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PRIMEIRA PARTE

DAS PAIXÕES EM GERALE OCASIONALMENTE

DE TODA A NATUREZA DO HOMEM

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Art. 1. O que é paixão em relação aum sujeito é sempre ação a qualquer outro respeito.

Nada há em que melhor apareçaquão defeituosas são as ciências querecebemos dos antigos do que naquiloque escreveram sobre as paixões; pois,embora seja esta uma matéria cujoconhecimento foi sempre muito procu

rado, e ainda que não pareça ser dasmais difíceis, porquanto cada qual,sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures qualquer observação para lhes descobrir a natureza,todavia o que os antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior parte tãopouco crível, que não posso alimentarqualquer esperança de me aproximar

da verdade, senão distanciando-me doscaminhos que eles trilharam. Eis porque serei obrigado a escrever aqui domesmo modo como se tratasse de umamatéria que ninguém antes de mimhouvesse tocado; e, para começar, considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamadopelos filósofos uma paixão em relação

ao sujeito a quem acontece, e umaação com respeito àquele que faz comque aconteça1; de sorte que, embora o

1 "Ora, sempre julguei que é uma e mesma coisaque é denominada ação quando a relacionamos aotermo de onde ela procede e paixão com respeito aotermo no qual ela é recebida." (A Hyperaspistes,agosto de 1641.)

agente e o paciente sejam amiúdemuito diferentes, a ação e a paixão não

deixam de ser sempre uma mesmacoisa com dois nomes, devido aos doissujeitos diversos aos quais podemosrelacioná-la.

Art. 2. Que para conhecer as paixõesda alma cumpre distinguir entre assuas funções e as do corpo.

Depois, também considero que nãonotamos que haja algum sujeito queatue mais imediatamente contra nossaalma do que o corpo ao qual estáunida, e que, por conseguinte, devemospensar que aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação; demodo que não existe melhor caminhopara chegar ao conhecimento de nossas paixões do que examinar a diferença que há entre a alma e o corpo, afim de saber a qual dos dois se deveatribuir cada uma das funções existentes em nós.

Art. 3. Que regra se deve seguir para

esse efeito.

E nisso não se encontrará grandedificuldade, se se tomar em conta quetudo o que sentimos existir em nós, eque vemos existir também nos corposinteiramente inanimados, só deve seratribuído ao nosso corpo; e, ao contra-

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rio, que tudo o que existe em nós, e quenão concebemos de modo algum comopassível de pertencer a um corpo, deveser atribuído à nossa alma2.

Art. 4. Que o calor e o movimento dosmembros procedem do corpo, e os

 pensamentos, da alma.

Assim, por não concebermos que ocorpo pense de alguma forma, temosrazão de crer que toda espécie de pensamento em nós existente pertence àalma; e, por não duvidarmos de quehaja corpos inanimados que podemmover-se de tantas diversas maneirasque as nossas, ou mais do que elas, eque possuem tanto ou mais calor (oque a experiência mostra na chama,que possui, ela só, muito mais calor emovimento do que qualquer de nossos

membros), devemos crer que todo ocalor e todos os movimentos em nósexistentes, na medida em que nãodependem do pensamento, pertencemapenas ao corpo.

Art. 5. Que é erro acreditar que a almadá o movimento e o calor ao corpo.

Por esse meio, evitaremos um erroconsiderável em que muitos caíram, desorte que o reputo a principal causaque até agora impediu que se pudessemexplicar bem as paixões e as outrascoisas pertencentes à alma. Consisteem ter-se imaginado, vendo-se que

todos os corpos mortos são privadosde calor e depois de movimento, queera a ausência da alma que fazia cessaresses movimentos e esse calor; e assimse julgou, sem razão, que o nosso calornatural e todos os movimentos de nos-

2 Lembrança do princípio da distinção das substâncias enunciado na Meditação Sexta.

sos corpos dependem da alma3, aopasso que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta, quandose morre, porque esse calor cessa, porque os órgãos que servem para movero corpo se corrompem.

Art. 6. Que diferença há entre umcorpo vivo e um corpo morto.

A fim de evitarmos, portanto, esseerro, consideremos que a morte nunca

sobrevêm por culpa da alma, massomente porque alguma das principaispartes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivodifere do de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outramáquina que se mova por si mesma),quando está montado e tem em si o

princípio corporal dos movimentospara os quais foi instituído, com tudo oque se requer para a sua ação, diferedo mesmo relógio, ou outra máquina,quando está quebrado e o princípio deseu movimento pára de agir 4.

Art. 7. Breve explicação das partes docorpo e de algumas de suas funções.

Para tornar isso mais inteligível,explicarei, em poucas palavras, aforma toda de que se compõe a má-

3 A alma está implantada na máquina do corpo,mas não é seu princípio de formação nem conservação. "Trata-se simplesmente de íntima associaçãoda alma com o todo e as partes da máquina já feita. . . Assim a natureza física realizaria mecanicamente uma máquina muito complicada, com disposições tais que uma alma poderia de alguma formacalçá-la, sem que tenha tido algo com a fabricaçãoe a imbricação de suas partes." (Guéroult, II, pág.181.)4 No caso do homem, a deterioração da máquinanão conduz apenas à sua destruição, mas também àseparação da alma e do corpo. A doutrina da uniãoda alma e do corpo na separação exclui, assim, radicalmente todo animismo ou vitalismo.

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quina de nosso corpo5. Não há quem já não saiba que existem em nós umcoração, um cérebro, um estômago,músculos, nervos, artérias, veias e coisas semelhantes; sabe-se também que

os alimentos ingeridos descem ao estômago e às tripas, de onde o seu suco,correndo para o fígado e para todas asveias, se mistura com o sangue queelas contêm, aumentando, por essemeio, a sua quantidade6. Aqueles queouviram falar, por pouco que seja, damedicina sabem, além disso, como secompõe o coração e como todo o san

gue das veias pode facilmente correrda veia cava para seu lado direito, edaí passar ao pulmão pelo vaso quedenominamos veia arteriosa, depoisretornar do pulmão ao lado esquerdodo coração pelo vaso denominadoartéria venosa7, e, enfim, passar daí para a grande artéria, cujos ramos seespalham pelo corpo inteiro. E mesmo

todos os que não foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, eque quiseram abrir os olhos para examinar a opinião de Harvey no tocante à circulação do sangue8, não duvi-

5 Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável àinteligência das paixões a distinção entre as funçõesque dependem do corpo e as funções que dependemda alma, Descartes irá agora descrever sucessivamente as funções essenciais de um e de outro. Até o§ 17, as funções do corpo.6 Cf. Tratado do Homem (Plêiade, págs. 808-809):devido à fermentação que se produz no estômago,"as partes mais sutis" dos alimentos formam oquilo, que é levado para o fígado, onde sofre a açãoda hematose. "Este licor aí se sutiliza. . . adquirecor e toma a forma do sangue. . . Ora, este sangue,assim contido nas veias, só tem uma única passagem manifesta por onde possa sair delas, a saber, aque conduz à concavidade direita do coração."7 Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa:veia pulmonar.8 Descartes recusava atribuir a ação do coração auma contração muscular, mas aderia inteiramente àteoria circulatória de Harvey. "A opinião do Sr.Descartes sobre a circulação do sangue", relataBaillet, "granjeara-lhe grande crédito entre os doutos e contribuíra maravilhosamente para restabelecer nesta matéria a reputação de William Harvey,que se vira maltratada por diversos médicos dosPaíses-Baixos, a maioria dos quais ignorante ouobstinada em antigas máximas de suas faculdades."

dam de que todas as veias e artérias docorpo sejam como regatos por onde osangue não pára de correr muito rapidamente, começando seu curso nacavidade direita do coração pela veia

arteriosa, cujos ramos se espalham portodo o pulmão e se juntam aos da artéria venosa, pelo qual ele passa do pulmão ao lado esquerdo do coração; depois segue daí para a grande artéria,cujos ramos, esparsos pelo resto docorpo, se unem aos ramos da veia quelevam de novo o mesmo sangue à cavidade direita do coração, de sorte que

essas duas cavidades são como eclusas, através de cada uma das quaispassa todo o sangue em cada volta quefaz pelo corpo. Demais, sabe-se quetodos os movimentos dos membrosdependem dos músculos e que estesmúsculos se opõem uns aos outros, detal modo que, quando um deles seencolhe, atrai para si a parte do corpoa que está ligado, o que provoca aomesmo tempo o alongamento do músculo que lhe é oposto; depois, se acontece numa outra vez que este último seencolha, leva o primeiro a alongar-se epuxa para si a parte a que eles estãoligados. Enfim, sabe-se que todos essesmovimentos dos músculos, assimcomo todos os sentidos, dependem dosnervos, que são como pequenos fios oucomo pequenos tubos que procedem,todos, do cérebro, e contêm, como ele,certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais9.

