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histórias e políticas de uma paisagem. Estudo sobre a rua Riachuelo, Curitiba-PR Brasil
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AS MUITAS VISTAS DE UMA RUAhistrias e polticas de uma paisagem
Curitiba e a Rua Riachuelo
Aline Fonseca Iubel
Dayana Zdebsky de Cordova
Fabiano Stoiev
AS MUITAS VISTAS DE UMA RUAhistrias e polticas de uma paisagem
Curitiba e a Rua Riachuelo
Incentivo: Realizao:
Direitos reservados :
Editora e Gestora CulturalRua Virgnia Dalabona, 352 sob 6 - Orleans - CEP 82310-390Curitiba - Pr - BrasilFone: 41 - 84061935
E-mail: [email protected]
Home Page: www.editoramaquinadeescrever.com.br
C928 Cordova, Dayana Zdebsky As muitas vistas de uma rua: histrias e polticas de uma paisagem - Curitiba e a Rua Riachuelo / Aline Fonseca Iubel, Dayana Zdebsky de Cordova, Fabiano Stoiev; fotografias de Leco de Souza.___ Curitiba: Mquina de Escrever, 2014. 160 p. : Il.; 20 x 20 cm
ISBN: 978.85.65269.22.3
1. Antropologia. 2. Paisagem Curitiba. 3. Patrimnio Cultural Curitiba. 4. Rua Riachuelo Histria Curitiba. 5. Urbanismo Curitiba. I. Souza, Leco de. II. Stoiev, Fabiano. III. Iubel, Aline Fonseca. IV Ttulo.
CDD (22 ed.):981.621
Filomena N. Hammerschmidt CRB9/850
Este livro est disponvel para download gratuito em:
www.editoramaquinadeescrever.com.br
Para aqueles que pela Riachuelo passam
e aqueles que nela ficam;
aqueles que ali trabalham
e aqueles que nela residem;
para os populares, os que perderam seu lugar
e os que transgridem;
enfim, para todos que fizeram e/ou fazem
da Riachuelo uma rua de todo mundo.
Para Joana Corona (in memorian).
Agradecimentos
Equipe Caixa Cultural Curitiba | Simone Spitz, Terezinha Czarnik, Fundao Cultural
de Curitiba | Marcelo Sutil, Casa da Memria | Ana Lcia Ciffoni, Carla Choma, Mauro
Magnabosco e Ariel Stele, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC)
| Aymor ndio do Brasil, Secretaria do Estado da Cultura | Omar Akel, Prefeitura Municipal
de Curitiba | Tatiana Takatuzi, Museu Paranaense | Henrique Paulo Schmidlin (Vitamina)
| Carmem Costa e Leci Cabral, Grupo Liberdade | Valderes Bello e Aparecida de Ftima
Nogarolli (Sebrae) | Halim Drgham e Maria de Ftima Maneira Drgham, Loja Marcinho
| Sandra e Otlia Nicolati Hil (in memorian), Casa Hil | Chain Jaber Makhoul, Moda
Marian | Cristianne, Dona Alair e Neto Turbay Braga, Farmcia Homeoptica Paranaense
| Sheila Maria, Cine Lid II | Sirlene, Graxaim | Neide Ribas Matter, Osvaldo Matter Filho,
Desire, Alfaiataria Riachuelo | mveis novos e/ou usados A Arca, Aquarela, Alvorada,
Atrativa, Avano, Boogiganga Shopping, Brex, DCastro, DLucca, Gepetto, A Moblia,
Monalisa, Nova Prata, Papai Noel, Ponta de Estoque, Rosana, Laj, Usado Brasileiro | Vest
Bem | New Prints Graphic Service | Bicicletaria Cultural | Bruno, Isabella, Leonardo, Vera,
Juliano e Jaques Brand (moradores) | Barba | Mrcia, joalheria Heisler | Maria Lopes, Jeito
Mineiro | Jos Carlos Fernandes | Giceli Portela | Eliziane Capeleti | Rafael Moro Martins
| Fabiana Moro Martins | Bicicletaria Cultural | Confeitaria Blumenau | Carolina Fileno |
Bruno Fernandes Luiz, Evelim Wroblewski e Cibele Zdebsky | Leco de Souza | Giulio Pascoli
| Joo Bosco Oliveira Borges | Juliana Cristina Reinhardt e Victor Augustus Graciotto Silva,
Mquina de Escrever | Geraldo Andrello e Piero Leirner, Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social da Universidade Federal de So Carlos (PPGAS/UFSCar) | Professores |
Famlias | Amores
Ficha Tcnica
Aline Iubel, Dayana Zdebsky, Fabiano Stoiev (pesquisa/autoria) | Giceli Portela (pesquisa
arquitetnica) | Leco de Souza (fotografia e pesquisa imagtica) | Aline Iubel e Dayana
Zdebsky (edio de imagens) | Carolina Fileno (assistente de pesquisa) | Joana Corona e
Dayana Zdebsky (produo) | Bruno Fernandes Luiz, Evelim Wroblewski e Cibele Zdebsky
(transcrio de entrevistas) | Anaterra Viana (assessoria de imprensa) | Regina Maria
Schimmelpfeng de Souza (reviso de texto e contedo) | Gislaine Fernandes de Paula
(reviso de texto) | Rafael Kloss (projeto grfico) | Juliana Cristina Reinhardt (edio) |
Victor Augustus Graciotto Silva (edio e produo grfica) | Meio-Fio (realizao)
Sumrio
UMA PAISAGEM, MUITAS VISTAS ...........................................................................16
PARTE 1 : RETRATOS DE UMA PAISAGEM .............................................................24
Captulo 1: Ascenso: o endereo da modernidade ...................................................26
Captulo 2: A queda? Novos tempos, outros planos ..................................................45
Captulo 3: Uma rua mal falada: retricas de perdas e violncia .............................51
PARTE 2: IMPRESSES DA PAISAGEM ....................................................................66
Captulo 4: Pequena repblica srio-libanesa .........................................................68
Captulo 5: A cara da rua: usados e populares ............................................................77
Captulo 6: Olhares arquitetnicos: uma rua, muitos estilos ...................................90
Captulo 7: Caminhando pela Riachuelo ..................................................................105
QUANTOS ERRES CABEM EM UMA RUA?
Revitalizaes, requalificaes, restauraes e reformas ......................................136
Referncias ....................................................................................................................153
16
UMA PAISAGEM, MUITAS VISTAS
Ruas nos fornecem trajetos, mas elas tm suas prprias trajetrias, suas histrias.
A Rua Riachuelo, uma das mais antigas de Curitiba e localizada no corao desta cidade,
viveu diversos momentos: de glria e fervor comercial e poltico; de declnio, deteriorao
e esquecimento, de degradao. Sua histria remonta pelo menos at os anos 1820-1830,
quando passa a aparecer nas atas da Cmara Municipal, sob a alcunha de Rua Lisboa ou
Rua dos Lisboas1. J foi chamada tambm de Rua dos Veados, Rua do Campo e Rua da Ca-
rioca, tendo ganhado seu atual nome, Rua Riachuelo, em 1871, uma homenagem batalha
da Guerra do Paraguai.
H quem diga que a Riachuelo sempre teve vocao para o comrcio, embora
tenha sido tambm o endereo de oficinas, pequenas indstrias e residncias de famlias
influentes, sobretudo de imigrantes. Aquelas poucas quadras, que ligavam o ento Mer-
cado Municipal (situado na atual Praa Generoso Marques) ao Largo da Carioca da Cruz
(atual Praa 19 de Dezembro), estavam muito bem localizadas em relao aos outros espa-
os que iam surgindo na cidade. A Riachuelo tornou-se quase passagem obrigatria para
1 O pesquisador Edilberto Trevisan levanta a hiptese de o nome estar ligado a antigos moradores da rua, como o ervateiro Antonio Jos Costa Lisboa e Igncio Velloso Lisboa. Rua dos Veados seria um nome anterior, reminiscncia do antigo caminho que levava imensa vrzea do Rio Belm e sua fauna. As outras denominaes, como Carioca do Campo, Rua da Carioca ou Carioca da Cruz so referncias presena de uma fonte de gua onde hoje est a Praa 19 de Dezembro (TREVISAN, 2000, p.138).
17
quem se deslocava do centro ao Passeio Pblico, inaugurado em 1886. No ano seguinte,
uma linha do bonde vai ligar intimamente a rua importante Estao Ferroviria e aos
seus caminhos de ferro. Com isso, surgem novas construes e estabelecimentos comer-
ciais na Riachuelo que, na virada do sculo, contava com um variado sortimento de lojas
de calados, botequins, armarinhos, farmcias, livrarias, barbearias, aougues e casas de
secos e molhados.
Ruas so e no so todas iguais. Se, por um lado, elas so apresentadas como
pequenas linhas no labirinto indiferente de um mapa urbano, por outro, cada rua tem seus
prprios fios de lembranas e esquecimentos, que se ligam ao emaranhado das memrias
que compem as cidades. H uma dimenso das ruas que se faz nelas mesmas, cotidia-
namente, pelas prticas e representaes de seus transeuntes, moradores, comerciantes,
curiosos e distrados. Porm, s vezes, as ruas tm parte de suas vidas decididas em gabine-
tes distantes ou nos riscos precisos de uma prancheta, por polticos ou tcnicos, que nada
tm a ver com elas, ou que estabelecem relaes institucionais e oficiais com as mesmas. H
momentos, nas trajetrias das ruas, em que as conexes entre as dimenses, a institucional
e a que vivida cotidianamente, ficam mais evidentes, como nas revitalizaes. Nesses
encontros so acionados conceitos, ideias, imaginrios, discursos e falas, muitas vezes
conflituosos. Em se tratando da luta pela construo de memrias das cidades, projetos
de revitalizao e reforma quase sempre acionam tambm debates sobre patrimnio, nos
quais so marcadas posies e disputados saberes e poderes.
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Este livro parte desse emaranhado. Porm, antes de ser de patrimnio cultural,
escrevemos aqui sobre patrimnio cultural. No se trata de um trabalho de defesa da Rua
Riachuelo enquanto patrimnio, mas de uma reflexo sobre os discursos (formais e infor-
mais) em torno dela, explicitados em um momento de revitalizao da mesma, que esto
atrelados ideia de patrimonializao. Conforme proposto no projeto que viabilizou o
presente trabalho, interessa aqui pensar a Riachuelo no em termos de suas unidades edi-
ficadas, mas enquanto paisagem cultural que formada por unidades edificadas, pessoas,
discursos, intervenes e polticas pblicas e de urbanizao ao longo de sua existncia2.
E por que acionamos, ento, a noo de paisagem? Justamente porque se trata de
pensar a cidade para alm de suas edificaes, ruas e de outros aspectos materiais, soman-
do noo de patrimnio, dimenses simblicas de diferentes apropriaes e perspectivas
do espao urbano. Assim, lidaremos tanto com a prpria materialidade da rua quanto com
as imagens que se tem dela.
