do direito na Grécia antiga, ao citar os

estudos estruturais empreendidos por Louis Gernet sobre o vocabulário próprio da tragédia

grega:

A tragédia grega aparece como um momento histórico delimitado e datado com muita

precisão. Vêmo-la nascer em Atenas, aí florescer e degenerar quase no espaço de um

século. Por quê? Não basta notar que o trágico traduz uma consciência dilacerada, o

sentimento das contradições que dividem o homem contra si mesmo; é preciso

procurar descobrir em que plano se situam, na Grécia, as oposições trágicas, qual é o

seu conteúdo, em que condições vieram à luz.

Esse foi o trabalho empreendido por Louis Gernet através de uma análise do

vocabulário e das estruturas de cada obra trágica. Ele pôde mostrar assim que a

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verdadeira matéria da tragédia é o pensamento social próprio da cidade,

especialmente o pensamento jurídico em pleno trabalho de elaboração.

Tal vocabulário, proveniente de um pensamento jurídico, se encontrava na vida

cotidiana dos gregos, e, ao ser evocado no contexto literário da tragédia grega, criava as

oposições trágicas nela presentes. Isso se torna possível graças ao fato de as instituições

jurídicas ainda não possuírem um caráter devidamente acabado, no século V a.C. O próprio

tribunal, sendo nesse tempo ainda uma criação recente, apresenta muito mais contradições do

que propriamente soluções para as questões que emanavam da grega, e a tragédia

grega, com seu discurso conflitante, foi a forma literária que melhor expressou essa

contradição. A mola do discurso trágico em sua relação com a foi definida por Vernant,

na continuação de sua análise, nesses termos de conflito (1999, p. 3):

O que a tragédia mostra é uma em luta contra outra , um direito que não está fixado, que se desloca e se transforma em seu contrário.

Em meio a essa oposição de valores, na complementação de seu pensamento, o

helenista francês mostra exatamente qual é papel do herói trágico, que, estando não num

mundo jurídico regido pela ateniense, mas, na maioria das vezes, num mundo mítico

ou num mundo repleto de elementos sobrenaturais, deixa-se mostrar em sua ação de opor-se

às situações que se apresentam a sua frente (1999, p. 3):

A tragédia, bem entendido, é algo muito diferente de um debate jurídico. Toma como

objeto o homem que, em si próprio, vive esse debate, que é coagido a fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos onde jamais

algo é estável e unívoco.

Toda ideia de tribunal presente na tragédia grega mostra-se, assim, metafórica, uma

vez que o mundo de deuses, heróis e reis da tragédia grega não comporta um tribunal

ateniense literal. Porém, as metáforas construídas pelo vocabulário jurídico criam o diálogo

entre o mundo ateniense e o contexto literário da tragédia, ressaltando os conflitos presentes

no pensamento jurídico entre os gregos, que é transferido do real ateniense para o mundo da

tragédia grega, a fim de mostrar suas imprecisões e contradições de forma mimética, no

próprio enredo trágico. A imprecisão que está presente na própria permite que, em seu

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campo semântico, haja uma oscilação entre ordem jurídica e punição ou condenação30

,

termos esses últimos que trazem comumente ideias de violência, imposição e força bruta,

oposições essas tão recorrentes na tragédia grega.

Por fim, vale assinalar que o fato de as cidades gregas se constituírem de verdadeiros

estados autônomos contribui para a fragmentação da , que adquire um bom número de

variações, tendo em vista o contexto em que a mesma se desenvolve. Nem sempre são as leis

atenienses que são evocadas, por exemplo, para dar conta do caráter trágico que se

desenvolve em cena, como poderá ser notado na primeira imagem a esse respeito da tragédia

Persas, que será agora analisada.

4.1. O Éforo

O primeiro enunciado metafórico presente em Persas não evoca um magistrado

pertencente à cidade de Atenas. O que se tem é uma ação, intraduzível para o português, que

insere no discurso trágico esquiliano o âmbito de um tipo de governo espartano. Trata-se do

éforo, provavelmente o mais poderoso magistrado espartano, cuja função, que pode ser

depreendida pelo próprio significado etimológico da palavra31

, era cuidar da cidade e

controlá-la. No período clássico, Esparta possuía a peculiar instituição de uma realeza dupla,

cujos reis eram advindos de duas famílias reais, a dos Agíadas e a dos Euripôntidas (cada

uma fornecia um rei à cidade). Os dois reis eram auxiliados por um Conselho de Anciãos,

que devia ser escolhido entre os cidadãos com mais de sessenta anos de idade. Com o passar

do tempo, acrescentam-se a essa forma de governo os cinco funcionários denominados

éforos. Com seu colégio de cinco membros, os éforos eram eleitos anualmente, ao que tudo

indica, por sorteio, ficando assim encarregados de supervisionar os próprios indivíduos na

30 Na tragédia Prometeu Acorrentado de Ésquilo, há a presença no prólogo (v. 9) do termo no sentido de

condenação, castigo: , é preciso aos deuses conceder a ele o castigo pelo

erro. AESCHYLUS. Suppliant Maidens, Persians, Prometheus, Seven against Thebes (texto grego editado por

Jeffrey Henderson e traduzido para o inglês por Herbert Weir Smyth). Loeb Classical Library, 2001. 31 O verbo , cognato a , é um termo composto formado pela preposição associada ao radical

do verbo Como significado etimológico tem-se, literalmente, o sentido próximo de vigiar sobre,

supervisionar tudo. Importante ainda para o entendimento do verbo é o fato de o mesmo possuir o sufixo –, formador de verbos denominativos, ou seja, tipos de verbos que denominam a ação de um agente específico.

Horta esclarece inclusive que os verbos denominativos formam-se dos substantivos derivados do sufixo de agente

– (cf. , cavalgar, advindo de , cavaleiro; , matar, advindo de , assassino;

, reinar, advindo de , rei). HORTA, Guida N. B. P. Os gregos e seu idioma. Rio de Janeiro:

Editora J. Di Giorgio, 1983. Tomo II, p. 347.

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função de rei no bojo da aristocracia espartana. Harvey (1998, p. 211) enumera de maneira

sucinta as funções desse colegiado:

Os éforos controlavam a administração pública e tinham certas funções judiciais;

podiam até condenar os reis a multas ou a prisão, podiam destituir de seus comandos

os generais e negociavam tratados com Estados estrangeiros.

Qualquer cidadão espartano tinha o direito de candidatar-se para exercer a função de

éforo, compondo, de certa maneira, uma ala democrática presente na constituição espartana,

tão comumente reconhecida por seu caráter aristocrático.

Expressão nuclear 1: , escolheu para ser éforo, escolheu para

supevisionar como éforo

O uso do verbo , ser éforo, supervisionar como éforo, determina a presença

dessa imagem estatal no contexto literário idealizado por Ésquilo, quando o coro composto

por anciãos persas, no párodo da tragédia, se expressa metaforicamente por meio dessa ação

própria do governo espartano. O enunciado metafórico formado visa a fazer a relação entre a

competência dos anciãos persas em sua responsabilidade para com Susa, capital do Império

Persa, e os poderes dados aos éforos na cidade de Esparta (vv. 1 – 7):

Estes são conhecidos como os fiéis dos persas

que partiram para a terra da Hélade,

e os guardiões das moradas opulentas e plenas de ouro, os quais, por ancestralidade,

o próprio divino rei Xerxes,

nascido de Dario,

escolheu para serem éforos de seu domínio.

No contexto literário apresentado aqui, os anciãos dizem que seu próprio rei fizera a

ação de escolhê-los para cuidar de sua cidade, e para isso se utilizam de uma imagem externa

evocada pela expressão nuclear , que, literalmente, constitui uma ação que não é

própria de ser feita por um rei persa e nem de recair sobre indivíduos persas. Como essa ação

é expressa pelo verbo , o exercício do magistrado espartano comentado é lançado

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metaforicamente sobre os anciãos persas, componentes do coro, significando algo diferente

daquilo que ocorria, na realidade, na cidade de Esparta. Algumas qualificações enfáticas que

colocam os anciãos como , guardiões, do reino de Xerxes e como , fiéis, além

de uma autoridade gerada pela experiência no uso da expressão , por

ancestralidade, clarificam o porquê da utilização do verbo . Os anciãos persas se

assemelham aos éforos espartanos exatamente porque possuem todas essas qualidades. Nessa

relação entre duas ideias, a ação de ser éforo simboliza o poder absoluto dos anciãos persas

escolhidos por Xerxes para cuidarem da cidade, na sua ausência.

Deve-se mencionar ainda que o verbo , escolher, funciona como um termo

harmonizador de imagens, uma vez que diz respeito tanto à imagem externa (os éforos eram

realmente escolhidos em Esparta) quanto à interna (o rei Xerxes realmente fez, no contexto

literário, a ação de escolher homens de sua confiança).

Curiosamente, esse primeiro enunciado metafórico de Persas não pode ser considerado

uma metáfora trágica, já que não exprime nenhuma oposição de gregos contra persas ou de

persas contra gregos. Na verdade, o que se tem aqui nada mais é do que uma ênfase do

cuidado e da dedicação dos anciãos para com o reino de seu soberano. Contudo, essa

primeira metáfora foi citada porque, além do seu interesse, forma um par com outra, que

provém da mesma imagem e possui valor trágico, e isso vai possibilitar que se faça uma

distinção entre os dois tipos de metáfora. Falar-se-á dela nesse momento, especificando as

diferenças entre os enunciados metafóricos trágicos e os não trágicos.

Expressão nuclear 2: , éforos

O coro de anciãos persas, ainda no párodo, utiliza como expressão nuclear o próprio

termo , éforos, para construir um enunciado metafórico que faz menção aos quatro

mais importantes chefes do exército de Xerxes (vv. 21-25):

Tal como Amistres e Artafrenes, também Megabates e Astaspes,

comandantes dos persas,

reis submetidos ao grande rei,

precipitam-se, éforos do grande exército, (...)

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Amistres, Artafrenes, Megabates e Astapes são os primeiros nomes citados em um

extenso catálogo de chefes bárbaros e povos. O poder absoluto desses comandantes sobre um

poderoso exército é enfatizado metaforicamente pela expressão nuclear , éforos, que

concede ao enunciado o elemento externo formador da metáfora. Todo o restante do

enunciado constrói a imagem interna, com vários determinantes que justificam a presença

figurada do termo éforos. Não há, na verdade, nenhum éforo espartano no enredo da tragédia,

mas uma série de qualificações esclarece o seu uso na passagem. O genitivo

, do grande exército, enfatiza o campo de atuação desses éforos virtuais,

que ainda são , comandantes dos persas, e

, reis submetidos ao grande rei. Dessa relação entre o

figurado e o real mimético da construção dos homens componentes do exército persa, forma-

se a metáfora.

Nessa passagem, a metáfora, que é utilizada para fazer menção a um mundo em

guerra, traz ao canto dos anciãos uma ideia de violência, excesso e austeridade, mais do que

propriamente uma ideia de bom senso e ordem, como ocorrera no enunciado do verbo

visto anteriormente. Os chefes são citados em sua plena marcha para dominar pela

força e, assim, determinam uma oposição trágica que, partindo dos persas, tem como alvo os

gregos. Forma-se o embate no discurso trágico esquiliano por meio da força do enunciado

metafórico.

No uso desses termos extraídos do mundo político dos éforos espartanos, pode-se

perceber, então, tanto a ideia de ordem e organização inerente à presença de um governo,

como se dá no início da peça, quanto a ideia de austeridade, poder e desejo de subjugação,

que pode vir a desembocar nas oposições trágicas da violência que tanto estão presentes no

mundo da tragédia grega, ocorrência que se dá precisamente na passagem entre os versos 21

e 25.

É evidente que os dois enunciados metafóricos citados, como todos os que se

encontram em Persas, são construtores do discurso trágico esquiliano; contudo, cada

contexto faz com que a evocação dessa mesma imagem possua uma função bem diferenciada

em cada caso. Os primeiros enunciados metafóricos citados nesse capítulo são bem claros

quanto a isso. Na primeira passagem, como já se notou, a utilização da imagem dos éforos

produzida pelo verbo cria uma metáfora que não forma ideia de embate. A

evocação da imagem determina algo bom, uma bela qualidade dos anciãos. Na segunda

ocorrência da imagem dos éforos, a metáfora formada por meio da designação ,

fazendo menção a chefes cujo intuito é dominar Atenas com seu numeroso exército, enfatiza

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e produz no discurso uma das oposições trágicas mais recorrentes em Persas: o embate

recíproco entre gregos e persas, a mola genérica que, de certa forma, faz com que surjam

todas as outras oposições trágicas.

4.2. A prestação de contas

Como a evocação da instituição denominada éforo é uma imagem pertencente ao

governo espartano, a primeira imagem política que se direciona propriamente para o governo

ateniense, em Persas, diz respeito à prestação de contas a que os cidadãos que

desempenhavam a função de magistrados na democracia de Atenas eram submetidos quando

deixavam a magistratura. Trata-se das , exame das contas, que colocavam em análise

a conduta dos cidadãos. Cabia aos , auditores das contas, e aos ,

assistentes, o papel de fazer tal exame. Se ambos dizem respeito à função central do

processo, que é a própria verificação das contas, dois termos cognatos servem para indicar as

duas partes contrastantes do mesmo: o , juiz de contas, auditor ou inspetor da

prestação de contas, e o , prestador de contas32

. O define a autoridade

máxima do processo, sendo aquele que o inicia e que pune ou inocenta o indivíduo que se

encontra na condição de .

A oposição que existe entre as funções políticas do e do já permite

antever como tais figuras, quando utilizadas num sentido figurado, podem expressar

determinadas oposições trágicas. A necessidade de se prestar contas surge como um dever

moral que coloca em prova a honestidade do indivíduo que se encontra na condição de

, um subordinado aos agentes avaliadores de sua conduta.

Em Heródoto (III, 80, 3), num enunciado metafórico que possui muita semelhança com

o uso figurado que se faz hoje em dia da prestação de contas, o caráter negativo de não se

prestar contas é criticado, juntamente com a forma de governo denominadamonarquia:

Como poderia ser a monarquia coisa conveniente, (se) nela é permitido ao não prestador de

contas fazer o que quer?

32 A presença do prefixo preposicional indica submissão, algo como aquele que está subordinado ao

ou abaixo deste.

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A ausência de um prestador de contas, possibilidade exposta na passagem pelo adjetivo

substantivado , pressupõe a inexistência de uma conduta considerada essencial

para um governo participativo que não tem na figura do monarca o único detentor do poder.

A interrogação crítica de Heródoto fora colocada na boca de um nobre persa, Otanes, o

descobridor de que o reino da Pérsia estava sob as mãos de um impostor. A crítica possui

como alvo Cambises, rei que matara injustamente seu irmão Ermérdis por causa de um sonho

em que este lhe tomava o poder. Contudo, um mago33

, também de nome Ermérdis e

fisicamente parecido com o irmão assassinado do rei, tomara o lugar de Cambises junto ao

trono enquanto ele se encontrava no Egito. Cambises morre antes mesmo de tentar

reconquistar seu poder, o que faz com que o outro Ermérdis, o impostor, a quem todos

julgavam ser filho de Ciro e irmão de Cambises (poucos sabiam que ele assassinara o irmão)

permanecesse como rei da Pérsia por um período de sete meses, até ser descoberto e morto.

O excesso de Cambises no poder se apresenta na fala de Otanes como a raiz de todo o

problema. Nessa passagem, Heródoto faz surgir, pela ausência de uma oposição entre um

e um a própria oposição entre dois tipos de governo: a monarquia, que

concentra no rei todo poder, e, implicitamente, a democracia ou outro tipo de governo com

mecanismos que tornam a autoridade mais comunitária.

Ésquilo, em Persas, utiliza, metaforicamente, tanto da figura do quanto do

para expor valores figurados que expressam relações de oposição entre gregos e

persas, com suas formas de governo conflitantes, e entre Xerxes e as forças divinas.

Expressão nuclear 1: , se tivesse

administrado bem..., tendo administrado mal - prestador de contas perante à cidade

Como ocorre em Heródoto, a ideia da não existência da figura do e,

consequentemente, do próprio ato de se prestar contas, permite, no contexto literário de

Persas, uma crítica implícita à forma de governo dos povos bárbaros e justifica, de certa

maneira, os excessos do rei que, independentemente do que aconteça, permanece no poder. O

enunciado metafórico produzido pela rainha Atossa, no primeiro episódio da tragédia,

expressa claramente isso (vv. 211 – 215):

(...)

33 O termo aqui diz respeito a um dos seis povos que formaram a nação dos Medos.

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(...) meu filho, se tivesse administrado bem, se tornaria um homem admirável,

mas, tendo administrado mal - não é prestador de contas perante à cidade,

e, se estiver a salvo, igualmente reina nesta terra.

O enunciado serve para opor a onipotência do rei no governo dos persas à democracia

dos gregos, cujos ocupantes de cargos políticos são fiscalizados pelos mecanismos dos

magistrados atenienses. A evocação da imagem do , prestador de contas, gira em

torno da dupla presença do verbo , agir, trabalhar, administrar os negócios

públicos, ato que é igualmente evocado do mundo político ateniense para preencher o enredo

trágico da peça. O fracasso de Xerxes na Batalha de Salamina é representado pela imagem de

um indivíduo que teve uma má administração em algum cargo político ateniense e que só não

foi punido porque, simplesmente, não existe, entre os persas, a fiscalização do sobre

o , ou seja, do juiz de contas sobre o prestador de contas. Ao se apresentar essa

ideia, entre os persas, num contexto em que se fala de guerra e não de prestação de contas ao

fim de um cargo público, Ésquilo forma um enunciado metafórico que se mostra trágico por

enfatizar a oposição entre gregos e persas dessa maneira. É de se notar, no caso, uma

oposição que parte dos gregos e recai sobre os persas, uma vez que a não prestação de contas

se refere exatamente a uma derrota que não necessita ser justificada.

Expressão nuclear 2: , severo juiz de contas

No plano divino, entretanto, existe a necessidade de que Xerxes preste contas de seus

atos, isto é, seja um . O fantasma de Dario, com sua autoridade do além, sem a

mesma certeza que emana da rainha Atossa, coloca em dúvida, no terceiro episódio, o futuro

da autoridade de Xerxes, ao temer por todo o poder que conquistara (vv. 751-752):

(...) (...) Temo que meu muito esforço por riqueza

torne-se, para os homens, presa daquele que chegar primeiro

Tal passagem possibilita um encadeamento lógico que faz surgir novamentea imagem

externa da prestação de contas em Persas, dessa vez evocada pelo termo , juiz de

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contas,num enunciado metafórico que vai ser exatamente emitido pelo fantasma de Dario,

no mesmo episódio (vv. 827 – 828):

Zeus é, de fato, o castigador dos pensamentos

muito soberbos, severo juiz de contas.

A imagem de um austero, qualificação determinada pelo adjetivo ,

grave, severo, é trazida ao contexto trágico esquiliano para fazer menção à função e à

autoridade de Zeus, o maior dos deuses, diante do excesso perpetrado por um mortal, que, no

contexto literário de Persas, é Xerxes, o rei que ousou cometer uma série de ações

desmedidas com o objetivo de dominar a Grécia Ocidental e, sobretudo, a cidade de Atenas.

A qualificação de , castigador, se coaduna perfeitamente com a ideia de um

cuja função é avaliar criteriosamente o processo de prestação de contas de um

indivíduo. Implicitamente, a evocação dessa imagem coloca Xerxes, que, de acordo com o

contexto da tragédia, não prestou contas de maneira satisfatória, na condição de um

mal intencionado. Da mesma maneira que um magistrado pode ser punido pelo

por cometer atos ilícitos e desmedidos, Xerxes merece ser castigado por ter lançado

mão de excessos para alcançar seus objetivos. A perdição lhe veio pela figura de Zeus, a

quem, metaforicamente, Ésquilo associa a figura de um criterioso juiz de contas. A metáfora

se mostra claramente trágica por enfatizar o próprio castigo recebido pelo personagem, que

sofre uma queda que se funda na própria percepção da fragilidade da condição humana diante

de um mundo divino que o supera em demasia. A presente passagem faz, assim, contraste

com a anterior, pois, enquanto a primeira evidencia a onipotência de um rei bárbaro que não

necessita prestar contas de seus atos entre os homens de seu povo, a segunda passagem

enfatiza, tão bem ao estilo de Ésquilo, que mesmo esse rei se encontra subordinado aos

deuses e, sobretudo, a Zeus, a divindadade que metaforicamente é alçada à figura do

, juiz de contas.

4.3. Os metecos residentes em Atenas

A presença de metáforas da vida política ateniense tem seu seguimento por meio da

próxima imagem externa evocada. Dessa vez, a conhecida figura do meteco ateniense vai ser

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utilizada para se fazer a ponte entre o externo e o interno que estabelece o trágico no contexto

da tragédia Persas. Essa figura representava o indivíduo que ficava em situação de estrangeiro

em Atenas. Os metecos tinham como obrigação pagar uma taxa de residência anual, cujo valor

era de doze dracmas, no caso dos homens, e seis dracmas, no caso das mulheres; era o

, imposto necessário para sua permanência na cidade. Com obrigações semelhantes

às dos cidadãos de fato, mas sem os privilégios de que gozavam estes últimos, pois a lei de 451

a.C., atribuída a Péricles, limitava o acesso à cidadania aos indivíduos nascidos de pai e mãe

atenienses, os metecos não possuíam direito à atividade política; não tendo direito a voto, não

podiam nem participar da Assembleia e muito menos ter nela uma função. As restrições que

caracterizam essa figura ao mesmo tempo política e apolítica podem ser percebidas na própria

etimologia do nome, que significa aquele que vive à margem34

. Em assuntos de seu interesse,

era necessário que o meteco possuísse um 35

, um tipo de patrono que respondesse

por ele diante das instâncias da cidade. Não obstante essas restrições, os metecos participavam

da vida ateniense dividindo, com os vários cidadãos, funções em comum, principalmente

militares (os metecos poderiam servir como hoplitas ou como remadores das naus pertencente

à frota ateniense). O meteco era uma figura legalizada em Atenas, um elemento próprio da

estrutura política da sociedade ateniense, e, no século V a.C., os indivíduos que tinham essa

condição eram, sobretudo, gregos que vinham de outras cidades. Os motivos que faziam com

que esses homens abandonassem sua cidade de origem poderiam ser variados: problemas

políticos com sua cidade natal, tentativa de enriquecimento pelo comércio numa cidade

próspera como Atenas ou o prestígio intelectual ateniense, cuja fama se espalhara por todo

mundo antigo.

Expressão nuclear: , meteco em terra

Ésquilo, com seu discurso trágico, usa o termo , meteco, para fazer

referência a um invasor bárbaro, Artabes, formando assim o enunciado metafórico expresso

pelo mensageiro, no primeiro episódio (v. 317-319), que descreve uma das várias mortes de

34 Cf. MOSSE, Claude. Atenas, a história de uma democracia. Brasília: UnB, 1997. p.138. O prefixo

preposicional indica passagem, transformação, transição e, daí, o sentido de depois, para o qual o significado de à margem constitui apenas um passo. 35 O termo possui o prefixo -, antes, diante, em um nítido sentido de favorecimento. Tendo ainda

em sua formação a raiz - , proveniente do verbo , colocar de pé, junto ao sufixo –de agente da

ação, a palavra indica, em um sentido próximo ao literal, o indivíduo que se coloca perante alguém, em auxílio.

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chefes bárbaros que ocorre no interior do catálogo comumente conhecido entre os

especialistas como lista dos mortos na guerra36

:

(...) (...) e Ártabes, o Báktrio,

general de uma cavalaria negra de trinta mil,

um meteco em terra áspera, ele foi ali consumido.

Ártabes não é, definitivamente, um meteco, e sim um invasor persa, na verdade, um

, general (v. 318) do exército de Xerxes, o que torna a enunciação literal defectiva se

for tomada literalmente, obrigando que haja, da parte do receptor do enunciado, a percepção

de um sentido figurado na enunciação que se apresenta diante dele. De fato, o significado do

emissor possui o seguinte aspecto, possibilitado pelo conteúdo desenvolvido na obra: Ártabes

é um invasor. Ao citar a palavra em sua obra, Ésquilo faz, por meio de sua arte,

uma evocação do cotidiano político em que tal agente atuava. A figura pacífica do meteco

ateniense (imagem externa) é usada para expressar a imagem interna de um chefe bárbaro

que morre numa terra, para ele, estrangeira, o que torna esse enunciado metafórico

nitidamente trágico. Quanto ao termo , terra, deve-se dizer que se trata de um nítido caso

de termo harmonizador de imagens, pois a palavra possui a função de evocar a ideia externa

de um meteco residente numa terra estrangeira ao mesmo tempo em que também funciona

como um elemento interno que está, de fato, presente no contexto literário de Persas, que

fala exatamente da terra onde o guerreiro morre.

4.4. Os éfetas

Um novo agente dos mecanismos políticos atenienses é evocado no texto de Persas,

quando o termo , éfeta, se insere na linguagem trágica elaborada por Ésquilo. Tal

termo define o juiz do tribunal de última instância em Atenas, que julgava os crimes de

homicídio. O termo éfeta era utilizado mais comumente no plural, uma vez que, na verdade,

36 Ebbott busca provar que tal lista é influenciada, quanto à forma, pelas listas de desastres atenienses, que tinham

o objetivo de louvar os indivíduos mortos em guerras, garantindo-lhes as honras fúnebres que lhes propiciariam

uma glória imorredoura. EBBOTT, Mary. The list of the war dead in Aeschylu‟s „Persians‟. Department of the

Classics, Harvard University. in Harvard Studies in Classical Philology, vol. 100 (2000), p. 83. Ésquilo vai

subverter, com sua linguagem trágica, o significado das listas atenienses, mostrando em Persas a morte de

inimigos que foram deixados sem nenhuma sepultura.

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compunha uma instituição composta por uma série de juízes, mais precisamente 51

indivíduos pertencentes a essa jurisdição criminal, os éfetas, portanto. Eles tinham assento

em quatro tribunais, desempenhando funções distintas em cada um, mas sempre julgando

questões em torno de crimes relacionados com homicídios. No Pritaneu, os éfetas julgavam o

autor desconhecido de um crime de morte e os animais ou objetos que tinham causado a

morte de uma pessoa. No Paládio, julgavam os homicídios voluntários. Em Freátis, julgavam

os cidadãos que haviam sido banidos e que, no exílio, cometeram algum homicídio. Por fim,

no Delfínio, os éfetas julgavam os homicídios que haviam sido cometidos em legítima

defesa.

Expressão nuclear: , nos éfetas

Esse juiz supremo cuja incumbência é julgar os crimes mais hediondos vai ser evocado

por Ésquilo para, em certo momento, metaforicamente, qualificar os chefes do exército de

Xerxes. O fato da citação se dar após o término do extenso catálogo de chefes e povos mostra

uma ênfase genérica que diz respeito ao todo terrível e grandioso que caracteriza o exército

persa; um exército considerado invencível tem assim seus chefes e principais representantes

comparados ao tipo de juiz que acumula mais responsabilidade e poder de decisão na cidade

ateniense. Ao usar esse artifício, Ésquilo enriquece o seu discurso, ao mesmo tempo que

enfatiza o trágico inerente a um exército que chega para o combate e que, como os éfetas

atenienses, teria o poder de decidir pela morte daqueles que passassem pelo seu crivo.

Forma-se assim a metáfora trágica que se apresenta no enunciado metafórico criado pelo

tragediógrafo (vv. 78 e 79):

confiando (Xerxes) nos seus fortes

éfetas cruéis

No texto, a palavra , no plural como normalmente ocorria no seu uso junto a

sua instituição homônima, faz referência aos terríveis chefes do exército persa, havendo

nítido valor paradoxal ao se empregar um tipo de mecanismo jurídico ateniense para

apresentar na obra características inerentes ao mundo trágico da tragédia grega, com suas

desgraças e iminência de infelicidade. A onipotência dessa figura política serve, no discurso

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trágico esquiliano, para exprimir a crueldade e a austeridade dos chefes do exército persa que

não mediriam esforços para subjugar a Grécia ocidental.

4.5. A pena, o castigo legalizado pela

Estabelecendo uma natural continuidade com a imagem anterior, a próxima imagem vai

permitir o conhecimento da própria ação de um tribunal nos momentos em que os indivíduos

que o compõem devem decidir o destino do acusado. Quando alguém era considerado

culpado por um delito ou crime perante o tribunal da , o júri ateniense, além do poder

de condenação, deveria ainda, num segundo momento, decidir entre o , a pena

proposta por um requerente, normalmente o acusador, e o , a pena mais branda

proposta pela defesa, isto é, uma espécie de recurso de oposição à primeira pena. Todo esse

processo de determinação da pena era conhecido por , oposição penal. Entre

as várias penas possíveis estavam as multas, os confiscos, a atimia (perda dos direitos de

cidadão), o exílio e a morte, a mais grave e rigorosa entre todas.

Quanto ao processo de Sócrates37

, por exemplo, Platão, em sua Apologia, sustenta o

mito de que o filósofo, tomando as rédeas da própria defesa, é considerado culpado, perante

um júri reunido em 399 a.C. O cidadão ateniense e poeta trágico Meleto havia lançado contra

Sócrates três acusações: não acreditar nos deuses da cidade, introduzir novas divindades e,

consequentemente, corromper os jovens. Nesse julgamento, os 501 representantes do júri,

homens com mais de 30 anos e de posição elevada, votam pela culpabilidade de Sócrates. No

resultado da votação, houve 281 votantes considerando Sócrates culpado e 220 considerando-

o inocente. Resolvida a condenação, a segunda parte do sistema processual ateniense tratava

assim da pena que deveria ser imputada ao culpado. Começa, então, a partir daí, o processo

de . Meleto, desde o início da acusação, havia sugerido a pena de morte, o

que constitui o . Com a ironia que marca o personagem socrático idealizado por

Platão, Sócrates sugere, como pena oposta à condenação de morte, ou seja, como

, uma das honras mais elevadas do mundo ateniense, ser sustentado pelo estado

até o fim de seus dias, nas dependências do edifício onde eram acolhidos os visitantes mais

37 A história apresentada nesse parágrafo acerca do julgamento de Sócrates toma sua inspiração da pormenorizada

narrativa científica do historiador da Antiguidade Moses I. Finley. Aspectos da Antiguidade. Lisboa: Edições 70,

1990, pp. 69-83.

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ilustres da , o Pritaneu. O resultado dessa proposta fez por aumentar o número de

votantes contra Sócrates, de modo que 361 homens votaram a favor da pena de morte.

Dois termos em Persas evocam, em sequência, exatamente os dois momentos de um

julgamento ateniense que se estabelecem após a condenação de um indivíduo: o da pena

proposta pelo acusador e o da pena oposta pela defesa. É a rainha que, em uma fala sua do

primeiro episódio, constrói um discurso que evoca frequentemente o âmbito de um

julgamento ateniense. As duas derrotas sofridas pelos persas nas guerras médicas,

primeiramente, em Maratona e, depois, em Salamina, determinam partes distintas do

. A representação da oposição que se abate sobre os persas e, principalmente,

sobre Xerxes, por meio da evocação dessa imagem externa, torna os dois enunciados

metafóricos que serão analisados claramente trágicos.

Expressão nuclear 1: , encontrou a punição e não

achou suficiente

Num primeiro momento, a rainha, fazendo um histórico das derrotas persas diante das

mãos dos atenienses, menciona a derrota em Maratona como sendo uma punição sofrida por

causa do orgulho persa. O enunciado metafórico produzido se ampara exatamente numa parte

do julgamento ateniense que constitui a determinação da pena para um indivíduo que fora

condenado (vv. 473 e 474):

(...)

(...) meu filho uma amarga punição da gloriosa Atenas encontrou, e não achou suficiente

os que, diante de Maratona, viu perecer entre os bárbaros;

O termo que evoca com mais força a imagem externa do mundo jurídico ateniense é o

substantivo , que, estando associado a , diz respeito ao próprio processo de

estabelecimento da pena proposta por um acusador. Os verbos , encontrar, e

, achar suficiente, determinam, respectivamente, o estabelecimento da pena e a

continuidade do processo. No contexto formado, Xerxes aparece como o indivíduo

condenado, tendo em vista sua derrota em Salamina, mas o curioso é o tratamento dado por

Ésquilo à citação da Batalha de Maratona. O verbo mostra que a derrota sofrida

em Maratona se afigura como algo que ficara estabelecido como uma pena pelo excesso dos

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persas. Pode-se dizer, então, que, no contexto que evoca o âmbito do julgamento ateniense,

essa derrota em Maratona é o , a pena que foi imputada aos persas no processo de

. A continuidade da fala da rainha confirma ainda mais a presença dessa ideia no

discurso esquiliano.

Expressão nuclear 2: , julgando fazer o revide da pena

O segundo enunciado metafórico de evocação do processo de está

intimamente relacionado com o primeiro, sendo, na verdade, a sua continuidade lógica. O

contexto literário fala acerca de uma tentativa de Xerxes de uma resposta à punição,

, que fora imposta aos persas anteriormente, isto é, a derrota em Maratona. Contudo,

no discurso trágico de Ésquilo, essa tentativa de oposição não foi bem sucedida, de modo que

o que o rei acaba por receber é uma nova pena, a derrota em Salamina, conforme pode ser

percebido no enunciado metafórico que se constrói por meio da imagem externa associada à

interna (vv. 475 e 476):

por isso meu filho, que julgava executar o revide da pena, trouxe tão grande plenitude de sofrimentos.

Os verbos , julgar, e , executar, aparecem frequentemente no discurso

político ateniense, fazendo, por isso, parte das expressões nucleares externas do enunciado

metafórico, juntamente com o termo , queequivale na passagem ao

já citado. Mais uma vez um mecanismo político advindo de atos que ocorriam

em tribunais gregos é evocado para expressar o trágico no discurso literário de Persas, pois é

perfeitamente perceptível no texto o ato de opor uma pena a outra pena (conforme ocorria no

processo de ), com a variação, contudo, de que esse revide da pena seria na

intenção de Xerxes um castigo imposto aos atenienses e não uma pena mais branda imposta a

ele mesmo. No trágico expresso, como já mencionado, essa intenção se transforma

exatamente no seu contrário: não há uma pena imposta aos atenienses e nem uma mais

branda para o próprio Xerxes, mas uma pena muito pior, que, no texto, é enfatizada

fortemente pela expressão de intensidade , tão grande plenitude. Tal

variação adapta o mundo político ateniense às necessidades impostas pelo gênero tragédia.

Contudo, mesmo com toda a sua remodelação do mundo ateniense, o contexto literário de

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Persas apresenta, por fim, Xerxes como o indivíduo receptor de duas penas, a derrota em

Maratona, que ele, como persa, herdara, e a recente derrota em Salamina.

4.6- A escravidão:

No contexto literário de Persas, a evocação da imagem externa da escravidão possui

estreita relação com a imagem do jugo estudada no capítulo 3, sobretudo, porque, além da

semelhança entre as ideias, a imagem da escravidão, como a do jugo, aparece em Persas em

meio a enunciados metafóricos que também se referem à ponte insultuosa de Xerxes. O jugo,

ou melhor, a ação feita por meio dele, simboliza, no enredo de peça, a opressão advinda da

escravidão tão repudiada pelos gregos, que é exatamente a imagem externa que é evocada

nas passagens que serão analisadas nesse tópico.

Para se falar da escravidão na Atenas clássica, é necessário focalizar logicamente o

escravo, uma figura de suma importância para a economia ateniense e, consequentemente,

importante também para o próprio molde da democrática dos séculos V e IV a.C.

Chegou-se à hipótese de que, na época da Atenas clássica, o número de escravos seria cerca

de cem mil, em uma população que contava ainda com trinta e cinco mil cidadãos e entre dez

a quinze mil metecos38

. Mesmo que não haja certeza quanto aos números, o fato é que a

quantidade de escravos era bem superior à população livre. Os escravos eram constituídos,

sobretudo, de prisioneiros de guerra, sendo a maioria trácios, citas e asiáticos. Escravos

gregos, provenientes de outras cidades subjugadas por Atenas, eram raros, mas possíveis.

Essa verdadeira instituição da democrática ateniense era composta por indivíduos que

eram, por assim dizer, bem tratados por seus senhores, havendo leis na cidade que

favoreciam o escravo, entendido como um bem móvel. Harvey (1998, p. 207) faz uma

sucinta explanação do espaço e da forma como os escravos inseriam-se na sociedade

ateniense, mostando ainda seus tipos:

Havia três espécies de escravos: primeiro os empregados em serviços

domésticos, tais como cozinheiros, amas, pedagogos (encarregados de levar

as crianças à escola). Uma família de classe média tinha normalmente três a

nove escravos. Havia poucos em atividades agrícolas. Em segundo lugar, os

empregados em empreendimentos industriais, comerciais ou outros (p. ex.na

construção ou em oficinas e fábricas).(...) A terceira categoria era a dos

escravos públicos, de propriedade do estado, empregados por este em várias

38 Os dados foram retirados do dicionário de Mossé, em meio ao verbete escravidão. MOSSÉ, Claude. Dicionário

da Civilização Grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 118.

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atividades – em obras públicas, conservação de estradas, ou como

escrituários ou funcionários subordinados, ou ainda como policiais (os

arqueiros citas).

As boas condições de trabalho dos escravos na sociedade ateniense revestiam-se em

vantagens que talvez expliquem a inexistência, no período clássico, de tentativas de

rebeliões. Contudo, deve-se registrar que os escravos que trabalhavam na extração de prata

das minas do Láurion, que pertenciam ao segundo tipo de escravos descrito por Harvey, por

causa das condições subumanas a que eram submetidos, fugiram no momento em que,

durante a Guerra do Peloponeso, os espartanos tomaram a fortaleza de Decélia, na Ática.

A escravidão que aparece em Persas, portanto, não possui muita relação com a que, de

fato, acontecia em Atenas, pois se trata de uma escravidão gerida pelo outro, por um povo

bárbaro, ele mesmo, segundo o contexto literário de Persas, em condição servil diante de seu

rei de uma forma não aceita pelos gregos. Mas, mesmo se for levada em conta a escravidão

no âmbito dos povos bárbaros, sem dúvida alguma a que aparece em Persas é muito mais a

construção simbólica de um tipo de escravidão que um persa daria a um grego do que

propriamente o tipo de dominação que os persas, se tivessem de fato dominado a Grécia

Ocidental, iriam impor. O Império Persa já havia conquistado a maior parte das cidades

jônicas da Grécia Oriental, impondo aos cidadãos gregos dessas cidades uma dominação

branda, baseada em pagamento de tributos. Definitivamente, os cidadãos das cidades jônicas

dominadas pelos persas não possuíam, de forma alguma, o status de escravo.

A escravidão de Persas, afastando-se do que seria uma instituição propriamente dita,

apega-se à concepção de que o homem na condição de escravo mostra-se diminuído em sua

própria humanidade. Aparecem no texto, de forma figurada, instrumentos que têm a função

de prender a figura do escravo, em uma espécie de tratamento que seria condizente com o

que se faz com certos animais, daí novamente a relação dessa imagem externa da escravidão

com a imagem do jugo, instrumento utilizado unicamente em animais.

Expressão nuclear 1: , prender como a um escravo, por

meio de cadeias

Além do uso da imagem externa que evoca a ação do boieiro ou cavaleiro colocando

um jugo em torno do dorso de um animal, a imagem externa da escravidão também surge

para formar enunciados metafóricos que possuem uma concepção de aprisionamento. O

contexto reveste-se de uma ideia de opressão, e palavras que evocam instrumentos e ações

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que se ligam ao âmbito da imagem externa da escravidão são apresentadas. O enunciado

metafórico em questão é emitido pelo Fantasma de Dario, no terceiro episódio da peça, em

um contexto literário que, como ocorreu com os enunciados da imagem externa do jugo, faz

menção à ponte de botes de Xerxes, causadora do que seria o ato de prender o Helesponto

(vv. 745 e 746):

(...)

ele que esperava prender como a um escravo, por meio de cadeias,

o fluente Helesponto sagrado, (...)

A passagem constrói-se por meio de um símile metafórico39

, em que uma ação externa

que recai sobre a figura do , escravo, serve para, no contexto literário, enfatizar a

ação de Xerxes de colocar uma ponte de botes sobre o Helesponto, algo que denota um ato de

impiedade contra Posêidon, o deus do mar. Não há quanto ao significado interno uma

diferença significativa entre , lançando o jugo em torno do

pescoço (v. 72), e , pois as duas expressões nucleares

referem-se à mesma ação impiedosa de Xerxes. Ésquilo utiliza, então, uma expressão nuclear

que evoca a imagem externa de um escravo, que é preso pelo uso de um instrumento próprio

para esse fim, os , cadeias, liames. Osequivalem, de forma

figurada, ao próprio , jugo (termo figurado que aparece, como foi visto, em alguns

enunciados metafóricos de Persas), e, de forma literal (se fosse o caso), às (v.191),

correias, que serviam, no sonho da rainha, para prender as duas mulheres simbólicas ao carro

de Xerxes. O infinitivo futuro do verbo , ter, possuir, reter, e daí, prender,

enfatiza bem o sentido figurado da ponte que adquire aqui a forma de cadeias que são

utilizadas para prender um escravo.