Art. 8. Qual é o princípio de todasessas funções.

Mas não se sabe comumente de queforma esses espíritos animais e nervoscontribuem para os movimentos e ossentidos, nem qual é o princípio corpo-

9 O Tratado do Homem dirá: "Um certo ventomuito sutil, ou melhor, uma chama muito viva emuito pura".

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ral que os faz agir; eis por que, embora já tenha tratado algo do assunto emoutros escritos1 °, não deixarei de dizeraqui sucintamente que, enquanto vivemos, há um contínuo calor em nosso

coração, que é uma espécie de fogo aí mantido pelo sangue das veias, e queesse fogo é o princípio corporal detodos os movimentos de nossos membros1 \ 

Art. 9. Como se faz o movimento docoração12.

O seu primeiro efeito é dilatar o sangue que enche as cavidades do coração; e isso é causa de que esse sangue,tendo necessidade de ocupar maiorespaço, passe com impetuosidade dacavidade direita para a veia arterial, eda esquerda para a grande artéria;depois, cessando essa dilatação, torne

incontinenti a entrar da veia cava paraa cavidade direita do coração, e daartéria venosa para a esquerda; pois hápequenas peles nas entradas dessesquatro vasos, dispostas de tal modoque fazem com que o sangue não possapenetrar no coração senão pelas duasúltimas, nem sair dele exceto pelasduas outras. O novo sangue que entra

no coração é aí imediatamente rarefeito, do mesmo modo que o precedente;é só nisso que consiste a pulsação ou obatimento do coração e das artérias;de sorte que esse batimento se reiteratantas vezes quantas entra sanguenovo no coração. É também só issoque dá ao sangue o seu movimento, e ofaz correr, muito rápida e incessante-

1° Nomeadamente na quinta parte do Discurso.

1 ' "Uma observação errónea lhe informa que ocoração é o mais quente de todos os órgãos. Tem,portanto, um ponto de partida: o coração é um focode calor, deve esquentar e dilatar o sangue que oatravessa." (Osório de Almeida, "Descartes Physio-logiste". Eludes Cartésiennes, Hermann, 1937.)

12 Cf. a quinta parte do Discurso e Gilson, Le Role de la Pensée Médiévale dans la Formalion duSvstème Cartésien, cap. 2.

mente, em todas as artérias e veias,mediante o que leva o calor que adquire no coração a todas as outras partesdo corpo e lhes serve de alimento.

Art. 10. Como se produzem no cérebroos espíritos animais.

Mas o que há nisso de mais notávelé que todas as partes mais vivas e maissutis do sangue que o calor rarefez nocoração entram incessantemente emgrande quantidade nas cavidades docérebro. E a causa que as conduz paraaí, de preferência a qualquer outrolugar, é que todo sangue saído do coração pela grande artéria toma seu cursoem linha reta para esse sítio, e que, nãopodendo entrar todo, porque o lugarpossui apenas passagens muito estreitas, só passam as suas partes mais agitadas e mais sutis, enquanto o resto se

espalha por todos os outros locais docorpo. Ora, tais partes do sanguemuito sutis compõem os espíritos animais1 3 ; e não precisam, para tal efeito,receber qualquer modificação no cérebro, exceto a de serem separadas dasoutras partes do sangue menos sutis1 4 ;pois o que denomino aqui espíritos nãosão mais do que corpos e não têm

qualquer outra propriedade, exceto ade serem corpos muito pequenos e se

13 Em Galeno (De Usu Partium), os espíritos vitaischegam pela carótida aos ventrículos do cérebro,onde são transformados em espíritos animais edisponíveis para a função sensório-motora. EmDescartes, a distinção clássica entre espíritos animais (elaborados no cérebro), espíritos vitais (saídos do coração) e espíritos naturais (produzidos nofígado) é abolida. "Não mais há entre essas três formas de espíritos diferença qualitativa real, massomente uma diferença de calibre e mobilidadeentre elementos mais ou menos refinados." (Mes-nard, "Espirit de la Physiologie Cartésienne",

 Archives de Philosophie, vol. XIII.)' 4 "E assim, sem outro preparo ou mudança, exceto que elas são separadas das mais grosseiras e queretêm ainda a extrema velocidade que o calor docoração lhes deu, deixam de ter a forma do sanguee se chamam espíritos animais." (Tratado do Homem.)

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moverem muito depressa, assim comoas partes da chama que sai de umatocha; de sorte que não se detêm emnenhum lugar e, à medida que entramalguns nas cavidades do cérebro, tam

bém saem outros pelos poros existentesna sua substância, poros que os conduzem aos nervos e daí aos músculos,por meio dos quais movem o corpo emtodas as diversas maneiras pelas quaisesse pode ser movido1 5.

Art. 11. Como se fazem os movimentos dos músculos.

Pois a única causa de todos osmovimentos dos membros é que osmúsculos se encolhem e seus opostosse alongam, como já foi dito; e a únicacausa que faz um músculo encolher-semais do que seu oposto é que recebe,por pouco que seja, mais espírito do

cérebro do que o outro. Não que osespíritos que vêm imediatamente docérebro bastem por si sós para moverem tais músculos, mas determinam osoutros espíritos que já existem nessesdois músculos a saírem todos muiprontamente de um deles e a passaremao outro; dessa maneira, aquele deonde saem torna-se mais longo e mais

lasso e aquele no qual entram, sendorapidamente inflado por eles, se encolhe e atrai o membro a ele ligado. Eisso é fácil de conceber, desde que sesaiba que pouquíssimos espíritos animais vêm continuamente do cérebropara cada músculo, mas que em cadaum há sempre grande quantidade deoutros encerrados no mesmo músculo

que nele se movem muito depressa, àsvezes girando apenas no lugar onde se

' 5 Cumpre imaginar o encéfalo "como uma espécie de reservatório central, o ventrículo, onde vemabrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfartodos os espíritos disponíveis: estes filtram-se através dos poros do tecido coroidiano, que revestecomo um dossel o ventrículo". (Mesnard, art. cil..pág. 207.)

acham, a saber, quando não encontram passagens abertas para sair, e àsvezes correndo para o músculo oposto.Tanto mais que há pequenas aberturasem cada um desses músculos por onde

tais espíritos podem correr de um para0 outro e que estão de tal modo dispostas que — quando os espíritos vindosdo cérebro para um deles possuem, porpouco que seja, mais força do que osque vão para o outro1 6 — abremtodas as entradas por onde os espíritosdo outro músculo podem passar paraele e fecham, ao mesmo tempo, todas

por onde os espíritos desse podem passar ao outro; dessa maneira, todos osespíritos antes contidos nesses doismúsculos se reúnem num deles muiprontamente e assim o inflam e o encolhem, enquanto o outro se alonga e sedistende.

Art. 12. Como os objetos de foraatuam sobre os órgãos dos sentidos.

