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AS MULHERES DO RIO DE JANEIRO NOS TEMPOS DE VALERA: COTIDIANO, CLAUSURA E ESPERANÇAS 1 José Cláudio dos Santos Júnior [email protected] Introdução O século XXI é palco da mulher independente, que busca condições de igualdade com o homem no mercado de trabalho, assume a direção do lar na ausência masculina e define-se como senhora de seu destino. Mas alguns termos desta própria assertiva nos permitem constatar a longa trajetória ainda a ser percorrida no processo de emancipação feminina. Em tempos nos quais animais domésticos são mais bem cuidados do que muitas meninas de rua e esposas espancadas, a igualdade no mercado de trabalho ainda é buscada; o lar dirigido pela mulher ainda é considerado acéfalo, como uma solução paliativa à chamada desestruturação familiar; e o domínio dos seus próprios passos, o que deveria ser considerado algo naturalmente 1 Trabalho apresentado no simpósio Juan Valera (1824-1905) y la cultura de su tiempo, no Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, em 19 de agosto de 2005.

As mulheres do Rio de Janeiro nos tempos de Valera: cotidiano, clausura e esperanças

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Trabalho apresentado no simpósio Juan Valera (1824-1905) y la cultura de su tiempo, no Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, em 19 de agosto de 2005.

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AS MULHERES DO RIO DE JANEIRO NOS TEMPOS DE VALERA:

COTIDIANO, CLAUSURA E ESPERANÇAS1

José Cláudio dos Santos Jú[email protected]

Introdução

O século XXI é palco da mulher independente, que busca condições

de igualdade com o homem no mercado de trabalho, assume a direção do lar

na ausência masculina e define-se como senhora de seu destino. Mas alguns

termos desta própria assertiva nos permitem constatar a longa trajetória ainda

a ser percorrida no processo de emancipação feminina. Em tempos nos quais

animais domésticos são mais bem cuidados do que muitas meninas de rua e

esposas espancadas, a igualdade no mercado de trabalho ainda é buscada; o

lar dirigido pela mulher ainda é considerado acéfalo, como uma solução

paliativa à chamada desestruturação familiar; e o domínio dos seus próprios

passos, o que deveria ser considerado algo naturalmente inerente ao ser

humano, tem, na necessidade de ser conquistado, a demonstração do quanto a

mulher ainda precisa obter em independência, respeito e autonomia.

Podemos, portanto, afirmar que a mulher é ainda refém de uma

estrutura social que seqüestra sua liberdade e limita o exercício de

propriedades associadas ao ser humano. Respaldados nesta premissa,

adentramos neste espaço de discussão sobre a obra de Juan Valera. E esta

imersão não é fruto de uma inter-relação forçada. Valera é espectador de uma

1 Trabalho apresentado no simpósio Juan Valera (1824-1905) y la cultura de su tiempo, no Instituto Cervantes do Rio de Janeiro, em 19 de agosto de 2005.

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época especial para a formação da sociedade brasileira. No século XIX, após a

vinda da família Real Portuguesa para o Brasil em 1808, deixando para trás

Portugal invadido por tropas napoleônicas, uma série de fatos e momentos

históricos interligados modelaria os diversos sistemas que hoje integram o

quadro social brasileiro. O fim do pacto colonial, o processo de independência

efetivado por D. Pedro I, o longo reinado de D. Pedro II, com sua preocupação

quanto à geração de uma identidade nacional, e a posterior proclamação da

república abarcam uma infinidade de fatores que configuraram esse século

como período fundamental para a gênese brasileira. E Valera nos surge como

um brilhante comentador de um recorte desta fase, pois em suas cartas ele não

é um narrador de fatos históricos, mas um observador do cotidiano. E a vida se

faz no cotidiano. É lá onde buscamos a satisfação de nossos desejos e

ambições. É onde nos relacionamos, onde nos casamos, onde procriamos,

onde constituímos parcerias afetivas e profissionais. É no cotidiano, enfim,

onde se celebra a vida. Tal afirmação nos permite, portanto, inferir que uma

análise que tenha por objetivo verificar aspectos da vida humana no decorrer

do tempo esteja necessariamente fundamentada na observação do cotidiano.