Paisagem remonta ainda a um sentido sensorial da experincia, to bem retrata-
do por Tim Ingold:
Suponha, por exemplo, que voc est caminhando ao longo de uma rua na cidade, ou atravs de um vale em uma regio rural. As su-perfcies que voc pode ver as fachadas dos edifcios no primeiro
2 Para maiores informaes a respeito de nossa perspectiva em torno da noo de paisa-gem atrelada ao patrimnio, ver CORDOVA; IUBEL; SOUZA; STOIEV. Pelos trilhos: paisagens ferrovirias de Curitiba. Curitiba: Fundao Cultural de Curitiba, 2010.
19
caso, ou o cho subindo em ambos os lados no outro formam uma vista. Como explica Gibson, a vista um semi invlucro, um conjunto de superfcies no ocultadas, que so vistas a partir de um aqui, com a condio de que este aqui no um ponto [es-pecfico], mas uma regio alargada (GIBSON 1979, p. 198). Mas agora, quando voc virar a esquina adentrando outra rua, ou atin-gir as bordas no cume do vale, um novo conjunto de superfcies, previamente escondidas, se somar vista, enquanto o conjunto da primeira vista desaparecer da sua viso. A passagem de uma vista para outra, durante a qual a primeira gradualmente obliterada enquanto a segunda abre-se, constitui uma transio. Assim, viajar de um lugar para outro envolve a abertura e o fechamento de vistas, em uma ordem particular, atravs de sries contnuas de transies reversveis. atravs destes ordenamentos de vistas, afirma Gibson, que a estrutura do ambiente progressivamente revelada ao obser-vador em movimento, de tal modo que ele ou ela possa, eventual-mente, perceb-la de todos os lugares ao mesmo tempo. (INGOLD, 2000, p. 238, grifos do autor, traduo livre).
Assim, impossvel que o contedo apresentado neste livro no seja composto de
pedaos das trajetrias e trajetos de uma rua especfica, a Riachuelo. Tentaremos narrar di-
versos movimentos de rgos oficiais (como Prefeitura, IPPUC, Sebrae, Fecomrcio...), de
comerciantes, de proprietrios, de moradores (antigos e atuais) e de frequentadores. Trata-
se de mostrar, ainda que parcialmente, as dinmicas entre pessoas, instituies, lugares e
tempos. Afinal, neste exato momento em que o caro leitor tem o livro em suas mos, esses
atores continuam a se movimentar. Alm disso, perspectivas so sempre parciais porque os
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lugares, ou as vistas, que se tem da rua so diversas. Pessoas e instituies olham para a rua
de lugares especficos, s vezes de dentro de suas lojas, das janelas de seus apartamentos, do
caf da esquina, da praa; s vezes de fora da rua, em escritrios e arquivos distantes. Nesse
jogo de vistas, ns, pesquisadores, empreendemos mais uma experincia da Riachuelo.
Uma experincia que inclui caminhar e ouvir diversas vozes muitas vezes dissonantes.
Assim, construmos mais uma vista de uma paisagem, que no nica e muito menos
definitiva.
A proposta de seguir mltiplas perspectivas, discursos e imaginrios sobre um
determinado lugar no tarefa fcil em nenhuma circunstncia. Essa proposta fica ainda
mais estonteante quando o nmero de atores envolvidos, as pontas e os ns dos fios dessa
meada so inmeros e sombreados por lugares de forte apelo simblico de uma cidade. As-
sumimos o risco. Inmeras verses contraditrias e s vezes incompatveis foram ouvidas
pelos pesquisadores que tentaram construir uma narrativa plural sobre a rua. Uma tentati-
va que pareceu muitas vezes insana. A ideia do presente livro no fornecer ao leitor uma
perspectiva especializada e verdadeira sobre a rua, mas tentar lan-lo ao trnsito catico
das diferentes falas e vistas sobre a Riachuelo, capazes de relativizar e de desconstruir umas
s outras. Essas falas e vistas partem de diferentes grupos tnicos e classes sociais, atores de
diversas atividades, comerciais ou no, de uma rua que insiste em escapar aos contornos
que lhe so impostos, em no aceitar passivamente seus processos de revitalizao, em no
ceder capacidade urbanstica dos dirigentes da sua cidade-contexto. Uma rua indomvel,
21
rebelde, para a qual no cai bem a tentativa de uma leitura homogeneizante daqueles que
pretendem intervir nela ou coloc-la nas caixinhas classificatrias das polticas pblicas.
Recentemente, os muitos discursos relacionados aos diferentes interesses de pre-
servao e revitalizao da Riachuelo somaram-se, da parte de alguns atores, ao esforo de
potencializ-la economicamente e sofistic-la, devolvendo-a, assim, aos cidados de bem.
A despeito das boas intenes, algumas aes se assemelham s prticas de outrora que
revitalizaram o Setor Histrico, mas tornaram a Rua Riachuelo, e outras vias do entorno,
redutos de prticas ilcitas, lugares violentos e perigosos. Hoje, alm dos atributos
que o tempo proporcionou sua arquitetura e prticas comerciais, esse discurso da vio-
lncia e do perigo que tem justificado as intervenes na rua. E, de modo semelhante s
dcadas 1970 e 1980, essas novas intervenes na Riachuelo e em outros logradouros esto
marginalizando (ou potencializando marginalizaes de) ruas como a Alfredo Bufren, a
Presidente Farias e arredores. Ou seja, eleger lugares para revitalizao tambm lanar
para suas margens imediatas os sujeitos tidos como indesejveis: usurios de drogas, pros-
titutas, pobres...
Por vezes, o ideal de construo de um lugar plural, onde diferentes grupos so-
ciais possam conviver, se apresentou nas falas dos atores envolvidos na revitalizao da
Riachuelo. Mas, tambm, surgiram nestes discursos conceitos relacionados retirada ou
expulso de parte daqueles que ento frequentavam o espao. Tememos que, em nossas pr-
ticas de urbanizao e outras produes das cidades, no consigamos dissociar as ideias de
22
pobreza, comrcio popular, violncia, prostituio. Sem sofisticar o comrcio da Riachuelo,
no seria possvel atrair, na perspectiva de muitos, outros ocupantes que no aqueles que l
esto. como se essa sofisticao fosse incompatvel com a presena de populares na rua,
invertendo certa lgica do olhar: o que era visto como sombrio e perigoso, para os mais
abastados economicamente, passa a carregar sinais de no pertencimento/distanciamento
para aqueles que outrora viviam nesses lugares. Nesse sentido, revitalizar a Riachuelo sig-
nificou, em boa medida, tirar aqueles que l estavam e substitu-los por outros. Assim, a
convivncia de grupos sociais em um espao pblico no algo to certo quanto se pode
imaginar, no em uma sociedade segregacionista e produtora de desigualdades econmicas
e sociais como a nossa. preciso pensar, constantemente, em como constituir um espao
pblico enquanto um lugar onde o encontro com os outros e a convivncia entre pessoas
diferentes - em mltiplos sentidos - seja possvel.
***
Gostaramos de chamar a ateno do leitor que os conceitos e ideias que traba-
lhamos neste livro, e que incidem sobre a Rua Riachuelo, tais como degradao, requalifi-
cao, vocao, resgate, recuperao, sofisticao ou mesmo popular, bem como as retricas
de perda e violncia em torno da rua, no coincidem com nossas crenas ou perspectivas,
enquanto autores. Tais categorias, construdas por diferentes atores envolvidos nos recentes
processos de transformao da Riachuelo, operam na revitalizao da rua, enquanto ideias
e conceitos agenciadores e legitimadores de uma srie de prticas. Nosso esforo no pre-
23
sente livro , duvidando destas categorias, demostrar ou dar pistas de sua existncia como
algo construdo/produzido por atores especficos, com interesses especficos. Interessa-nos
tambm trazer ao leitor a forma que tais categorias operam. Para tanto, chamamos ao nos-
so texto diferentes vistas que incidem sobre a paisagem Riachuelo. Se existem no contexto
em que estudamos redes discursivas nas quais diversas narrativas e aes se entrecruzam,
criando discursividades mltiplas, por vezes conflitantes e que competem entre si pela
verso mais acertada sobre fatos, leituras e entendimentos da realidade (MELO, 2012, p.
19), no desejamos disputar com elas, mas colocar suas certezas em questo. Pois, como
bem colocou Tim Ingold (apud SCHEINSOHN, 2014), em uma entrevista recentemente
publicada no Brasil, a antropologia trabalha para colocar todas as certezas em questo.
PARTE 1
RETRATOS DE UMA PAISAGEM
25
A Riachuelo no incio do sculo XX. Fonte: Museu Paranaense. Postal editado por Cezar Schulz.
26
Captulo 1
Ascenso: o endereo da modernidade
O caminho colonial
Fundada em meados do sculo XVII, a vila de Curitiba representou a afirmao
da autoridade portuguesa sobre grupos de colonos que existiam dispersos na regio. O
pesquisador Edilberto Trevisan (1996) defende a tese da existncia de um planejamento
prvio na ocupao do arraial. O largo central (atual Praa Tiradentes), o seu direciona-
mento, as suas dimenses e suas propores seriam indcios de que os primeiros habitantes
aplicaram, na organizao da urbe, prticas encontradas em outras vilas vicentinas e que
seguiriam princpios presentes nas Ordenaes Filipinas3. No entanto, o crescimento da
vila, para alm do permetro inicial do Largo da Igreja Matriz, parece no ter seguido
mais esses princpios ordenadores, obrigando o Ouvidor Geral Raphael Pires Pardinho,
3 Segundo Trevisan (1996, p. 32), pondervel acreditar terem sido demarcadas as qua-tro linhas do logradouro, fronteiras duas a duas, em forma quadrangular, na proporo de 2 por 3, posicionadas de norte a sul e de leste a oeste, de acordo com os preceitos das leis da ndia.
27
em 1721, a propor uma srie de correes para solucionar o desregramento das moradias,
a ocupao catica do espao urbano e o desalinho das ruas.
Os provimentos do Ouvidor Pardinho buscavam restituir as concepes pre-
sentes na legislao do Reino, que se baseavam em uma ntida diviso entre o rural e o
urbano. Os lotes urbanos, dali por diante, s seriam concedidos mediante a autorizao
da Cmara Municipal e a construo das residncias seria no alinhamento da rua, sem
espaos entre elas, evitando o isolamento das casas. Como resultado, quadras fechadas
por paredes compactas, com quintais no centro. As ruas deveriam ter uma largura ade-
quada e, nesse quadro urbano, seus habitantes se ocupariam de atividades comerciais e
artesanais. Esse modelo urbano que segrega as atividades rurais, organizado a partir dos
ideais metropolitanos, muitas vezes se adaptava mal s condies econmicas e sociais das
regies coloniais, com maior permeabilidade entre o rural e o urbano. sua maneira, os
provimentos do Ouvidor Pardinho vo anunciar as tenses que se tornaram permanentes
entre as intenes ordenadoras dos poderes pblicos e as prticas dos diferentes grupos
sociais na organizao do espao urbano.