Resta ainda saber as causas quelevam os espíritos a não correrem sempre da mesma forma do cérebro paraos músculos e a se dirigirem às vezesmais a uns do que a outros1 7. Pois,afora a ação da alma, que é verdadei

ramente em nós uma dessas causas,como direi mais abaixo, há ainda duasoutras que não dependem senão docorpo e que é preciso observar. A primeira consiste na diversidade dosmovimentos excitados nos órgãos dossentidos por seu objetos, a qual já foipor mim assaz amplamente explicadana Dióptrica; mas, para que os que

1 6 "Os espíritos", dirá Descartes no artigo seguinte, "nem sempre correm do cérebro para os músculos da mesma maneira." Esta diferença na força delançamento comanda a regulamentação dos espíritos já contidos nos músculos e, por esse meio, osmovimentos musculares.1 7 Por que esta diversidade no escoamento dosespíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movimentos produzidos no cérebro por ocasião dasimpressões sensíveis.

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virem o presente escrito não tenhamnecessidade de ler outros, repetireiaqui que há três coisas a considerarnos nervos, a saber: a sua medula, ousubstância interior, que se estende na

forma de pequenos filetes a partir docérebro, onde toma origem, até asextremidades dos outros membros aosquais esses filetes estão ligados; depoisas peles que os envolvem e que, sendocontíguas com as que envolvem o cérebro, compõem pequenos condutos emque ficam encerrados esses pequenosfiletes; depois, enfim, os espíritos animais que, levados por esses mesmoscondutos do cérebro até os músculos,são a causa de tais filetes permanecerem aí inteiramente livres e estendidos, de tal modo que a menor coisaque mova a parte do corpo à qual seliga a extremidade de algum deles levaa mover, pelo mesmo meio, a parte do

cérebro de onde vem, tal como ao sepuxar uma das pontas de uma cordamove-se a outra18.

Art. 13. Que esta ação dos objetos de fora pode conduzir diversamente osespíritos aos músculos.

Expliquei também na Dióptricacomo todos os objetos da visão comu-nicam-se conosco apenas porquemovem localmente, por intermédio doscorpos transparentes que existem entreeles e nós, os pequenos filetes dos nervos ópticos que se acham no fundo denossos olhos, e em seguida os lugaresdo cérebro de onde provêm esses ner

vos; que os movem, digo eu, de tantasmaneiras diversas que nos fazem verdiversidades nas coisas, e que não sãoimediatamente os movimentos que seefetuam no olho, mas sim os que seefetuam no cérebro, que representampara a alma esses objetos. A exemplo

18 Cf. Meditação Sexta, § 35.

disso, é fácil conceber que os sons, osodores, os sabores, o calor, a dor, afome, a sede e, em geral, todos os objetos, tanto dos nossos demais sentidosexternos como dos nossos apetitesinternos, excitam também alguns movimentos em nossos nervos, que setransmitem por meio deles até o cérebro; e além de esses diversos movimentos do cérebro fazerem com que a almatenha diversos sentimentos, podemtambém fazer, sem ela1 9, que os espíritos sigam mais para certos músculos

do que para outros, e, assim, quemovam nossos membros, o que provarei aqui somente através de um exemplo. Se alguém avança rapidamente amão contra os nossos olhos, comopara nos bater, embora saibamos tra-tar-se de nosso amigo, que faz isso sópor brincadeira e tomará muito cuida

do para não nos causar nenhum mal,temos todavia muita dificuldade emimpedir que se fechem; isso mostra quenão é por intermédio de nossa almaque eles se fecham, pois é contra anossa vontade, a qual é, se não a única,ao menos a sua principal ação; assimporque a máquina de nosso corpo é de

tal modo composta que o movimentodessa mão contra os nossos olhos excita outro movimento em nosso cérebro,

0 qual conduz aos músculos os espíritos animais que fazem baixar aspálpebras20.

Art. 14. Que a diversidade existente

entre os espíritos também pode diversi- Jicar-lhes o curso.

1 9 Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movimento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movimento sensorial-ação automática. O art. 16 especificará o funcionamento desta ação automática.2 0 Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar olivro indispensável de Canguilhem: La Formationdu Concept de Réflexe. . .

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A outra causa21 que serve para conduzir diversamente os espíritos animais aos músculos é a agitação desigual desses espíritos e a diversidade desuas partes. Pois, quando algumas desuas partes são mais grossas e maisagitadas do que as outras, passammais à frente em linha reta nas cavidades e nos poros do cérebro, e por essemeio são levadas a músculos diferentesdaqueles para onde iriam se tivessemmenos força.

Art. 15. Quais são as causas de sua

diversidade.E essa desigualdade pode proceder

das diversas matérias de que se compõem, como se vê nos que beberammuito vinho cujos vapores, entrandoprontamente no sangue, sobem docoração ao cérebro, onde se convertemem espíritos que, sendo mais fortes e

mais abundantes do que aqueles que aí se encontram comumente, são capazesde mover o corpo de muitas maneirasestranhas. Esta desigualdade dos espíritos pode também proceder das diversas disposições do coração, do fígado,do estômago, do baço e de todas as outras partes que contribuem para a suaprodução; pois cumpre principalmenteobservar aqui certos pequenos nervosinsertos na base do coração, que servem para alargar e estreitar as entradas dessas concavidades, por meio doque o sangue, dilatando-se nelas maisou menos fortemente, produz espíritosdiversamente dispostos. É precisonotar também que, embora o sangue

que penetra no coração provenha detodos os outros lugares do corpo, todavia acontece muitas vezes ser ele impe-

2 ' Segunda causa: o efeito de lançamento variávelsegundo a desigualdade dos espíritos, podendo estadesigualdade provir de causas diversas que o artigoseguinte especificará. A terceira causa: a ação daalma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36.

lido mais de certas partes do que deoutras, porque os nervos e os músculosque respondem a essas partes o pressionam ou agitam mais, e porque, conforme a diversidade das partes de ondevem mais, dilata-se diversamente nocoração, e em seguida produz espíritosdotados de qualidades diferentes.Assim, por exemplo, o que provém daparte inferior do fígado, onde está o fel,dilata-se no coração de maneira diferente da do sangue oriundo do baço, eeste de modo diferente do do proveniente das veias dos braços ou das per

nas, e enfim este diferentemente dosuco dos alimentos, quando, tendo denovo saído do estômago e dos intestinos, passa rapidamente pelo fígado atéo coração.

Art. 16. Como todos os membros podem ser movidos pelos objetos dossentidos e pelos espíritos sem a ajuda

da alma.

Enfim, é preciso notar que a máquina de nosso corpo é de tal modocomposta que todas as mudanças queocorrem no movimento dos espíritospodem levá-los a abrir alguns poros docérebro mais do que outros, e recipro

camente que, quando algum dessesporos está pouco mais ou menos aberto que de costume pela ação dos nervos que servem aos sentidos22, isso altera algo no movimento dos espíritos edetermina que sejam conduzidos aosmúsculos destinados a mover o corpo

22 O Tratado do Homem descreve com maior pre

cisão este mecanismo. "Se o fogo A se encontraperto do pé B", as partes do fogo estirarão um nervoe abrirão "no mesmo instante a entrada do porocontra o qual este pequeno fio termina. . . Ora,estando assim aberta a entrada do poro, os espíritosanimais da concavidade entram nele, e são levadospor ele, em parte aos músculos que servem para retirar este pé deste fogo, em parte aos que servem paravolver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e emparte aos que servem para adiantar as mãos e dobrar todo o corpo para defendê-lo."

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da forma como ele é comumente movido por ocasião de tal ação; de sorteque todos os movimentos que fazemossem que para isso a nossa vontade contribua (como acontece muitas vezes

quando respiramos, andamos, comemos e, enfim, quando praticamos todasas ações que são comuns a nós e aosanimais) não dependem senão da conformação de nossos membros e docurso que os espíritos, excitados pelocalor do coração, seguem naturalmente no cérebro, nos nervos e nos

músculos, tal como o movimento deum relógio é produzido para exclusivaforça de sua mola e pela forma de suasrodas.