39 Como também evoca uma imagem externa, o símile (comparação) é considerado na análise proposta um tipo de

metáfora que, sintaticamente, faz uso de conjunções comparativas, sobretudo . É interessante relacionar esta

enunciado metafórico da escravidão com o do enxame de abelhas (vv. 126-132), também construído como um

símile, que utiliza, aliás, ainda outra imagem externa, a do jugo, evocada pelo adjetivo , conjugado

(v. 128).

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Expressão nuclear 2: , ao lançar peias batidas a

martelo em torno

Continuação do enunciado precedente por manter o mesmo lugar comum da

escravização, mas em uma oração completamente independente à anterior, recebendo, assim,

o estatuto de um novo enunciado metafórico, a próxima construção esquiliana faz a evocação

do mundo do escravo por meio de outro instrumento próprio desse âmbito e,

consequentemente, por meio da ação feita por intermédio do mesmo. Logicamente, é o

mesmo personagem, o Fantasma de Dario, que prossegue seu raciocínio (vv. 747 e 748):

(...) (...) ao lançar peias batidas a martelo

em torno dele, conseguiu um grande caminho para seu grande exército.

O termo , peias,pode ser utilizado tanto para se referir ao mundo dos homens

quanto ao mundo de animais. Trata-se de um tipo de instrumento que serve para prender pelo

pé, no caso do escravo, ou pela pata, no caso de animais. O contexto literário apresenta, mais

uma vez, uma referência à ponte construída sobre o Helesponto, que toma aqui a forma

figurada de grilhões que são colocados em torno do tornozelo de um escravo. Note-se a

associação que pode ser feita entre o uso aqui do verbo e o verbo

presente em dois momentos na evocação da imagem do jugo (v. 50 e v. 72). O

mesmo movimento utilizado por Ésquilo para emitir o ato de se colocar um jugo em torno do

pescoço de um animal é repetido na passagem analisada aqui com a variante de que, dessa

vez, o enunciado metafórico evoca a imagem externa do mundo de uma escravidão

idealizada.

Todo caráter trágico de Persas desemboca, genericamente, numa oposição gregos e

persas e, de modo inverso, persas e gregos. Mesmo que se tenha em mente todo o complexo

embate entre Xerxes e as forças divinas, esse nada mais é do que também uma oposição

desse tipo, pois todo esse divino perpassa pelo desejo do rei de escravizar os gregos, que,

dialeticamente, se opõem a isso, formando uma oposição ao rei, que é, na verdade, um

homem persa, rei de um imenso exército. Assim, como ocorre com esse divino que paira

sobre a ação insuflando-lhe significado, o que vai variar realmente são os contextos em que

as oposições se apresentam por meio, sobretudo, de certas metáforas portadoras do caráter

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trágico. São elas que vão determinar de que lado parte a ação que vai gerar a oposição

trágica. Pode-se dizer que as expressões nucleares que evocam ideia de escravização

possuem uma oposição trágica que, partindo dos persas, vai de encontro aos gregos. O desejo

de escravizar os gregos é mostrado pela colocação da ponte de Xerxes sobre o Helesponto,

ato que é transmitido no contexto literário pela ação de colocar grilhões em um escravo nas

passagens expressas nesse tópico. No capítulo dedicado à imagem externa do jugo, em várias

passagens, o mesmo desejo de escravização da parte dos persas é passado também pela

presença da ponte, mas o ato evocado é proveniente do mundo da atrelagem, evocando-se,

mais precisamente, o ato de se colocar um jugo em torno do pescoço de um cavalo ou boi.

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5. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA RELIGIÃO

O século V a. C. já possuía todo um desenvolvimento intelectual e filosófico que

começou a ser construído pelo surgimento da filosofia no século anterior, mas ciência e

religiosidade nunca foram elementos excludentes no cotidiano do homem grego. Pelo

contrário, a religião grega, tendo seu próprio lugar ao lado do pensamento filosófico-

científico, se inseria no próprio seio da ateniense, afigurando-se como um ato cívico

que deveria ser pensado e praticado entre os cidadãos. A esse respeito vale mencionar

novamente o processo de Sócrates, pois, como se sabe, a , impiedade, figura como

um dos principais pontos das acusações que levaram o filósofo a sua condenação à morte em

399 a.C., e isso mostra bem o quanto a religião era colocada como um assunto de Estado.

Finley (1990, p. 75), ao focalizar a impiedade no próprio pensamento da Atenas clássica,

percebe a fragilidade desse conceito e levanta três fatores que bem elucidam a relação do

homem grego com seu meio religioso:

Para entender o que um ateniense poderia querer dizer com “impiedade” (o

termo grego é asebeia), temos de entrar em consideração com três fatores. O

primeiro consiste em que a religião grega se tornara muito complicada ao

longo dos séculos, com uma grande variedade de deuses e heróis investidos de

numerosas e contraditórias funções e atribuições. O segundo é que a sua

religião continha pouco daquilo a que chamamos dogma, mas era largamente

uma questão de ritual e mito. E o terceiro cifra-se em que se achava

profundamente imbricada na família e Estado. Por conseguinte, a impiedade

não passava de uma noção muito vaga: um homem podia ser considerado

ímpio por profanar um altar, revelar os segredos de um culto misterioso ou

simplesmente por dizer coisas julgadas blasfemas.

Por ter-se tornado confusa com o tempo pelo motivo assinalado por Finley e por

nunca ter-se estabelecido claramente como um dogma, a religião grega se mostrava pela

vivência. Isso significa dizer que a religião se definia muito mais nas ações dos cidadãos, ou

seja, em seus rituais do que em preceitos pré-estabelecidos.

O rito, por ser delimitador, é uma forma de simplificar esse excesso de informações

conflitantes, pois, no momento do ritual, se define o deus a que o indivíduo se dirige e a

função que lhe é cabida devido ao motivo pelo qual fora invocado. Acrescente-se que, nessa

relação ritual, o mito se mostra também de suma importância para se apreender a verdadeira

religiosidade dos gregos, pois, de certa maneira, o mito molda em conteúdo, na mente dos

gregos, aquilo que se concretiza e se define no ato ritual. Possuindo essa função

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complementar, o mito, a diversidade de histórias mitológicas sobrenaturais de deuses,

homens e heróis, não é, categoricamente, a religião grega, e nem tampouco deixa de ser. Na

verdade, o mito é uma parte do que os gregos entendiam por religião, assim como o rito seria

outra parte.

Vernant (2006, p. 24), com um pensamento que vai ao encontro de Finley, ao

entender o mito, mesmo na Atenas clássica, como um elemento componente da religião

grega, acrescenta mais um fenômeno da religiosidade grega: a representação figurada, com a

presentificação do divino por meio das imagens sagradas dos artistas. Estabelece-se, assim,

um conjunto tríplice por meio das formas de expressão da religião:

O mito faz parte desse conjunto da mesma maneira que as práticas rituais e os modos

de figuração do divino: mito, rito, representação figurada, tais são as três formas de expressão – verbal, gestual e por imagem – através das quais a experiência religiosa

dos gregos se manifesta, cada uma constituindo uma linguagem específica que, até em

sua associação às outras duas, responde a necessidades particulares e assume uma

função autônoma .

Essa autonomia que se dá pela linguagem é evidente. Apesar de as formas de

expressão religiosa encontrarem-se inseridas naquilo que se chama religião, sendo inevitável

a interação que se dá entre todas essas partes para se criar um todo de expressão religiosa,

elas podem ser percebidas como distintas. O próprio ditirambo, forma de expressão artístico-

religiosa que teria, possivelmente, dado origem à tragédia, é um exemplo de uma mistura de

linguagens. Nele, há o rito gestual, o mito dionisíaco, além da expressão figurada de

presentificação, com uso de vestimentas de bodes, ídolos e máscaras.

O homem ateniense, categoricamente, não via a tragédia grega como rito. Mesmo que

a tragédia tenha uma origem ritual e houvesse sacrifícios e outras formas ritualísticas que

ocorriam antes das apresentações trágicas, a tragédia em si mesma não era compreendida

como um ritual. Entretanto, a tragédia é, na sua , representação, um exemplo da

união das formas de expressão religiosa, pois há o mito no enredo, o rito na origem e a

caracterização dos personagens, com suas máscaras e com outros objetos simbólicos (a

tragédia presentifica as divindades, como ocorre no ato ritual). A tragédia é um gênero de

formação híbrida: sua origem se encontra, sem sombra de dúvida, no rito, mas seu

desenvolvimento está atrelado ao próprio desenvolvimento da nos séculos VI e V

a.C., o que torna esse gênero um exemplo do que foi dito a respeito do caráter inseparável de

religiosidade e de política no mundo grego.

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No tocante ao contexto literário presente em Ésquilo, é preciso enfatizar mais uma vez

o caráter sobrenatural que domina suas tragédias, com uma justiça divina que paira e age

sobre os acontecimentos em cena. No caso mais precisamente de Persas, uma tragédia

histórica que de forma alguma perde por isso seu caráter sobrenatural, não é necessária uma

análise de metáforas para se perceber que o divino a todo o momento se mostra presente na

ação, visto que esse caráter é perceptível na própria forma como se desenvolve o enredo.

Contudo, a presença de metáforas advindas da vida religiosa dos gregos, além de trazer à

tona a ação ritual vivida pelos cidadãos da ateniense, enfatiza mais ainda o caráter

sobrenatural inerente às tragédias do autor.

5.1. O adivinho

Como foi mencionado, o rito aparece, na religião grega, como uma das três formas de

expressão da experiência religiosa. Não é de se estranhar, portanto, que uma arte mimética

como a tragédia, que enfatiza tanto o agir dos personagens e que possui elementos

provenientes do rito, tenha atos e mesmo personagens que se insiram no âmbito ritual. Em

Persas, por exemplo, há a invocação de Dario e o canto de lamento final pelos mortos na

Batalha de Salamina, todas essas ações baseadas em ritos gregos específicos. Igualmente não

é de se estranhar que a vida religiosa dos gregos tenha sua presença metafórica no texto de

Persas, pela primeira vez, na citação, de um determinado agente especialista em certos ritos,

como se verá a seguir.

Expressão nuclear 1: , adivinho de males

No párodo da tragédia, o coro de anciãos persas faz menção ao termo que designa o

agente fazedor de profecias: o , adivinho. Tal ofício se funda numa longa tradição da

arte da , adivinhação, entre os gregos. O sonho vidente da rainha Atossa, cujo

conteúdo é por ela narrado em Persas (vv. 181-199), pode ser entendido como um exemplo

de uma das ações que definiam tal ofício, uma vez que era muito comum as adivinhações

provenientes do êxtase do sono, que trazia muitos sinais proféticos com necessidade de

interpretação. O enunciado metafórico que faz menção à figura do adivinho é emitido pelo

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coro, no párodo da peça; deve-se ressaltar que Ésquilo utiliza o termo em um termo

composto de inspiração homérica40

(vv. 10-11):

o meu coração, um adivinho de males, fortemente

atormenta-me por dentro.

O significado de tem aqui a função de enfatizar o sentimento dos anciãos

persas, que, nesse momento do drama, se encontram ainda apreensivos por notícias de seu

exército. O fato de temerem pelo pior justifica a presença da imagem externa de um

, adivinho de males, composição formada pelo uso do tema , advindo do

adjetivo substantivado , mal, associado ao substantivo. A acão especializada

do adivinho é evocada assim para criar a atmosfera trágica que se esconde por trás do mau

pressentimento expresso pelo coro. O fato que será descoberto depois, com a chegada do

mensageiro, é que todo o exército de Xerxes encontrou sua destruição em Salamina. A

complexidade de todo o ato representado faz-se por meio da personificação do substantivo

. Os advérbios , fortemente, e , por dentro, reforçam o sentimento de

amargura presente no sentido do verbo, e podem ser compreendidos, por isso, como os

elementos literais da metáfora, assim como o próprio elemento da composição41

. Uma

paráfrase literal, com imensa perda semântica poderia ser eu, pressentindo males, atormento-

me fortemente por dentro. De fato, o enunciado metafórico que traz a imagem externa de um

adivinho que anuncia males expressa com muito mais ênfase o sentimento de amargura e

apreensão que assola o coro, o que faz desse enunciado uma metáfora trágica.

Expressão nuclear 2: , coração adivinho

A figura do surge novamente em outro enunciado metafórico de Persas, numa

nova composição que não lhe faz apresentar elementos de terror em seu significado. (v. 224):

Por ser um coração adivinho, benevolamente, aconselhei-te isso.

40 Cf. Ilíada, I, v. 106. Agamêmnon se dirige a Calcas utilizando o vocativo , adivinho de males. 41 O fenômeno de um termo literal e um figurado inseridos na composição será discutido no capítulo 9

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Ésquilo substitui, na composição, a gravidade do termo pela sobriedade do termo

, coração, que também havia aparecido no enunciado metafórico dos versos 10 e 11.

Nesse dito expresso à rainha, o corifeu se coloca metaforicamente como um adivinho solícito

e íntimo para sua soberana, ao aconselhá-la a invocar seu esposo Dario do mundo dos mortos

para acorrer-lhe em auxílio. O termo tem a função de estabelecer oposição

trágica, enquanto não possui tal função.

Pelo enunciado metafórico da expressão nuclear adivinho de males,

enfatiza-se o receio dos anciãos pelo destino do exército persa, evidenciando-se a oposição

trágica entre gregos e bárbaros, uma vez que o coro sabe que o exército de Xerxes possuía

exatamente a intenção de dominar as cidades da Grécia ocidental. A oposição trágica da parte

dos gregos contra os bárbaros é evidente. A metáfora apresenta, assim, a função de

determinar as oposições que estão inseridas no discurso trágico, enfatizando embates pela

ação que se dá no enredo. Existe uma ordem objetiva em que é abalada por uma

oposição: os anciãos persas desejam que tudo esteja bem com seu exército, apesar de

temerem o pior, enquanto os gregos colocam-se como opositores dessa ordem.

5.2. O lugar sacro

Na próxima imagem proveniente do âmbito da religião grega, passa-se para o próprio

ambiente propício à ação ritual. Antes da construção dos templos, apenas bosques, fontes,

montes, encruzilhadas, pedras, em suma, uma grande quantidade de ambientes naturais, ao

serem considerados sagrados, poderiam tornar-se espaços para a presentificação das

divindades, mas a cidade grega, ao instituir em seu núcleo o templo, inseriu dentro de si

mesma a ocorrência de um culto político. Tendo a estátua de um deus em seu interior, o

templo passa a ser a morada do próprio deus, que, dessa maneira, reside, igualmente, na

própria cidade. Exatamente por causa desse morador sagrado, o templo grego não serve

como espaço de culto, mas sim de reverência, sendo ainda um lugar diferente daquele que

serve para o habitat humano (casas, palácios). Numa parte externa ao templo, encontra-se o

altar, que é um bloco de alvenaria quadrangular que possui a função de ser o marco onde o

ritual se desenvolveria. O espaço do rito, portanto, diante do já citado excesso de deuses e

atribuições a eles dadas, possui um caráter mais subjetivo, só surgindo quando o próprio fiel

conscientiza-se de que aquele espaço ao redor do altar é sagrado e propício para a

presentificação das divindades necessárias a sua súplica.

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Expressão nuclear: , tomar o território sacro

Como foi mencionado, do lado de fora do templo, encontra-se o altar e, assim,

externamente ao templo e ao altar, encontra-se o lugar do culto, ou seja, o espaço do homem

que manifesta o ato religioso. Esse espaço, que se afigura como a próxima imagem externa

advinda do meio religioso encontrada em Persas, chama-se .

O termo primitivamenteera utilizado para designar a porção de terra a que

tinha direito um rei ou chefe42

. É no período clássico que esse termo será usado para fazer

referência ao espaço territorial circundante do altar e do templo, um lugar sagrado em que

uma prática cultual se desenvolveria43

. O , assim, torna-se o lugar em que o deus se

torna presente por meio do culto, caracterizando-se por ser um espaço territorial delimitado

por uma cerca ou por marcos. Ésquilo utiliza essa palavra em Persas, num sentido figurado,

para designar a região onde o sol e o crepúsculo se alternam simultaneamente, ou seja, o

, éter, céu, a mais alta região do ar, que seria a morada dos astros e dos deuses. Ao

evocar a imagem externa de um território consagrado ao culto para explicar processos

temporais, Ésquilo cria o enunciado metafórico apresentado pelo mensageiro no relato da

batalha de Salamina, que tem lugar no primeiro episódio da peça (vv. 364 e 366):

(...)

quando o sol cessar de abrasar a terra com seus raios,

e o crepúsculo tomar o território sacro do céu,

a massa de naus iria se organizar em três fileiras (...)

Reconhece-se que houve certo receio em se considerar essa imagem espacial que forma

uma metáfora simplesmente temporal como trágica. Contudo, no contexto da peça, a

construção transmite um dado muito interessante que não poderia deixar de ser sentido como

trágico: a metáfora marca um dos momentos que antecedem a batalha, gerando um suspense

42 O termo aparece nesse sentido em uma passagem proferida pelo ginete Fênice, em meio a sua tentativa de

persuadir Aquiles a voltar ao combate (HOMERO. Ilíada, IX, 578 e 579): (...) na muito fértil planície da agradável Calidon,

ali, a ele ordenavam que escolhesse uma bela porção de terra (...) 43A palavra provém do verbo , que, entre os muitos sentidos presentes em seu campo semântico, pode significar cortar, traçar, delimitar, daí o sentido de construção de um espaço que está inserido no semantema

.

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que mostra uma oposição que, partindo dos persas, vai de encontro aos gregos, uma vez que

são os persas que, nesse momento da narrativa do mensageiro, se preparam para atacar os

atenienses; não obstante, é claro que, nesse momento da tragédia, todos os personagens já

estão cientes de que todos os esforços persas foram em vão, de modo que qualquer ação

apresentada contra os helenos também são ações que trazem malefícios aos persas.

Sendo o elemento que marca exatamente a ocorrência futura mencionada no verso 366,

a ação de tomar um espaço sagrado, expressa pela imagem externa ,enfatiza

assim um momento bélico da tragédia, a chegada do crepúsculo, que toma a totalidade do céu

assim como o fiel toma o seu espaço ao redor do altar.

5.3. A mistura ritual

Se na primeira metáfora religiosa analisada até aqui a imagem externa fazia menção a

um tipo de agente, o , adivinho, e, na segunda, a um lugar específico, o ,

território sacro, o próximo enunciado metafórico a ser visto busca sua imagem externa no

âmbito dos próprios elementos utilizados para a ação ritual.

Havia entre os gregos dois tipos de sacrifício, os cruentos e os não cruentos44

. Enquanto

os cruentos faziam uso do fogo em sacrifícios em que havia certa conotação de barbárie e

violência45

, os não cruentos eram feitos utilizando-se frutos, leite, mel, vinho e azeite. Sendo

uma espécie de mistura de farinha, óleo e mel que os gregos tinham o costume de oferecer aos

44 Cf. CALDERÓN, Esteban. Rito y sacrifício em Esquilo: aspectos léxicos. Ítaca. Quaderns Catalans de Cultura

Clássica. Societat Catalana d’Estudis Clàssics. Num. 19 (2003), p. 10. 45 A menção, na tragédia grega, a um sacrifício cruento por excelência ocorre em Sete contra Tebas quando o

mensageiro, no prólogo, narra o sacrifício feito pelos sete chefes que sitiavam Tebas. Os elementos repletos de

, excesso, de homens que delogaram um touro, manuseando o seu sangue, fazem-se presentes, em meio ao juramento de destruição e saque da cidade de Tebas ( vv. 42 – 48): Sete homens, comandantes impetuosos,

degolando um touro sobre um escudo de aro negro

e tocando no sangue do touro com as mãos,

por Ares, Eniô e Medo sanguinário,

juraram que, ou após colocar em ruínas a cidade,

iriam saquear a cidade dos cadmeus pela força,

ou, após morrerem, encharcariam esta terra com seu sangue.

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deuses ou aos mortos, o se inseria exatamente entre os tipos de sacrifícios não

cruentos. No próprio texto de Persas, existe uma passagem em que esse termo é usado em seu

sentido literal, fazendo menção, de fato, a um sacrifício executado. Tal sacrifício aparece

citado no início do primeiro episódio, quando a rainha, após expor a narrativa de seu sonho,

menciona as libações que havia preparado em oferecimento aos deuses tutelares (vv. 202-

204):

(...) í (...) aproximei-me do altar

com a mão cumpridora do sacrifício, desejando oferecer

a mistura ritual às divindades tutelares, destinatárias destes ritos.

O termo aparece novamente citado pela rainha ao final do mesmo episódio, ainda em

sentido literal. Dessa vez, os destinatários do rito são os mortos e a Terra, numa alusão bem

detalhada dos passos que compõem a ação ritual (vv. 522 – 524):

(...) – quero, primeiramente, fazer uma prece aos deuses;

em seguida, tendo pego as oferendas destinadas à Terra

e aos mortos, trarei de minha morada a mistura ritual –

Do lugar central que adquire na primeira passagem citada, em que aparece como uma

espécie de elemento protagonista do rito, ao caráter de finalização da ação ritual, o

adquire um teor representativo que se afirma no próprio desenvolvimento dessa

ação. Ele se mostra a oferenda principal para apaziguar as consequências causadas pela

derrota dos persas: o grande número de mortos na batalha de Salamina. Não é de se

estranhar, então, que no uso metafórico, o termo venha a ser utilizado no próprio

contexto bélico.

Expressão nuclear: , mistura ritual gotejante de sangue

É o Fantasma de Dario que, em seu monólogo final do 3º episódio de Os Persas, usa do

termo num sentido claramente figurado, construindo assim um enunciado

metafórico que se baseia em sua autoridade proveniente do além (vv. 816 e 817):

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uma mistura ritual um tanto gotejante de sangue estará

diante da terra de Plateia, por causa da lança dórica;

O Fantasma de Dario profetiza a chacina final da armada de Xerxes, ao mencionar a

grande derrota que iriam sofrer, pelas mãos dos espartanos, os persas remanescentes que não

participaram da Batalha de Salamina. Esse fato é passado ao receptor da peça como um

grande sacrifício sangrento que será derramado no solo de Plateia, na batalha homônima. O

mundo religioso grego, mais precisamente a própria ação de um sacrifício com um de seus

itens mais essenciais, a mistura sagrada, é assim evocado como imagem externa para

expressar um enunciado metafórico que indica o trágico recaindo inexoravelmente sobre os

persas, finalizando assim a utilização que faz Ésquilo dos elementos externos provenientes

do âmbito religioso. Pode-se notar que Ésquilo inseriu elementos de violência no sacrifício

não cruento do , e essa transformação dá-se graças ao discurso trágico metafórico

que faz uso do adjetivo , gotejante de sangue, como parte da imagem

externa.

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6. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA NATUREZA:

As imagens externas levantadas nos dois capítulos anteriores exigiam um grande

esforço intelectivo para serem devidamente compreendidas, porque mecanismos políticos e

religião são produtos fortemente imbricados na grega; tal fato os torna um fator de

afastamento para o conhecimento de um mundo cujo funcionamento se encontra na

obscuridade recôndita da Antiguidade. Como o valor figurado presente no texto dependia do

valor literal que se encontrava no ambiente da , apenas um árduo estudo acerca das

instituições gregas atrelado a uma tentativa de entender a religião política dos gregos poderia

reduzir o desconhecimento acerca do valor das imagens evocadas por Ésquilo. Mas, com as

imagens provenientes da natureza, ocorre, na maior parte das vezes, algo diferente.

Excetuando-se os utensílios utilizados pelo homem antigo para interagir com a natureza e

que podem, de fato, causar certa estranheza ao homem atual, as imagens propriamente

ocorridas na natureza nenhuma obscuridade de entendimento trazem. Isso porque, nos dias

atuais, uma flor cai de uma planta exatamente da mesma maneira como acontecia no século

V a.C., de modo que não é necessário, nesse caso, um estudo aprofundado da ideia literal

desse fato. Somente, num segundo momento, surge a necessidade de se entender no texto o

valor figurado e simbólico que os atos recorrentes na natureza significavam para os gregos.

A natureza, com seu variado colorido proveniente da vegetação, com seu grande

número de animais e com sua força transformadora, inspira o homem desde tempos

imemoriáveis de duas maneiras antagônicas. Se, por um lado, em seu caráter benfazejo, ela

fornece ao ser humano alimento, bem-estar e beleza contemplativa, gerando uma interação

que pode resultar, na arte, em conteúdos sensíveis de caráter inocente, belo e inofensivo, por

outro lado, com sua potência de possível destruição, tão bem conhecida e falada nos dias

atuais ao arrasar cidades inteiras, também se manifesta em terremotos, enchentes, ventanias,

tsunamis, ocasionando desgraças muitas vezes definidas hoje como tragédias. Ésquilo é,

obviamente, um autor trágico. Tal fato irrefutável poderia fazer com que se esperasse dele a

utilização dos elementos da natureza em toda sua força danosa. Contudo, a maioria das

metáforas trágicas construídas com imagens da natureza em Persas, sobretudo aquelas que

são provenientes da vegetação, faz uso de um caráter benfazejo, formando assim um

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fenômeno literário que pode ser definido como metáfora paradoxal46

, que se apresenta como

uma utilização do bem para expressar o mal. Enunciados metafóricos do tipo paradoxal já

apareceram anteriormente nas metáforas analisadas, mas o uso deles com elementos do

âmbito da natureza tornam o fenômeno mais evidente. Tais construções serão devidamente

enfocadas no momento em que aparecerem.

A dualidade mencionada encontra-se inserida também, e mais precisamente, no âmbito

animal, em que há animais inofensivos que são úteis ao homem e animais selvagens que

podem matá-lo ou feri-lo. É preciso dizer que, desde o início da literatura grega, com

Homero, o recurso de utilizar ações de animais para representar atos humanos mostrava-se

um meio estilístico muito eficaz, que se fazia por meio do caráter mimético da arte literária

helênica. Como não mencionar os diversos símiles homéricos que enfatizam, em alguns

momentos, a coragem e a destreza humana, e, em outros, a bestialidade da violência do

homem, representada pela irracionalidade animal. Em Homero, sempre que um ser humano é

comparado a um animal, o que se deseja é expressar, nesse mundo de heróis em meio à

guerra, uma superioridade ou um excesso. Como não mencionar ainda o mundo didático e

moralizante das fábulas de Esopo, em que os animais surgem para representar vários tipos

humanos, tanto com seus vícios negativos quanto com suas qualidades? A raposa, por

exemplo, representando o indivíduo sagaz, é um símbolo que persiste até hoje de um tipo de

inteligência, que evoca um caráter tanto negativo quanto positivo.

A relação do boi e do cavalo com a arte da atrelagem foi tratada no capítulo 2 por

causa da importância das metáforas formadas nesse âmbito. Nesse capítulo, serão vistas

metáforas esporádicas, mas não menos interessantes, de ações feitas por animais, que surgem

para expressar atos realizados por seres humanos, ou ações humanas no meio em que os

animais se encontram, além das metáforas provenientes da flora e da vegetação. Todas

servem para evidenciar o embate trágico no enredo, já que Ésquilo, em Persas, vai construir

à sua maneira o caráter representativo dos elementos da natureza, mas sempre com a

bagagem de um passado que já fincara seus valores simbólicos por meio da tradição helênica.

46 Tais metáforas serão analisadas quanto à sua forma de construção e ao seu funcionamento no capítulo 9. Alain

Moreau dedica todo o primeiro capítulo de seu livro a esse tipo de metáfora. MOREAU, A. Eschyle – la violence

et le chaos. Société d’ édition “Les Belles Lettres”: Paris, 1985. p. 21 – 55.

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6.1. A fauna, os animais domésticos e a interação humana

Começando pelo mundo animal e pela interação do ser humano nesse meio, ressalta-se

que Ésquilo irá prover seu texto de uma variada quantidade de imagens cuja função é se

utilizar de ações próprias de animais ou de homens em interação com eles para representar,

num nível simbólico, as necessidades que seu discurso trágico exige. Ocorre frequentemente

que uma ação humana, presente no texto, é passada ao receptor por uma ação própria de um

animal, como acontece, por exemplo, no caso figurado do indivíduo que salta para escapar da

armadilha preparada pelo caçador ou no caso dos mortos no mar que, por causa da força das

águas, batem com suas cabeçadas nas margens, ação expressa metaforicamente pelo ato de

chifrar, pertencente a certos animais. Essas e outras imagens que formam metáforas trágicas

começarão a ser analisadas a partir de agora.

6.1.1. O cão, a cadela

Uma dualidade de significado já se encontra no próprio âmbito da primeira imagem a

ser analisada, pertencente ao mundo animal. O simbolismo do universo canino está presente

na cultura grega de duas maneiras que se mostram opostas entre si. Pode-se encontrar, nos

contextos literários pertencentes à Grécia antiga, um sentido positivo proveniente de uma

representação simbólica que se baseia na fidelidade desse animal ao dono. Nessa expressão

de significado, a conhecida narrativa da Odisseia47

, em que o cão Argos, abandonado, velho

e doente, aproxima-se de seu dono Odisseu, depois de passados vinte anos, e o reconhece,

morrendo logo em seguida, basta para exemplificar a presença desse imaginário na cultura

grega, cuja permanência se mostra assim refletida desde os primórdios de sua literatura. O

cão aqui claramente simboliza a ideia de fidelidade. Por outro lado, pode haver também um

sentido negativo, que traz em si a ideia de dissimulação, falsidade, mau caratismo e mesmo

violência, estando inserido nesses âmbitos de significado o seu valor simbólico. Em

Agamêmnon de Ésquilo, Clitemnestra é citada por Cassandra como uma cadela odiosa48

. Em

Ilíada, há ainda alguns momentos em que os personagens se insultam evocando a imagem do

47 Cf. Odisseia. XVII, 290-327. 48 Cf. Agamêmnon, v. 1228. Clitmnestra é definida como possuindo a , língua de uma

odiosa cadela,.

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cão49

. Bem conhecido também é o famoso Iambo das Mulheres do poeta lírico Semônides de

Amorgos (século VII a.C.). Nessa sátira a vários tipos de mulheres, a mulher cadela se

mostra uma das mais vis50

.

Vale ressaltar que, em nenhum dos dois momentos em que o universo canino é

evocado em Persas, o termo , substantivo designador do cão ou da cadela, aparece no

texto. A metáfora se desenha pelas atitudes que se apresentam: pela ação de latir e pela

atitude ardilosa própria da cadela, que servirá para caracterizar um dos mais terríveis

demônios gregos, a .

Expressão nuclear 1: , ladra, late

Tantoo sentido positivo quanto o negativo podem estar presente em Persas, em atos

próprios do cão, havendo, contudo, muita incerteza quanto ao significado do enunciado

metafórico que se encontra no início da tragédia, todo ele formado em torno do termo

, latir.

O universo canino se mostra presente pela primeira vez em Persas por intermédio de

uma ação própria dos cães. Trata-se de uma imagem que busca na onomatopeia sua forma de

expressão, uma vez que o verbo, utilizado nessa passagem, significa algo como

fazer , ou seja, o som do latido dos cães51

. Os anciãos persas do coro emitem, por

meio desse verbo, um misterioso enunciado metafórico no párodo da peça, que traz a

necessidade da citação de um bom número de versos que o antecedem, para compreensão do

todo na medida do possível (vv. 8-13):

’ Mas, acerca do retorno do rei e do exército pleno de ouro, desde já,

49 Isso ocorre, por exemplo, no momento em que Aquiles chama Agamêmnon de , adjetivo composto

(raiz de , cão, associado à raiz de , olho, visão) qualificando pejorativamente o filho de

Atreu como alguém que possui olhos de cão (Ilíada, I, v. 159). Outro uso pejorativo do termo ocorre no momento em que Heitor, encontrando-se moribundo após o combate singular com Aquiles, implora por túmulo; o

Pelida, indignado com o pedido, utiliza o vocativo (Ilíada, XXII, v. 345) para se dirigir a Heitor. 50 Fr. 7, West. A passagem que faz a associação entre a mulher e a cadela encontra-se entre os versos 12 e 20. 51 Há na composição desse verbo o sufixo imitativo –, que lhe concede o sentido etimológico de fazer, imitar

o som .

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o meu coração, um adivinho de males,

fortemente atormenta-me por dentro.

Pois, toda a força nascida na Ásia

partiu, e ladra:o homem é jovem!

O enunciado metafórico encontra-se no verso 13, após a vírgula. A expressão nuclear

que evoca a imagem externa, estabelecendo tal enunciado, é claramente determinada pelo

verbo , ladrar, na 3ª pessoa do singular do tempo presente. A necessidade da citação

de tantos outros versos surge por causa de problemas inerentes ao texto, que apresenta

questões sintáticas e semânticas em meio à utilização do referido verbo. O texto citado

pertence à edição de Edith Hall, utilizada no estudo e tradução da presente tese, mas há

outros textos editados que diferem deste, sobretudo, quanto à pontuação. Os comentários que

serão arrolados primeiramente se baseiam no pormenorizado estudo empreendido por David

Schenker52

, mas, desde já, antecipa-se que as posições e soluções de Schenker e Hall não são

antagônicas53

.

O sujeito de é um primeiro problema que se impõe. Dependendo da

pontuação que se conceda ao texto ou apenas por meio de suas possibilidades de leitura, há

uma série de termos que poderiam ser o sujeito desse verbo. Poder-se-iam citar,

primeiramente, três hipóteses: , toda a força nascida na Ásia (v.

12), , coração(v. 11) ou , Ásia, que está na composição do próprio termo

. Schenker54

, contudo, afirma que, para ser sujeito de , é

necessário ou colocar toda a oração , pois, toda

força nascida na Ásia partiu, entre parênteses55

ou coordenar as orações dos versos 12 e 13.

Nesse último caso, seria sujeito tanto de quanto de , com a expressão

adquirindo a função sintática de aposto de .

Os problemas sintáticos e semânticos afloram diante do confuso e precário estado do

manuscrito, o que dá margem a outras possibilidades de sujeito, seja por meio da manutenção

do manuscrito seja por meio de correções propostas por helenistas. Na verdade, o que se tem

no texto manuscrito, no verso 13, é , construção das mais desafiadoras para os

52 SCHENKER, David. Aeschylus, Persians 13. Rhesniches Museum, 140 (1997), 8-16. 53 O texto que Schenker apresenta em seu artigo difere do texto editado por Hall apenas por possuir um ponto no

alto após o advérbio , fato que não ocassiona, entre os dois textos, uma substancial mudança de estrutura

ou significado. 54 SCHENKER, David. Aeschylus, Persians 13. Rhesniches Museum, 140 (1997), p. 9. 55 O texto estabelecido por Mazon, por exemplo, faz uso dos parênteses, tornando clara, desse modo, a opção de

como sujeito de . ESCHYLE. Les Perses. Texte établi et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles

Lettres.

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estudiosos. Schenker56

menciona a influente emenda feita por Fritzsche, publicada por

Teuffel e Roussell, que, ao invés de optar pelo termo em acusativo , jovem, propõe a

correção depelo termo feminino em nominativo , recém-casada, noiva, ficando,

portanto, o texto na forma . O procedimento tem o mérito de solucionar o

problema do sujeito de , ao trazer para o contexto literário o mundo das mulheres que

choram o marido que partiu para batalha, mas, por outro lado, deteriora o foco que faria de

Xerxes o indivíduo mencionado na passagem. Schenker descarta completamente a

possibilidade dessa referência, e Hall nem a menciona. Embora haja, em passagens

problemáticas, muitos significados flutuantes, questiona-se a validade de se fazer, no pouco

que se possui de um texto clássico, uma emenda tão radical, mais substitutiva do que

propriamente filológica. Enfim, a solução que é o extremo oposto, ou seja, manter

(pronome pessoal ou relativo no acusativo singular em forma épica), faz com que se constate

que, possivelmente, o sujeito de se perdeu em alguma lacuna posterior ao verso 13.

O pronome separa de tal modo a oração composta pelo verbo das orações anteriores

que seria forçoso considerá-la como tendo algum sujeito exposto anteriormente. Ao defender

igualmente a permanência do termo , Schenker57

faz menção ao argumento de que os

termos e não aparecem nas tragédias gregas subsistentes.

A posição de Schenker é precisa e lógica levando-se em conta o que o texto transmite

em sua obscuridade. O termo , força, com seus adjuntos, por se encontrar mais

próximo do verbo do que seus concorrentes, mostra-se como a escolha mais

plausível para desempenhar a função de sujeito58

. Ao mencionar o significado da passagem,

após posicionar-se quanto a sua organização sintática, o helenista vai considerá-la como um

lamento da parte do coro pela juventude e inexperiência de Xerxes, no exercício das funções

próprias de um rei, o que permite inferir que a passagem possui uma crítica negativa a

Xerxes (1997, 11 e 12):

Eu segui a maioria dos críticos em colocá-la como uma referência a Xerxes, e,

em particular, considero-a como uma referência a sua juventude e

inexperiência como rei. Contra este ponto de vista, pode ser arguido

primeiramente que por si mesmo é muito indefinido para se referir propriamente a Xerxes, especialmente porque ele já havia sido identificado em

efusivos detalhes (versos 5-6); e em segundo lugar que a frase adquire uma

conotação negativa, e se referir a Xerxes em termos críticos nessa parte da

peça seria inapropriado. (...) E eu espero demonstrar, em minha discussão de

56 SCHENKER, David. Aeschylus, Persians 13. Rhesniches Museum, 140 (1997), p. 11. 57 Ibidem. p. 11 58 Ibidem. p. 9.

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, que não é inapropriado uma crítica com referência a Xerxes, nesse

início da peça.

Schenker defende seu ponto de vista citando, sobretudo, Aristófanes59

, que utlizou o

verbo em um sentido negativo, exatamente porque, normalmente, tal verbo possui

uma conotação de hostilidade quando utilizado de maneira figurada. Schenker considera,

então, a expressão como sendo uma referência a Xerxes, não polemizando sobre a

mesma. A hipótese do helenista foca-se no sentido dessa referência como uma crítica à

inexperiência de um jovem rei, uma tendência que, posteriormente, irá aparecer

constantemente no texto após os personagens tomarem conhecimento da derrota persa60

, algo

que no párodo da tragédia ainda não havia acontecido. O helenista argumenta que, apesar do

respeito que o coro sente por seu rei nesse momento da peça, a menção (vv. 10-11) a um

, coração, que é um , adivinho de males, justificaria um receio premonitório

que culminaria em uma crítica negativa a Xerxes61

. Schenker, assim, apresenta uma proposta

de tradução para o verso 13 que é a seguinte: e ladra que o homem é jovem62

.

A helenista Edith Hall, em comentário presente na sua tradução e estudo da tragédia

Persas, levanta os significados que comumente se encontram associados ao ato metafórico de

latir, direcionando-se assim para o uso que a Antiguidade fazia de metáforas formadas pelo

verbo . A posição de Hall vai ao encontro da de Schenker, ao colocar o exército de

Xerxes como sujeito da ação, mas a helenista acrescenta um dado novo, ao aventar a hipótese

de uma intenção da parte de Ésquilo em expressar em Persas o exotismo próprio da linguagem

dos bárbaros, citando ainda possíveis traduções para a passagem (1997, p. 107 e 108):

é uma inesperada palavra para se achar no contexto, já que esta metáfora do latido dos cães frequentemente sugere o murmurar de uma

expressão de sentimentos misteriosos, hostis ou desafeiçoados (Agamêmnon,

449-50), embora aqui ela possa sugerir o estrangeirismo da linguagem, pois

em Persas, 574-5, o coro descreve sua própria voz como fazendo um triste

ruído de “latido”em lamentação. O texto pode ser traduzido como “rosna que

o homem é muito jovem”, ou “murmura ter um jovem (ou novo) rei”, ou ainda

“rosna „o homem é jovem!‟”.

59 Ibidem. p. 12 e 13. Aristófanes utiliza o verbo duas vezes na mesma comédia, a saber, Tesmoforiazusas (As Festas de Ceres). A primeira ocorrência é uma ordem insultuosa do personagem Eurípides (v. 173):

Pára de latir! É interessante mencionar que tal ordem se dá logo após o personagem Mnesílochos fazer uma interrogação exclamativa formada por palavras curtas que terminam com o som “o” diante

de ou (v 172): Como com os deuses? A frase soa, no contexto literário, como o latido de cães. Na segunda ocorrência, Mnesílochos se dirige de maneira insultuosa à mulher que o censurara (v. 895):

Late lançando uma crítica ao meu corpo. 60 O personagem Dario, com sua autoridade advinda do além, refere-se a Xerxes, por exemplo, como possuindo

um , jovem audácia (v. 744). 61 SCHENKER, David. Aeschylus, Persians 13. Rheinisches Museum, 140 (1997), p. 15. 62 Ibidem, p. 8.