Em 1820, a vila de Curitiba ainda se reduzia a uma centena de casas coloniais e
poucas ruas, que convergiam para a Igreja Matriz e seu largo. Foi essa paisagem rural e bu-
clica que o naturalista e viajante francs August Saint-Hilaire (1995) conheceu no comeo
do sculo XIX, na comarca de Curitiba. Nas suas origens, a futura Rua Riachuelo era uma
das trilhas que ligava a vila de Curitiba aos caminhos da Serra do Mar. Por ela, seguiam em
28
direo do litoral, em tropas de mulas, viajantes, moradores e comerciantes, levando tou-
cinho, milho, feijo, trigo, fumo, carne seca e mate. A vila experimentava um crescimento
moroso. Aos poucos, porm, novos moradores vinham solicitar Cmara Municipal lotes
para a construo de suas residncias. Entre os lugares procurados, as margens daquela
estratgica trilha, o que provavelmente estimulou a sua demarcao e o arruamento inicial
entre os anos 1820-1830. A rua demarcava o limite leste do quadro urbano, e ficava entre
o Beco do Inferno (atual Tobias de Macedo) e a Rua do Fogo (atual So Francisco). No
dia 26 de junho de 1833, Antnio Jos de Meira solicitou para a Cmara Municipal, uma
carta de data de um terreno na Rua dos Lisboas, um dos primeiros nomes do logradouro
(BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1831-1832, p. 07). Seguindo o
caminho na direo norte, na rea do rocio, prxima ao Rio Belm, ficava uma das fontes
que abastecia os habitantes da vila, a Carioca do Campo ou Carioca da Cruz (atual Praa
19 de Dezembro). Em janeiro de 1831, o fiscal da Cmara de Curitiba pede providncias
para dotar essa fonte de obras necessrias (BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE
CURITYBA, 1833-1834, p. 101), o que revela a preocupao da autoridade local em atender
reivindicaes de um nmero crescente de moradores da regio. Nas casas simples de cho
batido e poucos mveis, mas j cobertas de telhas, os primeiros moradores daquela rua
podiam ser brancos, mulatos, negros ou mesmo indgenas; gente livre, escrava ou liberta;
agricultores, comerciantes ou artesos (marceneiros, carpinteiros, seleiros, alfaiates ou sa-
pateiros). Em uma sociedade escravista, marcada pela violncia de fortes clivagens sociais,
esses moradores compartilhavam, no entanto, a experincia de habitar na entrada de uma
pequena vila colonial, com a mesma curiosidade provinciana, atiada pela chegada de via-
jantes e forasteiros; na rua que margeava as reas pantanosas do Rio Belm, enfrentavam a
lama nos dias de chuva, a escurido absoluta nas noites sem luar, o coaxar dos sapos no cair
da tarde e o cheiro campesino das criaes de animais no rocio sempre muito prximo.
A rua provincial
A economia do mate despertou a vila dessa monotonia, obrigando o acanhado
rural da cidade a estabelecer novas ligaes com a economia-mundo. O processo de forma-
o de uma populao tipicamente urbana ainda mais acentuado com a transformao de
Curitiba na capital da Provncia do Paran, emancipada de So Paulo em 1853. Esses novos
arranjos polticos e econmicos se fazem sentir no aspecto populacional, na urbanizao
e na arquitetura (PEREIRA, 1996, p. 9-11). A Cmara de Curitiba contrata o engenhei-
ro Pierre Taulois, em 1857, para elaborar um estudo das principais deficincias urbanas
da cidade. A Rua da Carioca apresentava um alinhamento regular e largura apropriada,
com vinte e duas casas. Mas, como a maioria das vias da cidade, seu desenvolvimento no
obedeceu ao racionalismo de um plano urbano em grade, com as ruas em cruzamentos
de ngulos retos, a despeito das recomendaes presentes desde os tempos do Ouvidor
Pardinho. Pelo contrrio, a tendncia dos moradores era aproveitar, em parte, a topografia
do relevo. A Rua da Carioca procurava contornar os terrenos alagadios do Rio Belm, at
encontrar a ponte de passagem por esse rio e seguir a nordeste, em direo Estrada da
30
Marinha. Taulois vai propor medidas para alinhar as principais ruas da cidade, um novo
modelo das fachadas dos prdios e o calamento das ruas, mas o plano no vai sair do
papel por dificuldades financeiras da municipalidade.
O rol de melhorias era bastante tmido. A via recebia apenas aplicaes de ma-
cadame, que no resolviam o problema da poeira e da lama. O governo da provncia, em
1862, dotou a fonte de melhorias, erguendo ali um chafariz (BOLETIM CASA ROMRIO
MARTINS, 2006, p. 77), responsvel pelo abastecimento de gua das imediaes. Mas essa
timidez no trato urbano no impedia a expanso do comrcio varejista e do mercado de
servios urbanos. A presena de uma classe mdia urbana e letrada - representada pelos
pequenos e mdios burgueses, funcionrios pblicos e profissionais liberais - acompa-
nhada da circulao, pelas ruas da capital, do primeiro jornal da provncia, o Dezenove de
Dezembro. O peridico vai registrar a formao de uma opinio pblica (ou publicada), a
exigir, nas reclamaes desses novos habitantes da urbe, um projeto de desenvolvimento
urbano, de correo das ruas antigas, de controle da arquitetura privada e de constitui-
o de uma infraestrutura adequada (PEREIRA, 1996, p. 11). A presena desses grupos
sociais evidenciam uma outra percepo do fazer urbano. J no bastavam as iniciativas
das autoridades oitocentistas em separar o espao rural do urbano o primeiro, tendo as
fazendas como unidades centrais da economia colonial; o segundo, como espao de ativi-
dades econmicas complementares e de centralizao das autoridades polticas e religiosas.
A indstria ervateira transferia para o quadro urbano a dinmica central da acumulao
capitalista, com a implantao de seus engenhos de beneficiamento. Os novos habitantes
31
Chafariz da Praa 19 de Dezembro. Fonte: Museu Paranaense.
32
da cidade iam desatando seus laos com o mundo rural e exigiam a implantao de equi-
pamentos urbanos adequados ao exerccio de uma nova sociabilidade, como o calamento
das ruas com pedras.
Isso no se fazia, no entanto, sem percalos. Em um primeiro momento, para
evitar o lodaal formado no encontro das ruas, a municipalidade pavimentou apenas os
cruzamentos. Havia uma dessas cruzetas no encontro da Rua Direita (13 de Maio) com a
Carioca. Mas era uma medida controversa, pois, em dias de chuvas, as cruzetas impediam
o escoamento da gua. A opinio publicada de um dos moradores registra, com ironia,
a iniciativa da Cmara de fornecer lama tambm para o meio das quadras (PEREIRA,
1996, p. 111). S entre 1868 e 1871 a rua vai receber seu primeiro calamento em pedras
irregulares. Isso implicava em uma nova cultura no caminhar pela rua. A introduo do
meio fio, que aumentava a altura da calada em relao via, criava um passeio, reduzindo
o espao para a circulao dos pedestres, em comparao ao espao mais amplo, reservado
para a passagem dos animais e das carroas. Os pedestres, na travessia dos cruzamentos,
tinham agora que tomar cuidados, com seu caminho cortado pelas vias contnuas das
ruas, onde passam com rapidez os animais e veculos. A altura do p direito das edificaes
fora ampliada para 20 palmos (4,4 metros), segundo uma postura da Cmara Municipal
(PEREIRA, 1996, p. 120). O alto passava ento a ser o belo. Como os lotes eram doados
pela municipalidade, e no vendidos, as leis que determinavam sistemas construtivos de
maior custo se encarregavam de selecionar a vizinhana. Definitivamente, os pobres e suas
atividades de subsistncia deveriam se retirar para o rocio - e este no foi um caso isolado
33
de deslocamento seletivo que ocorreu em um passado remoto da rua: veremos, no decorrer
deste livro, que essa ao foi operada repetidas vezes, e muito recentemente, na atual Rua
Riachuelo.
Mas, sobrevivia nesses tempos da provncia muito das prticas de feitio colonial.
A partir de uma maquete exposta no Museu Paranaense, podemos imaginar aquele trecho
da paisagem urbana de Curitiba, representada pela Rua da Carioca, por volta de 1870. O
arruamento j havia alcanado toda a sua extenso atual. As casas, em geral trreas e de
fachadas coloniais, estavam alinhadas na via, como determinavam as posturas e a con-
cepo urbana da poca4. Mas o bloco de casas era compacto apenas nas quadras iniciais,
mais prximas ao ncleo original da vila. Avanando em direo Estrada da Marinha, as
casas iam ficando mais raras, aumentando os espaos vazios, at alcanar a fonte. Dali para
a frente era o rocio. No fundo dessas casas, os quintais compridos eram aproveitados para
a criao de pomares e hortas, animados pela presena de galinhas e porcos. A luz vinha
das velas e lamparinas das casas, a gua, dos poos ou da fonte prxima, onde criados
e criadas da vizinhana se reuniam no trabalho de pegar gua, lavar roupas e comentar
a vida dos patres5. Em algumas edificaes, comerciantes portugueses montaram seus
4 A concepo urbana, presente nos provimentos e correes do Ouvidor Pardinho, com pequenas adaptaes, foi incorporada pela legislao municipal de Curitiba, no sculo XIX, atravs dos seus cdigos de posturas (PEREIRA, 1996, p. 98).
5 Como registrou o Cel. Themstocles Paes de Souza Brazil, em suas recordaes de Curi-tiba, quando visitou a cidade por essa poca. Sua descrio sobre o movimento da fonte da Praa Zacarias, mas a imagem comum e pode ser transplantada para a fonte na Carioca de Cima. (BO-LETIM DO INSTITUTO HISTRICO, GEOGRFICO E ETNOGRFICO PARANAENSE, 1993, p. 146).
34
estabelecimentos de venda de fazendas, ferragens e secos e molhados (BOLETIM INFOR-
MATIVO DA CASA ROMRIO MARTINS, 1996, p. 53). Ganharam destaque ao anunciar,
no Dezenove de Dezembro, seus produtos: vinhos portugueses, queijo flamengo, mostarda
inglesa, conservas de Sevilha, charutos, manteiga, massas, cortes de cachemira, alpacas,
louas finas, tecidos de l, flanelas, perfumaria. Mas parece exagerado falar de uma vocao
comercial da rua j que ela acolhia, igualmente, tanto as casas comerciais, quanto as
residncias e oficinas.
Para escoar a produo do mate para a Bacia do Prata, a cidade precisava de vias
de ligao adequadas com o litoral. O caminho da Marinha ou da Graciosa foi o acesso
escolhido, com pequenas alteraes, para a implantao de uma estrada que permitisse a
passagem de carroas. A abertura da Estrada da Graciosa, a partir de 1870, vai consolidar a
Rua da Carioca como uma das principais portas de entrada da cidade, para quem vinha do
litoral. A Rua da Graciosa (atual Baro do Cerro Azul) levava o viajante direto para o Largo
da Matriz. Para quem quisesse evitar esse percurso, a Rua da Carioca era a alternativa, e
ligava-se a um complexo de outros caminhos importantes: seguindo a leste, se alcanava o
Caminho do Itupava. Atravessando a Rua das Flores e chegando Rua do Comrcio (atual
Marechal Deodoro) pela Travessa Leitner (atual Baro do Rio Branco), se tinha acesso
Estrada do Mato Grosso, para o interior da provncia, e ao sul, para So Jos dos Pinhais e
o caminho do Arraial (TREVISAN, 2000). No foi sem motivo que a comitiva que acom-
panhava D. Pedro II, em visita regio em 1880, acabou por escolher passar primeiro por
essa rua, para depois chegar ao largo da Igreja Nossa Senhora da Luz.