Art. 17. Quais são as funções daalma.

Depois de ter assim consideradotodas as funções que. pertencem somente ao corpo, é fácil reconhecer quenada resta em nós que devemos atribuir à nossa alma, exceto nossospensamentos, que são principalmentede dois géneros, a saber: uns são asações da alma, outros as suas paixões.Aquelas que chamo suas ações são

todas as nossas vontades, porque sentimos que vêm diretamente da alma eparecem depender apenas dela; domesmo modo, ao contrário, pode-seem geral chamar suas paixões todaespécie de percepções ou conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é nossa alma que os faztais como são, e porque sempre os re

cebe das coisas por elas representadas23

23 Trata-se da primeira definição das paixões,muito geral, pois compreende todas as percepções econhecimentos, isto é, tudo o que, na alma, não tema alma como única origem. A partir daí, Descartes,por distinções sucessivas, irá delimitar as paixõesno sentido estrito.

Art. 18. Da vontade.

Nossas vontades são, novamente, deduas espécies; pois umas são ações daalma que terminam na própria alma,

como quando queremos amar a Deusou, em geral, aplicar nosso pensamento a qualquer objeto que não ématerial; as outras são ações que terminam em nosso corpo, como quando,pelo simples fato de termos vontade depassear, resulta que nossas pernas semexam e nós caminhemos.

Art. 19. Da percepção.

Nossas percepções também são deduas espécies: umas têm a alma comocausa, outras o corpo2 4. As que têm aalma como causa são as percepções denossas vontades e de todas as imaginações ou outros pensamentos que dela

dependem; pois é certo que não poderíamos querer qualquer coisa que nãopercebêssemos pelo mesmo meio que aqueremos; e, embora com respeito ànossa alma seja uma ação o querer alguma coisa, pode-se dizer que é também nela uma paixão o perceber queela quer; todavia, dado que essa percepção e essa vontade são efetivamente

uma mesma coisa2 6

, a sua denominação faz-se sempre pelo que é maisnobre, e por isso não se costuma chamá-la paixão, mas apenas ação.

Art. 20. Das imaginações e outros pensamentos que são formados pelaalma.

Quando nossa alma se aplica a ima-

2 4 Arts. 19-20: a) as percepções que têm a almacomo causa.2 5 "Não poderíamos querer coisa alguma semsaber que a queremos, nem sabê-lo a não ser poruma ideia; mas não afirmo de modo algum que estaideia seja diferente da própria ação." (Cartas, aMersenne, 28 de julho de 1641.)

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ginar alguma coisa que não existe2 6,coino a representar um palácio encantado ou uma quimera, e também quando se aplica a considerar algo que ésomente inteligível e não imaginável,

por exemplo a sua própria natureza, aspercepções que tem dessas coisas dependem principalmente da vontade quea leva a percebê-las; eis por que se costuma considerá-las como ações maisdo que como paixões2 7.

Art. 21. Das imaginações que só têm por causa o corpo.

Entre as percepções que são causadas pelo corpo, a maior parte dependedos nervos; mas há também algumasque deles não dependem, e que se chamam imaginações28, como essas deque acabo de falar, das quais, não obs

tante, diferem pelo fato de nossa vontade não se empenhar em formá-las, oque faz com que não possam ser incluídas no número das ações da alma, eprocedam apenas de que, sendo osespíritos diversamente agitados, e encontrando os traços de diversas impressões que precederam no cérebro,

tomem aí seu curso fortuitamente porcertos poros mais do que por outros.Tais são as ilusões de nossos sonhos etambém os devaneios a que nos entregamos muitas vezes estando despertos,quando nosso pensamento erra negligentemente sem se aplicar por si

2 6 A imaginação voluntária ("se aplica") ou criadora também pertence a este grupo.2 7 O campo das paixões propriamente ditas já estáreduzido: só "as percepções que têm o corpo comocausa" merecem verdadeiramente esse nome.28 Arts. 21 a 27: b) as percepções que têm o corpocomo causa. Distinguem-se: 1." as que não resultamde uma mensagem sensorial e são produzidas pelocurso fortuito dos espíritos.

mesmo a nada29. Ora, ainda que algumas dessas imaginações sejam paixõesda alma, tomando a palavra na suamais própria e mais perfeita significação, e ainda que possam ser todasassim denominadas, se se tomar o

termo em uma acepção mais geral,todavia, posto que não têm uma causatão notável e tão determinada como aspercepções que a alma recebe porintermédio dos nervos, e parecem serapenas a sombra e a pintura destas,antes que as possamos distinguir bemcumpre considerar a diferença que háentre estas outras.

Art. 22. Da diferença que existe entreas outras percepções.

Todas as percepções que ainda nãoexpliquei vêm à alma por intermédiodos nervos30 , e existe entre elas essadiferença pelo fato de relacionarmosumas aos objetos de fora, que feremnossos sentidos, e as outras ao nossocorpo ou a algumas de suas partes, eoutras enfim à nossa alma.

Art. 23. Das percepções que relacionamos com os objetos que existem forade nós.

As que referimos a coisas situadasfora de nós, a saber, aos objetos denossos sentidos, são causadas, ao

2 9 Acerca desses devaneios, cf. Cartas, a Elisabeth,de 6 de outubro de 1645. Se o sonho não suprime opensamento, a imaginação aí se liberta da vontade:não posso sair do sonho à minha vontade (é o corpoque é responsável pelo despertar). Permitindo àsrepresentações resultantes do corpo viver uma vidaprópria, o sonho não ameaça, todavia, o Cogito,visto que o pensamento passivo ainda acolhe aí asimagens como imagens. Eis por que é sempre possível passar da imaginação-paixão à imaginaçãocontrolada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junhode 1645.)3 ° 2." as que dependem dos nervos. Podemos dividi-las em três rubricas: a) percepções referidas aosobjetos (art. 23); b) às afecções do corpo (art. 24); c)à alma em particular (art. 25).

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menos quando nossa opinião não éfalsa, por esses objetos que, provocando alguns movimentos nos órgãosdos sentidos externos, os provocamtambém no cérebro por intermédio dos

nervos, os quais levam a alma a senti-los. Assim, quando vemos a luz de umfacho e ouvimos o som de um sino,esse som e essa luz são duas açõesdiversas que, somente por excitaremdois movimentos diversos em algunsde nossos nervos, e por meio deles nocérebro, dão à alma dois sentimentosdiferentes, os quais relacionamos de tal

modo aos objetos que supomos seremsua causa, que pensamos ver o própriofacho e ouvir o sino, e não sentir unicamente movimentos que procedemdeles31 .

Art. 24. Das percepções que relacionamos com o nosso corpo.

As percepções que relacionamoscom o nosso corpo ou com qualquer desuas partes são as que temos da fome,da sede e de nossos demais apetitesnaturais, aos quais podemos juntar ador, o calor e as outras afecções quesentimos como nos nossos membros, enão como nos objetos que existem forade nós: assim, podemos sentir ao

mesmo tempo, e por intermédio dosmesmos nervos, a frieza da nossa mãoe o calor da chama de que ela se aproxima, ou então, ao contrário, o calorda mão e o frio do ar a que está exposta, sem que haja qualquer diferençaentre as ações que nos fazem sentir oquente ou o frio que existe em nossamão e as que nos fazem sentir aqueleque está fora de nós, a não ser que,sucedendo uma dessas ações à outra,

3 ' As palavras importantes são "diversos" e "diferentes". As percepções sensíveis nos informam nãosó sobre a existência dos corpos, mas também sobreas variedades' geométricas desses corpos, às quaiselas correspondem por intermédio da variedade dosmovimentos que eles produzem no cérebro.

 julguemos que a primeira já existe emnós e que a outra, a seguinte, não estáainda em nós, mas no objeto que acausa.