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O ato de se lamentar insere-se, sem dúvida, na expressão sentimentos misteriosos

mencionada pela helenista, pois se percebe que, nas passagens apresentadas, tanto em

Agamêmnon63

quanto em Persas64

, Ésquilo se propõe aproximar tais latidos de lamentos.

Posição diferente é tomada pelo helenista Gilbert Murray. Pulquério o cita, em nota

presente na sua tradução de Persas65

(1992, p. 57), explicando que Murray concede à

passagem uma interpretação cujo significado leva em conta aspectos temporais e espaciais

que evocariam a imagem externa do mundo do caçador:

(...) o Coro evocaria o momento da partida do exército para a Grécia,

comparando os soldados a cães que ladram de impaciência em volta do dono

que vai para caça.

Mas é o próprio Pulquério, em mesma nota (1992, p. 57), quem propõe uma

interpretação que finalmente se apega ao lugar-comum da fidelidade do cão ao seu dono66

,

mostrando a passagem, portanto, como possuindo um valor positivo:

Por mim, creio que o pensamento do Coro está centrado no presente.

Proponho, por isso, outra interpretação: na sua inquietação, o Coro transfere-

se para a distância desconhecida onde neste momento se encontra Xerxes e

vive com ele a arriscada empresa, dócil como um cão à palavra do caçador.

É possível que exista, portanto, no ato metafórico de latir, que, como se pecebe, é

normalmente uma ação associada ao contingente do exército persa, um valor positivo e

benéfico, gerado pelas possibilidades simbólicas que se formam dentro do campo semântico

do termo .

Na presente tese, optou-se por considerar , toda a força

nascida na Ásia, como sujeito de , tanto por ser a possibilidade mais lógica quanto

pelo texto editado por Hall fazer uso de um ponto após o advérbio . Ao se traduzir

por ladrar, tentou-se deixar vaga a tensão obscura que surge aos olhos do homem

63 Nesta passagem do Agamêmnon, Ésquilo coloca o advérbio , em silêncio, no âmbito da ação expressa pelo

verbo , exprimindo assim o som de um sofrimento discreto e profundo. De fato, no contexto, o coro, fazendo uma reminiscência aos tempos da Guerra de Troia, canta o pranto daqueles que choram o guerreiro

morto: Isso, alguém, em silêncio, ladra. 64 Nos versos 574 e 575 de Persas, Ésquilo utiliza o adjetivo (nele se encontra o prefixo , que

indica desgraça), cognato a , para indicar a imensa tristeza do coro pela morte dos homens do exército persa. 65 Ésquilo. Persas. Coimbra: Imprensa de Coimbra, L. DA, 1992. 66 Ibidem.

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moderno entre crítica e lamento. A tradução por uivar, por exemplo, daria ao texto, por conta

do sentido figurado que tal verbo adquiriu no contexto comum do homem moderno, um

sentido mais próximo a um lamento, enquanto a tradução por rosnar se direcionaria mais

para a ideia do sentido crítico. A escolha por ladrar, verbo que no português não determina,

metaforicamente, um lugar-comum, parece melhor por conceder ao texto uma ambiguidade

original que deixa ao receptor moderno uma possibilidade mais ampla de leitura.

Resta dizer que o enunciado metafórico analisado pode ainda ter surgido de uma

interpolação de tempo bem posterior ao mundo da Atenas clássica, o que ocasionaria o fato

curioso de o próprio autor da tragédia não ser o autor desse verso sublinhado por um traço

onomatopaico. Mas algo é certo: seja Ésquilo seja outro indivíduo, o criador de tal passagem

sabia exatamente o seu significado, assim como também o sabia a audiência para o qual fora

direcionado. As possibilidades de interpretação, logicamente, não se esgotam com as

palavras de todos os especialistas citados, como também não se esgotam nunca, no discurso,

as possibilidades, a beleza e a profundidade da construção metafórica, que, por sua grandeza

semântica, pode dizer-se, é insubstituível sem perda de valor cognitivo. Vale ressaltar que o

desconhecimento do significado do verbo no contexto literário apresentadonão lhe

dá uma ausência de significado, mas uma pluralidade advinda de suas possibilidades

semânticas, que, usando de uma característica canina para enfatizar a maneira de agir,

provavelmente, de um exército invasor, forma a tensão que determina o trágico,

independentemente do significado que o verso possua. Tal verbo forma, assim, um

enunciado metafórico possuidor de função trágica.

Expressão nuclear 2: , amigável, abanando sua

cauda, desde o começo

Para se compreender bem o sentido simbólico da cadela no contexto literário de

Persas em uma expressão nuclear que a evoca como elemento maléfico, é preciso mencionar

a divindade cuja feição constrói-se, em parte, por uma qualidade relativa à cadela. Fala-se

aqui da . Na verdade, a palavra pode tanto ser uma força divina e sobrenatural

quanto simplesmente um ato ocasional errôneo. Em ambos os casos, apresenta-se a

deteriorização da mente do homem que é dominado por sua atuação, que determina a

perdição do herói trágico, ou seja, sua própria morte ou a morte daqueles que, de alguma

maneira, estão ligados a ele. Moreau (1985, p. 154) menciona a ambiguidade da palavra

em determinados contextos e seus diferentes significados:

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A palavra é uma palavra ambígua. Primeiramente porque é difícil de fazer a

separação entre a abstração e a abstração personificada (ou seja, o demônio); em

segundo lugar, porque, ao lado dos empregos onde a aparece como uma força

agitante, existem metáforas que apresentam uma passiva, uma coisa, tal como

“espiga da perdição” (, Persas, 821-822), que produz a desmedida que

mata; enfim, porque a palavra possui dois sentidos diferentes: “perdição,

cegueira, erro” (ou “, a Desnorteadora”), “ mal, catástrofe, ruína” (ou “ , a Destruidora”).

Na ambiguidade que lhe é própria, podendo ou não aparecer de maneira personificada

no contexto literário (a interessante metáfora que cerca a expressão será

tratada mais adiante), Moreau afirma que o termo , em seu sentido de perdição, cegueira,

erro, permite que os helenos lhe concedam o epíteto de a Desnorteadora, no momento de sua

personificação. Já, continua o autor, no sentido de mal, catástrofe, ruína, a possível

personificação se faz para uma Destruidora. Nesse seu duplo sentido, que vai ao

encontro de seu próprio campo de atuação, pode-se dizer que ela se mostra presente antes da

falta trágica e depois de tudo consumado.

O termo não possui necessariamente um sentido pejorativo na Grécia antiga67

,

uma vez que serve para designar qualquer divindade, que, apenas ao ser nomeada, irá possuir

enfim um sentido maléfico ou benéfico advindo de suas características específicas. O caráter

maléfico que pode acompanhar o termo depende unicamente da divindade que lhe é

associada, e a é, sem dúvida, uma divindade causadora de malefícios. Na Atenas

clássica, está completamente estabelecida a ideia da como um demônio traiçoeiro que

faz o homem cometer uma falta (, a desnorteadora) e cair em desgraça, uma vez que

esse erro cometido se mostra fatal ( , a destruidora).

Na tragédia Persas, cabe ao grande rei persa Xerxes o papel do homem cuja louca

desmedida lhe traz a perdição, pois é ele que, atravessando o Helesponto, com uma ponte

atada por botes, desrespeita a corrente de um deus, no caso, Posêidon. Por causa desse

excesso, Xerxes é derrotado e todo o seu exército aniquilado. Esse excesso é explicado pela

força divina que o produziu, a . O termo aparece pela primeira vez na peça em meio à

união de duas imagens externas que formam o enunciado metafórico produzido pelo coro no

párodo (as características do texto que evocam a figura do caçador serão tratadas mais

adiante) (vv. 97 e 98):

67 No Novo Testamento, o termo sempre aparece para designar uma divindade maléfica que se opõe ao deus único

supremo que é sua antítese.

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Amigável, abanando a cauda, desde o começo, a Áte

conduz o mortal para suas redes;

Percebe-se a imagem externa da cadela na utilização que Ésquilo faz do adjetivo

, amigável, e do particípio , abanar a cauda para (alguém),

expressões nucleares que, longe de terem no texto significação positiva, indicam o caráter

traiçoeiro da , ao evocarem a imagem da cadela que acaricia e festeja o homem para

depois mordê-lo. A ideia formada pelo enunciado exprime a sedução pela qual um indivíduo

é tomado quando está diante de um feito que ele não pode realizar. O poder tanto almejado

por Xerxes, com seus desejos de expansão territorial pela Grécia, encaixa-se perfeitamente

nessa imagem, uma vez que o grande rei só recebera males em troca de suas aspirações.

A polissemia, que permite tomar a nessa passagem como uma força divina que

agita o homem causando-lhe malefícios, dá-se porque, no discurso de Ésquilo, a imagem

externa da cadela complementa-se com outra imagem externa, representando todo o percurso

do caos mental do homem dominado por tal divindade. É pela união de duas imagens

externas que é possível perceber plenamente tanto a força causadora de males quanto o mal

em si, já consumado. O advérbio , numa posição intermediária e ambígua está

ligado tanto ao particípio citado quanto ao verbo , conduzir, localização que o faz

adquirir a função de termo harmonizador de imagens externas, uma vez que diz respeito, ao

mesmo tempo, ao animal que abana sua cauda desde o princípio e à força que conduz o

homem desde o começo para a desgraça, imagem externa esta última que fica a cargo da

evocação de elementos que se encontram no âmbito da figura do caçador, como se verá agora

(ver, mais precisamente, a expressão nuclear 3 da próxima imagem).

6.1.2. O caçador, seus utensílios e o animal caçado

A segunda imagem externa que retrata, por assim dizer, a ,busca seus elementos

externos no mundo do caçador. Nesse discurso metafórico, a representa a própria figura

do caçador, enquanto o ser humano se torna o animal caçado. Essa imagem emoldura as

ações desta divindadeque evocam o âmbito canino (v. 97 e 98), surgindo, pela primeira vez,

no verso 93, antes mesmo de a imagem da cadela aparecer, e tendo sua última aparição no

verso 99, em um enunciado metafórico que funde a imagem da cadela à da caçadora.

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Seguem-se as diversas expressões nucleares que dizem respeito ao mundo do caçador em

meio aos diversos enunciados metafóricos criados por Ésquilo.

Expressão nuclear 1: , escapar da traiçoeira cilada

A expressão nuclear que evoca a figura do caçador aparece desde o início da passagem

que diz respeito à , formando um enunciado metafórico que coloca em oposição os dois

elementos em jogo, o caçador e o animal caçado. O coro, no párodo da peça, faz menção a

um imaginário que toma a como umacaçadora de homens que, como animais caçados,

intentariam, em vão, fugir da armadilha preparada pelo seu perseguidor (vv. 93 e 94):

Da traiçoeira cilada de um deus,

que indivíduo mortal poderá escapar?

A expressão , traiçoeira cilada, no contexto literário expresso,

indica uma artimanha que chega a evocar mesmo a ideia da armadilha concreta pela qual o

caçador intenta prender astuciosamente a sua presa, que pretende escapulir da cilada, numa

ação igualmente metafórica expressa pelo verbo , escapar. Esses termos formam a

expressão nuclear do enunciado metafórico, sendo os portadores da imagem externa evocada.

Os termos que não fazem parte da imagem externa encontram-se no sentido literal; são eles a

palavra , homem, e , deus, que, não sendo palavras que dizem respeito ao animal e

ao caçador, fazem parte da imagem interna, uma vez que há, de fato, no contexto literário

proposto por Ésquilo a presença de um deus e um homem em oposição. Na associação desses

elementos internos com os externos, forma-se o todo do enunciado metafórico que expressa o

agir de uma força sobrenatural em oposição ao grande rei persa Xerxes, tendo-se, assim, uma

metáfora trágica que se utiliza do mundo da caça para expressar a própria perdição pela qual

se lança o personagem. Esse mesmo caráter prossegue em todos os outros enunciados

metafóricos produzidos pela evocação da imagem do mundo do caçador e do animal caçado.

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Expressão nuclear 2: , com o pé veloz, (...) de um salto

ágil

Com a próxima expressão nuclear, a imagem do mundo da caça fica mais evidente

ainda, ao acrescentar ao enunciado metafórico do coro uma ação repleta de movimento que diz

respeito à tentativa de um salto por parte de um indivíduo perseguido, que, como um animal,

teria o intuito de escapar da ardilosa armadilha preparada pelo caçador (vv. 95 e 96):

Quem, com o pé veloz, é o senhor de um salto ágil?

O termo pode dizer respeito tanto ao pé humano quanto à pata de um animal, e

isto consiste num dado muito interessante, uma vez que o funcionamento da metáfora aqui

depende exatamente dessa oscilação entre o mundo humano e o animal. Na verdade, há no

contexto literário um homem, que realiza uma ação metafórica que pertence ao âmbito de um

ágil animal caçado. Apenas o pronome interrogativo e o particípio substantivado

, que dizem respeito, de fato, a um indivíduo humano, encontram-se no sentido

literal. Qualquer tentativa de parafrasear a passagem para um sentido puramente literal

resultaria num enunciado que comprometeria a própria expressão trágica do variado discurso

esquiliano. Uma tradução do tipo Quem, com rápido raciocínio, é senhor de se livrar do

perigo? prejudicaria muito o valor artístico tipicamente trágico que se encontra no texto

original.

Expressão nuclear 3: (), desde o começo, conduz

para suas redes

Esta expressão nuclear tem estreita relação com a imagem externa já analisada: a que

faz uso da evocação do mundo canino, mais precisamente, das atitudes simbólicas próprias

da cadela. Ao fazer uso do termo , redes68

, instrumento que diz respeito à

armadilha pela qual o caçador se vale para capturar sua presa, Ésquilo une a imagem da

caçadora à imagem da cadela já mencionada. Dá-se um misto de duas imagens, que

68 A imagem da besta presa em uma armadilha e suas metáforas têm importância fundamental no Agamêmnon.

Dumortier trata dela no capítulo V de seu livro, fazendo referência inclusive aos tipos de redes que o caçador

utilizava em sua caçada. Cf. DUMORTIER, Jean. Les Images dans la Poésie d‟ Eschyle. Paris: Société d’ Édition

“Les Belles Lettres”, 1975. p. 71 – 87.

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caracterizam duplamente a : a cadela que seduz e desnorteia, e a caçadora que prende o

indivíduo em sua armadilha. O verbo , conduzir, associado ao substantivo

mostra exatamente, de forma figurada, esse movimento que faz o indivíduo ir do

desnorteio à perdição. A dupla faceta da se define por meio dessas duas imagens, pois o

divino em dois momentos age contra o homem, primeiramente desnorteando-o para que

cometa um crime em excesso e, depois, castigando-o.

Todos os enunciados metafóricos que controem a feição da , tanto os que

evocam o universo canino quanto os que evocam o mundo do caçador (ambos, na verdade, se

complementam) são formadores de um importante embate trágico que ocorre no enredo da

peça, sendo, portanto metáforas portadoras do trágico. Por meio das imagens evocadas do

cão e do caçador, Ésquilo, com seus enunciados metafóricos, mostra o desenvolvimento pelo

qual passa o personagem trágico, que vai da grandeza à perdição. O discurso figurado

esquiliano constrói o embate entre Xerxes e as forças divinas, com prejuízo para o primeiro,

e, sendo a perdição de Xerxes algo de interesse dos gregos, pode-se dizer que se forma pela

atuação da uma oposição que indiretamente parte dos gregos para ir de encontro aos

persas.

6.1.3. O voo do pássaro

O pássaro, com seu potencial de voo, sempre causou admiração ao homem da

Antiguidade, fornecendo-lhe um vasto campo de símbolos que perpassam até mesmo por

contextos religiosos, pois é digno de nota o fato de o termo , pássaro,significar

também presságio na Grécia antiga, sendo inclusive bem conhecida a atitude dos adivinhos

gregos de olhar para o céu a fim de observar o voo dos pássaros em busca de respostas acerca

do futuro. Nesse caso, o voo adquire uma importância preponderante, mas apenas esse ato

por si só, concedido de forma artística a objetos ou seres terrestres, é o suficiente para a

imaginação grega expressar contextos cuja função é enfatizar a superioridade advinda do ato

de voar. O anseio do homem pelo poder de voar pode ser sintetizado pelo mito de Ícaro, tão

antigo quanto atual, em que a narrativa do homem que cai em perdição por ultrapassar a

medida se mostra bem propícia à expressão do trágico. Ícaro se utilizou de um poder que não

era seu por natureza, e sua estupefação e excesso de confiança lhe causaram a morte. O

pássaro, ser alado, possui algo de que o homem, ser terrestre, não é detentor, e desse fato vem

o fascínio humano perante imagens aladas que, quando associadas a contextos em que não

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existe literalmente o voo de um pássaro, formam metáforas que enfatizam a superioridade do

ser que pratica tal ação figurada.

Expressão nuclear 1: , com asas simétricas de aspecto

escuro (os) levaram

No discurso trágico criado por Ésquilo em Persas, as naus gregas, que foram a causa

da derrocada do exército de Xerxes, ao produzirem um verdadeiro morticínio em Salamina,

são apresentadas metaforicamente pelo coro de anciãos no primeiro estásimo da peça com

uma característica própria da fisiologia dos pássaros, o , asa, parte do animal que é

responsável pelo seu voo e que serve, no contexto literário produzido por Ésquilo, para

expressar o impacto que as naus gregas causaram aos olhos dos persas. Ao aparecerem

repentinamente, em sua forma ameaçadora, em um movimento de aproximação que é

enfatizado pela ação metafórica de asas batendo, as naus gregas são impulsionadas pelos seus

remos para trazer a morte aos homens que se encontram diante delas. É evidente a ênfase na

agilidade e no poder das naus gregas em detrimento da pouca maleabilidade e da falta de

organização das grandes embarcações persas69

(vv. 558 – 560):

(...)

soldados e marinheiros,

naus com asas simétricas

de aspecto escuro os levaram, (...)

Constrói-se por meio da associação da imagem externa (pássaro com asas) com a

imagem interna (nau com remos) uma visão de temor cuja superioridade, que leva os

marinheiros persas à morte, é enfatizada exatamente pela presença de elementos que dão às

naus características aladas. A raiz -, presente no substantivo , asa, junta-se ao

tema - do adjetivo , idêntico, igual, formando o adjetivo composto , com

69 No primeiro episódio, por intermédio do mensageiro, a superioridade da frota naval ateniense já havia sido

mencionada de maneira técnica. As naus gregas apareciam designadas pelo advérbio (v. 399)(cognato

ao substantivo , ordem, organização), organizadamente, e pelo dativo de meio (v. 400), com ordem. Nas passagens de sua obra em que discorre acerca da Batalha de Salamina, Heródoto também faz uso de

determinantes não muito diferentes dos utilizados por Ésquilo, ao colocar em seu texto as expressões , com ordem, e , em organização (Histórias, VIII, 86). Esse autor enfatiza ainda a falta de destreza dos

persas na investida de suas naus por meio da afirmação , e não fazendo nada com inteligência (Histórias, VIII, 86). Tanto Ésquilo quanto Heródoto desejam enfatizar a superioridade da

organização grega em detrimento da desorganização persa.

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asas simétricas, que, dizendo respeito à simetria existente entre as asas do pássaro e os remos

da nau, faz a notável associação entre ambos. As asas fazem referência exatamente aos remos

que, dispostos em cada um dos lados de uma embarcação, movimentam o navio sobre o mar

azul, da mesma maneira que as asas locomovem os pássaros em seu voo pelo céu.

Esse enunciado metafórico que apresenta remos semelhantes a asas de pássaros produz

a representação ameaçadora das terríveis naus dos atenienses que dizimaram sem piedade os

homens das tropas marítimas e da armada persa. A presença da asa potencializa a ideia de se

conduzir um objeto para um lugar, como faz uma ave de rapina que carrega sua presa para o

ninho. O uso do verbo , levar, conduzir, mostra esse ato de forma metafórica, uma vez

que os inimigos dos atenienses foram, na verdade, levados para a morte70

. A imagem do

pássaro que leva sua presa para um lugar longínquo até desaparecer com ele se encontra

inserida numa metáfora que exprime o dano para os persas. Esse caráter danoso é, por fim,

complementado pelo adjetivo , de aspecto escuro, que retrata mais a situação dos

persas do que propriamente as cores das asas metafóricas. Ao fazer a relação entre uma ação

do mundo dos pássaros e o mundo em guerra presente em Persas, Ésquilo forma uma

metáfora trágica, ao inserir no texto uma ação que enfatiza o trágico exatamente pelo fato

surpreendente de essa ação, em si mesma, nada possuir de maléfica71

. O ato de voar só pode

estabelecer o mal, no caso, para os persas, quando harmonizado metaforicamente no discurso

esquiliano.

Expressão nuclear 2: , uma névoa do Estige voa sobre

No próximo enunciado metafórico com elementos advindos do mundo dos pássaros, é o

próprio ato de voar que se mostra evocado para preencher um significado bem diferente do

mencionado anteriormente. Ambos os contextos formam metáforas claramente trágicas que

têm como foco uma oposição aos persas, mas, enquanto a primeira se direciona para o

passado, produzindo o retrato de uma nau vingadora em meio à narrativa de acontecimentos

pretéritos, a próxima se direciona para o presente, ao dizer respeito à dor dos persas durante a

ação apresentada em cena, diante dos acontecimentos catastróficos em Salamina. O

enunciado metafórico é produzido pelo coro de anciãos no segundo estásimo da peça (v.

667):

70 De forma semelhante ao verbo de movimento , partir, que em seu sentido figurado pode significar

morrer, o verbo também adquire esse valor no contexto em questão. 71 Tem-se aqui, portanto, uma metáfora paradoxal, formada por uma expressão nuclear externa paradoxal. O

fenômeno e seus conceitos serão estudados mais profundamente no capítulo 9.

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Uma névoa do Estige voa sobre nós:

Apesar de ser composto por apenas um verso, este enunciado metafórico traz uma

complexidade bem acentuada devido ao fato de se formar pela associação de duas imagens

externas a uma imagem interna. Além do ato de voar, evocado pelo verbo , há a

presença metafórica da névoa que se forma sobre o rio Estige. O enunciado não deixaria de

ser metafórico se não houvesse a presença do elemento que diz respeito ao pássaro, ou seja,

haveria apenas uma imagem externa a menos se Ésquilo tivesse construído seu verso, por

exemplo, simplesmente com o verbo , formando assim um verso que poderia ser

traduzido por A névoa do Estige está sobre nós. Também continuaria a se ter um enunciado

metafórico se fosse usado apenas a outra imagem externa, a do ato de voar, tendo-se uma

construção do tipo A tristeza pela morte voa sobre nós. Da mesma maneira que o verso

original, as paráfrases formadas de apenas uma imagem externa não se encontram de forma

literal no contexto, não há concretamente nenhum rio e nem qualquer névoa real nessa

passagem da peça, e nenhuma ação de voo é de fato feita, mas as imagens externas se

harmonizam de tal maneira que é impossível pensar o enunciado sem uma das duas.

Considera-se que essa digressão acerca da presença de mais de uma imagem externa para

produzir o efeito metafórico foi importante para um perfeito entendimento do enunciado

formado72

.

A narrativa em torno do rio Estige, um dos rios mitológicos que se encontram nos

Infernos, apresenta características relacionadas com a morte, que lançam luz ao significado

desse rio no contexto literário idealizado por Ésquilo73

. As duas imagens externas, que

metaforicamente mostram uma névoa que passa por sobre a cabeça dos anciãos do coro,

atuam juntas para formar a ideia de uma dor moral que assola esses homens, representantes

do povo persa nessa passagem. A névoa característica desse rio sombrio, diz respeito,

literalmente, ao pensamento por parte dos anciãos pela morte dos jovens persas que foram

72 Esse fenômeno já havia aparecido antes, nessse mesmo capítulo, mais precisamente no item 5.1.1, nas duas

imagens externas que qualificam a com ações advindas da cadela e do caçador 73 É nesse rio que Tétis mergulha Aquiles, segurando-o pelo calcanhar, no intuito de torná-lo invulnerável, fato

que enfatiza o caráter mágico e curativo de suas águas, mas, opostamente a essa narrativa, a água do Estige

aparece também como prejudicial ao homem, sendo um veneno atroz. Cf. verbete Estige: GRIMAL, Pierre.

Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Por ser uma tragédia, Persas se

utiliza da segunda ideia, mais apropriada à morte.

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combater em Salamina74

. Ela representa, assim, o árduo destino imutável, que agindo acima

do homem, vai lhe impor uma aceitação passiva e resignada diante dos desígnios terríveis do

destino. A ideia, predominantemente trágica, é bem propícia para estar presente numa peça

esquiliana, que tem seu mundo dominado por forças sobrenaturais que agem sobre a ação em

cena. O termo , névoa, associado ao verbo , voar, expressa de maneira

contundente esse caráter.

6.1.4. O ato de chifrar, cornar

O primeiro enunciado metafórico apresentado com elementos alados proveniente do

mundo dos pássaros criou um objeto, mais precisamente a idealização de uma nau

ameaçadora; já o segundo estabeleceu um sentimento humano de pesar e tristeza. Apesar de

este último caso também estar inserido no meio humano, com o ato de chifrar, como ocorrera

anteriormente com o enunciado metafórico produzido pelo verbo , latir, ladrar, há

um retorno mais preciso ao campo das ações próprias de animais que são utilizadas para

expressar o agir humano. Sua utilização dota o texto de beleza ao mesmo tempo em que

enfatiza um determinado momento trágico do enredo, afigurando-se, por isso, como uma

imagem externa produtora de metáfora trágica.

Expressão nuclear: , chifravam, cornavam

A tétrica imagem de cadáveres boiando sobre as águas e batendo com suas cabeças na

terra que margeia o mar é passada aos receptores do discurso trágico esquiliano em Persas

por intermédio do ato de chifrar, ação pertencente a certos animais domésticos ou mesmo

selvagens. É o mensageiro que expressa o enunciado metafórico em questão, no primeiro

episódio da tragédia, durante a passagem conhecida como Lista dos mortos na guerra (vv.

308-310):

74 O verso seguinte, por possuir a conjunção , visa a explicar a presença do enunciado metafórico da névoa

voadora do rio Estige: , toda a juventude já se encontra completamente

aniquilada. Ésquilo. Persas. v. 670.

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Lilaios, Arsames e um terceiro, Argestes,

estes, em torno da ilha alimentadora de pombos,

vencidos, chifravam a vigorosa terra;

A imagem externa se insere no enunciado por meio da utilização do verbo ,

cornar, chifrar, o termo isolado que forma a expressão nuclear. Toda a ação se apresenta,

assim, figurada, numa alusão a um caráter patético que faz com que o movimento

involuntário de indivíduos mortos se assemelhe às chifradas de um animal. Não se pode

afirmar que tal construção tenha um sentido pejorativo que recaia sobre os persas vencidos,

que seriam diminuídos em sua humanidade ao receberem uma determinação animalesca75

. O

que se vê, de fato, é uma bem sucedida tentativa de ênfase no trágico, pois, no momento em

que se enriquece metaforicamente uma ação casual, sem participação consciente de homens,

exprime-se uma ação vigorosa, que, extraída do mundo animal, exprime as cabeçadas

desferidas pelos persas mortos por meio da agitação do mar. Uma paráfrase literal que

dissesse que os persas eram levados a bater com a cabeça na terra seria muito menos trágica.

6.1.5. A serpente

No caso do enunciado metafórico em que cornadas de animais são transferidas para

ações de persas mortos, o ato humano, mesmo que involuntário, associado a uma

característica animal, serve para enfatizar o acontecimento trágico exposto pelo mensageiro.

No próximo enunciado metafórico, a ênfase se direciona para a própria ação humana, com a

bestialidade do animal servindo ao retrato de um homem tomado pelo excesso. A serpente é,

nesse momento, o animal utilizado simbolicamente, que, juntamente com a cadela, compõe

por excelência a lista dos seres vis no imaginário do homem helênico.

Expressão Nuclear: , a profundidade azul sombria de

uma serpente assassina

O coro de anciãos, no párodo, em meio ao catálogo que visa a apresentar os nomes de

vários chefes e povos bárbaros e ainda a enfatizar o excessivo poderio desses homens em

75 Compartilha-se aqui da opinião de Pulquério, que não vê um significado pejorativo no verbo. ÉSQUILO.

Persas. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 1992, p. 59, nota 27.

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representações repletas de excesso, emite um enunciado metafórico que faz uma arrojada

relação entre o olhar ávido de ódio e poder de Xerxes e o da serpente (vv. 81 – 83):

(...)

Aparentando, nos olhos, a profundidade

azul sombria de uma serpente assassina,

o detentor de muitos braços e muitas naus, (...)

A serpente, , é um réptil cuja mordida injeta um veneno mortal. Assim sendo,

enquanto, simbolicamente, a cadela teria melhor serventia para designar o caráter

dissimulado, a serpente é o melhor animal para fazer menção ao indivíduo com ímpeto

assassino. A evocação da imagem externa de uma serpente, com seu olhar sempre pronto a

dar o bote mortal, representa no texto esquiliano um poder que pode matar e que, por isso,

consiste num excesso. No texto, o caráter de violência é bem enfatizado nas determinações

que Xerxes recebe no verso 83. O grande rei persa é , detentor de muitos braços,

expressão metonímica que faz menção ao tamanho exagerado de sua tropa de homens, e,

além disso, é também , detentor de muitas naus. Em sua completude, o

enunciado metafórico se mostra claramente trágico, ao fazer menção a um líder poderoso e a

um exército imenso que estão prontos para dizimar os gregos. Trata-se de mais uma oposição

que, partindo dos persas, vai de encontro aos gregos.

6.1.6. O enxame de abelhas

A construção seguinte é um enunciado metafórico comparativo. Pela primeira vez, tem-

se a evocação de um coletivo, mais precisamente, a presença idealizada de um enxame de

abelhas. A abelha não entra no rol dos animais vis, pelo contrário, como produtora de mel,

ela traz ao homem grego, normalmente, ideias relativas a trabalho e dedicação76

. Conclui-se,

assim, que o caráter trágico que acompanha a utilização das abelhas para preencher o

76 Fr. 7, West. Simônides de Amorgos, em seu iambo sobre as mulheres, usa a abelha para representar a melhor

mulher que um marido poderia ter: dedicada e trabalhadora. Trata-se do único tipo de mulher, em seu poema,

com uma caracterização positiva (vv. 86-93), mostrando bem como a abelha possuía uma boa aceitação dentro

do imaginário helênico.

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conteúdo literário de Persas é advindo, sobretudo, do caráter coletivo77

da expressão, que,

servindo para conceder à passagem uma ideia de grande quantidade, enfatiza os

impressionantes números da armada persa e o seu consequente poderio, cujo objetivo é trazer

destruição aos gregos para impor-lhes a dominação. Não trazendo, normalmente, significados

relacionados com malefícios quando utilizada em meio à cultura grega e tendo, pelo

contrário, um caráter benfazejo, a presença da abelha em Persas marca bem o que seria uma

metáfora do tipo paradoxal, por conceder, na construção de um discurso trágico, um caráter

negativo a um ser vivo em que abundam características positivas.

Expressão nuclear: , como um enxame de abelhas, se

perdem

A passagem em questão, vindo pouco depois do grande catálogo inicial de nomes de

comandantes e povos bárbaros, constrói, pelo seu caráter coletivo, a magnitude da armada

persa, produzindo o enunciado metafórico expresso pelo coro de anciãos, no párodo da peça

(vv. 126 – 132):

Todo cavaleiro e a massa em terra,

como um enxame de abelhas, perdem-se junto ao comandante do exército, após deixar conjugados ambos os cabos marinhos,

antes comuns a cada uma das partes da terra.

Ésquilo cria um símile com o uso da conjunção , como, para fazer a relação entre

um , enxame de abelhas, e um imenso exército. O caráter de excesso dessa

vez toma a forma de um enxame de abelhas, que é mais uma imagem externa extraída do

campo semântico da natureza, que, em si mesma, nada tem de maléfica. Tal imagem concede

ao enunciado o retrato de um exército que se perde em extensão como um enxame de

abelhas, e, assim sendo, pode-se considerar o verbo , desaparecer, perder,

abandonar, como um termo harmonizador de imagens, uma vez que diz respeito tanto ao

enxame de abelhas, que se alonga até perder-se de vista, quanto ao exército de Xerxes que

77 Platão no Mênon (72b) também utiliza a metáfora do enxame para falar de uma extrema quantidade a nível

dialético. O personagem Sócrates, por meio da expressão , enxame de virtudes, censura o

excesso de definições que Mênon pretende conceder à virtude.

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desaparece no horizonte devido ao seu tamanho. Enfatizando, por fim, ainda mais o caráter

de excesso e, consequentemente, de oposição trágica do enunciado metafórico, encontra-se a

menção ao ato transgressor de Xerxes em unir com uma ponte os dois cabos marinhos. Há,

no enunciado metafórico, a presença de outra imagem externa, que é evocada pelo adjetivo

, conjugado, unido, ligado pelos dois lados (v. 130). Trata-se de mais uma

expressão nuclear relacionada com , jugo, semelhante a várias outras que foram

estudadas no capítulo 3, tendo-se aqui uma composição em que a raiz se une ao

prefixo preposicional , em torno, ao redor.

6.1.7. O rebanho e o pastor

Algumas imagens externas de Persas aludem ao meio rural, ou por meio de um ato

característico da vida campesina ou por meio da citação de um ofício inerente aos homens

que trabalham nesse meio. Diante da vida pacífica que o homem do campo possuía, pode-se

antecipar que os enunciados metafóricos formados com esses elementos campestres têm

nítido valor paradoxal no texto esquiliano, uma vez que enfatizam, de uma maneira toda

especial no discurso trágico construído, o iminente combate entre gregos e persas. Nos dois

enunciados metafóricos que serão apresentados, o grande rei Xerxes, com seus excessos

característicos mostrados no contexto literário, é a figura a que são associados os elementos

campesinos.

A liderança que Xerxes possui sobre seus comandados, mesmo sobre aqueles que são

chefes persas, e a aceitação pacífica deles diante de tal situação possibilitam, em Persas, o

sentido figurado da ideia de um pastor que tem completo domínio sobre os animais de seu

rebanho.

Expressão nuclear 1: , impelir um rebanho

A imagem externa de um pastor que apascenta seus animais domésticos adentra no

conteúdo literário de Persas para mostrar a ação de um homem que comanda um exército e o

conduz contra seus inimigos. O rei Xerxes é caracterizado como um ,

comandante 78

impetuoso, que conduz sua armada como se um pastor estivesse conduzindo

78 O surgimento de uma metáfora depende da compreensão que o receptor do discurso tem dos termos que

compõem o enunciado metafórico. Não é possível afirmar que o cidadão-receptor da tragédia entendesse aqui o

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seu gado através dos campos. A imagem externa, por si só repleta de inocência, serve, no

discurso trágico esquiliano, para enfatizar o momento da imagem interna, que diz respeito à

investida persa contra os gregos, produzindo o enunciado metafórico expresso pelo coro de

anciãos no párodo (vv. 73 – 75):

(...) (...)

(...) um comandante impetuoso, contra toda a terra, impele um rebanho divino, (...)

Ao ter êxito em enlear a imagem externa à imagem interna, Ésquilo forma um

enunciado metafórico que determina o trágico plenamente, numa oposição que parte dos

persas para ir de encontro aos gregos. O termo , rebanho, associado ao verbo

, impelir, conduzir, determina no texto o ato próprio do meio campesino, que se

encontra harmonizado para fins de expressão do trágico no discurso literário criado pelo

autor.

Um segundo enunciado metafórico advindo desse âmbito campesino usa de um

determinante que se direciona para a figura de um chefe. Trata-se, é evidente, de uma sutil

crítica, proveniente da mentalidade grega, à forma como os bárbaros aceitavam sem

questionamentos a subordinação que seu rei lhes impunha. Uma censura à relação que se

estabelece entre Xerxes e seu povo, tomando por base a autoridade do rei diante da armada

enviada para a Grécia, está subjacente à passagem.

Expressão nuclear 2: , pastor de homens

A figura do ,pastor, insere-se no conteúdo literário de Persas com um sentido

figurado proveniente de um imaginário construído através do tempo. O pastor como um guia

não de animais (sentido literal em que há simplesmente valor espacial da ação de guiar), mas

de homens, possibilita a construção de um discurso que se finca na autoridade de um homem

sobre vários outros. Nesse caso, o sentido de lugar para onde vai se diluir diante da presença

de uma ação que faz do pastor uma espécie de guia figurado. O ato de guiar, nesse contexto,

termo com uma associação a arconte (fato que lhe daria o estatuto de metáfora), uma vez que já havia

toda uma tradição advinda desde os poemas homéricos que dá a esse termo o sentido de chefe. A maioria dos

estudiosos prefere traduzir o terrmo como chefe ou coisa semelhante, entendendo, portanto, que não há metáfora no uso dessa palavra (não haveria a evocação de uma imagem política externa pertencente ao mundo de

atuação dos arcontes). Dumortier não o cita em seu livro. A questão, contudo, é problemática, uma vez que não

existe mais a audiência para a qual o presente discurso foi construído.

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diz respeito muito mais a um domínio e a um comando do agente, determinado por seu

mérito e competência, sobre outras pessoas do que um sentido espacial. Se, no exemplo

anterior, o uso da imagem externa da figura do pastor indicava, mais precisamente, o

movimento de homens que rumavam para Atenas, nesta segunda passagem o significado de

autoridade encontra-se muito mais presente. Tal enunciado metafórico é expresso no

primeiro episódio em uma pergunta da rainha Atossa ao corifeu (v. 241):

Que pastor de homens está à frente do exército e o comanda?

O enunciado é uma crítica ferrenha à forma como os povos bárbaros eram

subordinados a seus líderes. Ésquilo associa, metaforicamente, a figura do pastor a um

possível líder que, segundo a concepção da rainha, seria necessário para que os helenos

tivessem superado os persas. A raiz , proveniente do verbo , fazer pastar,

evoca a imagem externa do mundo campesino, vindo numa composição com o termo ,

, homem, construção vocabular esta que ocasiona o fenômeno curioso de se ter em

uma mesma palavra um elemento figurado (pastor) e outro literal (homem), que faz menção

aos indivíduos que são guiados pelo comandante. Com seu caráter hipotético que diz respeito

a um possível indivíduo grego que teria derrotado os persas em Salamina, tal metáfora

mostra uma tragicidade que se direciona para o povo bárbaro.

Expressão nuclear 3 e 4: , domadores do arco, e , domador do

arco

O mesmo fenômeno de composição vocabular em que dois radicais apresentam, por

meio de seus semantemas, um sentido literal e outro figurado está presente nas próximas

expressões nucleares79

. O exército de Xerxes, na lista que o mostra em todo o seu esplendor e

ameaçadora presença, é citado como sendo, genericamente, composto por ,

domadores do arco, e , cavaleiros (v. 26). O termo , concedido a

um bom número de componentes da armada persa, é repetido pouco depois, ainda no

catálogo, para designar a perícia no arco e o excesso de um único homem. Considera-se ser

suficiente citar apenas esse segundo enunciado metafórico, que, além de não aparentar uma

79 Esse fenômeno próprio de algumas composições esquilianas será analisado mais profundamente no capítulo 9.

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diferença significativa em relação ao primeiro, mostra-se mais interessante em sua

construção, em meio à citação de outros chefes notáveis (v. 29-32):

e ainda Artembares, belicoso cavaleiro,

e Masistres, e o domador do arco,

o corajoso Imaios, e ainda Farandaces

e Sostanes, condutor de cavalos.

O enunciado metafórico resume-se apenas aos termos que se referem a Imaios, um dos

chefes da armada persa (vv, 30 e 31), mas citou-se os outros chefes porque é pela sequência

de nomes citados, sem a presença de nenhum verbo, que o significado da passagem torna-se

pleno, induzindo ao receptor do discurso uma sensação de que homens estão se aproximando

em um número surpreendente. O chefe , Imaios, é mostrado como ,

domador do arco, um epíteto formado por uma complexa composição, em que o tema -,

(da palavra , arco) se associa à raiz -, proveniente do verbo ou ,

domar, domesticar. O segundo elemento da composição evoca, portanto, uma imagem de

natureza campesina, que se funde ao mundo de guerra do contexto apresentado. A metáfora,

abarcando assim imagens, possui a função de enfatizar a qualidade de indivíduos ou ações do

contexto.

6.1.8. A pesca

A pesca era uma atividade corriqueira na Grécia antiga. A imagem que Ésquilo toma de

empréstimo para expressar o trágico em Persas evoca a técnica eficiente e rudimentar da

pesca de certos peixes, mais precisamente de atuns, que consistia em imobilizar os peixes na

rede para abatê-los a golpes de porretes em suas cabeças, ainda no mar. Em seguida, fatiava-

se o peixe no comprimento da espinha. O caráter paradoxal desse acontecimento cotidiano

mostra-se em toda a sua força na linguagem trágica esquiliana, uma vez que serve ao relato

de uma cena de extrema violência que tem os persas como sofredores dessa ação destinada

aos peixes.