35
Um surto cvico de glorificao do Segundo Reinado parece ter atingido a Cma-
ra Municipal, que passa a alterar os nomes coloquiais dos logradouros. A Rua das Flores
se chamar Rua da Imperatriz, e a do Mercado, do Imperador. Em homenagem a uma das
principais batalhas da Guerra do Paraguai, a Rua da Carioca ser rebatizada Rua do Ria-
chuelo, em 1871. A cidade tambm far seus primeiros ensaios de iluminao pblica, com
lampies a leo fixados nas paredes das casas. Uma iluminao insuficiente e precria, que
no evitava as quedas dos transeuntes em buracos nas ruas e caladas: caminhar noite
ainda era uma aventura.
O aumento dos preos internacionais do mate levou boa parte da populao lo-
cal a se dedicar ao ouro verde, desestruturando a agricultura de subsistncia, sempre
incipiente. Da um dos fatores principais para as autoridades provinciais se preocuparem
com a vinda de imigrantes europeus e morigerados, alm de possibilitar o embranque-
cimento da populao, ao sabor das teorias raciais do perodo, esses imigrantes seriam
responsveis pela constituio de lavouras de subsistncia, capazes de sustentar o aumento
do contingente urbano. Assim, aquela primeira ocupao populacional, de caractersticas
coloniais, logo se diversificou com a chegada de imigrantes principalmente do centro e do
leste europeu, que se estabelecem em reas no entorno da cidade. Nos fundos da Casa de
Cmara e Cadeia (atual Pao Municipal), foi erguido, no ano de 1874, o Mercado Muni-
cipal, para propiciar a oferta de alimentos aos moradores da cidade e garantir um preo
justo. Ali, citadinos de todos os cantos se reuniam para comprar galinhas, ovos, carne seca,
milho, farinha, feijo. Na Riachuelo, mulheres das colnias, com seus lenos coloridos na
36
cabea, em trajes tpicos, vinham oferecer, nas portas das casas, o repolho, o requeijo, a
manteiga e o cheiro verde (SABIA, 1978, p. 73). Nas primeiras horas da manh, envoltos
pela cerrao, carroes de russos e poloneses, com parelhas de at oito cavalos, se concen-
travam nas imediaes do mercado, transportando alimentos e oferecendo seus servios
de carreteiros, levando mate e outras mercadorias para o litoral. O ambiente era animado
pelos sotaques caractersticos dos condutores.
A rua belle poque
No final do sculo XIX, a burguesia ligada produo e comercializao do mate
havia encontrado no urbanismo e na arquitetura formas de atualizar a urbe curitibana, em
consonncia com o que havia de mais avanado nos grandes centros europeus. A desejada
sociabilidade burguesa ganhava apoio na interveno cientfica e progressista do engenhei-
ro e do mdico - profisses valorizadas no trato dos problemas urbanos (CUNHA FILHO,
1996, p. 97). s aspiraes estticas, se juntavam preocupaes com a higiene e a salubrida-
de. Depois de algumas tentativas anteriores, as reas baixas e alagadias do Rio Belm fo-
ram saneadas, transformando o lugar em um recanto aprazvel, o Passeio Pblico. As obras
foram custeadas em parte pela burguesia do mate, que transformou tambm uma antiga
trilha para a Marinha em Boulevard 2 de Julho (Avenida Joo Gualberto): uma avenida
larga, arborizada com palmeiras, local para a construo das residncias palacianas da elite
do mate, como as manses do Comendador Fontana e da Famlia Leo (PEREIRA, 1996,
37
p. 109). Construdos no centro do terreno, com amplos jardins, esses projetos residenciais
procuravam fugir das limitaes construtivas existentes no quadro urbano tradicional.
As transformaes que readequaram a cidade aos caprichos dos bares do mate
no pararam por a. A grande mudana veio com a inaugurao da Estao Ferroviria,
em 1885. A Travessa Leitner, uma passagem que ligava a Riachuelo Rua do Comrcio, foi
estendida at a entrada do prdio da estao, projetada segundo as normas do moderno
urbanismo francs, pelo engenheiro italiano Ernesto Guata. A cidade ganhou um novo
eixo de desenvolvimento, a Rua da Liberdade, hoje conhecida como Baro do Rio Branco6.
A presena de hotis, comrcio diversificado e imponentes prdios pblicos, como o edi-
fcio da Assembleia (atual Cmara de Vereadores) vai dar ao logradouro o apelido de Rua
do Poder. Levando os trilhos da modernidade para dentro do quadro urbano, uma linha
de bondes de mula foi inaugurada em 1887, passando a ligar os engenhos do Batel, a ferro-
viria e as manses da elite ervateira. Pela linha do bonde, a Riachuelo passou a integrar
o principal conjunto de avenidas e boulevards da cidade, passagem obrigatria a ligar os
aprazveis Alto da Glria e Passeio Pblico ao conjunto poltico-administrativo da Rua da
Liberdade e Estao Ferroviria.
Com a ferrovia, a populao da cidade aumentou acentuadamente. Entre 1890-
1900, a taxa de crescimento alcanava a incrvel marca de 7,32% ao ano. Na virada do
6 Ver CORDOVA; IUBEL; SOUZA; STOIEV. Pelos trilhos: paisagens ferrovirias de Curitiba. Curitiba: Fundao Cultural de Curitiba, 2010.
38
sculo, a populao ultrapassou o nmero de 45 mil habitantes. Surgiram novas tcnicas
construtivas e um estilo arquitetnico de fachadas rebuscadas, o ecltico, substituiu a sim-
plicidade comum das casas coloniais. Os valores individualistas e exclusivistas da socia-
bilidade burguesa encontraram no ecletismo a sua forma ideal de representao material,
por permitir a personalizao das fachadas de suas edificaes. Alm das linhas de bonde,
a Riachuelo ganhou saneamento bsico e iluminao eltrica. A antiga fonte no resistiu s
novas recomendaes de higiene e saneamento, e foi ao cho em 1911. Mesmo o Mercado
Municipal passou a ser considerado insalubre, pelo acmulo de sujeira e falta de banheiros
pblicos. O cheiro dos restos de frutas e verduras em decomposio, com a presena de ani-
mais (SUTIL, 2000, p. 160), ofendia as novas sensibilidades. Por isso, o Mercado Municipal
ser transferido para a Praa 19 de Dezembro, em 1913. No seu lugar, vai se erguer o belo
edifcio da Prefeitura, o Pao Municipal, coroando a administrao do engenheiro Cndi-
do de Abreu, prefeito smbolo de uma modernidade desejada. O novo prdio da municipa-
lidade um marco na arquitetura ecltica do perodo, com um tratamento paisagstico que
deu ao conjunto um aspecto grandioso, com uma decorao externa farta em detalhes art
nouveau e de forte contedo simblico. A presena desse edifcio reforou a centralidade do
eixo formado pelas ruas Liberdade - Riachuelo - 2 de Julho. A Rua Riachuelo j abrigava o
Quartel General do 5 Distrito Militar, desde 1905. Na esquina do Pao da Liberdade, em
1915, outro interessante exemplar do ecletismo vai se erguer, o edifcio da Mtua Predial.
A presena constante de autoridades, negociantes estrangeiros, famlias abasta-
das, profissionais liberais e funcionrios pblicos aumentou consideravelmente o nmero
39
O Mercado Municipal na Praa 19 de Dezembro. Ao fundo, uma multido desce a Riachuelo em um dia de domingo. Fonte: Museu Paranaense. Postal.
40
de novas construes e estabelecimentos comerciais na Rua Riachuelo. Existiam lojas de
calados, armarinhos, botequins, farmcias, livrarias, barbearias, alfaiatarias, aougues e
vrios armazns de secos e molhados (BOLETIM INFORMATIVO DA CASA ROMRIO
MARTINS, 1996, p. 58). Esse comrcio ainda era acompanhado pela presena de oficinas,
manufaturas e pequenas indstrias, quase na mesma proporo: havia oficinas de relojoei-
ros, sapateiros, serralheiros, marceneiros, funileiros, tamanqueiros, tcnicos em conserto
de instrumentos musicais e fabricantes de chapus, alm da Impressora Paranaense, que
pertenceu ao Baro do Cerro Azul (HOERNER JUNIOR, 1984, p. 64). Existiam tambm
empresas que integravam a produo e a comercializao no mesmo local, como as lojas
e fbricas de sapatos Casa Favorita e Muggiati. Naquelas poucas quadras, conviviam lado
a lado os representantes das elites do estado, funcionrios de colarinho branco, lojistas,
sapateiros e operrios grficos.
A construo dos sobrados eclticos, de dois ou trs andares, alm de ser uma so-
luo para ampliar o espao dos terrenos no sentido da verticalizao, tambm organizou
a separao entre espaos domsticos e de trabalho. Os andares trreos eram reservados
s atividades comerciais e manufatureiras. Os superiores eram ocupados pelas famlias
pequeno-burguesas, donas dos empreendimentos, ou alugadas para toda a sorte de traba-
lhadores urbanos.
Muitos estrangeiros eram donos dessas casas comerciais e pequenas indstrias.
Em especial, famlias alems, que j viviam na Rua Direita, chamada por isso mesmo de
41
Rua dos Alemes (BANDEIRA, 1993). Desde a segunda metade do sculo XIX, as famlias
Pedrosa, Moura Brito e Barbosa dividiam a vizinhana, na Rua Riachuelo, com os Stresser,
os Kuster e os Mueller. Em 1909, mais da metade dos comerciantes estabelecidos na rua
tinham origem germnica. A concentrao desse grupo tnico nas redondezas facilitou a
organizao de uma srie de atividades associativas por parte dessa comunidade entre
elas, a construo de uma escola na Praa 19 de Dezembro (a Escola Alem), em 1892.
Pela manh, os sons dos risos dos alemezinhos de cara sardenta ocupavam a praa, em
acaloradas peladas com bolas de meia (SOUZA, 2012, p. 131). Desde 1870, a fala agitada
dos italianos vinha se somando a essa paisagem sonora. Duas casas de pasto e armazns
de secos e molhados pertenciam a comerciantes desse grupo tnico, alm de artesos que
tambm se estabeleceram no logradouro (BOLETIM INFORMATIVO DA CASA ROM-
RIO MARTINS, 1996, p. 57).
Em 1912, Nestor Vtor, de passagem pela cidade, escreveu uma ode aos progres-
sos urbanos empreendidos pela sociabilidade burguesa, compartilhando um triunfalismo
comum a outros cronistas da mesma poca. Com ironia, registrou que os pobres, os sapos
e o cheiro campesino vo indo de cada vez para mais longe (VITOR, 1996, p. 91). Se
o crescimento da populao e a expanso da malha urbana afastaram as reas de rocio
das ruas centrais, indica, tambm, o carter excludente, contraditrio e conflitivo desse
processo, que no podemos ocultar. A nova localizao do Mercado Municipal foi acompa-
nhada da proibio dos carroceiros de atuarem no Pao Municipal e na Praa Tiradentes.