Da mesma forma, o entendimento de uma época somente configurar-se-á

completo se estes elementos do dia-a-dia forem devidamente considerados,

não como acessórios, mas como componentes do tecido social. Entretanto,

quando procuramos nos olhos de nossos contemporâneos as imagens que

estes guardam do passado, nos deparamos com enfoques generalistas e

factuais. É como se esta retrospectiva só nos permitisse vislumbrar os grandes

acontecimentos históricos envoltos por uma densa névoa, por trás da qual

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estariam ocultas e inertes as pessoas que realmente vivenciaram aquele

quadro, onde surgiriam apenas como miragens opacas, como meras peças

desprovidas de história própria.

A capacidade de Valera como observador do cotidiano pode ser

verificada nas cartas que escreveu a seu amigo, o escritor espanhol Serafín

Estébanez Calderón entre 1851 e 1853, período em que esteve no Brasil em

serviço diplomático. Valera materializou em sua escrita os frutos dessas

observações, abordando, com sua perspicácia sagaz e humor, aspectos do

dia-a-dia os quais nos inspiram a buscar extrair elementos interessantes para

traçar perfis e considerações sobre a época. Um desses elementos é

justamente a vida feminina no Rio de Janeiro do século XIX, e será como

resposta a essa vertente das cartas de Juan Valera que buscaremos nos

remeter à temática da situação da mulher em meados desse século no Brasil

urbano da então capital do império. Assim sendo, nossas considerações serão

propositalmente abordadas com o enfoque sobre o cotidiano do universo em

questão, destacando componentes específicos que contribuam com o presente

trabalho. É dentro dele que buscaremos a clausura social que mantinha a

mulher sob o controle da autoridade masculina, sob um falso estereótipo de

submissão passiva e frivolidade natural. Cabe ressaltar que a multiplicidade de

realidades femininas diferentes não permite que o tema seja aqui abordado na

amplitude desejável. Desta forma, nosso enfoque será direcionado para a

mulher do que hoje chamaríamos classes média e alta, apesar das breves

alusões que poderão ser realizadas sobre outros universos femininos, como o

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da mulher livre branca, o da mulher negra e da mulher religiosa, os quais

requerem um estudo próprio e circunstanciado.

Cotidiano e clausuras

A mulher carioca que Valera conheceu ao chegar ao Brasil, em

dezembro de 1851, pertencia a algo mais do que apenas uma cidade brasileira:

o Rio de Janeiro era, então, a capital do império. Com a monarquia consolidada

sob o poder de D. Pedro II, a Corte tinha o encargo implícito de atuar como

centro de propagação de civilização para as diversas províncias. O padrão de

comportamento do país era, portanto, delineado pela capital política,

econômica e cultural do império. E civilização era sinônimo de cultura européia.

Os costumes do velho mundo atuavam como referencial para uma corte ávida

por mostrar ao mundo que podia ser igualmente iluminada.

Nas cartas de Valera a Estébanez Calderón, o elemento feminino

surge por entre os comentários do autor em diversas passagens e com

variados enfoques. Nelas identificamos, geralmente, o retrato da mulher

submetida a um papel aparentemente secundário e voltada para frivolidades ou

para preocupações e afazeres direcionados à rotina da família e a seu papel

social. Mas elas também nos permitem identificar matizes diferenciados na

postura da mulher. Concha Piñero Valverde nos apresenta abordagens de

Valera em suas cartas sobre figuras femininas como Madame Finet,

comerciante na então importante Rua do Ouvidor e a enigmática “Armida

brasileira” (Valera, 1996: 89), a qual o autor equipara às mulheres européias

não apenas em elegância e modos, como também em atividade intelectual

(Valera, 1996: 89). Da mesma forma, Piñero Valverde comenta as alusões do

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autor sobre a dedicação das senhoritas à música, quando o autor afirma que