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Expressão nuclear 1: , como no arrasto

de atuns ou de alguns peixes, fatiavam

Os persas cercados pelas naus atenienses são mortos de uma maneira que faz menção

exatamente à técnica de pesca de atuns na Antiguidade grega. O ato de pescar que é evocado

para preencher o enredo trágico faz com que as naus persas cercadas pelos atenienses

afigurem-se como redes que deixam sem reação seus ocupantes, que serão abatidos como

peixes. Por meio da construção metafórica, os persas são assim comparados ao próprio peixe

cujo destino é ser morto a pauladas na cabeça e fatiado. O enunciado metafórico em questão

se encontra no primeiro episódio, fazendo parte do relato do mensageiro para a rainha Atossa

dos eventos ocorridos em Salamina (vv. 424 – 426):

(...)

Eles, como no arrasto de atunsou de alguns peixes, com pedaços de remos e destroços,

feriam, fatiavam; (...)

A construção é um símile em estilo homérico80

que retrata um momento de grande

violência, daí o caráter trágico do enunciado metafórico. O verbo 81

, fatiar através

da espinha, cortar em filés ou, simplesmente, fatiar, pertence claramente ao campo

semântico da pesca, dizendo respeito, portanto, à imagem externa que é evocada para

preencher a narrativa trágica do mensageiro. O outro verbo da passagem, , ferir, bater,

e os instrumentos que dão conta de sua ação, , pedaços de

remos e de destroços, fazem menção tanto à ação literal que ocorre na narrativa quanto à

figurada, que, após o estabelecimento da comparação com o arrasto de peixes possibilitada

pela conjunção , como, também se encontra presente. Tal constatação permite que se

considere o verbo e seus instrumentos como termos harmonizadores de imagens, uma

vez que possuem um sentido semifigurado no contexto literário narrado, ou seja, expressam

literalmente uma ação na imagem interna de homens que são mortos violentamente com

pancadas nas cabeças, mas também contribuem e fazem parte da imagem externa que faz

80 HALL (p. 139 e 140), em comentário de sua tradução de Persas, salienta inclusive que esta é a única passagem

da peça em que ocorre o uso de , uma forma épica que é utilizada por Ésquilo para expressar a estranheza

do falar dos persas e que, ao mesmo tempo, legitima o estilo homérico utilizado. 81 O termo , cognato ao verbo , significa espinha dorsal. O sufixo verbal imitativo –, que se encontra no verbo, dá uma idéia de imitação ao desenho da espinha do peixe, e daí a ideia de cortar no sentido da

espinha.

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menção ao momento em que os pescadores, com seus porretes, que algumas vezes nada mais

são do que pedaços de remos velhos, desferem pauladas nas cabeças dos peixes, matando-os.

Expressão nuclear 2: , num só golpe de remos, se

debatem sobre o solo

Se o enunciado metafórico do mundo da pesca já analisado tinha sua imagem externa

evocada por meio de uma comparação (símile) metafórica82

, o próximo enunciado se trata de

uma metáfora propriamente dita, sem a presença de elementos sintáticos que induzam a uma

comparação. Como se falou em símile homérico, é conveniente ao propósito de análise da

próxima metáfora citar uma que se mostra muito ilustrativa para fins de criação de uma

terrível macroimagem, que, igualmente, se utiliza do mundo da pesca para fins de expressão

da violência narrada. Tal passagem se encontra na Odisseia (XXII, vv. 383 – 389), sendo

mencionada a respeito dos pretendentes já subjugados e moribundos, em meio ao sangue

promovido pelas armas de Odisseu e de seus sócios:

mas viu-os todos no sangue e na poeira completamente

caídos, como os muitos peixes, que os pescadores

retiram do mar grisalho para a praia vazia

com a rede de muitos furos; eles todos

desejosos das ondas do mar são jogados contra a areia;

e o sol brilhante extrai deles a vida; assim, então, os pretendentes estavam jogados uns sobre os outros.

A mesma relação entre peixes mortos e homens na mesma situação encontra-se tanto

em Homero quanto em Ésquilo, de modo que a citação da épica homérica legitima a

construção de uma mesma imagem que se encontra em Persas. A ação evocada por Ésquilo,

assim como a de Homero, trata de um momento posterior ao abate dos peixes, o que torna

esta próxima metáfora um complemento do que ocorre após o golpe desferido na cabeça dos

82 A comparação, à maneira da metáfora, evoca uma imagem externa que é associada à interna, e, por isso, ela

pode ser considerada um tipo de metáfora. Muitos teóricos da metáfora do século XX perceberam essa estreita

relação entre a comparação e a metáfora, considerando esta última como uma comparação implícita, em que os

elementos sintáticos próprios da comparação não estariam presentes. Ricoeur, especialmente, discorre longamente

sobre a questão, ao analisar a teoria comparativa. RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Edições Loyola: São Paulo,

2000, pp. 42-49.

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peixes, característica que aparece em ambas as metáforas esquilianas. O que se tem de mais

forte tragicamente no enunciado metafórico a ser analisado é a ideia de homens agonizando

como peixes feridos e jogados para fora da água, imagem semelhante à homérica da

Odisseia. É o personagem Xerxes que, no êxodo da peça, produz o segundo enunciado

metafórico, evocando o mundo próprio dos pescadores atenienses (vv. 976 e 977):

(...) (...) todos, num só golpe de remos,

ehé, ehé, se debatem, miseráveis, sobre o solo.

A imagem externa é extraída do momento em que os peixes, após serem golpeados em

suas cabeças por pescadores, se encontram já agonizantes em terra. Tal imagem, quando

inserida no enredo trágico de Persas para mencionar o destino dos bárbaros na Batalha de

Salamina, serve para expor a imagem interna de homens moribundos que, possuidores ainda

de uma centelha de vida, debatem-se em convulsões como peixes feridos, já soltos da rede

após o golpe fatal. O verbo que mais claramente evoca esse âmbito pertencente ao mundo da

pesca é , agitar-se, palpitar, que diz respeito exatamente aos movimentos de um

ser agonizante, comumente, o peixe, que pula sobre a terra quase sem vida; mas tal verbo só

pode ser compreendido como evocativo desse mundo quando se percebe o todo do enunciado

metafórico que traz outros elementos do âmbito da pesca, como o próprio , golpe de

remos, que era desferido na cabeça do peixe.

A imagem externa de peixes semimortos serve, no contexto trágico esquiliano, para

enfatizar os terríveis eventos sofridos pelos Persas em Salamina. Essa imagem, ao se unir à

imagem interna, enfatiza, na verdade, a violência da batalha, no momento tétrico em que

homens moribundos sofrem espasmos de agonia após terem sido atingidos por golpes de

remos. Nada mais trágico poderia ser tão fortemente expresso por uma cena tão corriqueira

para o homem grego que vivia da pesca; o golpe de remos nada mais era do que o ato que

finalizava a técnica da pesca, mas Ésquilo, metaforicamente, o transforma num elemento cuja

função é expressar o trágico da maneira mais eficiente possível.

Como há nessa passagem muitos elementos que seriam termos harmonizadores de

imagens, ou seja, palavras que evocariam tanto a imagem literal interna quanto a figurada

externa, torna-se evidente que o enunciado só poderia ser compreendido como metafórico

partindo-se do pressuposto de que, de fato, a audiência ateniense e mesmo o autor da peça

reconheciam na passagem a apresentação do mundo da pesca, que se inseria no discurso

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trágico para expor as cenas de horror próprias do gênero. Pela totalidade dos elementos

expostos na passagem e mesmo pela tradição advinda, desde Homero, de se utilizarem

características da pesca para expressar imagens terríveis, supõe-se que a presença metafórica

se mostra bem forte aqui.

6.1.9. O ato de morder

O ato de morder é evocado para preencher um momento do enredo trágico de Persas.

Atos pertencentes a certos animais irracionais são muitas vezes trazidos à cena para expor a

situação trágica que se encontra na ação sofrida por um personagem. Isso já havia ocorrido

antes, com a presença do ato de chifrar, e mesmo o ato de morder já aparece implicitamente

na imagem da cadela para simbolizar o momento de traição que faz o homem cair em

desgraça, após ser seduzido amigavelmente por tal divindade maléfica. Tendo estreita relação

com o sofrimento, em seu sentido figurado, a ação de morder é utilizada para expressar muito

mais uma dor psicológica do que uma dor física.

Expressão nuclear: , penetram, ...morde

O enunciado metafórico é uma suplica da rainha Atossa aos deuses pela vergonha que

sente ao tomar conhecimento do fato de seu filho Xerxes estar chegando humilhado e em

condições lamentáveis ao contato com seu povo. Tal fato gera uma dor moral para a rainha,

que se pronuncia ao final do terceiro episódio utilizando-se de um enunciado metafórico que

emprega o ato de morder para representar um sofrimento vergonhoso diante do estado

deplorável das vestimentas de seu filho (vv. 845 – 846):

(...) (...)

(...) como penetram em mim muitas dores

de males, e, sobretudo, esta desgraça morde, (...)

Apesar de se encontrarem em orações distintas, uma relação pode ser estabelecida entre

os verbos, penetrar, adentrar, e , morder, que são os elementos que

trazem a imagem externa do mundo irracional dos animais que mordem para o enredo

trágico. O primeiro verbo, reforçado pela preposição , que indica interioridade para um

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lugar,concede ao enunciado a ideia de dentes que penetram na pele como se fossem

cravados pela ação transmitida pelo segundo verbo, que justifica o sentido figurado do

primeiro. O elemento trágico cravado na rainha é exatamente as , dores de

males, que tornam o enunciado nitidamente trágico, ao expressar um sofrimento terrível. Não

poderia haver forma mais enfática de se representar a dor psicológica de uma pessoa. A dor

física que uma mordida causa na completude do processo realizado pelo cravar dos dentes é

transferida para o plano figurado para representar uma dor que supera em muito qualquer dor

física existente.

6.2. A vegetação, o mar, a luz e a interação humana

Esta segunda parte do capítulo dedicado à natureza se afasta do mundo propriamente

entendido como animal para se direcionar para o ambiente em que os animais vivem. A

, natureza em desenvolvimento, além de fornecer ao homem grego a hipótese

intelectual que seria a base da filosofia em seus primórdios, inspira-o desde tempos bem

remotos a criar relações que misturam as ações próprias dos fenômenos naturais com as

ações subjetivas do ser humano.

O fenômeno da metáfora paradoxal, já mencionado várias vezes nesse capítulo, vai

novamente adquirir importância fundamental para as expressões necessárias ao caráter

trágico que se desenvolve em Persas. Além de o efeito estilístico que faz com que a beleza

da natureza enfatize o mundo humano, mostrar-se-á como essa natureza benfazeja, em alguns

casos, adquire uma variada significação no discurso trágico esquiliano, apresentando, muitas

vezes, um sentido oposto àquele que, comumente, aparecia no cotidiano do homem grego,

por estar representando, com sua beleza e caráter benéfico, o terror das próprias oposições

trágicas que se desenvolvem em cena. A inspiração advinda da natureza cria para o homem

grego imagens que encontram uma completa transformação quando tais elementos naturais

são utilizados para expressar o âmbito dos embates que aparecem na tragédia Persas.

6.2.1. A flor e a floração

A imagem do , flor, é bem comum em Persas. A flor, com sua fragilidade, seu

caráter efêmero, sua tenra beleza, sua delicadeza e seu desabrochar, exprime, na literatura

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grega, principalmente na poesia, uma simbologia de múltiplos valores, quando se faz uso de

sua imagem de forma metafórica. Sintetizando ao máximo as ideias advindas da imagem da

flor e sua simbologia, Dumortier (1975, p. 126) fala da forma como os autores gregos se

utilizam de tal imagem:

Em seu efêmero esplendor, e em seu frágil brilho, uma flor evoca, ao mesmo

tempo, as ideias de morte e beleza. Ela será o símbolo da beleza dos homens e

das coisas, da juventude, do amor, de tudo aquilo que surge da efemeridade

cotidiana.

A imagem da flor expressa, em suma, a pequena duração de um poderoso momento,

seja de força seja de beleza, e, dessa maneira, todo um campo semântico metafórico vai se

desenvolver segundo essa ideia, de acordo com os contextos criados pelos autores gregos em

seus respectivos gêneros literários, como, por exemplo, os significados de elite, advinda

desse próprio momento grandioso, de juventude, de força, entre outros sentidos que serão

arrolados na sequência.

Na Ilíada de Homero, já é possível vislumbrar um dos valores metafóricos do termo

, flor, na passagem em que o personagem Idomeneu se utiliza dele para designar a

juventude do troiano Eneias, que se mostra evidente na forma como esse herói combate

(XIII, 484):

e também possui a flor da juventude, que é o maior poder;

A imagem da flor, associada ao termo , juventude, encontra-se expressa num

discurso que exprime o calor bélico, e isso faz com que tais termos se liguem plenamente ao

ideal de homem homérico, cuja , excelência, só poderia ser demonstrada em meio à

batalha. Esse mundo de guerra, tão característico da épica homérica, finca na literatura grega

valores que, posteriormente, serão trabalhados por Ésquilo. Em seu contexto literário,

Homero faz com que o significado do termo adquira o valor de força, que está, no

discurso homérico, intimamente relacionado com os valores de apogeu, beleza e juventude,

qualidades necessárias à ,glória, que os heróis homéricos buscavam em combate. O

apogeu de máxima força e beleza do herói, que se dá exatamente num momento de plena

juventude, serve para perpetuar no tempo sua figura por meio dos feitos gloriosos que

alcança na guerra. A imagem externa da flor insere-se aqui perfeitamente ao enfatizar o

grande momento da força de um herói, que, pelo fato de provir de sua juventude, faz com que

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esse mesmo momento seja efêmero. A força dura enquanto existe a juventude, que um dia irá

esvair-se. Por isso mesmo, existindo no âmbito guerreiro, esse apogeu também se une, no

discurso homérico, à ideia de morte, pois a mesma, se ocorrida de maneira gloriosa em meio

à guerra e na plena força da juventude, ou seja, nesse momento delimitado pelo valor

metafórico do termo flor, concede ao herói épico uma maneira de ser lembrado nos tempos

vindouros. Trata-se da chamada bela morte, tão comentada por vários helenistas do século

XX. Ao qualificar a flor da juventude, , como o maior poder, ,

o discurso homérico expressa bem o significado metafórico do termo flor no âmbito dessas

necessidades do herói épico, pois o poder mencionado aparece como útil à ação guerreira.

Pode-se dizer que a flor, ao ser determinada pela juventude, alcança valores ambíguos na

forma de expressão épica: simbolizando a força inerente à própria beleza da juventude, ela

constrói a ideia de eternidade por seu caráter de duração aos olhos dos homens, mas, num

exame mais profundo, essa mesma força, enquanto ação perpetrada na guerra, já remete à

ideia de morte por sua fragilidade num esplendor efêmero. Essa ambiguidade acontece

porque todo um campo semântico metafórico se estabelece em torno da imagem frágil e bela

da flor, possibilitando valores que vão adquirir sentidos positivos ou negativos de acordo

com o contexto empregado pelos diversos autores gregos.

Mesmo que Homero tenha utilizado a imagem da flor na seriedade da narrativa épica,

em que sempre se encontra a ideia de morte por essa narrativa desenrolar-se em meio à

guerra, o seu valor mostra-se positivo, mesmo porque a morte no contexto épico não é algo

necessariamente ruim. A flor da juventude é algo bom, valoroso e importante de se possuir.

A inovação que faz com que a imagem da flor expresse um grande momento catastrófico

pode ser atribuída a Sólon, num discurso em que a ela se associa o termo , perdição 83

,

como pertencente ao campo semântico da desgraça e das divindades maléficas (v. 35, frag. 4,

West):

e faz ressecar as flores nascidas da perdição,

O sujeito da emissão não se encontra no verso citado, pois Sólon o havia colocado no

verso 32; trata-se do termo personificado , Eunomia, boa ordem, boa legislação, que

se liga, claramente, ao âmbito político das leis gregas. É a Eunomia que pode evitar que a

83 Veja-se a imagem do cão, no item 6.1.1, a partir da expressão nuclear 2 para um estudo completo dos valores do

termo , tanto em sua dimensão de substantivo comum quanto em sua dimensão de ser divino.

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cidade, pela ausência de leis, se torne um caos. O enunciado do verso 35 insere-se nesse

discurso político, fazendo uso, contudo, de vários termos extraídos do âmbito da natureza

num procedimento todo metafórico. Os verbos , ressecar, e , crescer, nascer,

desenvolver-se, determinam ações próprias que se dão na natureza. O âmbito da ,

natureza em desenvolvimento, é utilizado para expressar algo terrível para o meio político. A

imagem das flores que devem ser ressecadas expressa aqui uma ideia de desenvolvimento de

males com sua bela efemeridade apoteótica. Em uma paráfrase, tais flores devem ser

destruídas. Mas é a presença do termo , em meio a esse discurso, que concede em sua

determinação esse valor pejorativo à flor, um valor que pode ser mencionado como

paradoxal, por expressar, na verdade, um sentido oposto ao que a flor, com sua beleza e

delicadeza, poderia demonstrar.

Usando de uma mesma palavra, Homero e Sólon mostram como as potencialidades

semânticas advindas da imagem da flor podem apresentar contextos completamente opostos.

O que há de positivo em Homero torna-se completamente negativo em Sólon, por meio do

fenômeno discursivo conhecido como metáfora paradoxal. Ésquilo, em Persas, trabalha com

essa série de valores figurados inerentes à imagem da flor, ampliando também,

metaforicamente, outros significados entre os já mencionados.

Em primeiro lugar, é interessante citar uma passagem em que o termo aparece,

em Persas, no seu sentido literal de flor para que, depois, se vejam outras passagens em que

esse mesmo termo adquire as mais variadas significações por meio do recurso da metáfora.

Contudo, mesmo em seu sentido literal, por tratar-se de um discurso trágico, Ésquilo faz

menção à flor na gravidade de um âmbito funeral, caráter que domina muitos momentos de

Persas. Na passagem em questão, as flores aparecem como componentes das libações

fúnebres que a rainha Atossa leva ao seu falecido marido Dario, juntamente com leite, mel,

vinho e vinha, no intuito de invocá-lo do mundo dos mortos (v. 618):

e flores entrelaçadas, filhas da Terra que tudo produz.

Apesar de a emissão possuir uma metáfora na determinação das flores como

, filhas da Terra, o termo , flores, está nitidamente no sentido literal, pois

significa, de fato, as flores entrelaçadas que a rainha porta para depositar sobre o túmulo do

marido. Ainda que elas estejam num âmbito ritual repleto de valores simbólicos, é impossível

aqui conceder um sentido figurado ao termo, pois o mesmo se encontra presente de forma

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concreta no contexto literário. É interessante notar, então, que precisamente nessa passagem,

o emprego de um sentido literal também enriquece, de maneira profunda, o discurso trágico

construído por Ésquilo.

Em outras passagens, o valor metafórico no emprego do termo é bem evidente,

determinando valores que, ligados aos sentidos já apresentados nos exemplos extraídos de

Homero e Sólon, se relacionam com outros possibilitados pela expressão própria de um

discurso trágico, o que faz com que Ésquilo acrescente sua própria originalidade às suas

imagens.

Expressão nuclear 1: , flor do solo persa

No Párodo de Persas, já é possível perceber o emprego do termo tomado de

empréstimo do campo semântico da natureza, para ser usado no âmbito de um mundo em

guerra. O coro de anciãos, ao expressar com a metáfora da flor a multidão de jovens

guerreiros persas que partiram para a Grécia, determina um enunciado metafórico que faz

menção exatamente ao exército de Xerxes (vv. 59 e 58):

(...)

Tal flor do solo persa

de homens partiu, (...)

O caráter trágico é intensificado porque o coro, constituído de anciãos persas, nesse

momento, ainda desconhece a derrota que se abatera sobre o exército. A expressão

, flor do solo persa, que evoca a imagem externa ao contexto que se

desenvolve em cena,tem aqui um sentido positivo, representando os jovens nascidos nas

regiões do Império Persa, mas o todo metafórico, colocado num contexto literário de guerra,

faz por reforçar a carga dramática inerente à tragédia grega. Aqui, portanto, não se tem uma

metáfora paradoxal, mas isso não impede que o enunciado metafórico seja trágico,

enfatizando a preocupação, a saudade e a apreensão dos membros do coro diante da partida

para guerra dos jovens de seu exército. O contexto claramente possibilita o funcionamento do

enunciado metafórico, que é construído ainda pela presença do verbo , partir, que

possui nesse momento valor literal, indicando, de fato, o movimento para um lugar, mesmo

que sua utilização aqui já possa fazer com que um receptor perspicaz perceba a possibilidade

de um duplo significado no emprego desse verbo, que, em seu sentido figurado, pode

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significar morrer. Será dessa última maneira que o verbo vai se juntar novamente

ao termo para formar o enunciado metafórico a ser analisado em seguida.

Expressão nuclear 2: , a flor, ao cair, foi-se

Em outra passagem de Persas, o termo apresenta, com os outros elementos

que o determinam no enunciado metafórico, os valores de efemeridade (vindo daí a ideia de

morte) e beleza. A flor coloca-se como o próprio contingente do exército bárbaro, no

momento bem enfático do primeiro episódio, em que surge a informação por parte do

mensageiro de que todo exército persa havia sucumbido em Salamina (v. 252):

e a flor dos persas, ao cair, foi-se.

O enunciado metafórico se encontra quase todo numa linguagem figurada (apenas o

determinante em genitivo , dos persas, está no sentido literal). A imagem externa da

flor só pode funcionar para expressar o trágico graças ao contexto da peça que se desenvolve

em conjunto com o verbo , aparecendo agora no sentido figurado de perecer. O

sentido relacionado com a morte se mostra pleno nesta construção84

. A flor, que se liga à vida

e à juventude, passa a retratar vários guerreiros jovens e, por fim, um amontoado de

cadáveres graças ao uso figurado do verbo . A ideia de vida efêmera contida nas

potencialidades do sentido figurado de flor permite um contexto que expressa um

aniquilamento total de homens. Ao significar um grupo de jovens persas, a flor não apresenta

por si mesma um sentido de violência ou tristeza. É o enunciado metafórico como um todo

que vai possibilitar, no contexto literário, a expressão do trágico que gira em torno do termo

.

A imagem externa expressa, por meio do particípio , ao cair, a fragilidade da

flor, que, durando pouco em sua beleza e força, dobra-se sobre seu caule, definhando, e

morre. O próprio verbo , partir, no sentido de morrer, emprestando ao enunciando

seu valor efêmero, liga-se, perfeitamente, ao significado da flor como algo que, depois de seu

esplendor, desaparece. A flor, ao representar o exército persa, traz consigo (e acrescenta ao

84 A língua portuguesa também admite o uso do verbo ir no sentido de morrer, o que possibilitou que se mantivesse na tradução o jogo de sentidos apresentado na obra por meio do uso, em dois momentos distintos, do

verbo .

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exército) as características, principalmente, de juventude e força, e assim surge também a

referência a uma elite guerreira querida pelo seu povo, por meio do caráter íntimo que a flor

lança no plano humano.

Expressão nuclear 3: , florescendo,

frutificou a espiga, porque ceifa uma colheita

Por mais que determinassem o trágico no texto esquiliano, as duas primeiras

construções analisadas evocavam a flor como um elemento positivo, já que ela é utilizada

para representar valores que se encontram em homens pelos quais os produtores da emissão

tinham especial apreço: os jovens que compunham o exército persa. O próximo enunciado

metafórico utiliza-se da imagem não da flor propriamente dita, mas da floração, tratando-se

de uma das passagens mais belas e complexas de toda a tragédia, e o seu valor paradoxal é

perfeitamente visível. A referida passagem ocorre em meio à extensa fala do fantasma de

Dario no terceiro episódio (vv. 821 – 822):

O excesso, florescendo, frutificou a espiga

da perdição, de onde ceifa toda uma colheita de lágrimas.

Os termos do enunciado metafórico estão quase todos em sentido figurado, e os

elementos que não se encontram em uso figurado se apresentam de tal maneira inseridos na

construção simbólica que enriquecem ainda mais as imagens externas trazidas ao discurso

trágico. Tal fato torna esse enunciado semelhante a um enigma85

. Além da ideia de floração,

imagem externa evocada pelo particípio , florescendo, o contexto apresenta ainda

outra imagem externa, que se torna reconhecida por termos que evocam características de

ordem econômica, mencionando a ação humana em meio à agricultura. Os verbos ,

produzir frutos, frutificar, e , ceifar, assim como os substantivos , espiga, e

, colheita, evocam essa segunda imagem externa. Ocorre assim a presença de duas

85 Paul Ricoeur, ao comentar a teoria da metáfora elaborada por I. A. Richards em The Philosophy of Rethoric,

menciona que é possível diferenciar a metáfora do enigma por este último ter todos os seus termos num sentido

figurado. Uma definição da metáfora como enunciado, em contrapartida a outros fenômenos do discurso, é

proposta por Ricoeur pautado na teoria de Richards: Diremos, que a metáfora é uma frase, ou uma expressão do

mesmo gênero, na qual certas palavras são empregadas metaforicamente e outras não. Esse traço fornece um

critério que distingue a metáfora do provérbio, da alegoria, do enigma, nos quais todas as palavras são

empregadas metaforicamente; (...). RICOUER, Paul. A metáfora viva. Edições Loyola: São Paulo, 2000, p. 135.

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imagens externas que se associam a palavras que, apesar de suas feições abstratas, podem ser

consideradas os elementos literais do enunciado metafórico; fala-se aqui dos termos que

determinam a imagem interna do enunciado metafórico, a saber, do importante substantivo

, excesso, e dos determinantes formados pela palavra , perdição, em genitivo, e

pelo adjetivo , de lágrimas plenas. Tomou-se a posição de considerar literais

esses elementos do enunciado metafórico porque eles dizem respeito ao sofrimento e ao dano

dos indivíduos a que o Fantasma de Dario se refere literalmente, expressando, por meio

desses elementos, o caráter trágico exatamente do modo como ele aparece no contexto.

Em uma paráfrase, poderia ser dito que realmente o excessose desenvolve,

produzindo um ato de perdição, do qual surgem as lágrimas86

, ou seja, o sofrimento como

resultado.

O substantivo abstrato , em seu valor literal, apresenta ações figuradas que são

evocadas pelos verbos e , produzindo exatamente os outros elementos

figurados do contexto literário, com o mundo agrícola evocado pelos substantivos e

do enunciado metafórico, com seus determinantes literais, e , que

dizem respeito ao dano que sobreveio aos persas por conta dos excessos cometidos por seu

rei. A complexidade do enunciado metafórico enfatiza completamente o trágico que se

encontra no contexto, sendo, portanto, esta uma das mais fortes metáforas trágicas de Persas,

que, a exemplo das imagens advindas da cadela e do caçador, retratam todo o percurso do

homem que, por causa de seus atos desmedidos, lança em desgraça a si mesmo e aos seus

companheiros. Com sua grande quantidade de termos extraídos do campo semântico da

natureza, forma-se em toda essa passagem um enunciado metafórico que, em sua função

trágica, representa o agir do herói entre os pólos do crime e do castigo.

Dessa vez, não se utilizando do termo , mas do próprio verbo que lhe é cognato

, florescer, Ésquilo evoca a presença da natureza benfazeja para expressar o mal,

concedendo assim um caráter paradoxal ao seu enunciado metafórico. Na verdade, toda a

passagem encontra-se repleta de elementos benfazejos ao homem, que, ao expressarem um

discurso trágico, passam por uma transformação cuja harmonia se dá pelo fenômeno do

paradoxo. A , excesso, é o elemento que floresce produzindo um grão metafórico,

nitidamente paradoxal, a , a espiga da perdição. O paradoxo surge no termo

, espiga, quando ele é determinado de forma restritiva pelo termo , aqui

86 A metonímia presente no elemento lágrimas, que usa do particular choro para expressar o todo da desgraça que

se abatera sobre os persas, pode ser considerada, pelo prisma do estudo proposto, um elemento literal do

enunciado metafórico. Os processos metonímicos, por não evocarem uma imagem externa ao contexto, ficam no

plano literal do significado, afigurando-se como uma simples substituição para fins expressivos.

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traduzido por perdição. Como o elemento literal na passagem é exatamente aquele que

expressa o trágico que ocorre no contexto, a lógica faz com que o genitivo , elemento

literal, permita que a espiga tenha um valor paradoxal, ao determinar o próprio conteúdo

desse grão, em nada benfazejo ao homem.

6.2.2. Os atos de ceifar e devastar

Tendo relação com o último enunciado metafórico citado, onde também aparece a

mesma ideia por intermédio do verbo , o ato de ceifar se insere no tipo de imagem

extraída da vida econômica do homem grego. Porém, o significado metafórico do verbo

no enunciado precedente é diferente do de ,que aparece no enunciado a

seguir. Eles se equivalem no sentido literal, possuindo um tênue matiz diferencial: o primeiro

possui a ideia de extração, e o segundo a de corte, mas o emprego figurado de ambos, em

momentos diferentes da tragédia, faz com que se sobressaia com mais força o valor dos

prefixos que os formam. Enquanto utiliza a ação de ceifar para expressar,

metaforicamente, uma produção de males por meio da presença do prefixo ,que indica

origem, concede, ao enunciado ao qual faz parte, uma ideia de morte advinda da

ação de movimento contra, inerente à presença do prefixo na composição, que muitas

vezes denota violência.

Expressão Nuclear 1: ... , da fileira... ceifou

É em seu canto final de lamento, no grande que finaliza a tragédia, que o coro

de anciãos vai emitir o enunciado metafórico que evoca o mundo pacífico da economia

agrícola ateniense, expressando assim, tragicamente, sua dor em relação aos jovens

guerreiros mortos em batalha (vv. 920 – 921):

e dos homens em ordem,,

os quais, agora, a divindade ceifou.

A passagem forma uma caracterização trágica para o rei Xerxes, que, sendo o possuidor

de um exército forte e valoroso, foi também o causador do fim desse mesmo exército. A

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palavra , ordem, disciplina, pode ser compreendida no enunciado como um termo

harmonizador de imagens. Seu campo semântico possibilita o surgimento, ao mesmo tempo,

de um significado que se liga à imagem interna, ao fazer menção aos homens de valor que

compunham a armada de Xerxes, de posse de uma organização e disciplina exemplares, e de

outro sentido que se liga à imagem externa, justificada pela presença posterior do verbo

, que, aoevocar claramente a imagem externa do mundo agrícola, lança ao termo

também uma ideia que faz menção à própria fileira, em ordem, de produtos agrícolas

a qual um agricultor da antiguidade se dispunha a ceifar para fazer parte da vida econômica

da . A construção inerente ao discurso trágico esquiliano forma um enunciado

metafórico terminantemente trágico ao fazer com que esse ato de ceifar expresse a morte de

homens e não uma produção agrícola.

Expressão nuclear 2: , tomava sua parte,

ao devastar a planície sombria e a margem desafortunada

Nos poemas homéricos, é muito comum a presença do saque como determinante da

vida econômica do homem micênico, e o verbo, receber uma parte, tomar,

aparece em Homero para designar exatamente a partilha que os chefes faziam após a

pilhagem de uma cidade. Contudo, tal verbo costuma ser utilizado também para fazer

referência a uma tomada em um sentido mais subjetivo, que usa da violência em detrimento

do outro que está sendo prejudicado. É assim que o próprio Homero vai fazer uso do verbo

em Ilíada, no momento em que Aquiles chora diante de sua mãe Tétis pelo ultraje que

sofrera, ao ter sua escrava Briseida tomada por Agamêmnon (I, 356):

(...) (...) pois, após tirar-me, tem meu prêmio, depois de ele mesmo tomar minha parte.

A violência contida no verso homérico, em que o verbo é utlilizado para

mencionar um ato que prejudica uma única pessoa, no caso Aquiles, intensifica-se no

enunciado metafórico que Ésquilo constrói, pois o ato de usufruir encontra-se presente para

expor um caráter de violência em detrimento de um grande número de pessoas que, na

verdade, morreram (v. 950 e vv. 951- 953):

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(...) O jônico tomava sua parte, (...)

Ares, que favoreceu o outro lado, ao devastar a planície sombria

e a margem desafortunada.

O sujeito da ação é o deus da guerra, Ares, que, no párodo da tragédia, aparecia

claramente citado como um aliado dos persas87

. O fato de o mesmo ser qualificado como

, que favorece o outro lado, enfatiza bem a mudança de sorte dos persas na

Batalha de Salamina. Essa mudança de partido na batalha possibilita um enunciado

metafórico que faz uso da ideia de divisão de saques. Em uma inversão discursiva, a parte

que beneficia o referido deus é exatamente aquilo que é trágico para os persas. Entende-se

nesse enunciado metafórico que o deus da guerra recebeu como sua parte dos despojos de

guerra os próprios persas dizimados. Utilizando-se da imagem externa da partilha do saque,

Ésquilo forma uma metáfora trágica ao mostrar a morte de um grande número de homens

pela ideia de exploração devastadora de recursos naturais como a planície e a margem,

próximas de Salamina.

6.2.3. A força das ondas do mar

As metáforas que fazem uso da imagem externa da onda do mar como um

determinante figurado de uma força inimiga que se opõe às defesas de uma cidade são muito

propícias para expressão de um discurso do tipo trágico. Na tragédia Sete contra Tebas, todo

um discurso repleto de imagens externas pertencentes ao mundo marítimo natural é

transferido para o plano humano, fazendo-se presente para fins de expressão do drama.

Segundo Dumortier88

, esse mundo formaria a metáfora principal de Sete contra Tebas. Nessa

tragédia, a cidade sitiada de Tebas afigura-se como a nau que deve resistir à onda do mar,

representação figurada dos inimigos que investem contra a cidade. O rei de Tebas, Etéocles,

protagonista dessa tragédia, é alçado, metaforicamente, a comandante da nau, o detentor do

leme cuja função é organizar da melhor maneira a defesa da cidade para suplantar o inimigo.

87 Cf. v. 85. 88 A primeira parte do livro de Dumortier possui o nome de As metáforas principais, havendo nessa parte todo um

capítulo dedicado à tragédia Sete contra Tebas que se intitula O navio na tempestade (pp. 27-55). DUMORTIER,

Jean. Les images dans la poésie d‟ Eschyle. Paris: Société d’ Édition “Les Belles Lettres”, 1975.

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O mundo marítimo já havia aparecido nesse capítulo, em parte, pelas imagens

externas provenientes do mundo da pesca (item 6.1.8) e mesmo em dados causadores das

chifradas metafóricas dos persas mortos batendo com suas cabeças nas margens que

circundam o mar (item 6.1.4), mas, se os enunciados metafóricos da onda não são tão

frequentes nessa tragédia, como ocorre em Sete contra Tebas, a imagem externa da onda do

mar, mostrando-se mais tipicamente marítima pelo seu caráter puramente natural (a imagem

externa da pesca, por exemplo, depende do elemento humano), enfatiza embates importantes

no bojo da tragédia Persas.

Expressão nuclear 1: , colocando-se

sob um grande fluxo..., contê-lo com diques fortificados

A continuidade de enunciados metafóricos que dizem respeito ao embate entre os

exércitos dos gregos e dos persas possui um modo de expressão bem eficiente nas imagens

externas das ondas do mar. Conforme aconteceu com a imagem externa da partilha do saque

(item 6.2.3), há aqui um embate entre exércitos, mas, enquanto na imagem da partilha tem-se

uma força de oposição que, partindo dos gregos, ocasiona prejuízo para os persas, nas

imagens externas das ondas, que metaforicamente aparecem como os persas inimigos dos

gregos, ocorre o inverso, pois são os persas que se opõem aos gregos querendo impor-lhes a

sua dominação.

O primeiro enunciado metafórico em Persas que faz uso da imagem externa da onda

forma o interessante ato de uma tentativa de se conter um fluxo fortíssimo de água por meio

de diques. Por conta do discurso metafórico, o fluxo vai representar a grande e poderosa

armada de Xerxes e os diques a defesa da cidade, estabelecendo o enunciado metafórico

contruído pelo coro, no párodo da tragédia (vv. 87-89):

Não se conhece ninguém que, colocando-se sob um grande fluxo de homens,

possa contê-lo com diques fortificados;

O verbo , barrar, conter, determina a ação metafórica que recai sobre o termo

, fluxo, onda, que, na verdade, se trata, de acordo com a imagem interna formada, de

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uma grande quantidade de homens provenientes do exército bárbaro, que é evocado no texto

pela palavra , homem. O termo , podendo significar em seu campo semântico tanto

o dique que contém a água quanto a muralha que defende uma cidade, pode ser percebido

como um termo harmonizador de imagens, uma vez que possui em si mesmo uma parcela

literal, que diz respeito ao seu significado como muralha, e uma figurada, que diz respeito ao

sentido de um dique que desvia ou retém a água. Optou-se pela tradução do termo por

dique porque assim é possível enfatizar a imagem externa fazendo ao mesmo tempo com que

o receptor moderno perceba o significado de defesa própria da muralha ou barreira.

Expressão nuclear 2: , onda do mar

Complemento lógico do precedente, o segundo enunciado metafórico que evoca a força

da onda do mar deixa mais claro o mundo externo pertencente às duas passagens.

Evidentemente, é o coro que emite o enunciado metafórico ainda no párodo (v. 90):

Invencível é a onda do mar;

Na frase expressa, apenas o adjetivo , invencível, incombatível, que faz menção

ao mundo bélico, exprime o mundo literal do contexto interno. O termo , analisado

anteriormente, possui um campo semântico mais extenso do que , que, de fato, significa

literalmente apenas onda marítima. A expressão , onda do mar, da passagem

em questão mostra claramente qual é a imagem externa que está sendo trabalhada por

Ésquilo desde o verso 87. A onda do mar, impossível de deter usando-se diques, afigura-se

como o invencível exército de Xerxes.

Expressão nuclear 3: , um grande pélago jorrou

No próximo enunciado metafórico, a imagem interna adquire toda uma nova

configuração. A onda do mar não representa mais os persas, inimigos dos gregos, não sendo,

portanto, uma oposição trágica que se oponha a eles; pelo contrário, em outro momento da

tragédia, a força oceânica das ondas vai servir para expressar todo o sofrimento que recai

sobre o povo persa após a desgraça que se abateu sobre seu exército, destruído na batalha de

Salamina. O enunciado metafórico dessa vez é emitido pela rainha Atossa e, ao ocorrer logo

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após o relato do mensageiro do primeiro episódio, adquire todo um caráter de espanto e

desespero (433 e 434):

(...) (...) um grande pélago de males jorrou

contra os persas e a raça inteira dos bárbaros.

Evocada pela expressão nuclear externa, a extensão do mar e sua grande capacidade de

água tornam-se o parâmetro para descrever os males que se abateram sobre o povo persa. O

verbo , jorrar, no perfeito, enfatiza bem a ação resultativa permanente da desgraça

que ocasionou a derrota dos persas em Salamina. Contudo, tal infortúnio não diz respeito

apenas à batalha, mas também a tudo o que resultou dela: a vergonha, as mortes, a tristeza.

Tais sentimentos são compartilhados pelos personagens em cena.

Expressão nuclear 4: , uma onda se aproxima

O , pélago de males, do enunciado matafórico anterior possui estreita

relação com a expressão , onda de males, da próxima passagem metafórica.

Em ambas, o genitivo , de males, sendo o elemento literal da construção, determina a

imagem interna daquilo que está, de fato, acontecendo no contexto literário (construção

semelhante também vai aparecer com o termo , fonte). Os males apresentam-se aos

personagens em uma variedade que é mostrada em relações espaciais e de ação. A expressão

nuclear externa da próxima metáfora faz uso de uma ideia de aproximação, caráter que a

rainha deseja demonstrar, no início do curto segundo episódio de Persas (vv. 599 e 600):

(...) (...)

(...) quando uma onda

de males se aproxima (...)

O verbo , aproximar-se, exprime o ato espacial em questão, lançando sobre

o enunciado um caráter de ameaça proveniente da imagem externa de uma onda marítima

que, em movimento, se aproxima. O contexto literário esclarece que essa onda serve de uma

exposição figurada da difícil situação vivida pelos persas. O sentido interno depende da ação

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figurada, ou melhor, da ação que ocorre na natureza, que é trazida ao contexto literário para,

de modo figurado, expor da maneira mais enfática as oposições trágicas presentes em Persas.

6.2.4. A chama, a luz

Nova imagem externa é evocada, quando Ésquilo dota o seu texto de elementos

luminosos. A luz, símbolo do conhecimento no contexto filosófico dos gregos, serve, na

tragédia esquiliana, para enfatizar algum objeto ou acontecimento. Há passagens

terminantemente trágicas que se tornam mais contundentes pelo uso de tal recurso e outras

que, sendo igualmente enfáticas pelo mesmo procedimento, não se apresentam, entretanto,

como trágicas.