Esses trabalhadores, que tanto haviam contribudo para o desenvolvimento econmico
42
da cidade, no poderiam oferecer concorrncia s linhas de bonde, no transporte de pes-
soas e mercadorias (BENVENUTTI, 2004, p. 130); as obras de saneamento operadas por
empresas concessionrias foram mal executadas, ameaando a populao com a contami-
nao das guas e surtos de febre tifoide; os sapateiros agitaram as fbricas da Riachuelo
em protestos trabalhistas; grupos nacionais apedrejaram vidraas de famlias alems no
perodo da Grande Guerra; por trs das fachadas eclticas, proliferavam cmodos onde
se empilhavam caixeiros e costureirinhas; e pelos boulevards da cidade perambulavam
imigrantes andrajosos (PEREIRA, 1996, p. 116).
Tempos modernos
A importncia da Riachuelo, no quadro urbano, foi reforada com a substituio
dos bondes de mula pelos modernos bondes eltricos, nos primeiros anos do sculo XX,
que circulavam at as primeiras horas da noite, com seus faris acesos. O piso da rua era
de paraleleppedos. A iluminao pblica acompanhou as inovaes, com a instalao das
luminrias suspensas na dcada de 1940 (AFONSO, 2012, p. 58). A especulao imobiliria
foi responsvel por uma constante renovao das construes urbanas. As edificaes colo-
niais vo desaparecendo da paisagem, na primeira metade do sculo XX. As casas, mesmo
do perodo ecltico, tambm sero substitudas pelo processo de verticalizao das cons-
trues. Ainda sob da influncia do ecletismo, prdios vo se erguer na rua, como o Hotel
Martins e, principalmente, o Palcio Riachuelo. Mas so manifestaes finais desse estilo,
substitudo, nas dcadas de 30 e 40, pelo art dco, de fachadas despojadas de ornamentaes
43
passadistas; o que se deseja uma esttica ligada velocidade e ao futuro. Em 1952, os
primeiros passos dados pela verticalizao dos sobrados eclticos sero vertiginosamente
atropelados pela altura do portentoso edifcio Dona Rosa, na esquina da So Francisco
com a Riachuelo, que institui ali, de fato, o novo costume do habitar urbano, a cultura de
morar em altura (VIANNA, 2011, p. 173). Os apartamentos disponveis na rua so dispu-
tados por pessoas pertencentes s classes mdias, por estudantes universitrios e, cada vez
mais, pelas famlias migrantes do interior do estado. O prestgio social da rua no parece
abalado, j que ainda endereo de novos projetos construtivos e de empreendimentos
comerciais importantes, como a instalao de lojas de departamentos. Mas alguns sinais
j anunciam mudanas. Novas formas industriais de produo em massa, novas expectati-
vas de consumo e o domnio cada vez mais evidente dos automveis, entre outros fatores,
implicam em uma nova diviso de trabalho, no interior da cidade. No toa, o urbanismo
moderno vai preconizar uma especializao funcional dos espaos. A cidade antiga mes-
clava intimamente lojas, pequenas oficinas e residncias na mesma rua. O urbanismo mo-
derno, simbolizado pela Carta de Atenas (1930), rejeita esse emaranhamento [] Ento se
impe o zoneamento, dissociando as zonas industriais das zonas residenciais (PROST;
CHARTIER, 1992, p. 37-38). Coincidentemente, as pequenas indstrias e manufaturas,
ameaadas pela produo em escala, perdem espao na Rua Riachuelo. Sobrevivem algu-
mas atividades artesanais, confundidas pelo uso corrente, mas nem sempre preciso, do
termo prestao de servios. A ocupao das edificaes por atividades exclusivamente
comerciais vai ficar em evidncia.
44
Enquanto isso, a economia ervateira era substituda pela atividade madeireira,
mas, principalmente, pela economia do caf, em expanso no norte do estado, nas dcadas
de 1930-60. No campo poltico, so tempos ditatoriais do Estado Novo. Nesse contexto, a
Administrao Municipal vai encomendar um plano urbanstico, conhecido como Plano
Agache, em 1943, que tinha como objetivo ordenar a ocupao espacial da cidade, em r-
pido crescimento. A complexidade das cidades modernas exigia uma abordagem sistmica,
corporificada na produo desses planos. O Plano Agache propunha um desenvolvimento
da cidade atravs de largas avenidas radiais, interligadas por avenidas perimetrais con-
cntricas, de forte apelo automobilista. Um zoneamento urbano racionalizaria o uso dos
espaos, com a delimitao de diversos centros funcionais especializados: centros residen-
ciais, comerciais, industriais, educativos e administrativos. Nesse ltimo caso, Curitiba
precisava constituir um Centro Cvico, projetando a importncia e imponncia do poder
estatal, no contexto da ditadura varguista (DUDEQUE, 2010, p. 49). Localizada no Centro
Comercial da cidade, a Rua Riachuelo no pareceu se incomodar com o desdobramento
desse plano. Primeiro, porque, sem recursos, o plano foi inviabilizado, ocorrendo apenas
implantaes parciais. Segundo, porque uma de suas principais exigncias - a de um recuo
frontal de cinco metros em todas as edificaes da cidade manteve de fora a zona central,
inclusive a Rua Riachuelo, o que perpetuou, a, as caractersticas do antigo alinhamento
predial (GNOATO, 1997, p. 27).
45
Captulo 2
A Queda? Novos tempos, outros planos
A populao da cidade, em 1959, superava os 300 mil habitantes. A Rua Riachuelo
j no era mais uma das entradas da cidade. Nem o eixo principal de desenvolvimento ur-
bano, servido pelo modal de transporte pblico mais avanado do comeo do sculo XX, o
bonde eltrico. A rua se transformara em um fragmento, mais um dos inmeros trajetos
possveis, em uma malha urbana ampliada e complexa. Na dcada de 1950, ficou evidente
que a infraestrutura da rua j no atendia s novas exigncias da urbe moderna. Presa
pelo temporrio sucesso dos trilhos dos bondes, a largura da rua, uma herana da cidade
colonial, tinha dimenses estreitas para as necessidades e velocidades dos automveis. Em
contraste, a rua paralela, a Baro do Cerro Azul, antiga Rua da Graciosa, teve uma sorte
diferente. Desapropriaes ocorridas em um dos seus lados ampliaram suas dimenses ao
gosto dos veculos automotores7. A via se juntou Cndido de Abreu, tornando-se o prin-
7 O alargamento da Rua Baro do Serro Azul, com o recuo do alinhamento predial e a demolio das edificaes, estava nos planos da municipalidade desde a dcada de 1940. Essa reforma urbana foi ampliada com a construo do Centro Cvico e da nova Praa 19 de Dezembro, por conta do Centenrio de Emancipao Poltica do Paran, em 1953 (SOUZA, 2012, p. 124).
46
cipal meio de ligao entre a antiga Praa Tiradentes e o moderno Centro Cvico, como era
a proposta do Plano Agache (GNOATO, 1997). Uma nova hierarquia urbana se desenhou
nas imediaes, reservando Riachuelo um papel secundrio.
A manifestao da arquitetura moderna, de estilo internacional, toma impul-
so com as obras encomendadas pelo governo estadual, em razo das comemoraes do
Centenrio de Emancipao Poltica do Estado do Paran. Esse tipo de arquitetura ser
utilizado como um meio de expresso material e simblico da poltica de modernizao
do estado, com investimentos na industrializao. O governo de Bento Munhoz da Rocha
Neto quer projetar uma nova imagem de modernidade. A construo do Centro Cvico, a
reforma da Baro do Cerro Azul e o domnio do automvel como principal modalidade de
transporte urbano fizeram a Riachuelo ficar acanhada. Em 1951, no final da rua, o ento
Grupo Escolar Tiradentes ganhou as linhas modernas e arrojadas do arquiteto Rubens
Meister (SUTIL, 2005, p. 33), como um sinal irnico e derradeiro, a marcar o fim de uma
era em que a Riachuelo ditava moda. No ano seguinte, o bonde eltrico vai circular pela
ltima vez, rangendo os trilhos.
Essas mudanas so acompanhadas por alteraes no perfil dos proprietrios
dos estabelecimentos comerciais. As novas geraes das famlias de origem alem, com
acesso educao formal, procuram outras atividades profissionais e as firmas dirigidas
por eles so fechadas. Novos grupos tnicos, como judeus e srio-libaneses, passaram a
se interessar pelo comrcio da regio, se dedicando a mercancia dos tecidos, das roupas
47
e dos armarinhos (BOLETIM INFORMATIVO DA CASA ROMRIO MARTINS, 1996,
p. 61). Colocada no ostracismo urbano do grande capital, que busca espaos adequados
sua valorizao, restou Riachuelo o varejo dos pequenos investimentos, incluindo a
as atividades marginais. O surgimento dos shoppings, que atrai o consumo das classes
favorecidas para longe das ruas, inviabilizou a exibio glamorosa dos produtos recm-
chegados da Europa nas lojas da Riachuelo, substituda paulatinamente pela oferta dos
produtos de segunda mo e, mais recentemente, por aqueles vindos da sia.
A implementao de linhas de nibus expressos, no incio da dcada de 1970,
veio reforar o apelo dos produtos populares. As linhas interligavam bairros populosos, no
sentido Norte/Sul da cidade. Eram bairros como Capo Raso, Cabral, Porto, Boa Vista
e Santa Cndida. A rua foi interditada para os carros que, em geral, transportam pessoas
com maior poder aquisitivo. O pblico consumidor das suas lojas era composto cada vez
mais pelos usurios do sistema pblico de transporte. Na maior parte das vezes, os ni-
bus transportam trabalhadores, donas de casas e estudantes, muitos deles pertencentes s
periferias urbanas e sociais. A rua foi asfaltada e ganhou novo calamento, mas os comer-
ciantes no deixaram de reclamar com a Prefeitura (JORNAL DO ESTADO DO PARAN
1974). A intensidade do trfico dos expressos, com mais de 1500 passagens desses veculos
por dia, no trajeto da rua, trazia o risco real dos atropelamentos; o barulho, que impedia o
bom atendimento da freguesia; a fuligem, que estragava as mercadorias, obrigatoriamente
expostas em sacos plsticos (TORTATO, 1985); e a concentrao de gases poluentes ame-
48
aava a sade de todos. As reclamaes revelam a completa incompatibilidade do trfico
daqueles veculos com as dimenses da via.
Entre as dcadas 1970 e 1990, artigos de jornais se encarregam de produzir uma
crnica da decadncia da rua. A Prefeitura j havia abandonado o Pao da Liberdade e
passou a ocupar um prdio modernista no Centro Cvico. As edificaes eclticas, antigas
moradias de respeitveis famlias de imigrantes, passaram a abrigar bares e mulheres de
amores pagos. Jornalistas descrevem os personagens que se apresentam todos os dias nas
caladas da rua: os velhos moradores, os estudantes, os alfaiates, os garons, os padeiros
e os vendedores de mveis usados, a conviver com os malandros, gigols, prostitutas,
assaltantes e picaretas de todos os naipes (RODRIGUES, 1986). A rua revela faces dife-
rentes, dependendo do horrio em que voc nela circula. De dia, lugar do varejo popular,
da revenda de mveis usados, de pequenos servios. noite, o retrato da boca do lixo, da
Curitiba dos contos de Dalton Trevisan. No final da dcada 1990, guardadas as diferenas
histricas, podemos estabelecer aqui uma comparao com a ironia de Nestor Vitor, no
incio do sculo, referindo-se aos pobres e aos sapos (VITOR, 1996). Pois ento. Eles
voltaram.