todas as damas que vivem em sua rua cantam (Valera, 1996: 70), e apresenta

o caso de sua vizinha que, segundo ele, o martiriza ao cantar con el furor della

tempesta e, desta forma, o desperta todos os dias. No vislumbre de um

posicionamento de emancipação, uma observação interessante das cartas

cariocas de Valera na temática feminina ocorre quando o autor afirma que os

homens letrados brasileiros se dedicam a estudos administrativos, econômicos

e políticos, desprezando as ciências filosóficas, às quais estariam sendo

absorvidas por algumas damas (Valera, 1996: 104). Em outros momentos,

Valera tramita pela descrição de mulheres da alta sociedade local, como

Madame Jeannette, esposa de um rico comerciante com a qual Valera se

envolve e que tenta, sem sucesso, engravidar com a contribuição do autor,

para assegurar a participação na herança do marido (Valera, 1996: 123).

Mas que mulher era esta que Valera observava pelas casas e ruas do

Rio de Janeiro? Sob o plano de fundo de uma época às voltas com ideais de

igualdade e fraternidade, germinados ainda no final do século dezoito no

clamor liberal que sacudira a Europa, esta mulher vivia sob um silencioso

consenso às desigualdades de gênero, o que refletia uma hipocrisia inerente

não somente àqueles tempos, mas, sob formas variadas, à própria natureza da

sociedade humana. A família patriarcal da elite brasileira possuía como retrato

generalizado uma composição na qual estavam presentes o marido, dotado de

inquestionável autoridade, a esposa, os filhos, os empregados e os escravos.

O estereótipo da esposa era de total submissão ao senhor seu marido e

relacionava-se a um conjunto de restrições, produzindo um confinamento no

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lar, onde, presumivelmente, a mulher estaria protegida da sedução e do

assédio masculino. Entretanto, tal situação não se resumia ao confinamento

físico. A mulher carioca do século XIX era destituída de prerrogativas que lhe

permitissem direcionar sua vida. Estava reclusa em uma clausura social de

várias dimensões, em que podemos identificar, além das limitações ao direito

de ir e vir, restrições à escolha de parceiros, à exteriorização de idéias e

sentimentos, à livre atuação profissional, ao acúmulo intelectual de

conhecimento, à representatividade política e até mesmo ao prazer sexual.

A mulher do lar não possuía necessariamente uma vida sem afazeres.

Em muitas moradias repletas de parentes residentes, criados e escravos, elas

atuavam como administradoras. Os encargos compreendiam pequenas

negociações comerciais com os fornecedores de meios para o lar, cuidados

com a saúde dos residentes, encargos com a instrução de filhos e dependentes

e gerenciamento da produção de roupas, alimentos e outros elementos

indispensáveis ao dia-a-dia familiar, dos quais o marido só se inteirava como

consumidor. Mas era apenas aquele o seu universo de atuação. Viver no lar e

para o lar era o que se esperava de uma mulher, criada que era para ser

esposa e mãe. As ausências daqueles limites se reduziam a poucos

momentos, como a ida à Igreja e a procissões ou o comparecimento a eventos

sociais relevantes, devidamente acompanhada dos integrantes da família. O

ambiente privado era ainda o cativeiro da mulher, refém dos costumes e da

moral concebida pela sociedade dos homens. Assim como sua permanência no

lar, sua exposição em público era subordinada à vontade do pai ou do marido.

Um provérbio português da época dizia que “a mulher virtuosa da classe

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superior deixava sua casa somente em três ocasiões durante sua vida: para

ser batizada, para se casar e para ser enterrada” (Hahner, 2003: 43).