O termo , luz,aparece em Persas em três enunciados metafóricos seguidos, que,

apesar da beleza que emanam, não mostram oposição trágica, pois estão ligados ao alivío

sentido pelo fato de Xerxes ter sobrevivido à Batalha de Salamina. É conveniente mencionar

tais enunciados tanto pela importância que eles desempenham na peça quanto pelo fato de

serem necessários ao próprio entendimento dos enunciados metafóricos trágicos

propriamente ditos, que são formados, de alguma forma, pela evocação da luz. Os

enunciados metafóricos não trágicos mencionados aparecem em meio a um diálogo entre a

rainha Atossa e o mensageiro, no primeiro episódio de Persas (vv. 299-301):

Mensageiro: O próprio Xerxes está vivo e vê a luz.

Rainha: Mencionas uma grande luz para nossas moradas

e há um dia claro proveniente da noite sombria.

A segunda oração da fala do mensageiro é praticamente a maneira metafórica de se

dizer o que está expresso, literalmente, na primeira oração, pois ver a luz significa estar vivo.

O termo aparece, assim, primeiramente, como complemento objetivo do verbo

, ver, que produz uma ação metafórica toda construída por elementos que estão

ligados à luz e à visão. Em sua resposta, repleta de alívio, a rainha apresenta dois enunciados

metafóricos, em que o segundo se mostra como um verdadeiro enigma, uma vez que se

apresenta em uma linguagem completamente figurada. A personagem repete o termo ,

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enfatizando seu alívio por meio do adjetivo , grande, e, na oração seguinte,

acrescentando novos termos luminosos à sua fala, faz uso do adjetivo , claro, para

expor uma oposição à noite sombria, que é a maneira metafórica de se fazer menção à

sobrevivência do filho diante dos acontecimentos que se sucederam em Salamina. Não há

maneira mais bela do que esse último enunciado metafórico para mostrar a felicidade de uma

mãe diante do fato de o filho encontrar-se vivo. Qualquer enunciado literal seria menos

enfático, e talvez, por isso, Ésquilo tenha optado por expressar um dado tão importante por

meio de uma metáfora.

A passagem analisada sucintamente mostra bem como todo um discurso calcado em

termos que dizem respeito à luminosidade enfatiza os acontecimentos que se desenrolam na

ação de Persas. Logicamente, essa ênfase apresentar-se-á bem trágica nos enunciados que

expõem de maneira contundente a oposição entre gregos e persas.

Expressão nuclear 1: , uma trombeta, com seu brado, inflamava

Há maneiras bem variadas para se construir uma concepção figurada de luz,

dependendo daquilo que o autor deseja expressar. A expressão nuclear a ser estudada utiliza-

se da luminosidade advinda do fogo, que, além de enfatizar um momento específico,

expressa o ímpeto daqueles que se mostram entusiasmados com certa situação favorável.

A luminosidade que emana da chama determina o momento em que, dentro da narrativa

expressa pelo mensageiro no primeiro episódio, os gregos preparavam-se para atacar os

persas. enunciado metafórico faz uso de elementos luminosos e sonoros, em uma maneira

bem enfática de expressar o furor bélico e a coragem (v. 395):

Uma trombeta, com seu brado, inflamava todos eles.

Apesar de tratar-se de uma simples frase de estrutura pequena, o enunciado metafórico

é complexo, tendo em vista o número de imagens externas que são evocadas em sua

construção. Juntamente com o verbo , incendiar, inflamar, aparece o substantivo

, grito, brado, que se liga à sonoridade humana. Há, portanto, nesse enunciado

metafórico a presença de duas imagens provenientes de âmbitos diferentes. A presença do

instrumento literal , trombeta, justifica todo o discurso figurado que se apresenta no

ato perpetrado. É importante mencionar a personificação que faz com que a corneta adquira

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características humanas, pois, fazendo a ação, é ela que expele o brado que vai inflamar

metaforicamente os gregos. A ideia do fogo, de algo que se incendeia trazendo uma luz forte

e vibrante quando a chama se encontra no seu ápice, serve para expressar o ímpeto do

exército dos helenos e seu desejo de se medir em combate com os persas para proteger seu

solo. Ocorre nesse enunciado metafórico, portanto, uma oposição trágica que parte dos

gregos para ir de encontro aos persas, que são os indivíduos que se encontram em evidente

prejuízo na narrativa exposta pelo mensageiro, uma vez que sofrerão as consequências da

motivação dos gregos.

Expressão nuclear 2: rodeando o brilho

O último enunciado metafórico que faz uso de elementos luminosos é bem trágico por

enfatizar o momento em que os persas derrotados e famintos perambulam em busca de uma

fonte para saciar a sede. A passagem encontra-se ao final do relato do mensageiro, no

primeiro episódio de Persas (vv. 484 e 485):

(...) (...)

(...) uns, rodeando o brilho da fonte,

sofrem com a sede, (...)

O termo é mais abstrato do que outros que foram analisados e que também

dizem respeito à construção da luz. Ele caracteriza algo dotado de um aspecto esplendoroso,

e daí os sentidos de luminosidade e brilho. O enunciado metafórico enfatiza o sofrimento dos

persas pela busca de algo muito importante na situação crítica em que se encontravam. O

valor da fonte de água, expresso na passagem pelo adjetivo , de fonte, do

manancial, é enfatizado exatamente pela presença da palavra , concedendo maior

dramaticidade à passagem. Sendo uma narrativa, o discurso do mensageiro supre a ausência

de ação exatamente pelo colorido dramático que muitas metáforas trágicas apresentam. Essa

emissão de persas sofredores pela sede é uma delas.

A fonte literal mencionada no enunciado metafórico em questão adquire toda uma nova

significação ao ser colocada como expressão nuclear da metáfora trágica construída em torno

do termo , um sinônimo de , fonte, manancial, substantivo que é cognato ao

adjetivo . É uma construção desse tipo que será apresentada a seguir.

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6.2.5. A fonte

A metáfora da fonte é bem compreendida nos dias atuais porque até hoje são contruídas

emissões que a utilizam para expressar o desenvolvimento de uma ação desde o seu início ou

a sua continuidade. A imagem externa evocada vai desde o filete de água que caracteriza a

fonte, com seu manancial nascente, até o desenvolvimento que produz um grande rio. Essa

imagem trazida a um enunciado metafórico injeta ao discurso uma ideia de origem de algo

que adquire uma grande extensão. Ésquilo, ao evocar essa imagem em seu discurso trágico,

normalmente, tem o intuito de expressar fatos terríveis que são causados por certos

fenômenos de grande gravidade.

Expressão nuclear: , fonte

O Fantasma de Dario, no terceiro episódio, produz um enunciado metafórico que utiliza

a imagem externa da fonte para expressar os males presentes advindos da derrota persa na

Batalha de Salamina (v. 743):

agora, uma fonte de males parece se evidenciar para todos os meus amigos.

Trata-se de mais um enunciado metafórico que faz uso do determinante em genitivo

, de males, para trazer à tona dessa vez a difícil situação que os persas passam no

momento presente da ação trágica. A expressão nuclear externa , fonte, concede ao

enunciado a ênfase necessária a um caráter de gravidade e continuidade que se torna mais

forte ainda pelo teor de intimidade que está presente na emissão, sobretudo, por meio da

presença do termo literal , amigo. O Fantasma de Dario, com sua autoridade do além,

forma um enunciado metafórico enriquecedor do drama trágico que perpassa por toda ação

de Persas.

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7. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DA VIDA COTIDIANA:

O cotidiano do homem grego se mostra de modo vivo por meio das metáforas que

resgatam as imagens dos afazeres e dos hábitos do homem grego no âmbito da cidade. A vida

econômica constrói-se por hábitos, de maneira que é possível conhecer, pelo estudo

aprofundado do cotidiano dos gregos, a própria vida que se desenvolvia na helênica.

Neste capítulo, serão vistos enunciados metafóricos formados por expressões nucleares

provenientes da intimidade dos gregos. Tais expressões serão utilizadas em meio ao âmbito

dos persas, graças ao contexto literário, que vai expressar por meio delas as oposições

trágicas necessárias ao discurso esquiliano.

7.1. As vestimentas

Em muitos momentos de Persas, as vestimentas marcam a riqueza dos bárbaros em um

pseudoelogio do contexto literário que, na verdade, pretende enfatizar os gregos que, sem

abundância de riquezas, têm seus valores fincados no homem. A riqueza, no contexto da

tragédia, por extensão, assim, direciona-se para o poder dos povos bárbaros, uma vez que,

sem riqueza e, consequentemente, sem a luxúria expressa nas roupas, não há poder.

Desde o inicio da tragédia, os anciãos do coro, autocomparando-se a , éforos,

por meio do verbo , ser éforo (vv. 4-7), apresentam-se como indivíduos dotados de

grande importância para a cidade de Susa. A instituição espartana dos éforos serve

metaforicamente, como foi vista em 4.1, para designar autoridade e poder, mas deve-se

mencionar ainda que os anciãos do coro estão trajados por , trajes cerimoniais,

ostentação que determina sua alta linhagem real89

. As vestimentas possuem, portanto,

importância fundamental para, de maneira sutil, expressar tanto a riqueza inerente aos persas

quanto o poder cujo aspecto é passado pela ostentação da vestimenta. A desconstrução dessa

riqueza, expressa na pouca ostentação ou na própria deteriorização das vestes, enfatiza um

discurso oposto, importante para a manifestação trágica que se baseia na fragilidade dos

persas. Esse caráter é perceptível quando a rainha Atossa, em sua pressa de invocar seu

89 O traje dos anciãos é citado ao final da tragédia, no verso 1060, quando Xerxes pede que o coro rasgue suas

próprias vestes: , E rasgue o peplo sinuoso com a força das mãos. O rasgar das vestes simboliza no contexto literário de Persas a perda do poder com a derrota sofrida pelas mãos dos

atenienses, em Salamina.

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esposo Dario do mundo dos mortos para que ele esclarecesse as causas da derrota em

Salamina e concedesse algum alento ao povo, menciona, no segundo episódio, que não se

encontra com as vestes luxuosas que normalmente ostenta (vv. 607-609):

(...) Portanto, por este trajeto, sem carros

e sem o luxo de antes, vim novamente

do palácio, (...)

O termo , luxo, ornamento luxuoso, diz respeito a todo aparato que comumente a

rainha dos persas utilizava.Encontrando-se ferida em seu status, a rainha mostra-se

desprovida dos ornamentos singulares que construiriam, de acordo com o contexto literário, o

seu aspecto de figura pertencente à realeza. Igualmente, a presença de um Xerxes

maltrapilho, na parte final da tragédia, desconstrói a figura de rei, o que simboliza

exatamente a derrota persa. Curiosamente, o personagem apresenta-se em cena com as

consequências da ação que é apresentada na narrativa presente no sonho da rainha, durante o

primeiro episódio, ou seja, o rasgar das vestes (vv. 198 e 199):

(...) (...) porém,

quando Xerxes o vê, rasga as vestes à volta do corpo.

A visão de Xerxes recai sobre Dario, que, de acordo com a narrativa surrealista da

rainha, pretendia consolá-lo. Xerxes por vergonha, diante do pai, rasga sua roupa, atitude que

é o símbolo de sua perda de poder diante dos gregos e até mesmo diante de seu próprio povo.

Note-se que o termo é o mesmo tipo de vestimenta usado pelos anciãos do coro90

.

Trata-se de um tipo de vestimenta oriental larga masculina.

O enunciado metafórico que será analisado neste tópico faz uso de outro tipo de

vestimenta, que se encontra inserida em uma composição de caráter trágico. Trata-se do

, uma túnica masculina ou feminina, longa e com mangas.

90 Cf. nota 89.

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Expressão nuclear: , vestido de negro

Ésquilo enfatiza todo esse aparato de vestes esplendorosas para desconstruí-lo em

seguida por meio de seu discurso trágico. A inversão que permite que um traje expresse o

dano vai formar-se exatamente no momento em que as desgraças provenientes da derrota

persa são levantadas como hipóteses. O enunciado metafórico em questão é expresso pelo

coro de anciãos, no decorrer do párodo (v. 114-115):

Esses fatos dilaceram de medo meu espírito vestido de negro;

Os anciãos encontram-se apreensivos e, temendo o pior, evocam a imagem externa da

veste denominada em meio a uma composição que lhe acrescenta um caráter de terror.

O adjetivo , vestido de negro, em traje de luto, literalmente determinaria

simplesmente o indivíduo que estivesse trajando uma roupa específica, mas, como essa roupa

pode ser utlizada em ocasiões de luto, ela pode metaforicamente, como ocorre no texto,

expressar a preocupação dos anciãos que já veem, diante da ausência de um mensageiro, a

possibilidade da derrota da armada de Xerxes e, consequentemente, o grande número de

mortos que tal fato teria ocasionado. O adjetivo determina o substantivo ,

coração, espírito, alma, que, igualmente, se apresenta num sentido figurado. O verbo

, dilacerar, torturar, possuindo na voz média um sentido ligado à autoflagelação,

reforça o significado figurado do todo por meio da personificação que exprime, e, com sua

ação, mostra claramente que a emissão apresentada é uma metáfora trágica de excelente êxito

por enfatizar dessa maneira o medo dos anciãos pela falta de notícias acerca do exército de

Xerxes.

7.2. A prosperidade da casa

A riqueza mostrada na aparência das vestimentas dos personagens tem sua forma

concreta balizada nas moradas suntuosas e nos palácios dos reis persas. O desenvolvimento

do significado da riqueza dos povos bárbaros no contexto literário da tragédia Persas já foi

mencionado sucintamente no tópico anterior, mas terá uma explicação mais completa no

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capítulo 8, em que se fará menção ao recurso metafórico de enfatizar a riqueza dos persas

pelo órgão da visão. Tendo estreita relação com os enunciados metafóricos que serão

apresentados no próximo capítulo, tanto esses quanto o enunciado a ser citado aqui estão

inseridos em uma mesma fala, pertencente à rainha Atossa. O momento agora é de apresentar

como Ésquilo constrói uma passagem trágica por meio da ideia de destruição de uma

residência real.

Expressão nuclear: () , depois de cobrir

o solo de poeira, destrua a prosperidade que (Dario) ergueu

O enunciado metafórico em questão encontra-se no início do primeiro episódio, antes,

portanto, da entrada do mensageiro. A rainha aparece em cena dominada pela mesma

apreensão que torturava os anciãos de coro, estando todos desejosos de saber notícias do

exército de Xerxes, mas prevendo os piores acontecimentos, como, por exemplo, a perda de

poder por causa da provável derrota de Xerxes, fato que poderia ocasionar o fim de tudo o

que Dario havia acumulado em seu tempo de reinado (vv. 163-164):

(...)

que o grande Plutão, depois de cobrir o solo de poeira, destrua com o pé

a prosperidade que Dario ergueu

A preocupação da rainha é expressa em um enunciado todo metafórico, que enfatiza

uma possível perda do poder real e, consequentemente, a decadência de um rei pela evocação

da imagem externa da destruição de uma casa que fica reduzida à poeira. Isso significaria o

fim da própria prosperidade que se encontra ligada a ela, ou seja, a prosperidade de seu dono.

O verbo , erguer, levantar, liga-se ao âmbito da construção de moradas, mas a imagem

interna não possui nenhuma construção levantada literalmente. A expressão nuclear externa

evoca a demolição de uma casa outrora erguida para dotar o texto de caráter trágico, ao expor

dessa maneira a perda da autoridade do rei e de suas riquezas.

É importante ressaltar o significado do termo , traduzido na passagem por

prosperidade, em oposição ao termo , riqueza, que não aparece no texto. O intuito

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de apresentar esta distinção visa a esclarer o sentido completo da emissão91

. A palavra

diz respeito a uma riqueza tangível, material, enquanto o termo mostra-se

mais abstrato, estando ligado ao bem-estar, um tipo de riqueza não material. Pode-se dizer

que, no contexto literário de Persas, na forma que Ésquilo utiliza para caracterizar o povo

bárbaro, o depende do , ou seja, o primeiro seria o resultado da possesão do

segundo. Isso significa dizer que pela destruição do dá-se o fim do para os

personagens persas, uma vez que a riqueza material determina o poderio do homem para os

bárbaros idealizados por Ésquilo. Como será visto no capítulo 8, o retrato que Ésquilo pinta

dos gregos será o extremo oposto.

7.3. As tabuinhas de leitura e o papiro

Em um plano bem mais culto do que as imagens externas já tratadas neste capítulo, a

vida intelectual dos gregos mostra-se presente em Persas por meio da utilização de livros em

ações metafóricas que evocam, por vezes, até mesmo os atos de escrever e ler.

O terrível relato do mensageiro é enfatizado, em vários momentos, pela presença de

uma imagem externa que está ligada à leitura de textos na Antiguidade. Dumortier (1975, p.

206) faz uma descrição bem abrangente da maneira como a escrita e o livro (na verdade, o

objeto a ser tratado aqui primeiramente é uma espécie de tabuinha dupla) eram utilizados

pelos gregos no século V a.C.:

Os gregos do século V se serviam para escrever de tabletes de madeira untados de cera: eles traçavam os caracteres com um

estilete. Formada de duas tabuinhas ligadas por anéis, o díptico é o

modelo mais frequente. Suas dimensões reduzidas só permitiam a

inscrição de textos muito curtos e eles eram utilizados pouco fora da

escola para correspondência ou tomar notas.

A descrição é reveladora por sua intimidade proveniente da vida intelectual. A

compreensão dos atos presentes no âmbito cultural do homem helênico possibilita que se

entenda igualmente os atos figurados de leitura e escrita de textos que aparecem em Persas

para expor o caráter trágico que se desenvolve no enredo. Tais ações não se encontram

91 Thalmann faz tal distinção no próprio contexto literário da tragédia Persas. THALMANN, William G. Xerxes‟

rags: some problems in Aeschylus‟ Persians. The Johns Hopkins University Press. The American Journal of

Philology, vol. 101. No. 3, 1980, pp. 275, 276.

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literalmente no contexto literário, mas servem para enfatizar a forma como a narrativa da

derrota dos persas será exposta pelo personagem mensageiro.

Expressão nuclear 1: , desdobrar todo

O primeiro enunciado metafórico que se utiliza da imagem externa do uso das tabuinhas

de leitura aparece no primeiro episódio de Persas, na fala inicial do mensageiro após sua

entrada, fato interessante de se notar porque isso significa que todos os acontecimentos em

Salamina serão passados aos outros personagens em cena por meio do que seria,

metaforicamente, um grande relato presente em um livro aberto(v. 254):

contudo trata-se de uma necessidade desdobrar todo o sofrimento,

A ação de desdobrar abrindo as tabuinhas para conferir o seu conteúdo escrito é

evocada pela presença do verbo , desdobrar, abrir, que traz para o contexto

literário a imagem externa da duplicidade dessa tabuinha de leitura, unida por anéis como

ressaltou Dumortier. Pode-se perceber que o adjetivo em acusativo , todo, aparece na

emissão como um termo harmonizador de imagens, pois diz respeito tanto à abertura do livro

por inteiro quanto à totalidade do sofrimento que caiu sobre os persas em Salamina. Note-se

que, retirando a imagem interna e atendo-se somente ao âmbito cotidiano do homem grego,

seria possível construir a frase desdobrar todo o livro, e, detendo-se apenas no literal que

ocorre no contexto literário é possível dizer expor todo o sofrimento. Nas duas expressões,

pode-se perceber a possibilidade de utilização do referido adjetivo.

O enunciado metafórico produzido chama a atenção para o início do relato do

mensageiro, que trará uma narrativa repleta de desgraças, característica mostrada no uso do

termo literal , sofrimento. Esse díptico composto de duas tabuinhas, cuja utilidade é

ser aberto para escrever um conteúdo que será lido por outra pessoa, é, no contexto literário,

uma tabuinha de sofrimento, o que faz com que esse instrumento tão útil ao homem grego do

V século, adquira, no discurso esquiliano, um valor trágico. O ato de ler, mais precisamente,

vai surgir com mais clareza no enunciado metafórico seguinte.

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Expressão nuclear 2: , depois de desdobrares todo,

apresenta tua leitura

O verbo aparece ainda em um enunciado metafórico juntamente com o

verbo , que além de siginificar dizer, expor, possui também, pela ampliação de seu

campo semântico, o sentido de ler em voz alta, deixando ainda mais evidente a imagem

externa do âmbito intelectual, que se vê evocada para constituir a fala da rainha Atossa, que

nesses termos ordena que o mensageiro empreenda o seu relato (vv. 294 e 295):

(...)

(...)

(...) Depois de desdobrares todo o sofrimento,

expõe, após se recompor, (...)

A imagem evocada complementa o simples ato de abrir as tabuinhas com a própria

preparação da leitura que será feita em seguida. Como essa ação não ocorre de fato no

contexto literário, ela serve de maneira eficaz para expor o trágico, em um suspense que

constrói o início do relato do mensageiro sobre os acontecimentos em Salamina, que irá

dominar boa parte do primeiro episódio.

Expressão nuclear 3: , após desenrolar desde o princípio

O enunciado metafórico seguinte sai do âmbito da escritura de pequenos textos

comunicativos para ir ao encontro do ato de ler livros de extensão considerável. O papiro, no

tempo de Ésquilo, era o material em que os livros eram escritos, e estes exigiam, pelo seu

formato, uma ação específica para seu manuseio. Harvey (1998, p. 309 e 310) discorre acerca

da forma do papiro em meio à sua utilização entre os gregos:

Punha-se geralmente um cilindro fino (ômphalos) no fim do papiro,

adornado por uma protuberância (cornua) nas duas extremidades.

Em geral escrevia-se apenas num dos lados do rolo, o „rector‟, no

qual as fibras corriam horizontalmente; quando se escrevia em

ambos os lados chamava-se o rolo de „opisthôgraphos‟. Um rolo

comum podia conter um livro da “História da Guerra do

Peloponeso” de Tucídides, ou dois ou três cantos da “Ilíada”. (...) O

leitor desenrolava o rolo com a mão direita, e o reenrolava, à

proporção que o lia, com a mão esquerda. Sem dúvida essa forma de livro era bastante incômoda.

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Os problemas advindos da leitura de um papiro são bem enfatizados por Harvey.

Fazendo também menção a tais incoveniências, Horta prefere, por sua vez, fazer um sucinto

resumo da evolução do modo como se escrevia no papiro através do tempo (1978, p. 94):

Observemos ainda que todas as línguas semíticas (como ainda hoje o

hebreu e o árabe) escrevem-se da direita para a esquerda e assim

também fizeram os gregos inicialmente. Mas com o tempo, fosse para

facilitar a leitura das inscrições muito longas ou por qualquer outra

razão ainda obscura, as inscrições helênicas passaram a obedecer a

movimentos alternados, da direita para a esquerda e da esquerda

para direita – “” – isto é, imitando o movimento dos bois que aram a terra indo e vindo para abrir os sulcos.

Em meados do VIº séc. a.C. finalmente prevaleceu a atual disposição

da esquerda para a direita, a qual se transmitiu a todas as outras

escritas européias.

O enunciado metafórico que é construído em Persas pela rainha Atossa, antes do

momento em que a mesma questiona o mensageiro sobre o número de naus helênicas em

Salamina, faz uso exatamente da imagem externa da ação de desenrolar um papiro (v. 333):

então, narra-me isso, após desenrolar desde o princípio:

O verbo , revirar, virar em sentido inverso, reforçado pelo advérbio

, para trás, na direção oposta, evoca de modo perfeito a imagem externa do ato de

desenrolar o papiro e enrolá-lo durante sua leitura. A ação figurada enfatiza o efeito trágico

ao fazer com que a própria extensão do papiro sirva para expressar a grande quantidade de

males que se abateu sobre os persas. É interessante ainda informar que o

verbo,substantivado no neutro na forma ,diz respeito a um

tipo de poesia que pode ser lida de trás para frente92

. Isso mostra bem como esse verbo,

quando utilizado de maneira figurada, tem a capacidade de produzir uma ênfase trágica por

meio de um movimento intelectual que vai abarcar a totalidade dos eventos presenciados

pelo mensageiro.

92 BAILLY, A. Dictionnaire Grec Français. Ed. rev. et aum. par L. Sechan et P. Chantraine. Paris: Hachette,

1983. O dicionário de Bailly informa que isso ocorre, por exemplo, na Antologia Palatina.

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7.4. A balança do comércio

Apartando-se do âmbito intelectual dos enunciados metafóricos que fazem uso dos

instrumentos e das ações em torno da escrita, os males sofridos pelos persas ganham um

tratamento completamente diferente no âmbito do comércio, no momento em que Ésquilo

coloca no texto de Persas a imagem externa do utensílio denominado balança.

A balança grega era composta de dois pratos e de um travessão que servia para

equilibrar os pesos colocados nos pratos. O termo pode significar tanto a própria

balança como os pratos da mesma ou ainda mesmo os seus pesos (nesses dois últimos casos,

o termo aparece, normalmente, no plural), dependendo do contexto que se apresenta

construído. A imagem da balança determinando a sorte dos contendores é de concepção

antiga mesmo para os gregos e aparece em Homero em vários momentos, sendo talvez a mais

importante a evocação que acontece em Ilíada, antes do combate singular entre Aquiles e

Heitor. Enquanto o troiano foge de Aquiles, Zeus determina sua morte em uma passagem

repleta de termos que reconstroem para o receptor atual a utilização da balança entre os

gregos (XXII, vv. 208-212):

(...)

Mas, quando, então, chegaram à quarta volta sobre as fontes,

nesse momento então o pai dispôs os pratos áureos,

e nele colocou duas queres da morte que se manifesta funesta,

a de Aquiles, e a de Heitor domador de cavalos,

e a esticou após tomá-la no meio; e abaixou o dia fatal de Heitor, (...)

Note-se que o termo aparece no plural com o sentido de pratos da balança,

especificando, assim, toda a preparação do instrumento que é mostrado inicialmente pela

presença dos dois pesos expressos pelo numeral , dois, e pela própria citação dos dois

heróis. Há também o ato de estender a balança regulando-a pelo meio, ações especificadas

pelos verbos , esticar, e , tomar, em associação com o advérbio , no

meio. Por fim, tem-se o importante uso do verbo , tender para baixo ou para cima,

inclinar-se para baixo, abaixar, que pertence claramente ao âmbito semântico do uso da

balança. Todos esses elementos formam uma vívida imagem da presença da balança na obra

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homérica e, de uma maneira ou de outra, serão utilizados por Ésquilo para a construção de

seus enunciados metafóricos em Persas.

Expressão nuclear 1: , tendo pesado os pratos, com (sorte)

equilibrada

Ésquilo acrescenta também outros termos que evocam a balança, diferentes de aqueles

que aparecem na passagem homérica apresentada. A metáfora da balança e sua duplicidade

vão proporcionar em Persas que o mensageiro exponha em cena, por meio de sua narrativa, a

própria oposição entre gregos e persas, enfatizando a falta de equilíbrio que havia entre

ambos, no embate em Salamina. Se os Persas possuíam um exército mais numeroso e

poderoso, descrito nesses termos desde os primeiros versos da tragédia, os gregos possuíam,

segundo o contexto literário, ajuda divina e organização, o que fez, na concepção do

mensageiro, a balança pender para o lado dos atenienses. O termo , no plural,

significa, como na passagem homérica, os pratos da balança, sentido mostrado claramente

pelo uso do verbo , pesar, carregar (de peso), que faz parte da expressão nuclear que

está no enunciado metafórico expresso pelo mensageiro no primeiro episódio (vv. 345 e

346):

Mas eis que uma divindade destruía o exército,

não tendo pesado os pratos com sorte equilibrada.

O adjetivo , equilibrado, tem no primeiro elemento da composição um

radical cognato ao verbo , que, junto à igualdade especificada no radical do adjetivo

, igual, que é o segundo elemento da composição, complementa a imagem externa ao

trazer para a passagem uma oposição entre os lados em disputa por meio da própria negação

de uma igualdade que seria medida em uma balança.

Uma divindade fica incumbida, normalmente, do ato metafórico de pesar o conteúdo

dos dois pratos da balança. Isso aconteceu em Homero, na figura de Zeus, e não é diferente

aqui, em que o termo , divindade, dá nome ao ser que produz a ação. Provavelmente,

essa divindade não nomeada trata-se da , que tem uma atuação sobrenatural muito

importante no contexto literário de Persas. Percebe-se na emissão a ideia de um

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favorecimento para um dos lados da balança, que, metaforicamente, é o lado que sobe. O

lado mais pesado, que se inclina para baixo, é aquele que determina o perdedor. É assim que

o mensageiro percebe a quantidade de males que se abateram sobre os persas, ou seja,

metaforicamente, as desgraças tornam um dos lados mais pesado, o lado dos infortunados.

Tal conjuntura poderá ser notada com mais clareza na próxima passagem.

Expressão nuclear 2: , contrabalançar duas vezes a inclinação

Na continuidade do primeiro episódio, conforme vai relatando o infortúnio dos persas

em Salamina, o mensageiro emite um enunciado metafórico que bem expressa tragicamente a

situação sofrida pela coletividade dos bárbaros, por meio da imagem externa de uma balança

que tem um de seus lados bastante inclinado em relação ao outro (vv. 436 e 437):

Tal desfecho de sofrimento chegou sobre eles,

de maneira tal a contrabalançar ainda duas vezes a inclinação.

O termo , além de significar desfecho, possui o sentido de desgraça, e, vindo

ainda determinado pelo substantivo , sofrimento, no genitivo, caracteriza os momentos

terríveis dos persas em Salamina. O primeiro elemento da composição é proveniente de um

radical cognato ao verbo , levar. O substantivo significa a própria ação de levar

e, em composição com o sufixo preposicional de companhia , indica a imensa quantidade

de males que sobreveio ao exército de Xerxes de forma repentina e de uma so vez (o sufixo

também indica simultaneidade). De forma engenhosa, Ésquilo faz com que essa aglomeração

de sofrimentos, que faz parte da imagem interna (de fato há males no contexto literário, que,

ao se unirem à imagem externa, trazem para o texto a forma figurada da balança), se

constitua no peso que ocasiona a derrota dos persas, inclinando a balança de forma

desfavorável a eles. O advérbio numeral , duas vezes, é usado para evidenciar um peso

que é o dobro daquele que se encontra no outro lado da balança, determinando assim a

desvantagem persa diante dos gregos. Uma passagem com idealização semelhante ocorre no

próximo enunciado metafórico.

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Expressão nuclear 3: , que inclinava para

Nesse momento da ação, a rainha Atossa faz referência aos persas que se refugiaram em

uma ilha próxima a Salamina. Apesar de aguardar os esclarecimentos do mensageiro, a

rainha sabe que a notícia é terrível e, em uma resposta ao enunciado metafórico precedente,

ela exprime outro, hesitante e desesperançoso, em que igualmente surge a imagem externa da

balança (vv. 439 e 440):

(...) (...) dizes que chegou ao exército

esta desgraça, que inclina para os maiores dentre os males.

Mais uma vez o termo , dessa vez traduzido por desgraça, porque se encontra

sem determinantes, afigura-se como o peso que estabelece o infortúnio dos bárbaros, mas a

expressão nuclear que determina na emissão a presença figurada da balança se encontra no

verbo , inclinar, que, com a presença da preposição , para, expressa de forma eficaz

o movimento que determina o lado para onde um dos braços da balança pende por conta de

um peso maior. Pode-se dizer que, pela linguagem metafórica, a desgraça inclina a balança

para o lado onde se encontram os males. De modo impressionante, os termos literais inserem-

se no movimento figurado, determinando a totalidade do enunciado metafórico.

Qualquer tentativa de paráfrase literal desse enunciado ou dos outros precedentes desse

tópico, em que não aparecesse nenhuma referência à balança, resultaria em uma frase

desprovida do caráter trágico que é possível pela ênfase metafórica. A imagem da balança,

com seus dois braços, é propícia à demonstração do embate entre gregos e persas, com

evidente prejuízo para os segundos. Deve-se dizer ainda que, por tratar-se de um inofensivo

instrumento proveniente das necessidades comerciais dos povos antigos, a metáfora da

balança mostra-se paradoxal na sua utilização para expressar os males presentes em uma

tragédia.

7.5. O alicerce, a base

Enquanto o âmbito da utilização da balança é bem definido, tendo em vista o valor

concreto dos termos encontrados que lhe dizem respeito dentro do comércio, um problema

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mostra-se presente no estudo da próxima imagem externa: a palavra que a evoca, ou seja, sua

expressão nuclear fundamental, não é proveniente de um único âmbito. De fato, a palavra

, com seu campo semântico levantando significados que abarcam lugares diversos,

insere-se em vários ambientes da vida do cidadão ateniense. O termo, cujo sentido agregador

é base, pode possuir os significados de calçado, sobretudo masculino (ou seja, uma base para

os pés), fundação (de um edifício), pedestal e, por extensão, adentrando na vida religiosa dos

gregos, altar. Como se pode perceber, o contexto vai ser de suma importância para se

compreender o valor semântico que essa palavra vai adquirir no enredo de Persas.

Expressão Nuclear:

Soma-se à referida problemática do uso da palavra em Persas o fato de o

verso 815 apresentar uma série de problemas comprovados pela variedade de resultados a

que os editores do texto chegaram. O manuscrito lacunoso fez com que a semelhança de

com , fonte, gerasse, por exemplo, edições críticas que preferem a segunda

palavra em detrimento da primeira e, dependendo das edições, o enunciado metafórico como

um todo possui formas variadas e, portanto, outros lugares comuns evocados93

. O enunciado

metafórico emitido pelo fantasma de Dario, no terceiro episódio, encontra-se reproduzido de

acordo com o texto de Hall, que é utilizado para tradução de Persas na presente tese (vv. 814

e 815):

(...)

93O texto editado por Jeffrey Henderson, por exemplo, tem a referida passagem com a presença de (vv. 814 e 815):

(...)

, (...) pois não se extinguiu

a fonte de males, ao contrário, ainda está manando.

Na edição de Hendersen, a imagem evocada se insere completamente no âmbito da natureza.AESCHYLUS.

Persians. Harvard University Press- Loeb Classical Library. Já, na edição clássica de C. G. Schütz, o verso 815

possui forma diversa da de Hendersen:

(...)

, (...) pois ainda não está oculto

o alicerce de males, ao contrário, ainda se cria desde a infância.

Esse é o texto utilizado por Dumortier para sua análise das metáforas das tragédias esquilianas. DUMORTIER,

Jean. Les images dans la poésie d‟ Eschyle. Especialmente, a presença do verbo cria uma metáfora extraída do âmbito da educação grega. O texto de Hall, utilizado nessa tese, apresenta, de certa maneira, uma

harmonização das duas possibilidades.

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(...) não está oculto

o alicerce de males, mas ainda brota.

O verbo , jorrar ou brotar de, admite a posibilidade tanto de

quanto de , pois ambas as palavras são aptas a apresentar uma ideia de origem bem

semelhante. Os males apresentandos na passagem podem, metaforicamente, jorrar de uma

fonte ou brotar da terra, sendo esse último caso exatamente o que a presença de dá a

entender. Independentemente das possibilidades, este é mais um enunciado metafórico

trágico que exprime de maneira eficaz os funestos acontecimentos que assolaram os persas.

No caso em questão, o fantasma de Dario está falando mais precisamente dos soldados de

Xerxes que sobreviveram à Batalha de Salamina, mas que encontrarão seu fim na Batalha de

Plateia contra os espartanos.

7.6. O ferreiro, seus instrumentos e produtos.

Algumas profissões e mesmo cargos públicos já foram citados e analisados em

capítulos anteriores, como, por exemplo, o profeta, o caçador, o pescador, o juiz de contas, e

optou-se por determinar os seus lugares de acordo com o âmbito de atuação dessas figuras

em meio ao cotidiano político do homem grego. Nesse tópico, será vista uma profissão que,

não deixando de se inserir logicamente na vida política do homem grego, não encontrou

lugar nos capítulos abordados anteriormente nessa tese. Trata-se do , bronzista ou

ferreiro, cuja evocação traz para o contexto literário o mundo bélico do homem grego, que se

mostra de modo vívido por intermédio das metáforas que resgatam as imagens dos

instrumentos e aparatos de guerra que serviam para defesa da cidade. O dá nome a

uma profissão, que, na , tem a função de produzir tais utensílios.

A profissão de na Grécia antiga reveste-se da mais variada utilidade. Tanto é

respeitado o seu ofício que a profissão de ferreiro ficou relacionada, desde tempos

imemoriáveis, a um dos deuses olímpicos mais importantes: Hefesto, o deus coxo das forjas.

Na Ilíada, é ele quem manufatura o belo e impressionante escudo de Aquiles, além de uma

armadura poderosa94

, devido ao fato de Heitor ter tomado as antigas armas do pelida, depois

de matar seu amigo Pátroclo, que as usava em combate. Mas, se o ofício do bronzista está

ligado à habilidade técnica, também está relacionado à astúcia e à inteligência. Na Odisseia,

94 Ilíada, XVIII, vv. 468-617.

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o aedo Demódoco canta o modo como o mesmo Hefesto prende sua esposa, Afrodite, e o

amante desta, Ares, em uma armadilha astuciosa feita com grilhões posicionados sobre o

leito em que os amantes se encontravam95

. Essa relação entre arte e inteligência para

concebê-la é indissociável, visto que, para conceber o objeto é necessário maestria. Para

transformar uma matéria bruta em arte, é preciso, contudo, um elemento essencial, o fogo,

sem o qual os utensílios do não possuem serventia. Hefesto é o deus do fogo por

excelência, elemento natural que se mostra o símbolo da capacidade de criação em arte, uma

perícia que aparece na tranformação. Uma relação de causa e efeito estabelece-se, ou melhor,

uma relação de ação e produto, não diferente daquela que os gregos expressavam

etimologicamente pelos sufixos –e –. Esse fogo transformador é, de acordo com

qualquer versão do mito existente na literatura grega, um privilégio dos deuses, um elemento

divino cujo lugar não deveria ser entre os homens. É Prometeu, o deus benfeitor da

humanidade, que rouba da oficina de Hefesto o fogo, seu segredo, dando-o aos homens96

. Em

sua genialidade coletiva, os gregos desenvolvem um mito originário que mostra a fundação

do conhecimento da arte metalúrgica para a humanidade, o que explicaria a existência, entre

os homens, do ferreiro ou do bronzista, profissões muito antigas, que, inserindo-se no âmbito

dos artesãos, estabelece sob esse nome, com o tempo, uma verdadeira classe social. Vernant

(1990, p. 314), calcando-se na plena legitimação dessa classe social e de sua arte, afirma que,

na época da Atenas clássica, já se mostra evidente a associação do deus ferreiro Hefesto com

outras duas divindades, Prometeu e Atena, deusa da guerra, da estratégia bélica, e, por

extensão, deusa da sabedoria, todos como representantes de uma ação simbólica que

apresenta o fogo como o elemento manufaturador precioso que permite a arte:

Esse grupamento de deuses, tal como é atestado no culto, no mito e

na representação figurada, tende a simbolizar em Atenas uma função

técnica, e uma categoria social, a dos artesãos. Sem dúvida porque

essas técnicas do fogo estão grandemente representadas no barro do

cerâmico onde reinam essas divindades.

Segundo o helenista, o deus Hefesto faz parte de um símbolo que sustenta todo um

imaginário ligado à arte e à figura social do artesão. De fato, na tragédia Prometeu, Hefesto

se encontra presente num enredo em que Ésquilo estabelece uma ponte entre o seu saber

técnico pelo manuseio do fogo e o desenvolvimento humano, representado pela figura de

95 Odisseia, VIII, vv. 266-366 96 As narrativas em torno desse mito são apresentadas por HESÍODO em seus dois poemas, Trabalhos e Dias (vv.

42-105) e Teogonia (507-616).

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Prometeu97

. Hefesto auxiliado pelos deuses Poder e Força, todos com nítido valor simbólico,

prende, não sem lamentação, Prometeu a um rochedo, com liames de aço. A divindade que

representa o ofício castiga aquele que concedeu o elemento que possibilita sua arte aos

homens: a chama do fogo, moldadora dos metais.

Em Persas, a evocação desse universo restringe-se, de acordo com o discurso trágico do

autor, ao mundo bélico. Não se fala da figura do ferreiro ou do bronzista, mas dos seus

objetos, tanto daqueles que servem para manufaturar armas, quanto das armas propriamente

ditas, em uma arrojada utilização que os associam a chefes ou mesmo, numa totalidade

maior, a exércitos e povos.

Expressão nuclear 1: , bigornas da lança

A primeira metáfora de Os Persas dessa natureza é bem original e de variada

compreensão. No catálogo do contingente do exército bárbaro expresso pelo coro de anciãos

no párodo, Ésquilo apresenta dois austeros chefes de uma maneira bem peculiar (v. 51):

(...)

Márdon, Tharibis, bigornas da lança, (...)