Art. 25. Das percepções que relacionamos com a nossa alma32.

As percepções que se referem somente à alma são aquelas cujos efeitosse sentem como na alma mesma e deque não se conhece comumente nenhuma causa próxima à qual possamosrelacioná-las: tais são os sentimentosde alegria, de cólera e outros semelhantes, que são às vezes excitados emnós pelos objetos que movem nossosnervos, e outras vezes também por outras causas. Ora, ainda que todas asnossas percepções, tanto as que se referem aos objetos que estão fora de nóscomo as que se referem às diversas

afecções de nosso corpo, sejam verdadeiramente paixões com respeito ànossa alma, quando tomamos essetermo em sua significação mais geral,todavia costuma-se restringi-lo a fimde significar somente as que se relacionam com a própria alma, e apenasessas últimas é que me propus explicaraqui sob o nome de paixões da alma.

Art. 26. Que as imaginações que de pendem apenas do movimento fortuitodos espíritos podem ser também pai

 xões tão verdadeiras quanto as percepções que dependem dos nervos3 3.

Resta notar aqui que exatamente as

32 Delimitação das paixões ao sentido restrito. Cf.o "quadro sinótico" que resume essa classificaçãono Ensaio sobre a Moral de Descartes, de Lívio Teixeira, pág. 151.3 3 Retorno às "imaginações" descritas no art. 21."Sombra e pintura" das percepções (a, b), elas nãopodem imitar as percepções que se referem à alma(c). Razão suplementar para distinguir a terceiracategoria das duas primeiras.

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mesmas coisas que a alma percebe porintermédio dos nervos lhe podem sertambém representadas pelo curso fortuito dos espíritos, sem que haja outradiferença exceto que as impressões vindas ao cérebro por meio dos nervoscostumam ser mais vivas e maisexpressas do que as excitadas nelepelos espíritos; o que me levou a dizerno art. 21 que as últimas são como asombra e a pintura das outras. É preciso também notar que ocorre algumasvezes ser essa pintura tão semelhante àcoisa representada, que podemos enga-

nar-nos no tpcante às percepções quese relacionam aos objetos fora de nós,ou então quanto às que se relacionama algumas partes de nosso corpo, masnão podemos equivocar-nos do mesmomodo no tocante às paixões, porquanto são tão próximas e tão interiores à nossa alma que lhe é impossfvelsenti-las sem que» sejam verdadeira

mente tais como ela as sente. Assim,muitas vezes quando dormimos, emesmo algumas vezes estando acordados, imaginamos tão fortemente certascoisas que pensamos vê-las diante denós, ou senti-las no corpo, embora aí não estejam de modo algum; mas,ainda que estejamos adormecidos esonhemos, não podemos sentir-nos

tristes ou comovidos por qualqueroutra paixão, sem que na verdade aalma tenha em si esta paixão3 4.

Art. 27. A definição das paixões daalma.

Depois de haver considerado no que

as paixões da alma diferem de todos osseus outros pensamentos, parece-meque podemos em geral defini-las porpercepções, ou sentimentos, ou emo-

3 4 A hipótese do sonho infirma apenas a validadeobjetiva dos juízos sobre o mundo exterior. Eladeixa intacto o vivido pela consciência enquantovivido.

ções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algummovimento dos espíritos3 s .

Art. 28. Explicação da primeira partedessa de/inição3 6.

Podemos chamá-las percepçõesquando nos servimos em geral dessetermo para significar todos os pensamentos que não constituem ações daalma ou vontades, mas não quando oempregamos apenas para significar

conhecimentos evidentes; pois a experiência mostra que os mais agitadospor suas paixões não são aqueles quemelhor as conhecem, e que elas pertencem ao rol das percepções que aestreita aliança entre a alma e o corpotorna confusas e obscuras3 7. Podemostambém chamá-las sentimentos, porque são recebidas na alma do mesmo

modo que os objetos dos sentidos exteriores, e não são de outra maneira38

conhecidos por ela; mas podemos cha-

3 5 Definição das paixões no sentido estrito.3 6 Explicação da definição precedente do ponto devista da alma. Em que podem as paixões ser denominadas percepções (no sentido mais amplo dotermo), sentimentos (ou sensações), emoções?3 ' Não pode haver, portanto, conhecimento clarodas paixões. Lívio Teixeira observa: "Ele empregapara o conhecimento das paixões a forma gramatical do comparativo destinada a exprimir a relatividade desse conhecimento: o conhecimento melhor. . . Existe, pois, o conhecimento melhor oupior das paixões, não o conhecimento perfeitodelas". (Op. cit., pág. 152.)38 "Autrement se refere, pode-se interpretar razoavelmente, ao conhecimento pelas ideias claras e distintas, possível para o objeto das sensações, masnão para o fenómeno misto da paixão." (Lívio Tei

xeira, op. cit., pág. 153.) A ciência das paixões será,portanto, um conhecimento claro e distinto de umavivência intrinsecamente obscura e confusa. Eis porque, se Descartes quer explicar as paixões "na qualidade de físico", isso não significa "que pretendaexplicá-las unicamente pela Física, isto é, pela fisiologia do corpo, mas que deseja considerá-las segundo um método racional que procura evidências.apropriadas, todavia, à natureza mesma do objeto,a qual é aqui obscuridade e confusão intrínsecas".(Guéroult, t. II, pág. 253.)

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má-las melhor ainda emoções da alma,não só porque esse nome pode ser atribuído a todas as mudanças que nelasobrevêm, isto é, a todos os diversospensamentos que lhe ocorrem, mas

particularmente porque, de todas asespécies de pensamentos que ela podeter, não há outros que a agitem e aabalem tão fortemente como essaspaixões.

Art. 29. Explicações de sua outra parte.

Acrescento que elas se relacionamparticularmente com a alma, paradistingui-las dos outros sentimentosque referimos, uns aos objetos exteriores, como os odores, os sons, as cores,e os outros ao nosso corpo, como afome, a sede, a dor. Acrescento, outrossim, que são causadas, sustentadas

e fortalecidas por algum movimentodos espíritos, a fim de distingui-las denossas vontades, que podemos denominar emoções da alma que se relacionam com ela, mas que são causadaspor ela própria, e também a fim deexplicar sua derradeira e mais próximacausa, que as distingue novamente dosoutros sentimentos.

Art. 30. Que a alma está unida atodas as partes do corpo conjuntamente3*.

Mas, para compreender mais perfeitamente todas essas coisas, é necessário saber que a alma está verdadeira

mente unida ao corpo todo4 0

, e quenão se pode propriamente dizer que elaesteja em qualquer de suas partes com

3 9 Constituindo as paixões um dos aspectos dacomunicação entre o corpo e a alma, serão agoraanalisadas as modalidades desta.4 0 Primeira modalidade da união: a alma, justamente por não ter extensão alguma, não enformaqualquer parte do corpo humano, em especial.

exclusão de outras, porque o corpo éuno e de alguma forma indivisível4 n,em virtude da disposição de seus órgãos, que se relacionam de tal modouns com os outros que, quando algum

deles é retirado, isso torna o corpotodo defeituoso; e porque ela é de umanatureza que não tem qualquer relaçãocom a extensão nem com as dimensõesou outras propriedades da matéria deque o corpo se compõe, mas apenascom o conjunto dos seus órgaõs42,como transparece pelo fato de nãopodermos de maneira alguma conceber

a metade ou um terço de uma alma,nem qual extensão ocupa, e por não setornar ela menor ao se cortar qualquerparte do corpo, mas separar-se inteiramente dele quando se dissolve o con

 junto de seus órgãos.

Art. 31. Que há uma pequena glândula no cérebro, na qual a alma exercesuas funções mais particularmente doque nas outras partes.