O confinamento no lar possuía um diferenciador na posição na

hierarquia social. Na classe pobre observamos uma diminuição na imposição

da submissão às mulheres. A própria miséria de sua situação atuava,

paradoxalmente, como fornecedora de maior autonomia. Eram mulheres que

trabalhavam como lavadeiras em fontes, como os tanques do Chafariz da

Carioca, ou nas beiras dos rios, atuavam como domésticas, cozinheiras,

costureiras, amas-de-leite e vendedoras ambulantes. Essas mulheres

conviviam com as dificuldades do confronto com a polícia e atritos com o poder

público pela taxação de suas micro-atividades comerciais. Entretanto, essa

necessidade da labuta lhes proporcionava uma liberdade no ir e vir, embora em

seus lares o fruto de seu trabalho fosse integralmente direcionado pelo vácuo

deixado pelo companheiro inexistente que a abandonara com prole para

sustentar ou que, mesmo existindo, pouca ou nenhuma contribuição auferia

para o orçamento doméstico. Podemos mesmo afirmar que, em se tratando da

classe pobre carioca, a mulher foi um grande agente da sobrevivência familiar,

pois a regularidade de suas atividades, particularmente as ligadas aos afazeres

do lar, permitia antever a garantia de uma receita mensal. Da mesma forma,

vemos a mulher escrava também alcançando uma certa autonomia pessoal no

ir e vir, principalmente as que eram utilizadas no ganho da venda de produtos

nas ruas, ou alugadas como amas-de-leite, momento em que poderiam exercer

sua vida privada, embora tal relativa liberdade ocorresse sob a autorização,

controle e interesse dos senhores, os quais lucravam com essas atividades.

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Mesmo a permissão a escravas de participarem de seus eventos festivos e

religiosos enquadravam-se numa estratégia de reduzir a tensão da vida cativa,

diminuindo os riscos de fugas e sublevações.

Cultivada como uma flor para desabrochar, a menina ainda

adolescente poderia ser, aos seus treze ou quatorze anos, considerada apta

para o casamento. O matrimônio da elite equivalia a um mercado, em que as

fortunas e interesses a ele associados eram as motivações da definição dos

cônjuges, por vontade dos pais. Maria Graham, uma inglesa que trabalhava

como governanta no Rio da primeira metade do século XIX registrou que o

“senhor Cupido” (Graham,1821: 344) não estava no direcionamento dos

acordos de núpcias. O casamento era instrumento de preservação e ampliação

do patrimônio, da propriedade e do prestígio social das famílias envolvidas.

Assim sendo, era indesejável que este ocorresse com pessoas que não

estivessem no mínimo equiparadas no posicionamento estratificado da

sociedade. Para tal, o livre arbítrio na escolha dos parceiros era

costumeiramente vetado, pois o casamento se tratava de um fato social cuja

importância sobrepujava o individual e tornava o aspecto afetivo um elemento

secundário, subordinado à imaculável preservação da continuidade familiar.

Poucos anos depois da permanência de Valera no Rio, o capitão de mar norte-

americano John Codman lamentava a utilização das mulheres “para aumentar

as fortunas de seus pais ao serem vendidas no mercado matrimonial quando

deveriam estar na escola” (Hahner, 2003: 45). Existem relatos da época,

inclusive, de moças que foram enclausuradas em conventos por se recusarem

a aceitar o marido designado pelo pai. Uma jovem filha de um comerciante

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permaneceu enclausurada no Convento da Ajuda por dois anos, até concordar

com o matrimônio.

Já entre as camadas pobres da população, a restrição financeira fazia

com que os casamentos legais fossem pouco comuns. Os custos eram

altíssimos, fazendo com que o concubinato ocorresse regularmente. Era,

portanto, o casamento, também um elemento discriminante de posicionamento

social, preservado à elite ou a seus próximos e sutilmente afastado dos

desfavorecidos economicamente.