Delimitao do Setor Histrico
Em 1970, uma equipe de arquitetos vai percorrer vrias ruas do centro, procurando
delimitar o Setor Histrico de Curitiba. A iniciativa fazia parte do novo Plano Diretor de
49
Curitiba, tambm conhecido como Plano Wilhein-IPPUC, de 1966 (DUDEQUE, 2010, p.
22)8. A ideia era instituir um Setor Histrico como um cenrio espetacularizado, com ati-
vidades econmicas e culturais voltadas ao turismo e fruio das classes mdias urbanas.
Concentraram sua ateno nas edificaes que apresentavam um vocabulrio arquitetni-
co colonial, neoclssico, neogtico, ecltico ou art nouveau, desconsiderando a arquitetura
da dcada 1930 em diante. No roteiro dos arquitetos estavam as praas Dr. Claudino dos
Santos, Garibaldi, Generoso Marques, Tiradentes e Largo da Ordem, alm da primeira
quadra da So Francisco. Investigaram tambm algumas quadras da Riachuelo, mas deci-
diram no inclu-la no projeto do Setor Histrico. Motivo: tinham poucas edificaes de
valor histrico ou arquitetnico. Suas construes art dco no interessavam vista oficial
naquele momento.
A Riachuelo estava em uma encruzilhada do tempo: nem antiga demais, nem
moderna demais. Suas dimenses coloniais eram imprprias para a velocidade desenvol-
vida pelos veculos automotores. Seus prdios antigos e infraestrutura ultrapassada no
atraam novos investimentos comerciais. No podia competir com a Marechal Deodoro,
com suas pistas largas e grandes lotes, ocupados por prdios de escritrios e lojas de depar-
tamento. Por outro lado, graas prosperidade que viveu at a dcada de 1950, teve uma
8 Ao contrrio do crescimento radial proposto pelo Plano Agache, o plano do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) indicava a linearizao do desenvolvimento urbano, induzida pela constituio de vias estruturais e pelo transporte pblico. O plano inclua tambm a formao de uma nova zona industrial e o processo de pedestrinizao do centro, com a revitalizao das edificaes histricas.
50
renovao predial que no a qualificou para fazer parte do Setor Histrico e, assim, rece-
ber incentivos pblicos para integrar um circuito turstico e cultural. A transformao da
Rua XV de Novembro em calado, no incio dos anos 1970, seguida pela pedestrinizao
do Largo da Ordem, reforou a identificao desses espaos como destinos tursticos. A
Riachuelo, ao contrrio, recebeu asfaltamento e as linhas de nibus expresso. E com essas
novas linhas viveu, significativamente, sua inadequao temporal: eleita para acolher uma
nova modalidade de transporte coletivo urbano, demonstrou suas fragilidades estruturais.
As ruas tambm envelhecem. Convm aos gestores pblicos entenderem isso e respeitarem
essa velha senhora.
51
Captulo 3
Uma rua mal falada: retricas de perdas e violncia
Mesmo tendo ficado de fora desses primeiros movimentos de delimitao do
Setor Histrico de Curitiba, a Riachuelo foi, pelo menos a partir dos anos 1990, alvo de
diferentes projetos que passaram a visar sua renovao socioespacial e econmica. O Insti-
tuto de Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), por exemplo, elaborou alguns projetos
estratgicos que envolveram direta ou indiretamente a Riachuelo. Esses projetos partiam
de algumas justificativas, pautadas no que chamavam de caracterizaes da situao da
rua e/ou do centro da cidade. Essas caracterizaes apresentam a rua a partir dos proble-
mas percebidos, tais como: estado de conservao insatisfatrio das Unidades de Interesse
de Preservao (UIP) e do patrimnio cultural edificado; intensa circulao de pessoas
marginalizadas; insuficincia da rea de estacionamento, carga e descarga; problemas nas
caladas e na iluminao pblica; insegurana aos pedestres; insuficincia de cobertura
policial.
Como veremos a seguir, esse discurso de degradao tambm foi usado pela
mdia para retratar a Riachuelo nas ltimas dcadas. Importa destacar, e reiterar, que a
52
53
degradao no um processo natural da rua, mas construdo paulatinamente por uma
srie de atores e, dentre eles, figura o poder pblico. Vimos acima, em nossas breves con-
sideraes sobre o processo de delimitao do Setor Histrico, o (no) lugar da Riachuelo
no mesmo, margem das polticas preservacionistas.
Segundo Jos Carlos Fernandes,
Descobrir as causas da decadncia [da Rua Riachuelo] tarefa para uma leva de historiadores. No h consenso. Uns dizem que a culpa foi dos nibus expressos, que a partir dos anos 70 transformaram o boulevard num corredor. Outros, por ironia, alegam que a retirada dos nibus, em 1995, deixou a via prpria sorte. H quem diga que o problema de nascena: a Riachuelo estreita, tem perspec-tiva pouco atraente e est na periferia da Rua XV. Por castigo, ficou com as sobras. (FERNANDES, 2010a).
Conforme podemos observar na citao acima, a forma como a Riachuelo foi
ocupada, atravs das polticas relativas ao fluxo/circulao no centro da cidade, tambm
constantemente acionada como uma das causas possveis para sua marginalizao. O
drama do expresso apareceu em nossa pesquisa quase como uma alegoria das ms
escolhas dos urbanistas.
Outras escolhas da administrao pblica, bem menos mencionadas, que podem
ter tido impacto significativo sobre a marginalizao da Riachuelo, so aquelas relativas
54
aos grandes empreendimentos comerciais, em especial aqueles prximos regio central
da cidade.
Entre os fatores determinantes do desgaste do centro, de um lado, est a nova forma de organizao espacial do comrcio - shoppings centers - tendncia mundial que foi introduzida em Curitiba no comeo da dcada de oitenta, a entrada de mercadorias importa-das, principalmente bens de consumo no durveis e de baixo custo propiciou, na dcada de noventa, o surgimento de lojas populares, de forte apelo consumista para as classes sociais menos favorecidas e neste mesmo sentido foi ampliando o mercado informal, criando na sociedade um novo tipo de comerciante, o ambulante que para sobreviver busca cada vez mais o centro da cidade para escoar sua mercadoria. (IPPUC, 1998, grifo nosso).
Para alm dos problemas produzidos pelo capitalismo selvagem, vale ressaltar,
no entanto, que cabe justamente ao poder pblico a liberao ou no da construo de sho-
ppings no permetro central da cidade e que, portanto, a presena de enclaves fortificados
(CALDEIRA, 2000) de consumo nessa regio, ou prximo a ela, tambm responsabili-
dade da Prefeitura. Paris, por exemplo, cidade que, em funo de seu sofisticado comrcio
de rua, foi mencionada diversas vezes como uma referncia pelos revitalizadores da Ria-
chuelo, utiliza-se desse princpio, no permitindo a construo de shoppings dentro de
seu permetro central. A citao acima sugere, ainda, que fatores como a crise econmica
instaurada no pas nos anos 1980, elevando as taxas de inflao e de desemprego, teriam
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sido responsveis pela transformao do centro da cidade, com boa parte de suas lojas de
porte transferidas para os shoppings.
A lgica urbanista est intimamente relacionada ao fomento/viabilizao das ati-
vidades econmicas na urbe. O sucesso da implementao em Curitiba, na dcada de 1970,
do Plano Diretor, proposto pela empresa paulistana Serete em parceria com o escritrio de
arquitetura de Jorge Whilhem, ao contrrio do que aconteceu no mesmo perodo no Rio
de Janeiro e So Paulo, deu-se justamente pelo apoio do empresariado local (OLIVEIRA,
2000). O estabelecimento de shopping centers como locais privilegiados de consumo na
regio central, transformou vrias ruas do centro em locais de comrcio popular. O eixo
Riachuelo - Baro do Rio Branco tem, em suas extremidades, dois shoppings - ambos
reaproveitando grandes unidades de interesse de preservao. Um deles o Estao,
construdo no final da dcada de 1990 na antiga Estao Ferroviria (CORDOVA, IUBEL,
SOUZA, STOIEV, 2010). Outro o Mueller, o primeiro shopping de Curitiba, construdo
nas antigas edificaes da metalrgica Irmos Mueller. Cravado ao lado do Setor Histrico,
gerou em 1983 duas CPIs (do Shopping Mueller e do IPPUC), em funo da violao de
vrias leis e normas relativas ao uso de solo (OLIVEIRA, 2000, p. 167).
O arquiteto e urbanista, Andrei Mikhail Zaiatz Crestani, escreveu, em um artigo
sobre a Riachuelo, que :
[...] com o desenvolvimento da cidade os investimentos pblicos migram para outras regies [...]. Assim, no perodo dos anos 1990 a Rua [Riachuelo] chegou a ter 40% de seus imveis desocupados.
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Isso para comear a dizer que as intervenes nas cidades, sejam no centro sejam nas periferias, alteram os espaos fsicos mas tam-bm as heranas histricas e patrimoniais. Com a desvalorizao comercial da Riachuelo, por exemplo, diversos comrcios que l estavam h vrios anos ou at mesmo h geraes, acabaram fe-chando ou mudando de endereo. Os comerciantes que insistiram em ficar acabam tendo que se readaptar, se reconfigurar segundo uma nova lgica que comeou a se fortalecer com a chegada desses novos atores e projetos. (CRESTANI, 2014, p. 52).
E novos comerciantes surgiram, como o caso de grande parte dos mveis usa-
dos. Para este autor, os projetos de revitalizao e revalorizao da rua esto criando uma
paisagem-mercadoria, da qual decorre um processo de especulao imobiliria que pode
inviabilizar pequenos comerciantes a se manterem no local. Como vimos em captulos
anteriores, no a primeira vez que a rua, sua ocupao e as atividades que nela ocorrem
so levados ou pressionados a uma renovao. Tais processos so, hoje, conhecidos como
gentrificao.
Crestani argumenta, ainda, que os diversos projetos para a revalorizao do novo
centro de Curitiba, fomentados pelos poderes pblicos e privados, foram tambm susten-
tados abertamente pela mdia. Por isso, seria impossvel falar da mdia sem falar desses
projetos, e vice-versa, pois ambos os discursos apoiam-se mutuamente. Sobra, claro, para
aqueles que vivem a rua, sobretudo para os comerciantes e seu pblico popular, que for-
necem informaes para esses projetos, mas passam a ser englobados por uma lgica que,
muitas vezes, lhes estranha.