É necessário também saber que, embora a alma esteja unida a todo ocorpo, não obstante há nele algumaparte em que ela exerce suas funçõesmais particularmente do que em todasas outras43; e crê-se comumente que

4 ' Essa indivisibilidade própria ao organismo humano resulta de sua união com a alma: "Nossocorpo, enquanto corpo humano, permanece sempreo mesmo número durante o tempo em que estáunido à mesma alma. E inclusive, nesse sentido, é indivisível. . .". (Carta a Mesland, citada in Gué-roult, II, pág. 181.)42 Essa penetração da alma em lodo o corpo permite falar de uma "alma corporal" em um sentidomuito particular, que Descartes ressalta na carta de

26 de julho a Arnauld: "Se por corporal entendemos o que pertence ao corpo, embora seja de outranatureza, a alma também pode ser dita corporal, namedida em que está apta a unir se ao corpo; mas sepor corporal entendemos o que participa da natureza do corpo, esse peso não é mais corporal do quea nossa própria alma".4 3 Segunda modalidade da união: a alma deve tersua sede em um órgão que governa o movimentodos espíritos animais. (Cf. Lívio Teixeira, op. cil.,pág. 154.)

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esta parte é o cérebro, ou talvez o coração: o cérebro, porque é com ele que serelacionam os órgãos dos sentidos; e ocoração, porque é nele que parecesentirem-se as paixões. Mas, examinando o caso com cuidado, parece-meter reconhecido com evidência que aparte do corpo em que a alma exerceimediatamente suas funções não é demodo algum o coração, nem o cérebrotodo 4 4 , mas somente a mais interior desuas partes, que é certa glândula muitopequejia, situada no meio de sua substância, e de tal modo suspensa por

cima do conduto por onde os espíritosde suas cavidades anteriores mantêmcomunicação com os da posterior, queos menores movimentos que nela existem podem contribuir muito para modificar o curso desses espíritos, e,reciprocamente, as menores modificações que sobrevêm ao curso dos espíritos podem contribuir muito para alte

rar os movimentos dessa glândula4 5

.

Art. 32. Como se conhece que essaglândula é a principal sede da alma.

 A razão que me persuade de que aalma não pode ter, em todo o corpo,nenhum outro lugar, exceto essa glân

dula, onde exerce imediatamente suasfunções é que considero que as outraspartes do nosso cérebro são todasduplas, assim como tempos dois olhos,

4 4 Objetar-se-á a Descartes que a gente não temcérebro em excesso para pensar. Já Galeno, no DeUsu Partium, escrevia: "Crer que esse corpo (aglândula pineal) preside a passagem do espírito édar prova de ignorância e atribuir demasiado a essa

glândula. Se assim fosse, uma glândula desempenharia o papel e teria a dignidade de cérebro". Mes-nard, que cita esse texto no artigo já mencionado(págs. 208-209), conclui daí que Descartes nãoconhecia Galeno, a não ser por uma obra de J. Sylvius, aparecida em 1555, onde o autor assume pordesventura, precisamente sobre este ponto, posiçãooposta à do grande empírico.4 5 A mobilidade da glândula é uma das condiçõesessenciais que Descartes invoca a fim de convertê-laem sede da alma.

duas mãos, duas orelhas, e enfim todosos órgãos de nossos sentidos externossão duplos; e que, dado que não temossenão um único e simples pensamentode uma mesma coisa ao mesmo tempo,cumpre necessariamente que hajaalgum lugar onde as duas imagens quenos vêm pelos dois olhos, onde as duasoutras impressões que recebemos deum só objeto pelos duplos órgãos dosoutros sentidos, se possam reunir emuma antes que cheguem à alma, a fimde que não lhe representem dois obje-tos em vez de um só. E pode-se conce

ber facilmente que essas imagens ououtras impressões se reúnem nessaglândula, por intermédio dos espíritosque preenchem as cavidades do cérebro, mas não há qualquer outro localno corpo onde possam assim unir-se,senão depois de reunidas nessa glândul a 4 6 .

Art. 33. Que a sede das paixões não fica no coração.

Quanto à opinião dos que pensamque a alma recebe as suas paixões nocoração, não pode ser de modo algumconsiderável, pois se funda apenas nofato de que as paixões nos fazem sentiraí alguma alteração 4 7; e é fácil notar

que essa alteração só é sentida, comoque no coração, por intermédio de umpequeno nervo que desce do cérebropara ele, assim como a dor é sentidacomo que no pé, por intermédio dos

4 6 A glândula pituitária, pregada no osso esfe-nóide, satisfaria essa condição, mas não dispõe damobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de

dezembro de 1640.)4 7 Trata-se de uma ruptura com a tese peripatéticae estóica. Mme Rodis-Lewis, na sua edição do Trai-té (pág. 91), assinala um texto de 1641 onde esserompimento com a tradição é atenuado: "As paixões, na medida em que pertencem ao corpo, têmcomo sede principal o coração, visto ser o principalórgão que elas alteram; mas, na medida em que afe-tam também a alma, aquela reside somente no cérebro, pois só por meio dele é que a alma pode serimediatamente tocada".

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nervos do pé, e os astros são percebidos como que no céu por intermédio desua luz e dos nervos ópticos; de sorteque não é mais necessário que nossaalma exerça imediatamente as suas

funções no coração para nele sentir assuas paixões do que é necessário queela esteja no céu para nele ver osastros.

Art. 34. Como agem a alma e o corpoum contra o outro.

Concebamos, pois, que a alma tem asua sede principal na pequena glândulaque existe no meio do cérebro, de ondeirradia para todo o resto do corpo, porintermédio dos espíritos, dos nervos emesmo do sangue, que, participandodas impressões dos espíritos, podemlevá-los pelas artérias a todos os mem

bros; e, lembrando-nos do que já foidito acima com respeito à máquina denosso corpo, a saber, que os pequenosfiletes de nossos nervos acham-se detal modo distribuídos em todas as suaspartes que, por ocasião dos diversosmovimentos aí provocados pelos objetos sensíveis, abrem diversamente os

poros do cérebro, o que faz com que osespíritos animais contidos nessas cavidades entrem diversamente nos músculos, por meio do que podem mover osmembros de todas as diversas maneiras que esses são capazes de ser movidos, e também que todas as outras causas que podem mover diversamente osespíritos bastam para conduzi-los adiversos músculos; juntemos aqui quea pequena glândula, que é a principalsede da alma, está de tal forma suspensa entre as cavidades que contêmesses espíritos que pode ser movida poreles de tantos modos diversos quantasas diversidades sensíveis nos objetos;

mas que pode também ser diversamente movida pela alma48, a qual é detal natureza que recebe em si tantasimpressões diversas, isto é, que ela temtantas percepções diversas quantos

diferentes movimentos sobrevêm nessaglândula; como também, reciprocamente, a máquina do corpo é de talforma composta que, pelo simples fatode ser essa glândula diversamente movida pela alma ou por qualquer outracausa que possa existir, impele os espíritos animais que a circundam para os

poros do cérebro, que os conduzempelos nervos aos músculos, mediante oque ela os leva a mover os membros.

Art. 35. Exemplo da maneira como asimpressões dos objetos se unem naglândula que fica no meio do cérebro.

Assim, por exemplo, se vemosalgum animal vir em nossa direção, aluz refletida de seu corpo pinta duasimagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, por intermédio dosnervos ópticos, na superfície interiordo cérebro defronte às suas concavida

des; daí, em seguida, por intermédiodos espíritos que enchem suas cavidades, essas imagens irradiam de talsorte para a pequena glândula envolvida por esses espíritos, que o movimento componente de cada ponto deuma das imagens tende para o mesmoponto da glândula para o qual tende o

movimento que forma o ponto da48 É a terceira causa da diversidade no curso dosespíritos que procedem do cérebro (cf. arts. 12 a16). Cabe notar que a correspondência entre asimpressões da alma e os movimentos da glândulaconstitui uma descrição e de maneira alguma umaexplicação da união (cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág.155).