Márdon e Tharibis são citados, metaforicamente, como , bigornas da

lança, numa alusão ao âmbito de trabalho do ferreiro. Essa curiosa imagem, entre seus vários

sentidos possíveis, poderia significar que tais chefes seriam tão imóveis diante do perigo

bélico quanto a lança é sobre a dura bigorna 98

. É possível extrair dessa paráfrase conceitos

relacionados à força e à coragem, mas, na compreensão ampla da passagem que se forma no

texto esquiliano, pode-se ainda inferir outros valores que se ligam a esses homens, tais como

a destreza, a perícia ou ainda o conhecimento na arte bélica, pois, como ficou assentado, no

momento em que se falou da figura de Prometeu, a habilidade em uma técnica, como aqui

ocorre na arte bélica, está relacionada também à astúcia e à inteligência. Márdon e Tharibis,

além de corajosos, são especialistas na arte bélica, o que permite interpretar essa metáfora da

técnica do ferreiro como algo que exprime ainda a técnica guerreira e o conhecimento da

mesma. Citados como bigornas, esses chefes não são apenas homens que suportam o perigo

97 De acordo com Vernant, Prometeu, em Ésquilo, representa, simbolicamente, o próprio homem. VERNANT, J.

Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 322. 98 Cf. comentário de Edith Hall em AESCHYLUS, Persians. Aris & Phillips LTD.Warminster: England, 1997, p.

112.

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bélico, mas também são aqueles que sabem portar suas lanças e empunhá-las. A bigorna é

um instrumento necessário para a feitura da lança, um produto da arte do ferreiro, e por isso

pode ser entendida, nesse contexto, como um símbolo do conhecimento inerente à arte da

metalurgia. Ao serem citados como o próprio instrumento que serve para construir a lança,

esse elemento imóvel, passivo, onde o metal em brasa é batido para formar o produto

necessário, Márdon e Tharibis recebem, na relação arte do ferreiro e mundo bélico, uma

complexa determinação que indica, ao mesmo tempo, coragem, força, técnica e

conhecimento. Apenas a força metafórica pode englobar em uma única expressão tantos

conceitos, e isso reforça o fato de que a metáfora é insubstituível, já que a tentativa de tornar

o enunciado inteiramente literal ocasionaria perda semântica.

Os valores inerentes à manufaturação de instrumentos bélicos têm sua continuidade em

vários momentos da peça. Sobretudo é a lança que aparece normalmente, pois, sendo uma

arma utilizada para luta corpo a corpo, ela surge no contexto literário para simbolizar a

coragem dos gregos, que não temem se aproximar do inimigo para se medir em combate. A

lança opõe-se, assim, ao arco e flecha, arma que simboliza os persas, colocando-os como

homens que preferem o procedimento de lutar ao longe, desferindo suas setas contra os

gregos. Essa maneira de combater caracterizaria, no contexto simbólico, o guerreiro covarde

que teme uma luta corporal. A oposição gregos e persas é bem marcada nessa relação de

armas, com uma implícita desvalorização dos bárbaros. Diz-se implícita porque tanto a lança

quanto o arco e flecha aparecem no texto como a forma de destreza que caracteriza cada

exército. A destreza do arco e flecha mostra-se, portanto, como um pseudo-elogio ao povo

bárbaro. Há consequentemente uma valorização dos gregos que é bem evidente.

Expressão nuclear 2: , contra os célebres pela lança...

Ares domador do arco

O próximo enunciado metafórico é complexo em sua estrutura porque agrega também

imagens externas de outros âmbitos comuns ao homem grego. O deus da guerra Ares surge

como a representação do próprio exército de Xerxes, e, como tal divindade é apresentada

como tendo perícia no arco, os homens do exército seriam igualmente detentores dessa

destreza. É importante mencionar que, na caracterização de Ares, Ésquilo emprega o adjetivo

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composto , domador do arco, que forma uma metáfora já estudada nesta tese 99

.

O enunciado metafórico é expresso pelo coro de anciãos, no párodo da tragédia (vv. 85 e 86):

leva, contra os homens célebres pela lança, Ares domador do arco.

O agente da ação é Xerxes, citado em versos anteriores. O ato de investir um imenso

exército contra os gregos é evocado pelos anciãos com imagens externas evocadas de

âmbitos variados. O termo diz respeito mais especificamente à haste da lança, que,

sendo normalmente de madeira, não seria um objeto que o ferreiro fabrica, mas a palavra

serve também para designar a lança como um todo e é assim que acontece na passagem. O

radical de (na forma épica ) está inserido no termo composto ,

célebres pela lança, que faz menção aos gregos (o primeiro elemento da composição é

formado pelo adjetivo , célebre, ilustre). A princípio, pensou-se que a expressão

pudesse estar em um sentido literal. De fato, estaria em um sentido

literal, mas a riqueza de significados advindas de são suficientes para se perceber um

sentido figurado. Note-se que seria possível criar uma paráfrase toda literal, com evidente

perda semântica, se a emissão fosse célebres pela coragem, o que reafirma o fato de ,

com seus significados bem mais profundos que englobam coragem e um tipo de destreza,

estar em um sentido figurado100

.

Para análise do enunciado metafórico que virá em seguida, deve-se informar que a

lança grega era composta de uma ponta de metal com uma haste comprida de madeira. O

, na verdade, era estritamentea parte de madeira da lança, a vara cumprida, como já se

afirmou. A ponta da lança era denominada , que, como , também pode fazer

referência à lança completa. A menção a esse último termo é que se mostra importante para

compreensão do próximo enunciado metafórico.

99 Essa metáfora ocorre com certa frequência no párodo (vv. 26, 30 e 86). As duas primeiras ocorrências foram

tratadas no capítulo 6, mais precisamente no tópico 6.1.7, pag. 86. 100 Poder-se-ia também pensar a expressão como possuindo um duplo sentido, em que um deles seria literal e outro metafórico. Por esse ponto de vista, o termo diria respeito tanto ao fato dos gregos serem

literalmente hábeis na lança quanto metaforicamente corajosos. Um exemplo interessante de duplo sentido

apareceu no título de uma matéria do jornal O Globo de 18/01/2011, que fala das consequências da tragédia das

chuvas em Teresópolis. O título era A vida à beira do abismo. Havia uma foto que contextualizava literalmente o

título, mostrando realmente casas sobre um abismo gerado pelo desabamento de terra, independentemente de qualquer consequência que isso poderia gerar, o que concedia um valor literal à emissão, mas, ao mesmo tempo

também, a frase dizia respeito, metaforicamente, ao que era viver em uma situação de perigo.

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Expressão nuclear 3: , da lança de coifa pontiaguda

Os versos finais do coro de Anciãos no párodo enfatizam o embate entre gregos e

persas de uma maneira inteiramente figurada que se utiliza das denominações para os

oponentes já mencionadas, o arco para os persas e a lança para os gregos (vv. 147-149):

O que vence é o retesamento do arco

ou o vigor da lança

de coifa pontiaguda triunfou?

Dessa vez, os persas são o próprio ato de retesar o arco para disparar a flecha, ação essa

evocada pelo termo , retesamento, que é determinado pelo substantivo , arco. Ao

fazer uso com sucesso do recurso de representar a disputa por meio de ações, Ésquilo

enfatiza o embate trágico pela pluralidade de significados que a construção metafórica

apresenta. Na verdade, a lança e o arco não representam, no contexto literário, os persas e os

gregos, mas sim o exército de cada um deles, o que determina a oposição própria de uma

tragédia. Do lado dos gregos, encontra-se o termo , a ponta da lança que era

manufaturada pelo ferreiro. Nesse enunciado metafórico, desenha-se, aliás, a figura da lança

em todos os seus aspectos, pois o adjetivo composto, de coifa pontiaguda, por

conta do radical , proveniente do termo , crânio, cabeça, ou , capacete,

elmo, evidencia que o , o segundo elemento da composição, diz respeito à ponta

adaptada, como uma cabeça pontuda, ao corpo da lança.

A lança forjada pelo ferreiro não vai apenas simbolizar a coragem dos gregos, em

detrimento da covardia dos persas, especialistas no arco e flecha, mas também sua maestria,

sua técnica apurada, nesse tipo de combate corpo a corpo. Esse mundo de artesãos, ao

construir a gravidade de um mundo bélico por meio dos utensílios que forjam as armas e

pelas armas propriamente ditas, vai conceder todo um complexo significado ao discurso

trágico esquiliano. Uma paráfrase literal da interrogação analisada seria de extrema pobreza

semântica, pois, na pergunta literal O que vence é o exército dos persas ou o exército dos

gregos triunfou, é evidente a perda de significados preciosos que resgatam toda uma forma

de pensar do homem helênico.

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7.7. A muralha

Deixou-se para o fim do capítulo mais um objeto que possui a função de proteger a

cidade. O termo , barreira, muralha, já aparecera na tragédia Persas (v. 89) compondo

um enunciado metafórico que está inserido no âmbito da natureza, mais precisamente

fazendo parte de uma expressão nuclear que diz respeito à onda do mar101

. Na passagem

analisada, apesar da ideia da defesa da cidade encontrar-se presente por meio da imagem

interna, e, por isso mesmo, também a concepção de muralha, a palavra vai evocar um

dique, ou seja, uma barreira, para contenção de água, que, metaforicamente, significa, de

fato, uma muralha postada contra os inimigos que avançam. Algo diferente ocorre no

enunciado metafórico que será analisado agora em que a imagem externa evocada pelo termo

é realmente de uma muralha, cujo sentido metafórico no contexto literário depende da

presença da palavra , homem. Essa relação que se estabelece no enunciado parece dever

sua inspiração ao poeta lírico Alceu102

.

Expressão nuclear: , a muralha segura

O enunciado metafórico em questão é uma resposta do mensageiro, no primeiro

episódio, quando questionado pela rainha sobre a invencibilidade dos gregos diante da

impressionante derrota do poderoso exército de Xerxes. As palavras do mensageiro soam

como um verdadeiro elogio ao povo ateniense, de modo que é possível imaginar o orgulho

que tomava os receptores originais desse tipo de discurso quando a tragédia foi encenada pela

primeira vez, em 472 a.C. O mensageiro, personagem persa estilizado ao modo helênico,

fala, na verdade, para cidadãos helênicos que haviam sofrido com uma guerra recente e que

lutaram por sua cidade com afinco (v. 349):

Existindo homens, a muralha é segura.

A construção em genitivo absoluto, não muito frequente em Ésquilo, concede à emissão

um ar de provérbio. Ao que parece, no século V a.C., a comparação de homens à própria

defesa de uma cidade poderia formar frases cívicas cujos discursos já se encontravam

101 Vide capítulo 6, item 6.2.4. 102 Cf. frag. 426 PLF.

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impregnados de significado em um mundo que havia sofrido, em vários momentos de sua

história, com guerras e com tentativas de invasão. No texto esquiliano, aparece uma

valorização do homem como o elemento principal da segurança e manutenção de uma

cidade, mas a expressão nuclear do enunciado metafórico encontra-se contida no termo

e no seu determinante, o adjetivo , seguro, confiável. Mais do que a própria

muralha, o termo representa a própria cidade, uma amparada por homens que a

tornam um todo organizado para impedir que bárbaros invasores a ataquem. O enunciado

esquiliano é mais uma maneira muito bem sucedida de expor a oposição trágica entre gregos

e persas, que a todo o momento paira sobre a obra.

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8. IMAGENS FORMADORAS DE METÁFORAS DO CORPO HUMANO:

Partes do corpo humano e as potencialidades inerentes ao mesmo, assim como as

mazelas que se propagam através dele, determinam, por vezes, embates metafóricos

importantes no discurso trágico esquiliano. Para expressar a ação de um personagem ou

mesmo sua caracterização, Ésquilo dispõe de elementos somáticos que se lançam ao mundo

de suas tragédias para estabelecer enunciados metafóricos, cujos efeitos sempre vão gerar

construções de forte valor enfático.

As duas imagens externas, pertencentes às características do corpo humano encontradas

em Persas, estabelecem um constraste bem definido entre si. Levando-se em conta como os

gregos compreendiam cada uma delas, é possível determinar os valores que irão possuir no

texto. A primeira imagem é o olho que, estando associado à visão, é entendido como

determinador de um sentido dos mais queridos e valorizados pelo homem, possuindo, assim,

um caráter benéfico. A segunda imagem é a doença, que vai figurar como um malefício

indesejado, pois vai ser compreendida como um elemento exterior ao corpo e ainda por cima

sobrenatural que adentra por algum motivo nele, alojando-se mais precisamente na mente do

indivíduo para fazê-lo cometer ações equivocadas.

8.1. O olho, o olhar e seu brilho

Começando pelo elemento visual, pode-se dizer que o orgão da visão sempre fascinou o

homem desde tempos bem remotos. Entre os gregos, tal fascinação se refletiu nas diversas

criações culturais do povo helênico. Na filosofia, por exemplo, Aristóteles colocou a

potencialidade desse órgão como a parte inicial do processo que leva ao conhecimento, ao

enfatizar o valor que o ser humano concede à visão, considerada, entre os sentidos, o mais

caro e desejado pelo homem devido ao seu poder de revelação103

. O olho, como instrumento

da visão, reveste-se de uma importância capital que vai possibilitar associações subjetivas de

valor, seja de riqueza material ou de uma riqueza figurada que se direciona para o âmbito de

pessoas queridas, íntimas ou, simplesmente, notórias. Com essas qualidades, o olho pode

representar tanto bens materiais, que, de certa forma, constroem, de um modo figurado, a

103 Cf. Aristóteles. Metafísica (I, 1).

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própria importância de um indivíduo, quanto, a partir daí, o status elevado dessa mesma

pessoa dentro da sociedade da qual faz parte, e ainda, por extensão, a sua importância para

alguém que lhe é íntimo. Tais valores, que aparecem em meio a passagens de entendimento

problemático, podem estar presentes em Persas, direcionando-se sempre para a figura de

Xerxes.

Quanto ao valor material, deve-se dizer que o discurso esquiliano construído em Persas

comporta perfeitamente uma ideia que se funda em uma riqueza material da parte dos persas

que se opõe a um valor humano da parte dos gregos. Em vários momentos da tragédia,

Ésquilo enfatiza a riqueza material do povo persa como uma qualidade que, paradoxalmente,

é vista pelo receptor da tragédia como um caráter negativo, tratando-se, portanto, no discurso

apresentado, de uma pseudo-qualidade. Um macroato pleno de significado crítico se forma:

se é a riqueza material que determina o poder de um homem, o valor individual dele para

nada serve. Ao colocar seus persas idealizados dessa maneira e os seus gregos da maneira

oposta, ou seja, como homens que são ricos por sua virtude e não por seus bens, Ésquilo

forma uma crítica aos bárbaros por uma associação aos gregos, e, assim, ao mesmo tempo,

forma uma oposição entre gregos e persas, ao construir um discurso nesses moldes. Em meio

à esticomitia entre a rainha Atossa e o corifeu que ocorre no Primeiro Episódio, surge um

questionamento da parte da primeira sobre qual seria a riqueza material dos gregos. Tal

construção ilustra perfeitamente a oposição que Ésquilo busca estabelecer em sua tragédia,

ao deixar entrever na sua caracterização da rainha uma valorização à riqueza e um ar de

incompreensão acerca do poderio helênico, que se finca em bases humanas e não materiais

(vv. 237 e 238):

Atossa: E que outro benefício há com esses homens? Existe bastante riqueza em suas moradas?

Corifeu: Eles possuem certa fonte de prata104, tesouro do solo.

A resposta do corifeu é muito mais, implicitamente, o que seria a resposta cheia de

orgulho de um grego para sua audiência no teatro (o que de fato é) do que propriamente a

resposta que um persa daria à sua rainha. Numa forma de expressão que concede pouco

valor às fontes de prata em Láurion, Ésquilo constrói um discurso que visa a enfatizar

104 A passagem faz referência às minas de prata que se encontravam no distrito de Láurion no sul da Ática. Mossé

faz um comentário sucinto e detalhado da importância dessas minas para a economia Ateniense. Cf. MOSSÉ,

Claude. Dicionário da civilização grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

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exatamente que é o valor humano que vai ser levado em conta entre os gregos, e não as

riquezas materiais.

O enunciado metafórico que a rainha Atossa emite em torno da imagem externa do olho

deve ser compreendido em meio a essa presença de valores. Ele aparece um pouco antes da

esticomitia citada. Dois versos que o antecedem, apesar de serem problemáticos, se mostram

claramente como o início do raciocínio da rainha e parecem levar o todo para esse âmbito de

compreensão sobre o valor material (vv. 166 e 167):

nem a massa prestar honras por um acúmulo de bens sem donos,

e nem a luz brilhar para os desprovidos de bens como para o detentor do poder.

Tais versos parecem se referir a um receio de que ocorra uma tentativa de deposição do

rei pela ausência de riquezas ou de homens. Conforme salienta Hall, em seus comentários da

sua tradução de Persas, é deveras difícil conceder um sentido ao verso 167, que talvez seja

uma interpolação tardia105

, mas, relacionando-o com o verso 166, optou-se pela solução mais

plausível, que é apontada pela maioria dos estudiosos: a que estabelece uma relação entre

bens e poder do ser humano. O aparecimento da expressão nuclear , luz

brilhar, indica, metaforicamente, o ganho de poder que recebe aquele que acumula bens106

.

Expressão nuclear 1: , pelo meu olho

Após a última passagem citada, a rainha Atossa prossegue seu pensamento,

construindo para o corifeu um enunciado metafórico em que aparece o primeiro termo que faz

referência ao sentido da visão e ao olho, elemento este que é peculiarmente associado ao

acúmulo de riquezas e ao poder (v. 168):

Há riqueza irrepreensível, mas tenho medo pelo meu olho,

105 Cf. AESCHYLUS. Persians. Warminster: Aris & Phillips LTD, 1996. 106 Este verso poderia ter sido citado no capítulo 5, mais precisamente, no subcapítulo 5.2.4, intitulado A chama, a

luz, que trata dos enunciados metafóricos formados das imagens externas da luz, mas o caráter problemático do

mesmo e, não obstante, a sua importância para o enunciado metafórico presente neste capítulo, fez com que o

mesmo fosse citado aqui.

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O enunciado metafórico encontra-se, mais precisamente, após a vírgula, na oração

adversativa formada, mas, para uma melhor tentativa de compreensão do todo, optou-se pela

apresentação do verso inteiro. A obscuridade de tal enunciado dá-se graças às possibilidades

de significado que emanam do termo que faz referência ao órgão da visão, , olho.

Não há dúvida, contudo, que a construção do enunciado, utilizando-se desse elemento

externo, visa a expressar o temor da rainha pela perda de algo que ela muito estima, o que

estabelece, assim, uma metáfora trágica. O , olho, pode estar fazendo referência à

riqueza persa que é enfatizada desde o início da tragédia, mas tal riqueza, sendo entendida

criticamente no contexto literário como um sustentáculo do humano, direciona-se também

para a própria construção de Xerxes como rei, de modo que o olho pode representar o próprio

filho querido de Atossa, que expressa assim seu temor por sua ausência. Haveria ainda a

possibilidade de a rainha estar fazendo referência a ela própria, preocupada com seu bem

estar e com sua condição de rainha, sendo ela parte da realeza persa. O fato é que, nesse

momento da peça, a apreensão e o medo são sentimentos constantes que surgem

anteriormente aos esclarecimentos do mensageiro. Haveria nessa passagem um processo

metonímico que se utiliza de uma parte do corpo para representar todo um ser? Na verdade, a

profundidade de significado que se encontra embutida na utilização do termo faz

com que seu uso figurado presente no contexto seja muito mais do que uma simples

metonímia. A palavra evoca ideias externas que dão o estatuto de enunciado

metafórico à construção em que o termo é empregado, e evocar ideias externas não faz parte

do processo metonímico107

. Não há, de fato, como provar que o termo esteja

fazendo uma referência a Xerxes, uma vez que os elementos do contexto parecem levar a

uma idéia de riqueza material, mas a digressão sobre tal significado é interessante.

A presença do termo , medo, que constitui o termo literal da passagem, ou seja,

uma imagem interna que, de fato, exprime algo que está acontecendo no contexto

literário,mostra o sentimento tipicamente trágico que vai ser apresentado no enunciado

metafórico como um todo, o temor. A presença de enfatiza, determina e ainda

107 A metáfora se diferencia da metonímia por apresentar em sua construção a evocação de uma imagem externa.

Um exemplo de metonímia é a utilização do adjetivo , de muitos braços, para designar os homens que compõem a armada terrestre de Xerxes (v. 83). A parte do todo (o braço) vai designar o próprio todo (o homem).

Não há nessa associação a evocação de um mundo externo, pois o braço faz menção aos próprios homens que se

encontram literalmente no contexto literário, não inserindo nenhuma idéia que vá além desse dado. A questão do

olho é diferente, uma vez que tal termo adquiriu toda uma simbologia que lhe garante a sua inserção em âmbitos

que lhe possibilitam trazer para o contexto ideias externas ao que se apresenta literalmente na ação trágica. Para

uma diferenciação aprofundada entre a metáfora e a metonímia, ver GUERN, Michel Le, Sémantique de la

métaphore et de la métonymie. Paris: Librarie Larousse, 1973.

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desenvolve tal temor, mesmo para as audiências tardias, que se encontram diante do

problema da obscuridade do significado da passagem. O enunciado metafórico seguinte,

possuindo a conjunção explicativa visa, logicamente, a explicar o primeiro, mas a

continuidade do uso de um termo do âmbito da visão, igualmente obscuro, não lança maiores

luzes sobre o primeiro enunciado.

Expressão nuclear 2: , olhar

O termo é, na verdade, um sinônimo de , mas, para se impor certa

diferença entre as duas palavras, optou-se traduzir por olhar, tradução possível e talvez

até mais condizente com o contexto literário que se apresenta. Esse segundo enunciado

metafórico acerca do olho humano complementa o primeiro, explicando por sua

potencialidade, ou seja, pelo brilho do olhar, possivelmente a importância de Xerxes como

senhor de seu reino. Forma-se o seguinte enunciado metafórico ainda na fala da rainha (v.

169):

pois considero o olhar das moradas a presença de seu senhor.

A ideia de um , olhar das moradas, que é uma ,

presença do senhor, soa para o homem moderno quase como um enigma108

.O lamento de

uma mãe acerca do filho ausente seria suficiente para perceber um valor trágico nesse

enunciado metafórico, mas, implicitamente, como já se mencionou, as construções formadas

pela imagem externa do olho e seu brilho, na expressão de uma idéia material, formam uma

oposição ainda mais importante na tragédia, que é a oposição entre gregos, fincados em seus

valores humanos, e persas, dependentes de seus bens materiais para fins dessa mesma

valorização humana. Seja como for, tanto quanto representam elementos de

valor humano ou material de alto grau de importância para os personagens persas. É possível

até que ambos os significados se encontrem ao mesmo tempo em meio às profundas

possibilidades da linguagem metafórica, isso porque, como foi visto, na contrução de seus

108 Paul Ricoeur, ao citar a teoria de I. A. Richards acerca da metáfora, menciona a metáfora como um enunciado

em que algumas palavras são utilizadas metaforicamente e outras não. Tal visão de enunciado, seguida, de certa

maneira, na teoria pragmática utilizada nesta tese, fornece um critério para se distinguir a metáfora de outros

fenômenos do discurso, tais como o provérbio, a alegoria e o enigma. Nesses últimos fenômenos, como afirma

Ricouer, todas as palavras do enunciado estariam sendo empregadas metaforicamente. RICOEUR, Paul. A

metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 135.

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persas estilizados, Ésquilo não separa o homem da riqueza, uma vez que é esta que o

constrói.

Expressão nuclear 3: , olhar sombrio

O mesmo termo, , olhar, aparece em outro momento para expressar o caráter

soturno da noite, ao final do extenso relato do mensageiro do primeiro episódio, em mais um

enunciado metafórico que exprime o trágico em Persas (v. 428):

até que o olhar sombrio da noite nos afastou.

Dessa vez, a ênfase se dá na situação na qual se encontram os persas. Se nas passagens

anteriores os elementos externos nucleares e representavam coisas boas,

apesar de determinarem enunciados metafóricos trágicos, o termo , na passagem em

questão, representa algo terrível devido à presença do determinante , que, tendo o

sentido de cor escura, cinza, pode expressar de forma figurada uma situação terrível. É

exatamente dessa maneira que o mensageiro expressa o momento da retirada dos persas

derrotados sobreviventes à Batalha de Salamina. A passagem possui certo valor

contemplativo de calma após uma árdua batalha, de frio, de perplexidade diante da derrota,

de desânimo, de medo, todos esses valores gerados pela força expressiva da linguagem

metafórica. Qualquer tentativa de se colocar um sentido literal em implicaria

perda de valor semântico, mesmo que o sentido do termo aqui não seja em nada obscuro,

como oconteceu na passagem anteriormente citada. A riqueza da metáfora faz-se na própria

grandeza semântica existente na construção firmada.

A imagem interna pode ser inferida da própria ação expressa, pois, de fato, o que ocorre

literalmente na narrativa do mensageiro é o ato dos persas de se afastarem, durante a noite,

do lugar em que estão, por conta de determinada situação ruidosa. A imagem externa

evocada encontra-se, portanto, no sujeito que determina o agir dos persas, uma vez que a

noite é apresentada como possuindo um olhar sombrio que determina tal ação. Tem-se aqui

um fenômeno de personificação que enfatiza o caráter terrível da situação dos persas.

É interessante mencionar ainda que, neste enunciado metafórico, o termo , ao

apresentar-se, ao mesmo tempo, como um determinador de um olhar maléfico, em sua

associação com a palavra , e como um determinador do próprio aspecto da noite, em

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associação com o termo , noite, adquire o valor de um termo harmonizador de imagens.

Ele une em si mesmo os significados da imagem externa (do olho com suas possíveis

características) e interna (da noite e suas características).

Expressão nuclear 4: , olho mais fiel

Da mesma maneira que o termo , a palavra , olho, aparece citada em

outro momento da ação de Persas. Tal citação acontece no grande final da tragédia,

surgindo em um momento de lamento da parte do coro sobre os persas mortos em batalha. A

passagem trata-se, mais precisamente, de uma pergunta do coro acerca do destino do

recenseador da armada persa, cujo nome se apresenta lacunoso. O enunciado metafórico

encontra-se citado sem a digressão familiar e sem a menção a outros persas componentes do

exército de Xerxes que tiveram o mesmo destino (vv. 978 – 980 e 984):

(...) , (...) E onde o mais fino dos persas

o teu olho mais fiel,

recenseador de dez mil, dez mil,

(...), (...), tu abandonaste, abandonaste?

Mais uma vez, se refere a um indivíduo que possui certa importância

dentro da sociedade persa. O termo é utilizado para fazer referência ao indivíduo fiel ao rei,

mas certa obscuridade se apresenta igualmente presente como nas outras ocorrências do

termo em Persas. Edith Hall menciona que a palavra pode significar

simplesmente algo como luz109

ou benefício, mas complementa que os gregos acreditavam

que os espiões e os confidentes dos reis persas eram tidos como seus olhos ou suas orelhas,

denominações estas provenientes das qualidades inerentes ao próprio deus Mithra dos

persas, que era a divindade dos dez mil olhos e das dez mil orelhas110

.

109 A helenista inclusive opta pela tradução dos termos do verso 168 e de do verso 169 por light, luz. 110 Cf. comentários presentes em AESCHYLUS. Persians. Warminster: Aris & Phillips LTD, 1996. Há em tal

comentário a citação de obras de Herótodo e Xenofonte que apoiam a pertinência da hipótese.

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Quanto à ação apresentada, ela é tipicamente trágica, pois o coro está mencionando o

momento em que, após a Batalha de Salamina, vários homens da armada de Xerxes foram

abandonados, já mortos ou prestes a morrer.

O adjetivo , fiel, juntamente com o acusativo adverbial , muito, mais,

podem ser entendidos como termos harmonizadores de imagens, pois a ideia de fidelidade

liga-se tanto à imagem externa figurada do olho, que é o órgão que tem a potencialidade de

mostrar o verídico, quanto à imagem interna literal do indivíduo que é o fiel ao rei, no caso,

o recenseador do exército. O advérbio potencializa o significado que se encontra presente

nas duas imagens que compõem o enunciado metafórico, a externa e a interna.

8.2. A doença do corpo

No contexto literário de Persas, a doença afigura-se como um agente maléfico por

excelência que, possuindo o indivíduo, faz com que ele cometa ações impensadas e

características de alguém não posssuidor de faculdades mentais normais. Assim atuando, a

doença confunde-se com a prórpia divindade que faz o indivíduo cometer ações irrefletidas,

no caso, sobretudo da tragédia Persas, fala-se aqui da , divindade mealéfica, um

demônio para se utilizar palavra mais precisa, que, agindo sobre Xerxes, é a causa de ações

entendidas como possuidoras de , excesso. O helenista Alain Moreau (1985, p. 237)

deixa claro o campo de atuação desse elemento externo que adentra no homem para fazê-lo

agir de forma estranha, pois percebe que, além do caos exterior que se apresenta no mundo

das tragédias esquilianas, há também um caos interior, que se chama loucura:

Como a arrebentação da violência faz nascer o Caos no mundo

exterior, o universo interior, quando é invadido, por sua vez, pelas forças da violência, se desorganiza e se degrada em Caos. O Caos no

espírito humano chama-se loucura.

As atitudes de Xerxes em oposição aos gregos determinam o caos que ocorre no

mundo físico da tragédia Persas, elemento esse que determina várias oposições trágicas; mas

tal caos é apresentado como algo pertencente a um indivíduo que não está de posse de sua

racionalidade, daí também o caráter interior desse caos. A atuação da insere o rei nesse

mundo de loucura cujas ações só podem ser explicadas pela presença de um ser maléfico

sobrenatural que age em comunhão com ele, fazendo com que essa loucura seja determinada,

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muitas vezes, por nomes de demônios que representam uma maneira de agir erroneamente do

personagem. Com essa maneira de portar-se, a loucura, em Ésquilo, é inseparável do mundo

sobrenatural que domina suas tragédias. Ao mencionar a loucura como um caos interior que

surge após a invasão do espírito por elementos estranhos ao homem, Moreau deixa evidente

que a loucura na obra de Ésquilo define-se exatamente pelo movimento de forças que a

estabelecem nessa interioridade que se denomina mente. Uma vez no interior do indivíduo, a

loucura estabelece o caos inerente ao tipo de insanidade que se mostra em evidência no

contexto literário de certa tragédia.

Ésquilo é o autor trágico que viveu no século V a.C., participando de batalhas

memoráveis111

, que o fizeram retratar em suas tragédias uma forte crença nos poderes divinos

e nos valores da ateniense. Ressalta-se ainda que, no tempo das primeiras tragédias

esquilianas, Atenas havia conquistado uma democracia nova, que precisava ser defendida a

todo custo para que continuasse a prevalecer sua grandeza e seu caráter de modelo perante as

outras cidades gregas. A loucura, em Ésquilo, além de aparecer rodeada pelo divino, insere-

se nesse mundo de valores, como um elemento de oposição a uma moral tanto divina quanto

cívica. Nessa relação de enfrentamento irão aparecer os excessos, que, determinados pela

loucura, constituem o crime.

Moreau (1985, p. 237) prossegue a delinear seu entendimento da loucura, lançando uma

série de afirmações categóricas que pretendem deixar claro a construção que Ésquilo faz

dessa violência que aflige a mente humana e se projeta em forma de crime para o mundo

exterior:

Todo grande crime está associado, na obra de Ésquilo, à loucura. (...)

todo culpado, todo criminoso, é um ser cujo espírito se abandona ao

irracional e à desordem. Mas se a loucura está associada ao crime,

ela está também ao castigo.

A primeira afirmativa dessa passagem apresenta a loucura como inseparável de um

grande crime, o que torna necessário encontrar numa peça o crime ao qual certo personagem

está ligado, possibilitando tomá-lo como louco por concretizar tal ato. Por fim, é necessário

que esse crime, estabelecido por um indivíduo tomado por forças violentas que colocaram

111 Ésquilo participou da Batalha de Maratona, em 490 a.C, e da Batalha de Salamina, em 480 a.C; a tragédia Os

Persas baseia-se nesse último confronto, o que a faz ser a única, dentre as tragédias gregas sobreviventes, a ter seu

enredo baseado num fato histórico. Essas duas vitórias gregas, praticamente milagrosas, só poderiam trazer em

seu bojo, uma forte crença no divino. Lesky discorre extensamente sobre essa característica inerente à tragédia

esquiliana; cf. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 95 e ss.

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sua mente em desordem, também se associe ao castigo. Desenha-se assim um retrato de um

típico personagem da tragédia grega: o rei que, por seus excessos, cai em desgraça,

possibilitando assim o surgimento do trágico. Ao somar-se a possessão que produz o louco a

esse castigo, pode-se inferir que, nas tragédias de Ésquilo, o divino, ao mesmo tempo em que

estabelece a loucura em um indivíduo, opõe-se ao excesso de sua ação, que se mostra ao

mesmo tempo humana e divina. Essa via tortuosa para o personagem faz com que o enredo

trágico caminhe e encha-se de sentido. O divino, em dois momentos, pode atormentar o herói

trágico esquiliano: no momento em que o enlouquece e no momento em que o castiga. Longe

de ser somente um distúrbio patológico da psique humana, a loucura, em Ésquilo, sempre

aparece associada ao divino, tendo um agente externo como seu causador, no caso, uma

divindade maléfica, e isso vai possibilitar que a doença adquira sentidos amplos, que são

determinadores daquilo que se entende por um enunciado metafórico.

Expressão nuclear: , doença de espírito que se apossava

É o fantasma de Dario quem produz um enunciado metafórico que se utiliza da doença

do corpo, mais especificamente, de uma doença que afeta a mente, para fazer menção ao

extravio, à loucura, de espírito pelo qual foi tomado Xerxes ao ousar colocar uma ponte de

botes sobre o Helesponto (vv. 750 e 751):

(...) (...)

(...) Como isso não ser uma doença de espírito

que se apossava de meu filho? (...)

A palavra , doença, é evocada do âmbito da medicina para fazer referência à

própria atuação errônea de Xerxes no enredo da peça. Ao ser determinado pelo substantivo

, alma, espírito, muitas vezes representando a própria sede da inteligência, o termo

vai oscilar entre o material e o inefável, isto é, entre a atuação propriamente dita do

personagem e a atuação sobrenatural pertencente à divindade. A metáfora é perceptível pelo

fato de não haver, na verdade, no contexto literário, uma doença que afetasse as faculdades

mentais de Xerxes, mas sim um ato irrefletido de Xerxes, com a atuação de uma divindade.

A tentativa de uma paráfrase literal concederia grande prejuízo ao enunciado. Algo como

ação impensada de meu filho perderia toda a essência que sustenta a tragédia esquiliana, com

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suas oposições trágicas muitas vezes balizadas pelo divino que age por trás da ação expressa

em cena. A ideia do arroubo sobrenatural é passada pelo verbo , ter, possuir, tomar, e

daí o sentido mais condizente com a passagem que seria possuir com um caráter de

possessão sobrenatural.

O fantasma de Dario enfatiza por meio da construção metafórica uma ação sobrenatural

de oposição a Xerxes, formando assim uma metáfora que determina de modo eficiente o

trágico no discurso esquiliano, fenômeno que foi visto várias vezes no decorrer desse estudo.

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9- O FUNCIONAMENTO DAS METÁFORAS TRÁGICAS EM PERSAS

Até aqui o enunciado metafórico foi desmembrado em dois tipos de imagens que visam

a especificar as relações entre o contexto literário interno e o mundo externo helênico

evocado. Nesse capítulo, as próprias imagens serão desmembradas, por meio da sintaxe e da

semântica, numa tentativa de se compreender mais precisamente os artifícios linguísticos

utilizados pelo autor para a criação do fenômeno metáfora.

Um enunciado metafórico produzido em uma obra literária tem sua significação

dependente de um duplo contexto que se forma aos olhos de seu receptor original: o literário

mimético e o mundano real, e ambos se combinam, por meio dos semantemas alojados nas

palavras, para construção de uma estrutura complexa que é a sintaxe da frase.

Os significados externos ao contexto literário, possuindo semantemas advindos do

mundo real do homem grego (contexto mundano real), estabelecem um enunciado metafórico

quando se associam aos significados internos do contexto literário (contexto mimético),

sendo estes últimos formados por semantemas determinantes daquilo que, de fato, está

acontecendo na ação expressa pelos personagens, como ocorre no caso de uma peça de teatro

tal qual Persas. Tais significados determinam as imagens externas e internas tão pensadas e

analisadas até aqui. Já foi dito que pode existir significado frasal sem imagem externa, em

uma construção não metafórica e, por isso mesmo, literal, mas não pode existir construção

metafórica sem pelo menos uma imagem externa. A metáfora depende, para apresentação

tanto de sua forma quanto de sua significação, da evocação da imagem externa, e, por isso, o

estudo da construção do enunciado metafórico vai ser o estudo de como a imagem externa

funciona ao se acoplar à imagem interna, e isso significa dizer igualmente que se estudará

nesse capítulo, sobretudo, a maneira como as expressões nucleares portam-se na frase, uma

vez que são elas que têm a função de fazer tal evocação.

O significado da frase, que é formada por um conjunto de palavras ordenadas pela

sintaxe, depende do significado das palavras, que, por sua vez, têm seus significados

determinados pela própria frase quando esta, sendo um discurso, é empregada em certo

contexto a um receptor. Toda palavra e mesmo todo enunciado são ambíguos se estiverem

fora de um contexto, não havendo neles uma significação própria: a frase está um calor

enorme pode ser dita num dia de muito frio, como uma ironia, significando, portanto, o

inverso do que estaria expresso literalmente no enunciado; a frase esta casa está acabada,

sem a presença do objeto mencionado que a contextualiza, poderia significar tanto que a casa

está pronta e bela quanto velha e destruída; na frase, a indicação do professor foi louvada

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por todos não é possível saber, fora de um contexto, se é o professor que está fazendo a

indicação ou se ele está sendo indicado por alguém. Os enunciados frasais, quando bem

ordenados e contextualizados em discursos que lhes são próprios, eliminam qualquer tipo de

ambiguidade.

John Searle afirma que as metáforas fazem vir outras coisas à mente112

, e esse

fenômeno só se torna possível quando os semantemas presentes numa frase trazem, para o

receptor, uma referência a um mundo que não se encontra literalmente no contexto, mas que,

paradoxalmente, se mostra necessário e indispensável para a compreensão do mesmo.

Levando essa observação para o âmbito das tragédias de Ésquilo, é possível perceber que o

tragediógrafo fornece mecanismos linguísticos para a compreensão de seus enunciados

metafóricos, buscando suas imagens em um contexto inerente ao mundo grego, inserido,

sobretudo, no mundo da ateniense do século V a.C. e seus arredores. A relação

e narrativa mítica ou, como acontece em Persas, narrativa histórica tratada, contudo, com

elementos sobrenaturais, mostra-se muito útil para a elaboração de metáforas na obra do

autor. Há uma atitude que se fundamenta no uso do contexto político helênico para expressar

o mundo trágico da obra literária. Diante disso, pode-se dizer que, quando o mundo da

invade o discurso trágico esquiliano, têm-se um terreno propício para a ebulição

dessas outras ideias que vêm à mente e que acabam por determinar os enunciados

metafóricos. A compreensão literal torna-se defectiva no momento em que o discurso

literário expressa determinadas ações ou expressões nominais que não se encontram

presentes, de fato, nos acontecimentos desenvolvidos em cena, por serem, na tentativa de

uma perspectiva literal, anacrônicos, fora de contexto ou mesmo absurdos. As associações

entre os semantemas literais e os não literais (figurados), presentes no enunciado, são

harmonizadas pela lógica do discurso, graças a um contexto literário bem elaborado. Quando

tais semantemas se apresentam a um receptor preparado para recebê-los, eles farão com que

o mesmo estabeleça uma relação entre o mundo grego e o discurso trágico para compreender

o significado do enunciado metafórico.

Na tragédia Persas, Ésquilo se utiliza da língua da maneira mais elaborada possível

para formar a profundidade literária que seu discurso trágico exige. O uso, por vezes, de

palavras em composições complexas, em que aparecem dois semantemas ou mais, com

ampla utilização também das preposições gregas, é um dado a se considerar. As preposições

podem funcionar como prefixos dentro da composição das palavras ou determinar valores

112 SEARLE, J. R. Expressão e Significado – Estudos acerca da teoria dos atos da fala. São Paulo: Martins

Fontes, 2002. p. 163.

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modais, espaciais e temporais precisos na sua utilização como preposições propriamente

ditas, em meio à sintaxe da frase. Ocorrem assim frases com níveis de complexidade

variados, em que a sintaxe utilizada adquire, juntamente com o uso meticuloso das palavras,

um caráter de arte. Agora, serão expostos alguns fenômenos próprios da construção

metafórica do discurso trágico presente em Persas com análises do uso que Ésquilo faz do

idioma grego.