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Em notcias sobre o processo de revitalizao da Riachuelo, os temas que mais
aparecem, em reportagens anteriores ou posteriores reforma, so: violncia, trfico de
drogas e prostituio. Em 2012, por exemplo, a Band News FM veiculou uma matria in-
titulada Rua Riachuelo: do abandono revitalizao, mas ainda violenta! Nela, o jorna-
lista constata que, de dia, o movimento de pessoas aumentou na rua, com as melhorias nas
caladas e na segurana, mas, noite, tudo voltou a ser como antes, com muita violncia,
trfico de drogas e prostituio. Narrativas de crimes na Riachuelo so muitas. Os pro-
blemas apontados acima tambm so relacionados, pela mdia e pelos poderes pblicos,
alta taxa de imveis abandonados - lugares propcios a prticas ilcitas. Em reportagem, o
jornal Gazeta do Povo (ANBAL, 2011) registrou que, em 2011, havia cerca de 100 constru-
es vazias em Curitiba, ocupadas irregularmente ou utilizadas como ponto de consumo
de drogas, das quais 30 estavam no Centro. Essa mesma reportagem afirmava que eram
cerca de 12 mil os dependentes de crack em Curitiba naquele momento, e listava a Ria-
chuelo como uma das minicracolndias da cidade, uma vez que atraa cotidianamente
uma clientela fiel de usurios de drogas.
A violncia, estritamente relacionada s drogas e prostituio, justificativa
para diversos tipos de intervenes e projetos na Riachuelo. No jornal local de maior circu-
lao, por exemplo, lemos: preservao do espao pblico afasta a criminalidade e reduz
problemas relacionados manuteno da ordem (TAVARES, 2011). Outro exemplo a
reportagem de Cntia Vgas intitulada Marginalidade rotina na Riachuelo, na qual a
reprter relata:
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[...] prostituio, trfico de drogas, homicdios e assaltos a pedes-tres fazem parte da rotina das ruas Riachuelo e So Francisco, no centro de Curitiba. A criminalidade presente nos locais tem afasta-do clientes de estabelecimentos comerciais e est fazendo com que pessoas desviem o caminho para no passar entre o cruzamento das duas ruas. (VGAS, 2004).
Talvez seja preciso olhar tais narrativas com um pouco de distanciamento. O fi-
lsofo francs Yves Michaud prope uma reflexo interessante sobre a violncia em nossos
tempos modernos:
[...] ns amaramos certamente ter um olhar mais claro sobre as re-laes entre o ser humano e a violncia, saber se ns somos animais desnaturados, humanizados, deuses destronados ou o que quer que seja, mas, como essas expresses sugerem, h poucas chances de que pudssemos inventar acerca disso pouco alm de contos ou mi-tos, prprios a ninar, consolar ou causar medo. O mais longe que podemos (e devemos) ir aqui reconhecer a conivncia, a intimi-dade, a cumplicidade problemtica e doentia do ser humano com a violncia. (MICHAUD, 2010, p. 10, traduo livre).
Podemos pensar a violncia como tropos discursivos (WHITE, 2001), en-
tendendo que o discurso , alm de essencialmente mediador, capaz de formar opinies,
construir representaes e imaginrios sociais. Propomo-nos pensar o papel da mdia e
de outras vozes oficiais na construo de um imaginrio sobre a Riachuelo. Segundo Mi-
chaud, a mdia estetiza a violncia no sentido etimolgico do termo esttica, que remete
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no ao domnio da beleza e da arte, mas quele da percepo sensvel e da apreenso afeti-
va, compondo nossas vistas da paisagem.
No se trata, de nossa parte, da negao de uma certa violncia atrelada Riachue-
lo. A proposta refletir como essa violncia no construda apenas por uma sequncia de
fatos, mas, tambm, imageticamente, atravs de narrativas miditicas (por exemplo), que por
sua vez respaldam uma srie de aes, inclusive o esvaziamento da Riachuelo que a torna,
ironicamente, ainda mais propcia para os fatos que noticia.
A antroploga Teresa Caldeira (2000) chama de fala do crime as narrativas co-
tidianas, comentrios, conversas e brincadeiras que tm o crime como tema principal, e que
promovem uma reordenao simblica do mundo elaborando preconceitos e naturalizando
a percepo de certos grupos como perigosos, criminalizando categorias sociais e dividindo
o mundo entre o bem e o mal. Esse tipo de fala parece ter espao garantido no imaginrio
e nas pautas sobre e da Riachuelo. Na fala do crime, violncia e medo ocupam posio
central e so reiteradas de forma fragmentada e repetitiva, alimentando um crculo no qual o
medo trabalhado e reproduzido, onde a violncia ao mesmo tempo combatida e ampliada.
Esta fala no apenas expressiva, tambm produtiva. A ideia que, enquanto o crime
rompe significados e desorganiza, as falas do crime reorganizam o mundo simbolicamente,
estabelecendo um quadro esttico deste mesmo mundo.
[...] o medo e a fala do crime no apenas produzem certos tipos de interpretaes e explicaes, habitualmente simplistas e estereoti-
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padas, como tambm organizam a paisagem urbana e o espao p-blico, moldando o cenrio para as interaes sociais que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamente vai se cercando de muros. (CALDEIRA, 2000, p. 27).
Se a mdia produz o cenrio da violncia, ela tambm constri um imaginrio nos-
tlgico em relao ao passado e crtico em relao ao presente (e, por que no, esperanoso
em relao ao futuro?). Cid Destefani, por exemplo, escreveu em sua coluna:
Contrastando com o comrcio existente na atualidade, a Rua Ria-chuelo possuiu, at meados do sculo passado, estabelecimentos cujo gabarito atraa a elite curitibana aos seus balces e gabinetes. Para citar alguns deles temos: Hotel Martins, Casa Yvonne, Alfaiataria Marquart, Farmcia Sommer, tica e Relojoaria Raeder, Casa Luhm, Irmos Riskalla, Casa Favorita, Casa Porcellana, Casas Pernambu-canas, Casa Tkio, Casa Verde, Modas Madame Odette, Barberi & Cia., alm de alguns sales de beleza e barbearias. Hoje a Rua Ria-chuelo cumpre o destino de todas as vielas das grandes cidades, com o comrcio afugentado pela instalao da marginalidade9. Hotis muquifos servindo prostituio. Droga comendo solta; assaltos e mais uma srie de contravenes espantam qualquer cidado em passar por ali aps o escurecer. Que o digam as pessoas de bem que ainda persistem em morar na Riachuelo. A esperana de todos que, com as mudanas projetadas pela prefeitura, o ambiente volte a ser socialmente aceitvel. (DESTEFANI, 2010, p. 7).
9 Vimos anteriormente, e veremos no decorrer do livro, que o comrcio afugentado no todo o comrcio, mas um comrcio especfico, elitista, menos popular.
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E h aqueles que olham a via de outro ponto de vista: sua diversidade e sutile-
zas. o caso de Jos Carlos Fernandes, autor da matria Justiceiros da Riachuelo, cuja
chamada Rua do Centro Histrico acumula dcadas de m fama e abandono. Mas
revelia dos problemas que enfrenta, como o trfico e a prostituio, a via cenrio nico
da diversidade humana. Nesse texto, Fernandes afirma que at meados do sculo XX a rua
concentrou parte do comrcio elegante da cidade e que foi se convertendo, pouco a pouco,
em sinnimo de botecos p-sujo, baixa prostituio, trfico e mendicncia. Quanto
diversidade e s riquezas que a rua guarda, o jornalista escreve:
primeira vista, a Riachuelo choca pela quantidade de vidros que-brados, imveis histricos avariados e gente com noia ao deus-dar. Passada a primeira impresso, fica a surpresa: na rua estreita onde sempre se v pelo menos dois homens carregando armrios - fora da faixa - ouve-se muita conversa fiada. gente que se trata pelo nome. Eis um sinal de fumaa. (FERNANDES, 2010a).
A despeito tanto da memria nostlgica quanto da viso mais otimista, a retrica
da violncia uma constante sobre a Riachuelo, inclusive nos aparatos estatais, e parte
intrnseca de qualquer tentativa de compreenso da rua, justamente porque constitutiva
do nosso imaginrio sobre a mesma. Alis, sobre imaginrio, Clifford Geertz (1978, p.
185) escreve: O pensamento imaginrio nada mais do que construir uma imagem do
ambiente fazendo ele correr mais depressa do que o ambiente. Esse pensamento flexvel
na manipulao das imagens que o formam, capaz de distorcer, metamorfosear e recriar
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a prpria realidade. Nesse sentido, toda imagem urbana um acmulo de esteretipos,
uma falcia. Haveria ainda, segundo Mnica Lacarrieu (2007), uma diferena crucial entre
imagem (explicaes pblicas urbanas que se condensam e se cristalizam simbolicamente,
sendo majoritariamente construes oficiais e oficializadas que operam em instrumentos
de poder e controle, impondo polticas de lugares) e imaginrio (os sentidos dos lugares,
emergentes do conjunto de imaginrios compartilhados por diferentes grupos sociais e
que dizem respeito vida cotidiana dos habitantes). Isso no significa que imagem e ima-
ginrio sejam vistas que no se confundam ou se sobreponham, na maior parte das vezes,
mas as diferenas parecem sutis. E no caso da Riachuelo, ambos os discursos acabam tendo
efeitos e alcances diferentes. No imaginrio da rua se encontram as memrias e vivncias
de comerciantes, moradores e frequentadores, que remetem violncia, mas tambm a
infncias felizes, amizades, histrias de vida. J nas imagens pblicas, a violncia assume o
centro do palco, e foi assim desde muito cedo na histria da Riachuelo.
Desde tempos distantes, no incio dos anos 1850, quando a Riachuelo j tinha um
comrcio importante na capital paranaense, alguns comerciantes usavam os veculos de
mdia para reclamarem e chamar a ateno dos governantes quanto aos diversos problemas
de infraestrutura da rua, sobretudo quanto falta de pavimentao e de iluminao que a
tornavam um lugar repleto de sombras e, assim, exposta a problemas e perigos que podiam
afastar a clientela. Essas vozes e vistas locais alimentaram a mdia e os poderes pblicos
e, recentemente, forneceram justificativas para os projetos de revitalizao encabeados
pela Prefeitura, em parceria com Sebrae, Sistema Fecomrcio e outros rgos. Essas vo-
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zes partem, em alguma medida, de informaes, reclamaes e impresses adquiridas na
prpria rua, em conversas formais e informais com aqueles que nela vivem: comerciantes,
proprietrios, moradores, clientes, prestadores de servio. Mas, essas mesmas vozes tam-
bm fornecem, para as pessoas que esto na rua, argumentos para construo de certo
imaginrio que, h muito tempo, se fundamenta numa retrica da perda, da deteriorao,
da desvalorizao, da degradao e da violncia. Veremos, no final deste livro, que esses
diferentes des acabaram dando vida a diversos erres (revalorizao, revitalizao, re-
qualificao, reciclagem, reinveno, reforma, restaurao).
PARTE 2
IMPRESSES DA PAISAGEM
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Captulo 4
Pequena repblica srio-libanesa
Em um artigo de Jos Carlos Fernandes (2010a) sobre a Rua Riachuelo, o arqui-
teto Mauro Magnabosco (IPPUC) afirma que ela vai ser por muito tempo ainda a rua dos
patrcios. Mas, como os patrcios chegaram rua?