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AS PAIXÕES DA ALMA 241

outra imagem, a qual representa amesma parte desse animal, por meiodo que as duas imagens existentes nocérebro compõem apenas uma únicana glândula, que, agindo imediata

mente contra a alma, lhe faz ver a figura desse animal.

Art. 36. Exemplo da maneira como as paixões são excitadas na alma.

E, além disso, se essa figura é muitoestranha e muito apavorante, isto é, se

ela tem muita relação com as coisasque foram anteriormente nocivas aocorpo, isto excita na alma a paixão domedo e, em seguida, a da ousadia, ouentão a do temor e a do terror, conforme o diverso temperamento docorpo ou a força da alma, e conformenos tenhamos precedentemente garan

tido pela defesa ou pela fuga contra ascoisas prejudiciais com as quais serelaciona a presente impressão; poisisso dispõe o cérebro de tal modo, emcertos homens, que os espíritos refleti-dos da imagem assim formada na glândula seguem, daí, parte para os nervosque servem para voltar as costas e

mexer as pernas para a fuga, e partepara os que alargam ou encolhem detal modo os orifícios do coração, ouentão que agitam de tal maneira as outras partes de onde o sangue lhe éenviado, que este sangue, rarefazendo-se aí de forma diferente da comum,envia espíritos ao cérebro que são pró

prios para manter e fortificar a paixãodo medo, isto é, que são próprios paramanter abertos ou então abrir de novoos poros do cérebro que os conduzemaos mesmos nervos; pois, pelo simplesfato de esses espíritos entrarem nessesporos, excitam um movimento particu

lar nessa glândula, o qual é instituídopela natureza para fazer sentir à almaessa paixão, e, como esses poros serelacionam principalmente com os pequenos nervos que servem para apertar

ou alargar os orifícios do coração, issofaz que a alma a sinta principalmentecomo que no coração 4 9 .

Art. 37. Como todas parecem causadas por qualquer movimento dos espí-ritos.

E como acontece coisa semelhante49

O mecanismo aqui descrito é muito complexo. De uma parte, verifica-se um condicionamento: aligação "instituída pela natureza" entre a aberturade certos orifícios ventriculares e a paixão sentidapela alma. De outra parle, verifica-se um auto-refor-çamento circular (feedback): '"Os espíritos refleti-dos pela imagem assim formada sobre a glândula",quer por áção direta sobre o coração, quer por umavariação no regime do sangue, modificam o regimedos espíritos animais que seguem do coração para océrebro, de modo que a alma, sentindo a paixão,torna a lançar os espíritos no mesmo circuito. O que

corresponde ao seguinte esquema:cérebro

glãnduiapineal

variação do regimesanguíneo devido ãhematopoese visceral

acão sobreo coração

 \

 \

variação dovolume cardíaco

vanacao naabertura dosorifícioscardíacos

*variação na produção dosespíritos e alimentaçãoanormal da glândula

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com todas as outras paixões, a saber,que são principalmente causadas pelosespíritos que estão contidos nas cavidades do cérebro, enquanto tomam seucurso para os nervos que servem para

alargar ou estreitar os orifícios docoração, ou para impelir diversamenteem sua direção o sangue que se encontra nas outras partes, ou, de qualqueroutra maneira que seja, para sustentara mesma paixão, pode-se claramentecompreender, de tudo isso, por queafirmei acima, ao defini-las, que sãocausadas por algum movimento particular dos espíritos 50 .

Art. 38. Exemplo dos movimentos docorpo que acompanham as paixões enão dependem da alma.

De resto, assim como o curso seguido por essesespíritos para os nervos docoração basta para imprimir movi

mento à glândula pela qual o medo éposto na alma, do mesmo modo, pelosimples fato de alguns espíritos iremao mesmo tempo para os nervos queservem para mexer as pernas na fuga,causam eles um outro movimento namesma glândula por meio do qual aalma sente e percebe tal fuga, quedessa forma pode ser excitada no

corpo pela simples disposição dos órgãos e sem que a alma para tantocontribua.

Art. 39. Como a mesma causa podeexcitar diversas paixões em diversoshomens.

A mesma impressão que exerce

50 Comentário da expressão algum movimento dosespíritos (art. 27 e 29). O que significa "movimento

 particular dos espíritos"? 1." que esse movimentodos espíritos não é comumente fortuito; 2.° que nãoé produzido pela variação da figura do movimento(como nas sensações ou "sentimentos"), mas pelavariação da quantidade de movimento com respeitoà normal. Do ponto de vista psicofisiológico, pode-se definir a "paixão" como emoção da alma ligadaa um automatismo circular de auto-reforçamentocapaz de múltiplos condicionamentos.

sobre a glândula a presença de um ob- jeto pavoroso, e que causa o medo emalguns homens, pode excitar, em outros, a coragem e a audácia, isto porque nem todos os cérebros estão dis

postos da mesma maneira, e o mesmomovimento da glândula que em algunsexcita o medo faz com que, em outros,os espíritos entrem nos poros do cérebro que os conduzem, parte aos nervosque servem para mexer as mãos na defesa e parte nos que agitam e impelemo sangue ao coração, da maneirarequerida a produzir espíritos própriospara continuar esta defesa e manter avontade de prossegui-la51.

Art. 40. Qual é o principal efeito das paixões.

Pois cumpre notar que o principalefeito de todas as paixões nos homens

é que incitam e dispõem a sua alma aquerer as coisas para as quais elas lhespreparam os corpos; de sorte que osentimento de medo incita a fugir, o daaudácia a querer combater e assim pordiante52.

Art. 41. Qual é o poder da alma comrespeito ao corpo.

Mas a vontade é, por natureza, de5 ' Tal constatação, comenta Lívio Teixeira, "mostra o caráter aleatório e não científico das paixões,mas permite ao mesmo tempo compreender por queo mesmo fato produz efeitos diferentes: é que os cérebros não são dispostos do mesmo modo. . . Dessemodo, ainda que não se saiba como o corpo e aalma se comunicam, pode-se explicar por que omesmo fato produz efeitos diferentes". (Op. cit.,

pág. 156.)62 A "paixão" aparece, assim, como testemunhoexemplar da união íntima entre alma e corpo. Namedida em que produzem esta acomodação espontânea é que "as paixões são todas boas" (art. 211).Cf. a definição das paixões dada no Tratado do Homem: "Movimentos. . . que servem para disporo coração e o fígado, bem como todos os outros órgãos dos quais pode depender o temperamento dosangue e em seguida o dos espíritos, de tal sorte queos espíritos que nascem então estejam aptos a causar os movimentos exteriores que devem seguir".

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AS PAIXÕES DA ALMA 243

tal modo livre que nunca pode sercompelida; e, das duas espécies depensamentos que distingui na alma,das quais uns são suas ações, isto é,suas vontades, e os outros as suas pai

xões, tomando-se esta palavra em suasignificação mais geral, que compreende todas as espécies de percepções, os primeiros estão absolutamenteem seu poder e só indiretamente ocorpo pode modificá-los, assim como,ao contrário, os últimos dependemabsolutamente das ações que os produzem, e a alma só pode modificá-los

indiretamente, exceto quando ela própria é sua causa53 . E toda a ação daalma consiste em que, simplesmentepor querer alguma coisa, leva a pequena glândula, à qual está estreitamenteunida, a mover-se da maneira necessária a fim de produzir o efeito que serelaciona com esta vontade.

Art. 42. Como encontramos em nossamemória as coisas de que nos queremos lembrar.