9.1. Expressões nucleares de ação:

Muitos enunciados metafóricos de Persas são formados por meio de ações externas que

são evocadas para enfatizar uma ação trágica. Normalmente, um verbo transitivo ou

intransitivo faz parte da expressão nuclear ou então seu sujeito, que tem uma estreita relação

com a ação apresentada, ou ainda os complementos desse verbo, que visam a, como o próprio

nome indica, completar o sentido do verbo (muitas vezes o verbo só pode ser entendido como

evocando uma imagem externa quando se olha para seus complementos ou para seu sujeito).

O ato externo evocado vai expressar, graças a sua união com os elementos internos do

contexto literário, uma ação diferente daquela que é feita no mundo do homem grego. Tais

expressões nucleares de ação vão formar enunciados metafóricos de ação que evidenciam

dois tipos de atos, o externo, que ocorre no mundo helênico, e o interno, que apresenta o

acontecimento da ação literária, só possível quando o mundo externo, tornando-se figurado,

une-se ao literal mimético da criação literária.

Como exemplos de expressões nucleares típicas de ação, estão, entre outras, as

seguintes construções de verbos, com ou sem complementos: (v. 7), ser éforo, na

verdade, exercer a função de éforo, ato que é evocado pelos anciãos persas para expressar

cuidado e autoridade; (v. 473 e 474), encontrar a punição, ato evocado

para mencionar a derrota de Xerxes em Salamina; (v. 13), latir, ação evocada que

faz menção a certa atitude do exército bárbaro em relação a Xerxes;

(no ático) (v. 97), abanar a cauda, e

(v. 98), conduzir para as redes, atos evocados que dizem respeito

ao caráter traiçoeiro da divindade maléfica ; (v. 667),

a névoa do Estige voa sobre, ato evocado para fazer referência a uma situação ruidosa;

(v. 310), chifrar, ação evocada para mencionar as cabeçadas que os mortos em

Salamina desferiam nas margens pela força do marulho; (v. 75),

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impelir o rebanho, forma como os anciãos do coro referem-se à autoridade de Xerxes sobre

seu exército; (v. 424 e 426), como no

arrasto de atuns ou de alguns peixes, fatiar, ato demonstrativo da violência que os gregos

infligiram nos persas em Salamina; , morder (v. 846), verbo utilizado pelos anciãos

para expressar a dor diante da derrota persa; (v. 252), a flor cair, ato que

expressa a morte dos jovens que compunham o exército persa; (v. 821), florescer,

(v. 821), frutificar a espiga e (v. 822), ceifar uma colheita,

todas essas ações dizem respeito à atuação da , excesso, de Xerxes;

(v. 72), lançar um jugo em torno do pescoço, ato muito

importante que determina a intenção frustada dos persas em dominar a Grécia (todas os

enunciados metafóricos do jugo escravizador fazem uso da ação do boieiro ou cavaleiro).

9.2. Expressões nucleares nominais:

Alguns enunciados são formados por expressões nucleares que visam a qualificar seres

em meio a uma narrativa expressa por um personagem ou mesmo em meio à própria ação de

Persas. Tais expressões nucleares nominais vão aparecer muitas vezes em apostos, em

adjuntos adnominais, complementos nominais ou ainda em predicativos que surgem em

orações formadas por verbos nominais. Muitas vezes, esse tipo de expressão nuclear forma-

se pela evocação de um tipo de agente próprio da sociedade helênica, que não se encontra

literalmente no contexto literário.

Alguns exemplos de expressões nucleares nominais típicas são os seguintes: (v.

25), éforos, aposto que serve para expressar a autoridade de alguns chefes do exército de

Xerxes; (v. 213), prestador de contas, predicativo que diz respeito ao poder que

Xerxes possui; , severo juiz de contas (v. 828), aposto que faz referência a

Zeus e seu poder sobre os mortais; (v. 319), meteco, aposto que faz menção a um

chefe persa morto em uma terra estrangeira; (v. 10), adivinho de males, aposto

que serve para fazer referência ao mau pressentimento dos anciãos acerca do que aconteceu

com o exército bárbaro, e (v. 30), domador do arco, aposto que serve para

indicar a perícia e o caráter de violência de um dos chefes da armada de Xerxes (palavras

compostas por dois radicais de imagens diferentes, que possuem, portanto, dois semantemas,

em que um se direciona para a imagem interna e outro para externa, terão uma análise

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especial no próximo tópico); (v. 97), amigável, predicativo que diz respeito ao

caráter traiçoeiro da divindade ; (v. 96), de um salto ágil,

genitivo complemento nominal que faz menção a uma tentativa vã de fugir dos desígnios da

; (v. 559), com (de) asas simétricas de aspecto escuro, adjunto

adnominal que determina as naus atenienses que dizimaram a frota naval persa;

É preciso dizer que os enunciados metafóricos não precisam se utililizar apenas de um

tipo de expressão nuclear. Pode existir um enunciado metafórico composto por expressões

nucleares nominais e de ação. É o caso, por exemplo, da complexa e bela caracterização da

que ocorre no seguinte enunciado metafórico (vv. 97-98):

Amigável, abanando a cauda desde o começo, a Áte

conduz o mortal para suas redes;

Nesse enunciado metafórico há uma expressão nuclear nominal (, amigável)

e duas expressões nucleares de ação (, abanando a cauda, e

, conduz para suas redes), evocadoras de imagens diferentes,

provenientes, respectivamente, do mundo dos cães e do mundo do caçador.

De maneira mais simples, uma junção de expressão nuclear de ação e expressão nuclear

nominal também ocorre na evocação do mundo dos pássaros (vv. 558-560):

(...)

soldados e marinheiros,

naus com asas simétricas

de aspecto escuro os levaram, (...)

Aqui, ocorre que a ação de levar, evocada pelo verbo , determina a presença de

uma expressão nuclear de ação pertencente a certas aves de rapina; mas há também, por

meio, sobretudo, do adjetivo , de asas simétricas, uma expressão nuclear nominal

que concede a lógica figurada ao enunciado metafórico, ao fazer menção definitivamente à

ideia de naus que levam a morte aos homens do exército persa, da mesma maneira que um

pássaro voando carrega sua presa para depois matá-la. O adjetivo composto evocador do

pássaro possui ainda um valor restritivo e paradoxal, fenômenos que serão estudados no

próximo tópico.

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9.3. Metáforas paradoxais criadas pelo fenômeno restritivo:

Uma expressão nuclear paradoxal pode ser definida sucintamente como um recurso do

poeta que lhe possibilita utilizar o bem para expressar o mal. Para percepção de tal

fenônomeno discursivo, o bem e o mal, mesmo que tenham suas definições fincadas na

sociedade em que são referidos, devem ser compreendidos em uma análise pragmática no

contexto literário criado pelo autor (e não fora dele). Isso significa dizer que é o contexto

literário que vai determinar o caráter bom ou mal de certo enunciado, em um ambiente em

que, como no caso do teatro, participam personagens agentes. O ato de saquear, por exemplo,

é algo bom no contexto literário da Ilíada, mas isso não siginifica dizer que seja algo bom

para a sociedade receptora desse tipo de discurso, no século VIII a.C. Tal receptor, contudo,

vai compreender que essa característica é boa no contexto criado pelo autor, uma vez que o

saque é uma das ações que estabelecem a própria , excelência, do homem homérico. O

receptor do discurso, interagindo com o mundo construído em certa obra, vai decodificar os

valores de determinadas ações como sendo boas ou más no mundo fictício criado pelo autor.

Só depois de compreendida tal decodificação, ele poderá perceber se certo enunciado possui

ou não um valor paradoxal, podendo este corresponder, ou não, ao que ocorre com a

sociedade de que faz parte (normalmente, há essa correspondência). São necessários, então,

dois momentos para se entender o efeito metafórico paradoxal em uma tragédia de Ésquilo.

No primeiro, é preciso que o conhecimento da sociedade grega ajude a decodificar os

enunciados apresentados e, assim sendo, a totalidade do mundo apresentado que faz uso de

imagens internas inseridas na ação literária e de imagens externas evocadas da sociedade

grega. No segundo, é necessário que a decodificação dos enunciados dentro do contexto

literário possibilite o entendimento de um valor paradoxal no mundo criado. Muitos

enunciados metafóricos em Persas possuem expressões nucleares paradoxais portadoras de

imagens externas paradoxais que só se tornam tais quando são restritas pelas imagens

internas literais. O resultado dessa relação será a criação de enunciados metafóricos

entendidos como paradoxais. É bom frisar que são as expressões literais determinadoras das

imagens internas que vão, na maior parte das vezes, fornecer a restrição paradoxal às

expressões nucleares externas, pois é o contexto literário interno que é trágico e não o

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contexto externo, e o mundo trágico de Persas apresenta-se por meio do que acontece

literalmente no contexto literário113

.

Maneiras comuns do emprego de expressões internas restritivas se dão quando Ésquilo

se utiliza de um termo ou expressão em genitivo, caso que, por excelência, determina

sintaticamente a restrição no idioma grego. Outra forma do emprego da restrição pode ser

percebida quando o autor utiliza um adjetivo adjunto adnominal, o determinante de uma

palavra núcleo do enunciado, que será o portador da imagem interna restritiva. Pode ocorrer

ainda que um semantema presente na própria composição de uma palavra venha a

desempenhar um caráter paradoxal graças à intervenção do outro semantema da composição,

que, sendo o detentor da imagem interna, o restringe. Normalmente, o radical que se encontra

no final da palavra é o termo determinado114

, sendo, portanto, o elemento que evoca a

imagem externa, enquanto o radical que o precede comporta-se como um determinante,

sendo, por isso, a parte da imagem interna (expressão literal) que vai determinar a restrição.

Exemplos do uso do genitivo restritivo literal que concede valor paradoxal à expressão

nuclear figurada são muito frequentes em Persas. Em meio às muitas ocorrências, podem-se

mencionar as seguintes: , do grande exército, genitivo que restringe a

expressão nuclear nominal , éforos, concedendo valor paradoxal a uma expressão

externa própria do mundo institucional espartano (v. 25); , do mar, genitivo que

restringe o dativo , pescoço, do enunciado metafórico de ação pertencente à imagem

do jugo que simboliza o ato de escravizar (v. 72); , dos persas, genitivo que

restringe o termo , flor, no enunciado metafórico de ação que fala da morte dos jovens

pertencentes ao exército de Xerxes (v. 252); , de males, genitivo que restringe o termo

, onda, exprimindo o paradoxo de possibilitar que uma força da natureza expresse

algo terrível, no caso, toda a desgraça que se abateu sobre os persas derrotados em Salamina;

, da perdição, genitivo que restringe o acusativo , espiga, presente no

enunciado metafórico de ação que fala da atuação da , excesso, de Xerxes no contexto

literário, por meio da presença do desenvolvimento de uma espiga do campo (vv. 821-822).

113 Em sua teoria pragmática da metáfora, Searle menciona o caráter restritivo de uma emissão metafórica, ao dizer que um receptor entenderia diferentemente o significado figurado do termo porco nas emissões Sam é um porco e

O carro de Sam é um porco. Sam e carro, termos literais da emissão metafórica, restringem de maneira diferente o

termo porco, de modo que, na primeira frase, poder-se-ia entender que Sam é um glutão e, na segunda, que o carro

de Sam consome muita gasolina como porcos consomem muita comida. SEARLE, John. Expressão e Significado.

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 167. Na análise proposta na tese apresentada, o termo porco seria uma

expressão nuclear nominal que é restrita pelas expressões literais do enunciado metafórico. 114 Horta faz uma análise meticulosa da relação entre os radicais determinados e determinantes presentes em

palavras compostas gregas. HORTA, G. N. B. P. Os gregos e seu idioma. Rio de Janeiro: J. Di Giorgio, 1978.

Tomo I. p. 406.

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O uso de um adjetivo adjunto adnominal restritivo pode ser visto nas seguintes

expressões: (v. 50), jugo da escravidão, em que o uso do adjetivo literal

restritivo vai conceder ao instrumento de atrelagem e à toda ação feita por seu

intermédio um valor paradoxal ligado às desgraças advindas da escravização;

(v. 816), mistura ritual gotejante de sangue, em que o adjetivo

literal (no contexto literário há, de fato, a ideia do solo encharcado de sangue de persas

mortos) restringe o termo , que se trata simplesmente de uma oferenda própria da

religiosidade grega, advindo daí o valor paradoxal que se faz em sua utlilização para

expressar uma cena tétrica repleta de morte; (v. 822), toda uma colheita

de lágrimas, em que um adjetivo que indica profunda tristeza restringe o termo ,

concedendo-lhe um valor paradoxal ao fazer com que algo bom como a colheita expresse o

surgimento de fatos terríveis. Em todos esses casos, o valor paradoxal é fornecido aos

substantivos figurados pelo determinante (no caso, um adjetivo) literal.

Note-se agora a diferença entre os adjetivos restritivos mostrados no parágrafo anterior

e o adjetivo (v. 559), com (de) asas simétricas, que acompanha o substantivo

(v. 560), naus. Enquanto nos casos anteriores a restrição era concedida pelo adjetivo

adjunto adnominal, que funciona como um termo literal (o substantivo núcleo da expressão é

o elemento figurado), ocorre exatamente o inverso no exemplo das naus de remos que se

assemelham a asas de pássaros. Aqui o elemento restritivo é a expressão nuclear

externa do enunciado metafórico, enquanto seria um elemento literal. O mesmo ocorre

com a expressão (vv. 114-115), espírito vestido de negro, em que o

adjetivo composto, que está relacionado ao ato cotidiano do homem grego de vestir-se, traz

em si mesmo a evocação do ambiente externo que vai restringir o termo literal (há de

fato no contexto literário uma preocupação da parte dos anciãos persas quanto ao destino do

exército de Xerxes nessa parte da tragédia). Nesses dois exemplos, percebe-se, então, que o

valor paradoxal é fornecido aos determinantes (adjetivos) figurados por meio da presença de

substantivos determinados literais. Não é de se surpreender tal possibilidade, uma vez que o

valor restritivo não deixa de ser uma evocação, possibilitando, portanto, que a imagem

externa entre no contexto literário por meio dele. É preciso ressaltar, entretanto, que, para

formação da metáfora paradoxal, foram encontrados muito mais elementos restritivos literais

do que figurados. O esquema que se segue talvez sirva para esclarecer melhor a

complexidade da diferenciação entre os dois tipos de construção:

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substantivo adjetivo restritivo adjetivo restritivo substantivo

determinado determinante determinante determinado

figurado literal figurado literal

externo interno externo interno

(a restrição é determinada pela imagem interna literal, (a restrição é determinada pela imagem

de modo que o paradoxo encontra-se no substantivo externa figurada, de modo que o paradoxo determinado.) se encontra no adjetivo determinante.)

Deve-se mencionar que poderia haver presença de determinantes adjuntos adnominais

evocando imagens externas também com genitivos, mas não foram encontradas construções

reelevantes desse tipo em Persas. Como já foi frisado, os determinantes literais, que lançam

no elemento figurado o trágico próprio do contexto literário, têm uma presença muito mais

constante.

A restrição pode ocorrer ainda na compleição da própria palavra. Termos compostos

que desempenham valor paradoxal são, por exemplo, (v. 10), adivinho de

males, em que o radical , do adjetivo substantivado , mal, vai ser o elemento literal

que restringe o semantema presente no radical , proveniente do substantivo ,

adivinho (não se trata de qualquer adivinho, mas apenas daquele que prevê males, coisas

ruidosas, que possibilitam que um ofício inofensivo como o do adivinho expresse males, daí

seu valor paradoxal) e (v. 30), domador do arco, em que o radical , do

substantivo , arco, semantema literal do contexto literário, vai restringir o semantema

, raiz proveniente do radical do verbo , domar, concedendo ao chefe bárbaro

Imaios uma característica ligada à guerra (não se trata de qualquer adestrador, mas daquele

que comanda um arco em uma típica ação de violência, daí o valor paradoxal que transforma

um ofício do cotidiano do homem grego em algo que expressa uma força bélica de oposição).

Note-se que tanto o radical quanto o radical são elementos que evocam imagens

externas, sendo, portanto, expressões nucleares que se unem, respectivamente, aos

semantemas literais presentes nos radicais (há, de fato, males no contexto literário, mas

não um adivinho) e (o chefe Imaios é realmente um especialista do arco, mas não é um

domador de animais), que são determinadores da imagem interna.

Pode-se perceber, pelos exemplos arrolados, que os enunciados metafóricos paradoxais

mostram-se presentes tanto em construções que se utilizam de expressões nucleares nominais

quanto em contruções que fazem uso de expressões nucleares de ação. É necessário dizer que

a ocorrência do caráter paradoxal em construções com expressões nucleares de ação se

apresenta muito frequente. Todos os enunciados metafóricos formados pela evocação do ato

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de colocar um jugo em torno do pescoço de um animal, ação esta pertencente ao mundo

campesino inofensivo do boieiro ou do cavaleiro, serão utilizadas no discurso trágico de

Persas para expressar, como foi visto várias vezes, a violência inerente ao ato de escravizar,

gerando a oposição entre gregos e persas que é uma constante nessa tragédia. Tais

enunciados da ação do jugo metafórico são, portanto, estritamente paradoxais.

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160

10- TRADUÇÃO DA TRAGÉDIA PERSAS DE ÉSQUILO

PERSAS

PÁRODO:

CORO:

Estes são conhecidos como os fiéis dos persas

que partiram para a terra da Hélade

e os guardiões das moradas opulentas

e plenas de ouro, os quais, por ancestralidade,

o próprio divino rei Xerxes, 5

nascido de Dario,

escolheu para serem éforos de seu domínio.

Mas, acerca do retorno do rei

e do exército pleno de ouro, desde já,

o meu coração, um adivinho de males, 10

fortemente me atormenta por dentro.

Pois toda a força nascida na Ásia

partiu, e ladra: o homem é jovem!

Mas nem mensageiro e nem cavaleiro

chegam à cidade dos persas. 15

Após deixarem Susa e Ecbátana

e a antiga muralha de Císsia,

partiram eles a cavalo

e em naus, enquanto a infantaria, em marcha,

tinha consigo a massa bélica. 20

Tal como Amistres e Artafrenes,

também Megabates e Astaspes,

comandantes dos persas,

reis submetidos ao grande rei,

precipitam-se, éforos do grande exército, 25

tanto de domadores do arco quanto de cavaleiros,

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161

medonhos de ver e extraordinários em batalha,

com uma fama que bem sustenta o espírito;

e ainda Artembares, belicoso cavaleiro,

e Masistres, e o domador do arco, 30

o corajoso Imaios, e ainda Farandaces

e Sostanes, condutor de cavalos.

Outros o grande e muito nutriz

Nilo enviou: Sousiscanes,

Pegastágon, nascido de Egito, 35

o que comanda a sagrada Mênfis,

o grande Arsames, e o dirigente

da antiguíssima Tebas, Ariomardos,

e ainda remadores que, com naus, atravessam pântanos,

extraordinários e uma multidão, inumeráveis. 40

Uma turba de lídios de modos refinados

segue-os, que dominam inteiramente

a raça nascida no continente; Mitragathes

e o nobre Arkteus, reis soberanos,

e Sardes plena de ouro os impelem, 45

transportando-os nos muitos carros,

invenções de dois ou de três timões,

visão medonha de ver se aproximando.

Os vizinhos do sagrado Tmolo prometem

lançar em torno da Grécia o jugo da escravidão, 50

Márdon, Tharibis, bigornas da lança,

e os Mísios arremessadores de dardos; a Babilônia

plena de ouro uma turba confusa, em longas colunas,

envia, fiéis transportados por naus

e com a vontade de retesar o arco. 55

A raça portadora de sabres,

proveniente de toda a Ásia, avança,

sob a condução da extraordinária comitiva do rei.

Tal flor do solo persa

de homens partiu, 60

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sobre os quais todo solo asiático

que os alimentou chora com forte saudade,

e tanto genitoras quanto esposas, dia a dia,

com o passar do tempo, tremem.

(Estrofe )

O exército real destruidor de cidades já 65

penetrou no país

vizinho, situado na costa oposta,

após ter transposto, com uma ponte de botes

atados por cordas, a passagem

da filha de Áthamas, Helle, 70

após lançar o jugo, uma passagem

de muitos pregos, em torno do pescoço do mar.

(Antístrofe )

Um comandante impetuoso da Ásia plena de homens,

contra toda a terra, impele

um rebanho divino, 75

por dois modos, tanto no combate por terra,

quanto a partir do mar,

confiando nos seus fortes

éfetas cruéis, homem

nascido da raça de ouro, semelhante a um deus. 80

(Estrofe )

Aparentando, nos olhos, a profundidade

azul sombria de uma serpente assassina,

o detentor de muitos braços e muitas naus,

conduzindo um carro sírio,

leva, contra os homens célebres 85

pela lança, Ares domador do arco.

(Antístrofe )

Não se conhece ninguém que, colocando-se

sob um grande fluxo de homens

possa contê-lo com diques fortificados.

Invencível é a onda do mar. 90

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Imbatível é o exército

dos persas e seu povo belicoso.

(Epodo)

Da traiçoeira cilada de um deus,

que indivíduo mortal poderá escapar?

Quem, com o pé veloz, é o senhor 95

de um salto ágil?

(Antístrofe )

Amigável, abanando a cauda desde o começo, a Áte

conduz o mortal para suas redes;

depois disso, não há como ele escapar

impune dos que estão acima. 100

(Estrofe )

Então, por obra dos deuses, a Moira

outrora dominou-o por completo,

e ele aconselhou aos persas

que executassem batalhas

destruidoras de torres, 105

tumultos de combates entre cavaleiros

e destruição de cidades.

(Antístrofe )

Aprenderam a contemplar,

por vento impetuoso,

o bosque marítimo 110

do mar de vastos caminhos, grisalho de espuma,

confiantes em frágeis

amarras

e nas invenções que levam o povo. 114

(Estrofe )

Esses fatos dilaceram de medo 115

o meu espírito vestido de negro;

oâ, por este exército persa.

Que a cidade não seja informada

de que o grande centro de Susa foi despovoado.

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164

(Antístrofe )

E a cidadela dos Císsios 120

irá cantar gritando de volta -

oâ, vociferando essa palavra

a turba de mulheres.

Que um rasgo recaia sobre as finas vestimentas. 125

(Estrofe )

Todo cavaleiro

e a massa em terra,

como um enxame de abelhas,

perdem-se junto ao comandante do exército,

após deixar conjugados 130

ambos os cabos marinhos,

antes comuns a cada uma das partes da terra.

(Antístrofe )

E os leitos enchem-se

de lágrimas pela saudade dos homens;

persas de delicada dor, cada uma, 135

com saudade do amor marital

em relação ao impetuoso esposo hábil na lança

que foi enviado para longe,

é deixada sozinha com o jugo.

Mas avante, persas, sentando-se 140

dentro desta casa antiga,

estabeleçamos uma reflexão prudente

e de profunda decisão, e aproxima-se uma necessidade:

de como, precisamente, age o rei Xerxes,

nascido de Dario, 145

o que porta no nome do pai a nossa raça.

O que vence é o retesamento do arco,

ou o vigor da lança

de coifa pontiaguda triunfou?

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165

CORIFEU:

Mas ela, a mãe do rei, brilho 150

semelhante aos olhos dos deuses,

e minha rainha, aproxima-se. Prostro-me,

sendo ainda preciso para os que a saúdam

dirigir tudo a ela com palavras.

1º EPISÓDIO:

CORIFEU:

Ó rainha, a mais poderosa das persas de cintura profunda, 155

Mãe anciã de Xerxes, mulher de Dario, salve;

foste esposa de um deus dos persas e também geraste um deus,

se alguma divindade de outrora já não abandonou a armada.

ATOSSA:

Por isso, venho agora, após deixar as moradas ornamentadas de ouro

e o meu quarto, também pertencente a Dario. 160

Também a preocupação dilacera-me o coração, e a vós direi

um rumor, jamais estando sem temer por mim mesma, amigos,

que o grande Plutão, depois de cobrir o solo de poeira, destrua com o pé

a prosperidade, a qual Dario ergueu não sem algum dos deuses.

Por isso, uma dupla preocupação é perceptível na minha mente: 165

nem a massa prestar honras por um acúmulo de bens sem donos,

e nem a luz brilhar para os desprovidos de bens como para o detentor do poder.

Há riqueza irrepreensível, mas tenho medo pelo meu olho,

pois considero o olhar das moradas a presença de seu senhor.

Diante disto, como a situação assim está, vos tornastes para mim 170

conselheiros deste assunto, persas, leais anciãos,

pois tudo de sábio em vós é, para mim, conselhos.

CORIFEU:

Sabe bem disto, rainha desta terra, que tu não ordenas duas vezes

nem palavra e nem ação as quais nossa força queira conduzir,

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pois a nós, que somos bem preparados, os conselheiros desses assuntos, tu chamas. 175

ATOSSA:

Encontro-me sempre na companhia de muitos sonhos

noturnos, depois que meu filho, após equipar o exército,

partiu, por desejar devastar a terra dos helenos.

Mas nenhum ainda apareceu-me tão claro

como o da noite benfazeja de ontem. Irei narrá-lo a ti. 180

Pareceu-me que duas mulheres ricamente vestidas,

uma adornada com um vestido persa,

e a outra, por sua vez, com um dórico, chegaram diante de meus olhos,

muito superiores em grandeza às de hoje

e em beleza irrepreensível; as duas eram irmãs da mesma 185

família, mas uma habitava a pátria grega,

pois havia obtido por sorte essa terra, e a outra, a bárbara.

Ambas, como eu parecia ver, discutiam entre si

sobre uma questão; o meu filho, percebendo isso,

tentava contê-las e amansá-las, e subjuga as duas 190

aos carros e coloca correias

em seus pescoços. Enquanto uma orgulhava-se desse aparato

e possuía nas rédeas uma boca fácil de comandar,

a outra agitava-se; com as mãos dilacera os arreios

do assento, agarra tudo junto com força, 195

e, sem amarras, quebra o jugo ao meio.

Meu filho tomba, e seu pai, Dario,

coloca-se ao seu lado, apiedando-se dele; porém,

quando Xerxes o vê, rasga as vestes à volta do corpo.

Digo ter contemplado isso à noite. 200

Quando me levantei e, com as mãos, toquei

a fonte de belas águas, aproximei-me do altar

com a mão cumpridora do sacrifício, desejando oferecer

a mistura ritual às divindades tutelares, destinatárias destes ritos.

Vejo uma águia fugindo em direção ao altar 205

de Phébo; encontro-me afônica de medo, amigos.

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Depois, vislumbro um falcão que, com a rapidez de suas asas,

lança-se contra ela e, com as garras, péla

a sua cabeça; e ela nada mais fazia,

senão encolher o corpo de medo. Coube a mim ver esses horrores, 210

e a vós escutar. Bem sabeis vós: meu filho,

se tivesse administrado bem, se tornaria um homem admirável,

mas, tendo administrado mal - não é prestador de contas perante à cidade,

e, se estiver a salvo, igualmente reina nesta terra.

CORIFEU

Não desejamos, mãe, nem te aterrorizar em excesso com nossas palavras, 215

nem te encorajar. Como é conveniente às suplicantes,

se viste algum mal, pede que os deuses providenciem o seu afastamento

e que as boas coisas tornem-se perfeitas tanto para ti e para os teus filhos

quanto para a cidade e para todos os amigos. Em seguida, é preciso espalhar

as libações em honra à Terra e aos mortos. Pede isto benevolamente: 220

que o teu esposo Dario, o qual dizes ver durante a benfazeja noite,

envie favores a ti e ao filho, das entranhas da terra para luz,

e que as coisas contrárias na terra, retidas, sejam obscurecidas pelas trevas.

Por ser um coração adivinho, benevolamente, aconselhei-te isso.

Para realizar bem tudo isso para ti, decidimos acerca desse assunto. 225

ATOSSA:

Mas certamente com boa intenção para meu filho e para minha morada,

tu, o primeiro juiz destes sonhos, tomaste por resolução este discurso.

Que o necessário seja feito! Colocaremos, como estás a propor,

todas essas coisas para os deuses e para os amigos sob a terra,

logo que chegarmos às moradas. Mas agora quero aprender a fundo, 230

ó amigos. Onde dizem estar assentada a terra de Atenas?

CORIFEU:

Ao longe, próximo ao poente, onde há os desaparecimentos do soberano Sol.

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ATOSSA:

Então, meu filho desejava tomar esta cidade?

CORIFEU:

Na verdade, toda a Grécia iria se tornar submissa ao rei.

ATOSSA:

De que maneira uma multidão de homens pertencentes ao exército os assiste? 235

CORIFEU:

Tal exército é o que certamente causou muitos males para os medos.

ATOSSA:

E que outro benefício há com esses homens? Existe bastante riqueza em suas moradas?

CORIFEU:

Eles possuem certa fonte de prata, tesouro do solo.

ATOSSA:

Entre eles, é a flecha lançada pelo arco que se distingue em mãos?

CORIFEU:

De modo algum; são as lanças para combate a pé firme e as armaduras com escudo. 240

ATOSSA:

Que pastor de homens está à frente do exército e o comanda?

CORIFEU:

Não são chamados de escravos por ninguém e nem subordinados a um guerreiro.

ATOSSA:

Como, então, poderiam esperar por inimigos que chegam de longe?

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CORIFEU:

Mesmo assim destruíram o grande e belo exército de Dario.

ATOSSA:

Certamente, dizes algo terrível aos filhos dos que foram, para inquietá-los. 245

CORIFEU:

Mas parece-me que logo saberás, por completo, o verdadeiro relato.

Percebe-se um jeito persa na corrida deste guerreiro, que o distingue,

e ele traz uma informação clara para se ouvir, seja favorável ou ruim.

MENSAGEIRO:

Ó cidadelas de toda terra da Ásia,

ó terra persa e porto pleno de riqueza, 250

como num só golpe, está completamente destruída

uma grande prosperidade, e a flor dos persas, ao cair, foi-se.

Ó de mim, é um mal ser o primeiro a anunciar males,

contudo, trata-se de uma necessidade desdobrar todo o sofrimento,

persas: todo exército dos bárbaros encontra-se aniquilado. 255

CORO:

(Estrofe )

agonias, agonias, novas

e devastadoras. Aiaî,

umedecei os olhos, Persas,

após ouvir tal dor.

MENSAGEIRO:

Sim, todos aqueles estão destruídos por completo, 260

e eu mesmo, inesperadamente, vejo a luz do regresso.

CORO:

(Antístrofe )

Foi longa a minha vida,

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esta certa longevidade que surgiu

aos velhos para eles ouvirem

esta calaminade inesperada. 265

MENSAGEIRO:

E exatamente por ter estado presente e não por ter ouvido relatos de outros,

persas, poderia expor tão grandes males concretizados.

CORO:

(Estrofe )

Otototoî, inutilmente

as muitas armas variadas,

provenientes da terra da Ásia, foram 270

para a terra de Zeus, região da Grécia.

MENSAGEIRO:

Estão cheios de mortos terrivelmente massacrados

as margens de Salamina e todo lugar vizinho.

CORO:

(Antístrofe )

Otototoî, dizes

que os corpos dos amigos 275

que morreram submergidos, envoltos diversas vezes pelo mar,

foram levados vacilantes em suas vestimentas duplas.

MENSAGEIRO:

Os arcos nada resistiam, e todo exército

foi destruído, após ser domado pelos choques das naus.

CORO:

(Estrofe )

Solta um infortunado grito 280

de lamento para os arruinados,

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porque, para os persas, os deuses estabeleceram,

completamente, todos os males; aiaî do exército destruído.

MENSAGEIRO:

Ó maior ódio ouvir o nome de Salamina;

pheû, como gemo ao me lembrar de Atenas. 285

CORO:

(Antístrofe ):

Certamente, Atenas é hostil aos inimigos;

Certamente, é para lembrar

de que ela já deixou muitas persas em vão,

privadas de esposos.

ATOSSA:

Estive calada, infeliz, por muito tempo, estarrecida 290

com os males; pois esta desgraça lança-se acima de tudo,

não há o que questionar e nem dizer em relação aos sofrimentos.

Igualmente, é uma necessidade levar provações aos mortais,

porque os deuses ensinam isso. Depois de desdobrares todo o sofrimento,

expõe, após se recompor, se igualmente choras por causa dos males. 295

Quem não está morto, e também se choraremos por quem

dentre os chefes do povo, que, sobre o poder do cetro,

deixava, ao morrer, uma fileira desprovida de homens?

MENSAGEIRO:

O próprio Xerxes está vivo e vê a luz.

ATOSSA:

Mencionas uma grande luz para nossas moradas 300

e há um dia claro proveniente da noite sombria.

MENSAGEIRO:

Mas Artembares, comandante de uma cavalaria de dez mil,

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choca-se contra as duras margens de Silenias.

E Dadakes, chefe de mil homens, ao golpe de uma lança,

com um salto ligeiro, pulou da nau. 305

O excelente Tenagon, originário dos Báktrios,

rodopia pela ilha de Ájax batida pelo mar.

Lilaios, Arsames e um terceiro, Argestes,

estes, em torno da ilha alimentadora de pombos,

vencidos, chifravam a vigorosa terra. 310

E também o vizinho às fontes do Nilo egípcio,

Pharnouchos, e ainda os que caíram de uma nau,

Arkteus, Adeus e um terceiro, Pheresseues.

Mátallos de Krysa, comandante de dez mil, ao morrer,

sua barba ruiva, cheia, umbrosa, 315

molhava, trocando sua coloração pelo sangue púrpuro.

E Magos, o árabe, e Ártabes, o Báktrio,

general de uma cavalaria negra de trinta mil,

um meteco em terra áspera, ele foi ali consumido.

Ámistris e Amphistreus, que maneja uma lança 320

plena de dor, o resoluto Ariórmados,

que causou luto para Sardes, e Seisames, o Mísio,

Thárybis, comandante de cinco vezes cinquenta

naus, raça de Lyrnaios, homem bom de aspecto,

ele jaz, miserável, morto de modo muito não afortunado; 325

Syénnesis, o primeiro em coragem,

chefe dos Kilikos, um homem causador de muita dor

para seus inimigos, sucumbiu gloriosamente.

Desse tanto, lembrei-me acerca dos chefes,

mas, dentre os muitos presentes, anuncio poucos males. 330

ATOSSA:

Aiaî, certamente ouço estes que são os mais elevados dentre os males:

tanto infâmias aos persas quanto lamentações penetrantes.

Então, narra-me isso, após desenrolar desde o princípio;

quanto era a quantidade de naus helênicas,

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para que se julgassem dignas de se unirem em combate 335

contra o exército persa, com choques navais?

MENSAGEIRO:

Quanto à quantidade, talvez tu saibas bem

que o bárbaro superava em naus. Para os gregos,

havia um número total de dez vezes trinta

naus, mas havia uma dezena escolhida separada dessas; 340

Para Xerxes, pois também sei, havia um milhar,

que a multidão conduzia, e as superioras em rapidez

eram duzentas e sete; assim é o relato.

Fizemos parecer a ti que não ficaríamos atrás neste combate?

Mas eis que uma divindade destruía o exército, 345

não tendo pesado os pratos com sorte equilibrada.

Os deuses salvam a cidade da deusa Palas.

ATOSSA:

Então, a cidade de Atenas é indestrutível?

MENSAGEIRO:

Existindo homens, a muralha é segura.

ATOSSA:

Como foi o começo do embate entre as naus? Descreve. 350

Quem começou o combate, os gregos

ou meu filho, ao vangloriar-se de sua quantidade de naus?

MENSAGEIRO:

Ó senhora, principiou todo o mal

um vingador aparecido do nada ou uma divindade maléfica.

Um homem heleno, que veio do exército 355

ateniense, falou ao teu filho Xerxes nos seguintes termos:

que, quando chegasse a obscuridade da negra noite,

os helenos não permaneceriam, mas, após se lançarem

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aos remos das naus, lado a lado,

salvariam a vida numa fuga furtiva. 360

Ele, logo quando ouviu, por não compreender o ardil

do homem heleno e nem o ressentimento dos deuses,

profere esta ordem a todos os comandantes de naus:

quando o sol cessar de abrasar a terra com seus raios,

e o crepúsculo tomar o território sacro do céu, 365

a massa de naus iria se organizar em três fileiras

para guardar a saída das naus e a passagem que ressoa com o mar,

e outras em torno da ilha de Ájax;

assim, se os helenos tentassem fugir de um mau destino,

tendo encontrado nas naus uma fuga em surdina,

estava predeterminado que todos seriam privados da cabeça. 370

Tais coisas disse enfaticamente com sua alma confiante;

não compreendia o futuro que vinha dos deuses.

E eles, não desordenadamente, mas com a alma obediente ao chefe,

preparavam a refeição, enquanto o varão marinheiro 375

atava o remo em torno do tolete bem disposto.

Como a luz do sol se consumia

e a noite se aproximava, todo varão rei de seu remo,

ia à sua nau e também todo epístata de armas;

a fileira de remadores de uma grande nau exortava outra fileira, 380

e navegam como cada uma estava disposta,

e notívagos senhores das naus transportavam

todo o povo náutico que navega sem cessar.

A noite ia, mas certamente o exército dos gregos

não se empenhava de modo algum em um embarque furtivo; 385

quando, precisamente, o dia de potros brancos,

bem brilhante de ver, tomava toda a terra,

primeiramente, por meio de um ruído, um grito da parte dos helenos

soou como um canto de bom agouro, e alto

respondeu gritando o eco proveniente das rochas 390

insulares; o medo apresentava-se a todos os bárbaros,

frustados em seu intento; pois não para a fuga

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os helenos entoavam o venerável peân naquele momento,

mas para se precipitarem à batalha com ânimo impetuoso;

uma trombeta, com seu brado, inflamava todos eles. 395

Imediatamente, num lançamento simultâneo do remo que brama,

bateram sob a superfície do mar perante cadência do chefe,

e logo todos estavam claros de ver.

Primeiramente, a ala direita, bem postada,

avançava em ordem, em seguida toda a frota 400

lançava-se à frente, e era possível, ao mesmo tempo, ouvir

um grande grito, “ó filhos dos helenos, ide,

libertai a pátria e libertai

vossos filhos, mulheres, os templos dos deuses paternos

e os túmulos dos antepassados; agora há um combate acima de todos.” 405

Então, de nossa parte, um ruído em língua persa

nos socorria, mas não era o melhor momento de hesitar.

Imediatamente, certa nau, de uma nau, o esporão guarnecido de bronze

feriu. Começou o ataque uma nau

helênica, que quebra todos os ornamentos de uma nau 410

fenícia, e cada um dirigia sua embarcação contra outra.

Naquele momento, de início, o fluxo do exército persa

resistia; mas, como a massa de naus no estreito

ajuntara-se, e nenhum auxílio de uns para os outros mostrava-se presente,

e como eles, sob a direção de si mesmos, com esporões de ponta de bronze, 415

feriam-se, destruíam completamente a frota munida de remos,

e as naus gregas, não sem habilidade,

rodeando, os feriam em círculo; eram reviradas

as cubas das naus, e ver o mar não mais era possível,

pois estava repleto de destroços e cadáveres de homens; 420

as costas escarpadas e os recifes abundavam de mortos.

Em fuga desordenada, toda nau era impelida pelo ritmo dos remos,

tão grandes que eram as embarcações da armada bárbara.

Eles, como no arrasto de atuns ou de alguns peixes,

com pedaços de remos e destroços, 425

feriam, fatiavam; o gemido junto

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aos gritos tomavam o mar salgado,

até que o olhar sombrio da noite nos afastou.

Uma plenitude de males, nem se, durante dez dias,

eu os enumerasse, não poderia contá-los para ti. 430

Pois sabe bem disso, jamais, em um dia,

uma quantidade tão numerosa de homens morreu.

ATOSSA:

Aiaî, um grande pélago de males jorrou

contra os persas e a raça inteira dos bárbaros.

MENSAGEIRO:

Agora sabe bem disso, o mal ainda não é nem a metade. 435

Tal desfecho de sofrimento chegou sobre eles,

de maneira tal a contrabalançar ainda duas vezes a inclinação.

ATOSSA:

E que sorte poderia tornar-se ainda mais detestável do que essa?

Fala por que dizes que chegou ao exército,

esta desgraça, que inclina para os maiores dentre os males. 440

MENSAGEIRO:

Tão grande número de persas que estavam na força da idade,

os melhores de espírito e distintos por nascimento nobre,

sempre em fidelidade ao próprio rei em primeiro lugar,

morreram vergonhosamente no mais inglório infortúnio.

ATOSSA:

Oí, eu sou uma infeliz diante de terríveis acontecimentos, amigos. 445

Por qual infortúnio dizes que estes pereceram?

MENSAGEIRO:

Há uma ilha diante da região de Salamina,

pequena, difícil de ancorar, a qual o amante dos coros

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Pã freqüenta, sobre a margem marítima.