Antes de mais nada, gostaramos de esclarecer porque chamamos esses imigran-
tes de patrcios. A justificativa simples: eles prprios se chamam assim. Mas h quem
os chame genericamente de rabes, por exemplo. O sentido do termo rabe mudou ao
longo do tempo: passou da nomenclatura usada para tribos do deserto e das montanhas
srias, para abarcar todos os grupos nmades que habitavam o territrio que atualmente
corresponde Sria, ao Lbano e Palestina. O momento exato da chegada dos patrcios
ao Brasil tema para diversos debates. Tem quem diga que alguns rabes integravam a
tripulao das naus das expedies de Pedro lvares Cabral, pois foram encontrados nos
registros dessas viagens cartas martimas rabes e estes eram conhecidos como excelentes
navegadores e conhecedores das constelaes estelares (FRANCIOSI, 2009). No contexto
nacional, considera-se uma referncia para a presena dos patrcios o ano de 1830, quando
o nome da famlia Zaidan j circulava pela cidade de So Paulo. Em seguida, entre os anos
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de 1871 e 1891, um nmero reduzido de entradas foi registrado no pas, perfazendo um
total de 158 imigrantes. somente entre 1892 e 1907 que essa imigrao se intensifica,
registrando-se a entrada de 695 srios no Brasil (SIQUEIRA, 2002, p. 30). A diferena de
sua imigrao em relao de outras nacionalidades que vieram para o Brasil em grandes
levas, os srio-libaneses vieram em grupos pequenos ou at mesmo isolados - vinha pri-
meiro o chefe da famlia que, depois de estabelecido, mandava buscar os familiares. No
Paran aconteceu o mesmo, os patrcios chegaram, entre 1870 e 1900 e, diferentemente
de outras etnias, no contavam com auxlios governamentais, pois, emigravam de forma
espontnea. Eddy Franciosi fornece inclusive uma explicao para que os rabes tenham
passado a ser conhecidos como turcos:
Quanto aos primeiros [patrcios que imigraram para o Brasil], vie-ram em sua grande maioria, com passaportes turcos, da porque, fossem srios ou libaneses, passaram a ser chamados e conhecidos como turcos, generalizao essa que em absoluto lhes agradava, primeiro porque de fato no eram turcos, depois porque haviam vindo exatamente para fugir do domnio turco. (FRANCIOSI, 2009, p. 264).
Curitiba recebeu um nmero considervel desses imigrantes que, desde o incio
de suas aventuras pela capital paranaense, passaram a desenvolver atividades voltadas para
o comrcio de diversos produtos, mas, principalmente, tecidos e roupas. Foi assim com o
srio Miguel Hil. A loja de tecidos que levava seu sobrenome no letreiro foi inaugurada
em 1928 e ocupou diversos endereos, sendo trs deles na Riachuelo, at encerrar suas
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atividades no ano de 2014. A Casa Hil j estava pelas redondezas quando, na Praa Ti-
radentes, vizinha Riachuelo, ocorreu a conhecida Guerra do Pente, que contou com
esses primeiros imigrantes rabes como protagonistas. Tal batalha comeou quando um
subtenente da Polcia Militar entrou no Bazar Centenrio para comprar um pente e achou
caro o preo praticado (15 cruzeiros). Apesar de reclamar, comprou a mercadoria e pediu
nota fiscal. Alis, havia uma campanha do Governo do Estado chamada Seu Talo Vale
um Milho, na qual se juntavam notas fiscais no valor de cinco mil cruzeiros para con-
correr a um milho de cruzeiros. Mas, consta que o dono do bazar, Ahmed Najar, no quis
atender o cliente e o agrediu. Parece que este reagiu e, num efeito em cadeia, outros srios
foram em socorro do compatriota, que preferiu fechar as portas do estabelecimento para
evitar maiores encrencas.
No adiantou, pois o tiro saiu pela culatra. Outras pessoas foram chegando e, ao tomar conhecimento do caso, tomaram o partido do militar (caso raro!) e comearam a vaiar e xingar no apenas o comerciante como tambm sua dignssima me, familiares e toda a colnia sria aqui radicada, alm de outros que nada tinham a ver com o peixe, ou melhor, com o pente (FRANCIOSI, 2009, p. 351).
O que se seguiu foi um quebra-quebra em vrias lujinhas de patrcios, as quais,
segundo relatos, ficaram em petio de misria.
Uma segunda safra de patrcios comeou a chegar na Riachuelo nos anos 80 do
sculo XX. Vindos direto da Sria ou do Lbano, ou de outros lugares do Brasil, numa
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segunda viagem. Esse foi o caso de Chain Jaber, por exemplo, que veio para o Brasil com
oito anos de idade e foi com sua famlia para Blumenau. L ficaram sete anos, trabalhando
com tecidos. Quando vieram para Curitiba comearam a trabalhar com roupas feitas. Ele
conta que est h 30 anos na Riachuelo,
sempre aqui nesse ponto, porque meu dinheiro no dava mais do que isso, porque era rua abandonada, ningum queria. Ento, ns viemos e deu certo, porque o meu dinheiro no alcanava mais do que essa rua abandonada. Era abandonada, tinha prostituio, tinha fumante de droga, tinha10
Ele tem uns trs ou quatro parentes com casas de comrcio na mesma rua. Sobre
os patrcios, ele diz que quando chegou, eram mais numerosos do que hoje: Comeou a
diminuir porque os filhos comearam a estudar, ningum mais quer esse ramo de comrcio.
Agora t chegando a vez dos chineses e coreanos, que to no ramo do barzinho. J tem mais de
meia dzia.
A mesma motivao para a vinda para a Riachuelo citada por Halim: No
escolhi. Era o que eu podia alugar. Ele veio da Sria ainda novo, com cerca de quinze anos
de idade. Lembra que, naquele pas, seu pai j tinha trabalhado com tudo, inclusive com
roupas. Quando chegou na Riachuelo, depois de dois anos no bairro Novo Mundo, a rua
tinha comrcio bastante diversificado: loja de mveis novos, farmcia, panificadora, aou-
10 Esta e todas as demais entrevistas apresentadas no decorrer do livro foram realizadas ao longo do ano de 2012. O destaque itlico acrescido de aspas indica que se trata de falas transcritas.
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Chain Jaber Makhoul em sua loja.
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gue, vidraaria, loja de pesca, papelaria, armarinho. Mas, depois de 1992, em sua memria,
houve uma invaso de lojas de mveis usados, a comearam a abrir uma depois da outra,
vieram parentes, amigos. Um abria, ia bem e chamava outros. E assim foi. Essa a Riachuelo.
Halim tambm tem parentes na rua, inclusive um ex-cunhado. Mas, parente ou no,
tem bastante patrcios a que so amigos da gente. Tomamos caf todo dia aqui. Todo dia de
manh a gente se encontra aqui. Halim especula que sejam, dentre as lojas da Riachuelo,
umas doze lojas de patrcios, sendo seis da famlia do Chain. Alis, ele cr que todas as lojas
de confeces e calados sejam de patrcios, porque eles no sabem vender outra coisa a
gente herda isso dos pais.
Como Chain, Halim tambm afirma que essa pequena repblica srio-libane-
sa pode estar com os dias contados, porque os filhos agora no to querendo seguir. Um
vai pra engenharia, o outro pra odontologia, outro farmacutico. Ento, ningum mais t
querendo ficar nas lojas, entende? Realmente, lidar com o povo, direto com o consumidor, no
fcil. Halim fala com certo orgulho e sotaque sobre sua loja de confeco ter sido uma
das primeiras na Riachuelo: Pra no dizer a primeira, tinha essa da frente aqui, onde tem
loja de roupas usadas, era a Loja Sul Brasil. Era de um judeu. Eu era muito amigo dele. Ns
chegamos depois dele. De patrcio, eu sou o primeiro. Esse judeu era gente boa, mas depois ele
fechou, faleceu.
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Maria de Ftima Maneira Drgham e Halim Drgham em sua loja.
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Outro patrcio dessa histria tambm exerceu influncia sobre a Riachuelo, po-
rm, de outro modo. Omar Akel, que durante o perodo dos projetos de revitalizao da
rua era administrador da Regional Matriz da Prefeitura. Segundo ele,
os comerciantes daqui, muitos deles so de origem rabe, meus patr-cios, portanto. Eles comearam a me procurar muito insistentemente. Os lojistas daqui so rabes ortodoxos, e eu sou ortodoxo. Ento, ns nos encontramos todo domingo na igreja. Era cobrana de manh, tarde e noite. Quando eu chegava na igreja, ainda vinham cobrar de novo E o prefeito queria que essa rua fosse revitalizada. Ele assumiu o compromisso com eles e ns comeamos a fazer reunies com toda a comunidade. Eles criaram a Associao de Comerciantes e Moradores da Rua Riachuelo e essa associao passou a reivindicar de maneira mais organizada.
E, do seu ponto de vista, de quem olha as coisas de dentro da Prefeitura, os patr-
cios acabaram assumindo uma liderana nesse processo, fazendo da Riachuelo tambm a
rua dos patrcios:
Eles so muito ativos. Porque ali curioso Claro que eu no tenho o nvel de intimidade que seria possvel ter, mas, se voc imaginar, naquele conjunto de lojas tem uma famlia que do Rio Grande do Sul que tem uma srie de lojas, seis, me parece, que vieram mais re-centemente. A, voc pega os patrcios, fora essas lojas de gachos Tecidos Hil patrcio tambm, embora no seja dessa gerao, dessa safra que veio por ltimo. Se voc pegar as outras lojas de roupa e de mveis, talvez ali voc tenha umas trinta lojas, das quais dezesseis so de patrcios.
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Captulo 5
A cara da rua: usados e populares
A rua dos mveis usados. Este um dos modos pelos quais a Rua Riachuelo
conhecida em Curitiba, pelo menos desde a dcada de 1990. difcil habitar a cidade e
no pensar na Riachuelo na hora de comprar ou vender um mvel de segunda mo. E
no para menos: ela concentra parte significativa das lojas de mveis usados da cidade.
Especializou-se, sem se restringir aos mesmos. A rua j integrou vrios outros circuitos
comerciais, formais ou informais, que fizeram sua fama e que estavam relacionadas ao
comrcio do sexo e ao comrcio popular de vesturio, por exemplo.
Segundo os comerciantes locais mais antigos, os mveis usados surgiram na Ria-
chuelo a partir da dcada 1980, quando abertas as primeiras lojas dedicadas ao segmento.
Embora no componham a maioria das lojas do local, os usados do uma certa cara
rua. Tanto o que, juntamente com as lojas de roupas usadas, levaram o Servio Brasileiro
de Apoio s Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), atravs de um diagnstico do ambien-
te comercial e empresarial do Pao da Liberdade (LCKMAN; ROMAGNOLLI, 2009), a
reconhecer/construir a vocao da Rua Riachuelo como algo relacionado reutilizao,
reciclagem (NOGAROLLI, 2009).
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Banquinhos, cadeiras e pequenas mesas de pinus; geladeiras produzidas recen-
temente ou no; mquinas de lavar e tanquinhos; escrivaninhas, camas, guarda-roupas e
estantes de livros em madeira; armrios, mesas, estantes e arquivos de materiais metlicos;
eletrodomsticos com modelos fora de linha e aqueles que ainda esto em produo; m-
veis novos, em um estilo meio-rstico/meio-colonial, ou bsicos e simples, produzidos
com diferentes tipos de aglomerados; armrios de cozinha de frmica; sofs, poltronas,
quadros bordados, mesas de vidro; jogos completos de sala de estar, jantar, quarto, escrit-
rio. Muito prximo ou mesmo amontoado, em ambientes com espao sempre insuficiente
para a quantidade de co