A vocação feminina estava designada e estabelecida ao nascer: uma

mulher deveria preparar-se e desejar ser esposa e mãe. Desta forma, não

havia acesso ao ensino superior nem dedicação a uma formação

profissionalizante. O simples fato de escrever e ler já se configurava um

aspecto discutível. Um outro provérbio português da época dizia: “uma mulher

é suficientemente educada quando pode ler com propriedade seu livro de

orações e sabe como escrever a receita de geléia de goiaba; mais que isso põe

o lar em perigo” (Hahner, 2003: 57). Entretanto, o próprio florescimento do Rio

de Janeiro como capital do império, com o incremento da vida comercial e

política, trouxe uma intensificação da vida social. Os bailes reuniam a alta

sociedade, assim como os teatros e eventos religiosos. Nessas ocasiões, se

buscava ostentar o prestígio familiar e, nesse bojo, se inseria a necessidade de

demonstrar requinte e elegância. Esta efervescência da sociedade carioca

contribuiu, desta forma, como um incentivo para que muitos pais buscassem

educar suas filhas, seja na base da antiga educação doméstica, seja nas

escolas para meninas. Porém, o que os pais da época conceituavam como

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educação para as meninas era bem limitado. Um pai estava mais interessado

em que sua filha aprendesse a tocar bem piano, a cantar e a dançar do que

falar francês ou escrever. Além disso, o período em que a maioria permanecia

na escola era dos oito aos treze ou quatorze anos, após o que o destino

desejado e, a partir de então, procurado pelo pai, era o casamento. A partir de

então, a perpetuação do círculo vicioso da clausura feminina estaria

assegurada, e caberia à jovem esposa repassar às suas filhas os mesmos

valores sob os quais ela havia sido criada.

Conclusão

O Rio de Janeiro no século XIX, como berço da corte imperial,

configura-se um palco privilegiado para estudarmos os matizes da situação

feminina em nossa sociedade. Apesar da opressão imposta à mulher estar

sempre presente no passado histórico da humanidade, o que nos permite

atribuir maior importância ao estudo do tema na época em questão é o caráter

de contradição entre a modernidade que se implantará a partir da segunda

metade do século e as restrições à liberdade feminina. E contradição sempre

foi um elemento presente nas ruas do Rio de Janeiro. A contradição entre a

natureza exuberante e a ocupação espacial humana. A contradição entre os

movimentos reivindicatórios de liberdade, como o processo de independência

de Portugal, e a escravidão de homens. E tantas outras que se apresentam

como indícios do quanto se pode relativizar os embasamentos morais que

regem os desígnios do que é certo e errado em termos de sociedade.

É da contradição que nasce a conscientização do desequilíbrio, o

confronto e a reestruturação. Esse desequilíbrio consubstanciado pelas

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diferenças de status social entre os gêneros municiou o confronto

representado, por sua vez, pelo processo de emancipação feminina, acelerado

no final do século XIX e desenvolvido por todo o século XX. Já a reestruturação

é uma fase ainda em andamento e se reflete nas conquistas alcançadas, que a

cada dia conduz a força feminina a postos de direção econômica, a funções de

representação política e lhe confere a dádiva do desmantelamento da clausura

social que a mantinha retida em esferas concêntricas de posicionamentos

morais manipulados em prol da predominância masculina. As mulheres

presentes nas Cartas de Valera a Estébanez Calderón são depositárias dos

germes dessa revolução. A aparente passividade de uma Senhora Delavat,

perdida no passado inspirado pelo esplendor francês, passa por uma Madame

Finet às voltas com suas atividades comerciais e se debruça sobre sua Armida,

um amor não correspondido, senhora de sua vontade e cuja intelectualidade é

destacada pelo autor. Certamente muito ainda se poderá obter na temática da

emancipação feminina ao nos debruçarmos sobre os escritos de Valera,

conjugando suas cartas com suas obras de ficção.

A potencialidade latente feminina sempre esteve disponível, mas

enclausurada por preconceitos e disposições da sociedade, que privaram a

mulher de exercer plenamente sua existência como ser pensante. Convém,

portanto, que nos debrucemos sobre a mulher do século XIX para que

valorizemos e ouçamos nossas mulheres e filhas do século XXI. Tais estudos

poderão nos possibilitar conceber até mesmo uma visita hipotética de Valera

ao Rio de Janeiro no século XXI, e o seu relato crítico sobre uma mulher

cidadã, participativa e plenamente feliz.

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Bibliografía

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