Para este lugar, Xerxes envia-os, para que, quando os inimigos 450

que foram massacrados se refugiassem na ilha ao sairem de suas naus,

aniquilasse a armada dos helenos, fácil de apanhar,

e salvasse os amigos que saiam da passagem marítima,

investigando mal o porvir. Como um deus

das naus concedeu a glória da batalha aos helenos, 455

ao proteger, nesse mesmo dia, os seus corpos com um bom bronze,

lançavam-se para fora de suas naus; e colocaram-se

em torno de toda a ilha, de modo aos nossos não terem meios

para onde se dirigir. Golpeavam muito

com pedras desferidas das mãos, e flechas, vindas 460

da corda do arco, caindo sobre eles, os matavam;

E, finalmente, ao serem instigados pelo som proveniente de um ruído,

ferem, cortam a carne nas articulações dos miseráveis,

até que destruíram completamente a vida de todos.

E Xerxes lamuriava-se alto, vendo a profundidade dos males, 465

pois tinha um assento com boa visão de todo o exército,

um alto monte próximo ao mar salgado;

após rasgar suas vestes e soltar agudos gritos de dor

e dar imediatamente ordens à armada em terra,

lança-se junto a uma fuga desordenada. Tal é a desgraça 470

diante de ti para lamentares, além da anterior.

ATOSSA:

Ó terrível divindade, como então enganaste os persas

em seus intentos; meu filho uma amarga punição

da gloriosa Atenas encontrou, e não achou suficiente

os que, diante de Maratona, viu perecer entre os bárbaros; 475

por isso meu filho, que julgava executar o revide da pena,

trouxe tão grande plenitude de sofrimentos.

Mas fala tu, dentre as naus, aquelas que se encontram salvas do infortúnio,

onde as deixaste? Sabes indicar claramente?

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MENSAGEIRO:

Os chefes das naus que restaram, com impetuosidade, 480

conseguiram, graças ao vento, uma fuga não bem ordenada;

e o exército restante, no solo da Beócia,

está perdido, uns, rodeando o brilho da fonte,

sofrem com a sede, e outros, privados de fôlego,

atravessaram comigo para o solo dos fócidos 485

e para a terra dórida, e ainda para o Golfo Malíaco, onde

o Esperquio irriga a planície com seu líquido benévolo;

a partir dali, o território da terra Aqueia

e as cidades da Tessália receberam-nos,

pois nos encontrávamos privados de alimento; ali a maioria morreu 490

de sede e de fome, pois ambas as coisas havia.

À terra da Magnésia e ao território

da Macedônia, chegamos, seguindo o curso do Áxio,

tanto os juncos pantanosos do Bolpe, quanto o monte Pangeu,

terra dos Edónios; mas, nessa noite, um deus 495

fez se elevar um inverno fora de época, e congelou

todo o fluxo do sagrado Estrímon. E quem, outrora,

não considerava em nada os deuses fazia

preces, prosternando-se diante da Terra e do Céu.

Depois que o exército cessou de invocar muitas vezes 500

os deuses, atravessa a passagem congelada;

e quem, dentre nós, apressou-se antes dos raios serem espargidos

pelo deus, encontra-se salvo.

Então, o círculo brilhante do sol, aquecendo com seus raios

a passagem pelo meio, a dilui, ao esquentá-la com sua chama; 505

tombavam uns sobre os outros; e certamente era feliz

aquele que, mais rapidamente, perdia o sopro da vida.

Os tantos que restaram e obtiveram a salvação,

depois de atravessarem a Trácia, arduamente, com muito esforço

após escaparem, uns não muitos, chegam 510

à sua terra com lareira; como se lamenta a cidade

dos persas, saudosa da juventude mais amada do solo.

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Essa é a verdade; e muito deixo de lado, ao mencionar

os males que o deus lançou contra os persas.

CORO:

Ó perniciosa divindade, com muito peso, como 515

espezinhaste com ambos os pés toda a raça persa.

ATOSSA:

Oí, eu sou uma infeliz por causa do exército que pereceu;

ó evidente visão da noite em sonhos,

como, fortemente, mostraste de modo claro males.

E vós o julgastes muito negligentemente. 520

Entretanto, visto que, aqui, vosso dito determinou,

quero, primeiramente, fazer uma prece aos deuses;

em seguida, tendo pego as oferendas destinadas à Terra

e aos mortos, trarei de minha morada a mistura ritual –

sei o mais possível a respeito do que se produziu, 525

mas, para a posteridade, tomara algo preferível se realize.

É necessário que vós, para estes fiéis administradores,

levais fiéis conselhos;

e meu filho, se acaso aqui ele chegue diante de mim,

consolai-o e o acompanhai até o palácio, 530

para que também um mal não corra em direção a males.

1° ESTÁSIMO:

CORO:

Ó rei Zeus, agora, dos persas

plenos de orgulho e repletos de homens

fizeste perecer o exército,

e a cidade de Susa e ainda Ecbátana 535

obscureceste com um luto sombrio;

muitas mulheres, com mãos tenras,

rasgando os véus,

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com lágrimas inundantes, molham

seus vestidos, compartilhando a dor. 540

As persas de delicado gemido, saudosas

para verem a recente união conjugal com seus homens,

os leitos de camas com finas cobertas,

o prazer de sua feminina juventude, afastadas,

choram com os mais insaciáveis gemidos. 545

E eu o lamentável infortúnio

dos que partiram carrego, como me convêm.

(Estrofe )

Pois agora, então, a terra inteira

da Ásia despovoada lamenta-se.

Xerxes levou, popoî, 550

e Xerxes aniquilou, totoî,

e Xerxes incitou a todos insanamente

com suas barcas marinhas.

Por que Dario era

assim tão cuidadoso 555

com os cidadãos, o chefe de arqueiros,

o guia amigo para os habitantes de Susa?

(Antístrofe )

Soldados e marinheiros,

naus com asas simétricas

de aspecto escuro os levaram, popoî, 560

e as naus os aniquilaram, totoî,

naus, com choques de proa completamente funestos,

e pelas mãos dos Iônios.

Como ouvimos, o próprio rei conseguiu

fugir por pouco, 565

através de caminhos simultâneos

de planícies e difíceis.

(Estrofe )

E certamente os que morreram primeiro, pheû,

após serem abandonados por necessidade, eé,

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em torno das margens de Cicreu, oâ, 570

rodopiam; geme e morde,

e grita gravemente

suas dores celestiais, oâ;

estendei um latido de desgraça

em gritante e infortunada voz. 575

(Antístrofe )

Rasgados terrivelmente pela água salgada, pheû,

são dilacerados pelos sem voz, eé,

as crianças do mar puro, oâ.

E a casa chora o homem espoliado,

e os genitores privados de filhos 580

suas dores extraordinárias, oâ,

velhos que choram

todo sofrimento dos que certamente lamentam.

(Estrofe )

E ainda, por muito tempo, sobre a terra da Ásia,

não mais as leis persas vão ser obedecidas, 585

ninguém vai pagar tributo

para as necessidades dos soberanos,

ninguém, curvando-se à terra,

irá ser comandado, pois a força

do rei se dissolveu. 590

(Antístrofe )

Não haverá língua em prisões

para os mortais, pois liberto

encontra-se livre o povo para falar,

já que o jugo do poder foi desatado.

Ensanguentada em seu seio, 595

a ilha de Ájax, banhada por todos os lados,

encerra os despojos dos persas.

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2° EPISÓDIO:

ATOSSA:

Amigos, aquele que obtém experiência de males

sabe que, para os mortais, quando uma onda

de males se aproxima, tem-se o hábito de se temer tudo; 600

mas, quando a divindade dá um rumo favorável, é para se confiar

que ela impelirá sempre o mesmo vento próspero da sorte.

Para mim, precisamente, tudo se mostra pleno de pavor.

As adversidades dos deuses aparecem aos olhos,

e um canto, que não é um peán, grita aos ouvidos; 605

tal terror de males vem aterrorizar a mente.

Portanto, por este trajeto, sem carros

e sem o luxo de antes, vim novamente

do palácio, trazendo as libações propícias para o pai

de meu filho, que são oferendas expiatórias aos mortos, 610

tanto o branco leite potável proveniente de uma vaca sagrada

quanto o líquido gotejante da que trabalha nas flores, o todo brilhante mel,

em meio à corrente lustral de uma fonte virgem,

e ainda a bebida pura proveniente de uma mãe

selvagem, este esplendor da vinha antiga; 615

da oliveira amarela que floresce sempre nas folhas

durante a vida, o fruto odorífero tenho ao lado,

e flores entrelaçadas, filhas da terra que tudo produz.

Mas, ó amigos, com tais libações, aos infernos,

entoai hinos, e invocai a divindade 620

Dario, enquanto eu enviarei estas honras,

que devem ser sorvidas pela terra, aos deuses infernais.

2º ESTÁSIMO:

CORO:

Rainha mulher, venerável aos persas,

envia tu libações às moradas sob a terra,

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e nós, por meio de hinos, iremos pedir 625

que os condutores dos consumidos

sejam benévolos sobre a terra.

Mas, sagradas divindade telúricas,

Terra, Hermes e rei dos que estão sob o solo,

enviai, do interior da terra, uma alma para a luz; 630

pois se há o conhecimento de um remédio melhor contra males,

somente ele, dentre os mortos, poderia dizer seu termo.

(Estrofe )

Então, ouve-me o bem-aventurado

rei, semelhante a uma divindade,

eu que claras palavras bárbaras 635

lanço, tristes, penosas, de múltiplos sons?

Gritos plenamente infortunados

farei ecoar?

E então, ele escuta-me debaixo do solo?

(Antístrofe )

Mas tu, Terra, e também outros 640

condutores dentre os telúricos,

permiti a mim que a divindade gloriosa

saia das moradas,

o deus dos persas nascido em Susa;

envia para o alto aquele que a terra 645

persa ainda não ocultou.

(Estrofe )

Sim, o querido homem, a querida sepultura;

pois, as queridas moradas encontram-se encerradas.

Aidoneu, que envia acima,

que tu possas ascender, Aidoneu, 650

o divino rei Dario. Êé.

(Antístrofe )

Certamente, ele outrora não aniquilava homens

com enganos de guerras avassaladoras;

era chamado de conselheiro divino

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para os persas, e conselheiro divino 655

foi, quando bem detinha sob os pés o exército. Êé.

(Estrofe )

Soberano, antigo soberano,

vamos, vem;

sobe para a alta extremidade de tua sepultura,

elevando, pelo pé, sua sandália tingida de açafrão, 660

da tiara real

o botão fazendo luzir.

Vem, pai isento de maldade, Dario, oî.

(Antístrofe )

Para que escutes novas

e recentes dores, 665

aparece, déspota do déspota.

Uma névoa do Estige voa sobre nós:

toda a juventude

já se encontra completamente aniquilada. 670

Vem, pai isento de maldade, Dario, oî.

(Epodo)

Aiaî aiaî;

ó morto muito chorado pelos amigos,

( por que, soberano, soberano, estes (versos corrompidos) 675

duplos erros contra teus bens lamentar? )

Nesta terra, foi destruído

tudo que tinha três filas de remos,

as naus não mais naus, naus. 680

3º EPISÓDIO

FANTASMA DE DARIO:

Ó fiéis dentre os fiéis e companheiros da minha juventude,

anciãos persas, a cidade sofre que pena?

Geme, debate-se e dilacera o solo.

Vendo a minha esposa junto ao meu túmulo,

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espanto-me, mas recebi as libações propícias. 685

Vós estais lamentando postados perto de meu túmulo

e, gritando com gemidos que evocam as almas,

chamam-me em lamento; não é fácil sair,

sobretudo porque os deuses sobre a terra

são melhores em segurar do que em libertar. 690

Mas, tendo um domínio sobre eles, eu

chego. Apressa-te, para que eu seja irrepreensível no tempo.

Qual é o novo mal que pesa sobre os persas?

CORO:

(Estrofe)

Temo olhar para ti,

e temo de minha parte falar-te 695

por causa do antigo respeito.

FANTASMA DE DARIO:

Mas, já que vim para cima, obedecendo aos teus gemidos,

que a história não mais seja longa, mas expondo de modo conciso,

dize-me e conclui tudo, renunciando à deferência a mim.

CORO:

(Antístrofe)

Hesito em ser agradável 700

e hesito em falar diante de ti,

para dizer o indizível aos amigos.

FANTASMA DE DARIO:

Mas, como um prudente temor antigo opõe-se a ti,

anciã, companheira do meu leito, minha mulher,

após cessar estas lamentações e gemidos, claramente, fala tu para mim 705

o que há. Talvez as provações humanas de fato aconteçam aos homens,

pois os males, muitos provenientes do mar e muitos da terra,

surgem aos mortais, caso uma vida mais longa se estenda adiante.

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ATOSSA:

Ó tu que tens uma riqueza acima de todos os homens por destino afortunado,

no tempo em que vias os raios do sol e era invejado, 710

atravessaste a vida próspera como um deus para os persas,

e agora invejo-te por morreres antes de ver a profundeza de males.

Dario, escutarás a história completa em curto tempo:

encontra-se devastado o poderio dos persas, como se afirma.

DARIO:

De que modo? Uma tempestade de peste chegou contra a cidade, ou uma

insurgência? 715

ATOSSA:

Absolutamente; mas, em torno de Atenas, todo exército foi destruído por completo.

DARIO:

E quem dentre meus filhos que aí estão era o chefe da armada? Conta.

ATOSSA:

O impetuoso Xerxes, que esvaziou toda a superfície da Ásia.

DARIO:

A pé ou como navegante, o infortunado mostrou-se louco nesta empresa?

ATOSSA:

Das duas maneiras; havia uma frente dupla para seus dois exércitos. 720

DARIO:

Mas como a armada a pé, que era tão numerosa, conseguiu atravessar?

ATOSSA:

Por meios engenhosos, colocou um jugo no estreito de Hele para ter a passagem.

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DARIO:

E realizou isto, de modo a fechar o grande Bósforo?

ATOSSA:

Assim foi; de alguma maneira, uma entre as divindades atracou-se ao seu espírito.

DARIO:

Pheû, uma grande divindade chegou-lhe, para que não raciocinasse bem. 725

ATOSSA:

É possível ver o resultado de tão grande mal que causou.

DARIO:

E o que então aconteceu a eles para que vós gemeis assim?

ATOSSA:

A armada náutica arruinada acabou por aniquilar a armada em terra.

DARIO:

E assim todo o povo foi inteiramente destruído pela lança?

ATOSSA:

Por isso que toda a cidade de Susa geme, desprovida de seus homens. 730

DARIO:

Ó, pópoi pelo respeitável auxílio e pelo exército protetor!

ATOSSA:

O povo báctrio perdeu-se inteiramente arruinado, nem um velho há.

DARIO:

Ó infeliz, tanta juventude dos aliados ele aniquilou.

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ATOSSA:

Dizem que, sozinho, Xerxes estava abandonado, não com muitos.

DARIO:

Como e também onde ele terminou? Há alguma salvação? 735

ATOSSA:

Felizmente, chegou à ponte que subjuga as duas terras.

DARIO:

Encontrou-se salvo próximo a este continente, isso é verdadeiro?

ATOSSA:

Sim; um claro relato determina isso, não há aqui desacordo.

DARIO:

Pheû, sim, chegou rápida a realização dos oráculos, e, para o meu filho,

Zeus lançou a concretização dos desígnios divinos; mas eu, de algum modo, 740

tinha o pressentimento de que os deuses as concretizariam só após um certo tempo;

mas, quando o próprio indivíduo se esforça, o deus une-se a ele.

Agora, uma fonte de males parece se evidenciar para todos os meus amigos.

E meu filho, que não observou isso, a estabeleceu com sua jovem audácia:

ele que esperava prender como a um escravo, por meio de cadeias, 745

o fluente Helesponto sagrado, o Bósforo, corrente de um deus;

tanto modificou seu curso, quanto, ao lançar peias batidas a martelo em torno dele,

conseguiu um grande caminho para seu grande exército,

e, apesar de ser mortal, pensava, não com bom conselho, ser soberano

a todos os deuses e a Poseidon. Como isso não ser uma doença de espírito 750

que se apossava de meu filho? Temo que meu muito esforço por riqueza

torne-se, para os homens, presa daquele que chegar primeiro.

ATOSSA:

Convivendo com homens maus, isso aprende

o impetuoso Xerxes; dizem-lhe que tu uma grande riqueza

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adquiriste para teus filhos com a lança, mas ele, por covardia, 755

brandia a lança em casa, para nada aumentar a prosperidade paterna.

Ouvindo muitas vezes tais afrontas, provenientes de homens maus,

escolheu fazer esta expedição para a Hélade com seu exército.

DARIO:

Então, a ação dele está executada,

imensa, inesquecível, tanto que jamais 760

esta cidade de Susa foi despovoada tombando,

depois que o rei Zeus concedeu-lhe esta honra:

um único homem toda a Ásia alimentadora de ovelhas

comandar, possuindo o cetro que governa.

Medo foi o primeiro guia do exército; 765

e outro filho seu completou este trabalho,

pois sua mente dirigia o leme com vontade.

E o terceiro depois dele, Ciro, homem bom de espírito,

que governou estabelecendo a paz para todos os amigos;

ele ganhou para si os povos da Lídia e da Frígia, 770

e dirigiu toda a Jônia pela força.

Um deus não o odiou, porque benévolo nasceu.

O filho de Ciro, o quarto, geriu um exército.

O quinto, Mardo, governou, vergonha para pátria

e para o antigo trono; mas a ele, com uma cilada, 775

o corajoso Artaphrenes matou nas moradas,

auxiliado por senhores guerreiros, que tinham esta utilidade.

O sexto foi Marafis; e o sétimo Artaphrenes,

e, por fim, eu; obtive o lote pelo qual desejava.

Fiz numerosas expedições com meu numeroso exército, 780

mas não lancei tão grande mal contra a cidade.

Contudo, meu filho Xerxes, sendo novo, pensa coisas novas,

e não se lembra dos meus mandamentos.

Pois bem, claramente sabei disto, companheiros meus de mesma idade:

nós todos, que possuíamos este poder, 785

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não nos mostraríamos como feitores de tantas desgraças.

CORO:

O que, então, rei Dario? Para onde redirecionas

o fim de tuas palavras? Como ainda, a partir delas,

nós, o povo persa, poderíamos agir da melhor forma possível?

DARIO:

Basta não fazerdes expedições para o território dos helenos, 790

nem mesmo se o exército medo for maior.

Pois, a própria terra é um aliado para eles.

CORO:

Como afirmaste isso? Como o território pode ser um aliado?

DARIO:

Matando em excesso, com a fome, os demasiadamente numerosos.

CORO:

Mas então iremos erguer uma expedição eleita, bem equipada. 795

DARIO:

Mas nem a armada que permanece agora nos territórios

da Hélade obterá a salvação do regresso.

CORO:

Como disseste? Nem toda armada dos bárbaros

transpôs a passagem de Helle, vindo da Europa?

DARIO:

Poucos dentre muitos, se de certo modo é necessário confiar 800

nas predições dos deuses, depois de olhar

para as consumadas agora; umas não deixam de acontecer e outras não.

Se verdadeiramente é isto, a multidão escolhida do exército

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ele deixa para trás, obedecendo a vãs esperanças.

Ficam onde o Asopo irriga, com seu fluxo, 805

a planície, querido adubo para a terra dos beócios;

ali, resta-lhes sofrer muito, os mais elevados dentre os males,

expiação por meio do excesso e da inteligência dos deuses.

Eles que, após terem chegado à terra da Grécia, não temeram

pilhar as imagens dos deuses e nem incendiar templos; 810

e altares desapareceram, e estátuas das divindades

foram tiradas de cima dos pedestais, pela raiz, confusamente.

Por isso, ao agirem mal, não pouco

sofrem, e coisas são previstas: não está oculto

o alicerce de males, mas ainda brota. 815

Uma mistura ritual um tanto gotejante de sangue estará

diante da terra de Plateia por causa da lança dórica;

e ainda montes de mortos, aos olhos dos homens, irão revelar,

sem falar, aos engendrados até a terceira geração,

como não convém, sendo mortal, ter pensamentos soberbos. 820

O excesso, florescendo, frutificou a espiga

da perdição, de onde ceifa toda uma colheita de lágrimas.

Olhando, de certo modo, para o castigo deles,

lembrai-vos de Atenas e da Hélade, pois quem

eleva seu pensamento acima da felicidade presente, 825

desejando o grande patrimônio dos outros, derrama o seu.

Zeus é, de fato, o castigador dos pensamentos

muito soberbos, severo juiz de contas.

Por isso, uma vez que precisa de sensatez,

inspira-o com conselhos bem ditos, 830

para que ele deixe de ofender os deuses com sua soberba imprudência.

E tu, ó querida anciã, mãe de Xerxes,

após ir às moradas, tendo tomado da elegância

a qual lhe é apropriada, vai encontrar o teu filho. Muito

por causa de dores provenientes de males, rasgos, em torno de seu corpo, 835

reduziram a trapos as vestes bordadas.

Mas acalma-o tu, sapientemente, com palavras;

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pois, sei, ele suportará ouvir apenas a ti.

Eu parto para as trevas sob a terra.

E vós, anciãos, regozijai-vos, nos males, apesar de tudo, 840

ensinando com a alma o prazer de cada dia,

porque, aos mortos, a riqueza de nada serve.

CORO:

De fato, muitas coisas presentes e futuras já

sofri ao ouvir as provações destinadas aos bárbaros.

ATOSSA:

Ó divindade, como penetram em mim muitas dores 845

de males, e, sobretudo, esta desgraça morde:

sim, escutando sobre a desonra das vestes em torno do corpo

de meu filho, aquelas que agora o cobrem.

Mas vou, e, tomando de elegância na entrada das moradas,

irei tentar encontrar o meu filho. 850

Pois, nos males, as coisas mais queridas devem ser dadas antes.

3º ESTÁSIMO:

(Estrofe )

Ó, pópoi, de fato, de uma imensa e nobre vida

subordinada às leis da cidade usufruímos,

quando o venerável

que a todos socorre, sem maldade, 855

sem belicosidade, rei

Dario, semelhante a um deus, governava o país.

(Antístrofe )

Primeiro, exércitos ilustres

revelávamos, e ( leis

semelhantes a grandes torres eles dirigiam ). (versos corrompidos) 860

Os retornos de guerras,

sem labuta, sem sofrimento,

conduziam de novo para suas casas os que realizavam bem seus afazeres.

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(Estrofe )

Quantas cidades conquistou, não tendo atravessado

a passagem do rio Hális, 865

e não tendo partido de seu lar,

como as Aqueloides que são vizinhas do mar Estrimônio,

abrigos Trácios, 870

(Antístrofe )

e as que fora da água, sobre

a terra, prolongam-se, envoltas por uma torre,

que obedeciam a este rei,

e as que, em torno da larga passagem de Helle, 875

erguiam-lhe votos, tanto o Propôntido interior,

quanto a embocadura do Ponto.

(Estrofe )

Ilhas que, sobre o promontório

marinho, banhadas à volta, 880

estão próximas desta terra,

como Lesbos e Samos,

que planta oliveiras, Quios

e Paros, Naxos, Míconos,

e, unida a Tenos, 885

a vizinha Andros,

(Antístrofe )

e as vizinhas marítimas

ele dominava, as situadas entre as margens,

Lemnos e a morada de Ícaro, 890

e ainda Rodes, Cnidos

e as cidades de Chipre, Pafos,

Solos, e Salamina,

cuja metrópole agora 895

é causa destes gemidos.

(Epodo)

E as ricas, ao longo da parte

jônica, repletas de homens,

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(dominavam helenos com seu espírito.) (versos corrompidos) 900

Estava presente um infatigável vigor

de homens armados

e aliados muito variados.

Mas, agora, de maneira dúbia,

estes fatos mudados pelos deuses, por outro lado, 905

suportamos, ao sermos

domados grandemente pela guerra,

com golpes marítimos.

ÊXODO

XERXES:

Ió,

desgraçado eu por esta detestável sorte,

ao obter a mais improvável. 910

Como uma divindade cruelmente avançou

sobre a raça dos persas! Por que sofro, infortunado?

A força de meus braços dissolve-se,

após olhar para estes longevos presentes nas cidades.

Quem dera, Zeus, que também a mim, 915

com meus homens que partiram,

a sorte da morte me cobrisse por inteiro.

CORO:

Ototoî, rei, da nobre armada

e da grande honra de comandar os persas

e dos homens em ordem, 920

os quais, agora, a divindade ceifou.

A terra geme a terrena

juventude morta por Xerxes, do Hades,

o abastecedor de Persas; de Ecbátana,

muitos guerreiros, flor do país, 925

domadores do arco, certamente uma densidade

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de infinitos homens, estão desaparecidos.

Aiaî aiaî da força corajosa.

Ásia solo, rei da terra,

terrivelmente, terrivelmente, 930

dobrou o joelho.

XERXES:

(Estrofe )

Eis-me, oioî, gemente,

deplorável para geração e para terra paterna,

tornei-me assim um mal.

CORO:

Por teu regresso, este saudoso 935

grito de mau augúrio,

som que canta males

de lamento Mariandino,

enviarei enviarei,

ruído repleto de lágrimas. 940

XERXES:

(Antístrofe )

Lançai deplorável e lamentosa

voz de som triste. Pois esta divindade ainda

está voltada contra mim.

CORO:

Lançarei sim também este lamento,

(honrando os sofrimentos do povo (versos corrompidos) 945

e o fardo que se abateu sobre o mar, )

pela cidade, pela descendência que chora.

Gritarei, gritarei

um gemido abundante em lágrimas.

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196

XERXES:

(Estrofe )

O jônico tomava sua parte, 950

o jônico munido de naus,

Ares, que favoreceu o outro lado,

ao devastar a planície sombria

e a margem desafortunada.

CORO:

Oioioî grita e informa tudo. 955

Onde está a outra multidão de amigos?

Onde estão os teus companheiros,

tais como eram Farandaces,

Susas, Pélagon e Dátamas, e ainda

Psámis e Suciscanes, 960

que deixou Ecbátana?

XERXES:

(Antístrofe )

Perdidos, deixava-os

enquanto saiam de uma nau tíria,

errando contra as margens

de Salamina, colidindo 965

contra as duras margens.

CORO:

Oioioî, grita, onde, segundo tua pessoa, estão Farnuco

e o nobre Ariomardo?

E onde está o rei Senalces

ou o bem nascido Lilaio, 970

Mênfis, Táribis e Masistras,

e ainda Artembares e Histaichmas?

Estas coisa te interroguei.

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197

XERXES:

(Estrofe )

Ió, ió de mim;

ao contemplarem a muito antiga 975

Atenas, odiosa, todos, num só golpe de remos,

ehé, ehé, se debatem, miseráveis, sobre o solo.

CORO:

E onde o mais fino dos persas,

o teu olho mais fiel,

recenseador de dez mil, dez mil, 980

[........], o filho mais doce

de Batanoco,

filho de Sésames, filho de Megabates,

e Parto e o grande Oibares

tu abandonaste, abandonaste?

Ó ó dos infelizes. 985

Para ilustres persas, falas males após males.

XERXES:

(Antístrofe )

Gritos, sim, para mim,

elevas pelos nobres companheiros,

dizendo incessantes incessantes males muito odiosos. 990

O coração grita, grita no interior do meu corpo.

CORO:

E, assim, estamos saudosos dos outros,

Mardos, o chefe de inumeráveis homens,

Xantes e Âncares, o ário,

e ainda Diaixis e Arsakes, 995

reis da cavalaria,

Kendadates, Lythimnes

e Tolmo, insaciável de lanças.

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198

Espantei-me, espantei-me

por eles não seguirem atrás, em meio às tendas 1000

arrastadas por rodas.

XERXES:

(Estrofe )

Pois certamente se foram aqueles guias do exército.

CORO:

Foram-se, oí, anônimos.

XERXES:

Iè ié, iò ió.

CORO:

Iò ió divindades, 1005

como estabelecestes o mal que desesperançado

brilha! Como a Áte lança o olhar!

XERXES:

(Antístrofe )

Fomos atingidos, oí, pelo destino que perpassa a vida –

CORO:

Fomos atingidos; é, pois, bem manifesto –

XERXES:

Por nova, nova, calamidade, calamidade. 1010

CORO:

Após encontrar marinheiros da Jônia,

não houve destino agradável.

Assim, infeliz na guerra é a raça dos persas.

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199

XERXES:

(Estrofe )

E como não? De tão numeroso exército,

fui ao encontro, desgraçado de mim. 1015

CORO:

Mas o que não foi arruinado dos persas, ó homem da grande perdição?

XERXES:

Vês isto que restou de minhas vestes?

CORO:

Vejo, vejo.

XERXES:

E esta aljava? – 1020

CORO:

Por que tu dizes que a conservaste?

XERXES:

... depósito para os dardos?

CORO:

Certamente pouco em oposição ao muito de outrora.

XERXES:

Fomos privados de defensores.

CORO:

O povo da Jônia não foge das lanças. 1025

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200

XERXES:

(Antístrofe )

É muito belicoso; e assim vi

por completo uma calamidade sem esperança.

CORO:

Falas da multidão provida de naus que se afastou?

XERXES:

Rasguei meu plepo diante do advento do mal. 1030

CORO:

Papaî papaî.

XERXES:

E mais do que papaî, certamente.

CORO:

Pois duplos são, e triplos –

XERXES:

Tristes; e motivo de alegria para os inimigos.

CORO:

E, sim, o poderio foi mutilado. 1035

XERXES:

Estou desprovido de condutores.

CORO:

De amigos, por causa da perdição marítima.

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201

XERXES:

(Estrofe )

Chora, chora a desgraça; e vai para as moradas.

CORO:

Aiaî, aiaî, calamidade, calamidade.

XERXES:

Grita agora me devolvendo o som. 1040

CORO:

Doação má para males de males.

XERXES:

Manda um grito, colocando junto melodia.

CORO:

Ototototoî;

Sim, é grave esta desgraça;

oî, também sofro muito isto. 1045

XERXES:

(Antístrofe )

Move-te, move-te no ritmo dos remos e geme para o meu prazer.

CORO:

Lacrimejo estando a gemer.

XERXES:

Grita agora me devolvendo o som.

CORO:

Pode-se cuidar disso, senhor.

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202

XERXES:

Eleva agora gemidos. 1050

CORO:

Ototototoî;

e estará misturado a eles um sombrio,

oi, golpe choroso.

XERXES:

(Estrofe )

E bate no peito e eleva aos gritos o canto Mísio.

CORO:

Agonia, agonia. 1055

XERXES:

E arranca para mim os brancos pelos de tua barba.

CORO:

Com força, força, muitos os gemidos.

XERXES:

Solta grito agudo.

CORO:

Também isto farei.

XERXES:

(Antístrofe )

E o peplo sinuoso rasgue com o vigor das mãos. 1060

CORO:

Agonia, agonia.

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XERXES:

Também arranca o cabelo e apieda-te do exército.

CORO:

Com força, força, muitos os gemidos.

XERXES:

E lacrimeja ambos os olhos.

CORO:

Molho-os para ti. 1065

XERXES:

(Epodo)

Grita agora me devolvendo o som.

CORO:

Oioî, oioî.

XERXES:

Gemente, vai para as moradas.

CORO:

Iò, ió; terra persa de marcha difícil. 1070

XERXES:

Ioà, assim, através da cidade.

CORO:

Ioà, então, sim, sim.

XERXES:

Gemei em marcha delicada.

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CORO:

Iò, ió; terra persa de marcha difícil.

XERXES:

Eè, eé, em três fileiras de remos, 1075

CORO:

Eè, eé, nas barcas que foram aniquilados.

XERXES:

Envia-me agora para a morada.

CORO:

Escoltar-te-ei, pois, com lastimosos gemidos.

FIM

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11- CONCLUSÃO

Pode-se dizer que em Persas há dois planos de ação trágica. O primeiro diz respeito às

narrativas passadas que são expressas pelos personagens em cena, sendo o tempo do

acontecimento a batalha de Salamina, que é, sobretudo, apresentado ao receptor do teatro pelo

relato do mensageiro no primeiro episódio (o coro, no párodo, e o fantasma de Dario, no

terceiro episódio, também desempenham importante papel narrativo). Os agentes trágicos

desse momento são o exército persa e seu rei Xerxes. O segundo plano encontra-se na própria

ação presente dos personagens, que sofrem diante dos fatos esclarecidos pela participação do

mensageiro. Os personagens trágicos são logicamente aqueles que agem em cena: o coro de

anciãos, a rainha Atossa, o próprio mensageiro, o Fantasma de Dario e Xerxes. Sendo a figura

trágica que aparece nesses dois planos da tragédia, Xerxes pode, por isso, ser considerado o

foco por onde todo o trágico perpassa. Ele encontra-se inserido no embate entre gregos e persas

que caracteriza genericamente toda a tragédia, formando uma série de oposições trágicas que

são construídas para o receptor pelo discurso contruído por Ésquilo.

Constatou-se que esse discurso esquiliano de Persas é permeado a todo o momento por

uma linguagem figurada que enfatiza as oposições trágicas inerentes à tragédia como gênero.

No embate trágico entre gregos e persas, tal oposição é produzida alternadamente por cada um

dos lados da disputa, mais comumente por meio da narrativa expressa pelos personagens, uma

vez que a peça estudada se caracteriza por uma ação reduzida. O coro de anciãos, durante o

Párodo, momento em que ainda desconhece o desfecho da batalha, emite muitos enunciados

metafóricos acerca de uma oposição que parte dos persas para ir de encontro aos gregos,

sobretudo no grande catálogo de chefes e povos bárbaros. Ao enaltecer a força do exército

persa e a grandeza de seu rei, o seu momento na ação possibilita um discurso com essa feição,

mesmo que a presença de uma apreensão constante possibilite também o surgimento de

enunciados metafóricos que geram uma oposição aos persas e, consequentemente, ao seu rei

Xerxes, como é o caso do enunciado formado em torno da (vv. 97 e 98). Com a entrada

do mensageiro no primeiro episódio, surge definitivamente a verdade com o relato

pormenorizado dos fatos que levaram os persas à morte devido à derrota na Batalha de

Salamina, e, assim, começam a ser mais freqüentes os enunciados metafóricos que enfatizam

uma oposição que parte dos gregos para ir de encontro aos persas. Contudo, como todos os

personagens dessa tragédia são persas e, por isso mesmo, os sofredores dos eventos

desenvolvidos no enredo, é importante frisar que o trágico se legitima por meio deles, fazendo

com que mesmo suas ações contra os gregos sejam a um só tempo oposições contra eles

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mesmos, já que o resultado dos seus atos de oposição lhe geraram a derrota na batalha naval115

.

A presença da imagem do jugo que representa, em um de seus muitos enunciados metafóricos,

uma tentativa de escravizar os gregos (vv. 49-50) é uma construção desse tipo, pois essa

tentativa de escravização se apresenta como um enunciado de oposição aos gregos que é, em

um plano implícito, uma oposição também aos persas, uma vez que tal tentativa lhes causa a

perdição. Da mesma maneira, o ato de Xerxes de colocar uma ponte de botes sobre o

helesponto, ação que se mostra expressa, em um dos enunciados metafóricos da peça, como um

jugo lançado em torno do pescoço do mar (vv. 71 e 72), é, ao mesmo tempo, uma ação que se

opõe aos gregos (e também aos deuses) e ao próprio Xerxes (e, assim, aos persas), já que tal

atitude fez com que a fúria dos deuses se voltasse contra ele. Devido a construções desse tipo,

constatou-se que, de fato, a imagem do jugo serve aos mais importantes enunciados

metafóricos da peça, tendo em vista seu significado de oposição para o desenvolvimento

necessário ao enredo.

As metáforas consideradas trágicas foram aquelas que determinam oposições, prejuízos

para um dos lados da disputa entre gregos e persas ou ainda sofrimento para os personagens em

cena. O número de metáforas trágicas levantadas é bem extenso, devido à importância do

enredo de enfatizar a todo o momento os embates trágicos. Dentre as metáforas consideradas

não trágicas, pode-se citar, por exemplo, a que estabelece o cuidado dos anciãos para com sua

cidade, que se autodenominam éforos no início da tragédia (v. 7), e ainda as que determinam o

alívio de Atossa ao saber que o filho encontrava-se vivo, que são construídas por meio de

elementos luminosos (vv. 300 e 301).

Diante do extenso número de metáforas trágicas analisadas, notou-se que uma mesma

imagem evocada pode servir à construção de vários enunciados metafóricos, como é o caso da

imagem do jugo associado à idéia de opressão, ou ainda a imagem da flor. No âmbito desta

última, alías, impressionou o fato de existir um número tão extenso de enunciados metafóricos

formados por imagens da natureza, tanto as que se utilizam do âmbito animal quanto as que

fazem referência à vegetação.

O método de análise das metáforas a partir das imagens evocadas pelo autor teve uma

influência significativa na tradução de Persas estabelecida nesta pesquisa. Percebeu-se como

válida a proposta de se respeitar às imagens criadas por Ésquilo no discurso literário da peça, e,

115 Poder-se-ia notar nessa ação elementos que dizem respeito à definição de peripécia de Aristóteles:

(...), “Peripécia” é a mutação dos sucessos no contrário. ARISTÓTELES. Poética. Trad. do grego por Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica,

1993. Os persas, desejosos pela destruição dos gregos, acabaram por gerar a sua própria desgraça, havendo,

portanto, a transformação de suas ações em seu contrário.

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consequentemente, os enunciados metafóricos construídos, uma vez que instruem o leitor

moderno ao próprio conhecimento do mundo da Antiguidade sem ocasionar uma perda

semântica que causaria o risco de não se apreender a fundo os ricos significados que o autor

pretendia levar ao seu receptor.

Um problema insolúvel se encontra nos enunciados metafóricos cujos significados não

podem ser completamente apreendidos modernamente, o que faz restar apenas hipóteses, por

mais interessantes e originais que sejam. Tal problema de compreensão pode possuir causas

mútiplas, ou foi causado por uma passagem fragmentária que compromete o sentido do todo,

ou por algum verso corrupto que prejudica o sentido original do autor, ou ainda foi causado,

simplesmente, porque o sentido de algum conceito apresentado por um autor do século V a.C.

se torna, às vezes, muito difícil de ser apreendido pelo receptor moderno, diante da distância

temporal que separa esses dois agentes da comunicação. Muitas vezes, mesmo essas causas são

hipotéticas. Um exemplo disso é o que ocorre com o enunciado metafórico formado em torno

do verbo , latir (v. 13) que foi extensamente discutido no subtópico 5.1.1 do capítulo 5.

No capítulo 7, ocorrem também alguns enunciados metafóricos de difícil apreensão semântica,

mais precisamente, os que dizem respeito ao órgão da visão. O desconhecimento do significado

dos enunciados metafóricos formados permitiu, nesse capítulo, algumas digressões acerca da

diferença entre a metáfora, a metonímia e o enigma, uma vez que a não compreensão gera, ao

mesmo tempo, certa dúvida quanto à própria construção discursiva. Deve-se frisar que o não

pleno conhecimento do significado não implica uma ausência de significado, pelo contrário, o

que se forma ao receptor moderno é uma pluralidade de possibilidades que apenas motiva

helenistas a buscar o sentido original do texto, além de uma possibilidade de tradução que seja

apreensível para um grupo amplo de indivíduos interessados na cultura clássica.

O resultado final da tese define-se na tradução apresentada da tragédia Persas. O ato de

traduzir, resgatando-se as imagens evocadas do passado no qual o autor viveu, acabou por

estabelecer uma verdadeira técnica de tradução, baseada em uma tentativa de manutenção

dessas imagens, que são utilizadas para instruir o receptor moderno. No caso das palavras

compostas, por exemplo, que não têm uma correspondência com o português, optou-se por

uma tradução que mantém os semantemas inseridos na palavra, ou seja, optou-se por traduzir

tais palavras como expressões.

Por fim, é importante dizer que os enunciados metafóricos analisados na presente tese

são atos, de certa maneira simples por sua evocação do cotidiano político do homem helênico,

presentes no contexto literário (enunciados metafóricos de ação) ou de estados apresentados

(enunciados metafóricos nominais). Lançou-se no decorrer da investigação o conceito de

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macro-ato, mas o mesmo não foi desenvolvido profundamente no corpus. Intenta-se

empreender futuramente um estudo que abarque também a metáfora literária esquiliana em

planos mais abrangentes de percepção. Todo o sonho de Atossa (vv. 181-210), com o

simbolismo que lhe é inerente, poderia ser pensado como uma grande metáfora. Havendo,

portanto, graus metafóricos baseados no tamanho dos enunciados, a própria tragédia Persas,

como um todo, poderia também ser percebida como uma imensa metáfora.

Se for correto o belo provérbio grego que diz que pelo fruto conhece-se a árvore116

,

começar pelos atos singulares curtos provenientes da vida íntima dos gregos (o fruto) é a

melhor maneira de, posteriormente, compreender o todo da tragédia Persas (a árvore), em toda

a sua pluralidade de significados.

116 Pelo fruto, conheço a árvore.

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