Assim, quando a alma quer lem-brar-se de algo, essa vontade faz comque a glândula, inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila osespíritos para diversos lugares do cére

bro, até que encontrem aquele ondeestão os traços deixados pelo objeto deque queremos nos lembrar; pois essestraços não são outra coisa senão osporos do cérebro, por onde os espíritostomaram anteriormente seu curso devido à presença desse objeto, e adquiriram, assim, maior facilidade que osoutros, para serem de novo abertos da

mesma maneira pelos espíritos quepara eles se dirigem; de sorte que taisespíritos, encontrando esses poros, entram neles mais facilmente do que nos

53 "Se existe algo absolutamente em nosso poder,são os nossos pensamentos, a saber, aqueles queprovêm da vontade e do livre arbítrio." (Cartas, aMersenne, 3 de dezembro de 1640.)

outros, excitando, por esse meio, ummovimento particular na glândula, querepresenta à alma o mesmo objeto elhe faz saber que se trata daquele doqual queria lembrar-se.

Art. 43. Como a alma pode imaginar,estar atenta e mover o corpo.

Assim, quando se quer imaginaralgo que nunca se viu, essa vontadetem o poder de levar a glândula amover-se da maneira necessária paraimpelir os espíritos aos poros do cére

bro por cuja abertura essa coisa podeser representada; assim, quando se pretende fixar a atenção para considerarpor algum tempo um mesmo objeto, talvontade retém a glândula, durante essetempo, inclinada para um mesmo lado;assim, enfim, quando se quer andar oumover o próprio corpo de algumamaneira, essa vontade faz com que a

glândula impila os espíritos para osmúsculos que servem para tal efeito.

Art. 44. Que cada vontade é naturalmente unida a algum movimento daglândula; mas que, por engenho ou por hábito, se pode uni-la a outros.

Todavia, nem sempre é a vontade deprovocar em nós algum movimento oualgum outro efeito que pode levar-nosa excitá-lo; mas isso muda conforme anatureza ou o hábito tenham diversamente unido cada movimento da glândula a cada pensamento5 4 . Assim, por

5 4 Nossa vontade não pode excitar quaisquer

movimentos em nós. Certos movimentos, reflexosou mecanismos adquiridos só podem ser executadospor ocasião de outros movimentos voluntários. Aalma ignora como se efetuam esses movimentos quesão executáveis apenas mediatamente: "Esta inclinação da vontade é seguida pelo curso dos espíritosnos nervos, e de tudo o que é requerido para o movimento, o que ocorre por causa da disposição conveniente do corpo, de que a alma pode realmente nãoter de modo algum conhecimento..." (Cartas, aArnauld, 29 de julho de 1648.)

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exemplo, se se quer dispor os olhospara olhar um objeto muito distanciado, essa vontade faz com que a pupila se dilate; e se se quer dispô-los aolhar um objeto muito próximo, essavontade faz com que a pupila se contraia; mas se se pensa apenas em alargar a pupila, em vão teremos tal vontade, pois nem por isso conseguiremosalargá-la, já que a natureza não uniu omovimento da glândula que serve paraimpelir os espíritos ao nervo óptico damaneira necessária a dilatar ou a con

trair a pupila com a vontade de dilatarou contrair, mas antes com a de olharobjetos afastados ou próximos. Equando, ao falar, pensamos apenas nosentido do que queremos dizer, isto fazcom que mexamos a língua e os lábiosmuito mais rapidamente e muito melhor do que se pensássemos em mexê-los de todas as formas necessárias para

proferir as mesmas palavras, dado queo hábito que adquirimos de aprender afalar fez com que juntássemos a açãoda alma, que, por intermédio da glândula, pode mover a língua e os lábios,mais com a significação das palavrasque resultam desses movimentos doque com os próprios movimentos.

Art. 45. Qual é o poder da alma comrespeito às suas paixões 5 s .

Nossas paixões também não podemser diretamente excitadas nem suprimidas pela ação de nossa vontade, maspodem sê-lo, indiretamente, pela representação das coisas que costumamestar unidas às paixões que queremoster, e que são contrárias às que quere-

5 5 A possibilidade de ligar artificialmente certosautomatismos a certos atos voluntários constituiráa base de um tratamento racional das paixões:pode-se modificar a paixão mudando a representação da coisa a ela unida.

mos rejeitar. Assim, para excitarmosem nós a audácia e suprimirmos omedo, não basta ter a vontade de fazê-lo, mas é preciso aplicar-nos a considerar as razões, os objetos ou os exem

plos que persuadem de que o perigonão é grande; de que há sempre maissegurança na defesa do que na fuga; deque teremos a glória e a alegria dehavermos vencido, ao passo que nãopodemos esperar da fuga senão o pesare a vergonha de termos fugido, e coisassemelhantes.

Art. 46. Qual é a razão que impede aalma de dispor inteiramente de suas

 paixões.

Há uma razão particular que impede a alma de poder alterar ou estancarrapidamente suas paixões, a qual medeu motivo de pôr mais acima, em sua

definição, que elas não são apenas causadas, mas também mantidas e fortalecidas por algum movimento particulardos espíritos5 6 . Esta razão é que elassão quase todas acompanhadas de alguma emoção que se produz no coração, e, por conseguinte, também emtodo o sangue e nos espíritos, de modoque, enquanto essa emoção não cessar,

elas continuam presentes em nossopensamento da mesma maneira que osobjetos sensíveis aí permanecem presentes, enquanto agem contra os órgãos de nossos sentidos. E como aalma, tornando-se muito atenta a qualquer outra coisa, pode impedir-se deouvir um pequeno ruído ou de sentiruma pequena dor, mas não pode impe

dir-se, do mesmo modo, de ouvir o trovão ou de sentir o fogo que queima a

6 6 A vontade não pode vencer o automatismo circular que está unido à paixão; neste caso. ela sópode reter os gestos aos quais a paixão me dispõe.Neste "esforço último" Lívio Teixeira vê "o últimoreduto da vontade". (Op. cií., pág. 158.)

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AS PAIXÕES DA ALMA 245

mão, assim pode sobrepujar facilmenteas paixões menores, mas não as maisviolentas e as mais fortes, a não ser depois que se apaziguou a emoção dosangue e dos espíritos. O máximo que

pode fazer a vontade, enquanto essaemoção está em vigor, é não consentirem seus efeitos e reter muitos dosmovimentos aos quais ela dispõe ocorpo. Por exemplo, se a cólera fazlevantar a mão para bater, a vontadepode comumente retê-la; se o medo incita as pessoas a fugir, a vontade podedetê-las, e assim por diante.

Art. 47. Em que consistem os combates que se costuma imaginar entre a

 parte inferior e a superior da alma.

E tão-somente na repugnância queexiste entre os movimentos que ocorpo por seus espíritos e a alma por

sua vontade tendem a excitar aomesmo tempo na glândula é que consistem todos os combates que se costuma imaginar entre a parte inferior daalma, denominada sensitiva, e a superior, que é racional, ou então entre osapetites naturais e a vontade; pois nãohá em nós senão uma alma, e estaalma não tem em si nenhuma diversi

dade de partes5 7 : a mesma que é sensitiva é racional e todos os seus apetitessão suas vontades. O erro que se cometeu em fazê-la desempenhar diversaspersonagens que são comumente contrárias umas às outras provém apenasde não se haver distinguido bem suasfunções das do corpo, ao qual unicamente se deve atribuir tudo quanto

5 7 A representação precedente da relação entre avontade e as paixões apresenta a vantagem de confirmar a unidade da alma contra os que queremdividi-la em faculdades; a doutrina dos espíritosanimais confirma que o irracional no homem não éimputável às almas inferiores (vegetativa e sensitiva), mas ao corpo.

pode ser advertido em nós que repugnea nossa razão; de modo que não hánisso outro combate exceto que, comoa pequena glândula que fica no meiodo cérebro pode ser impelida, de um

lado, pela alma, e, de outro, pelos espíritos animais, que são apenas corpos,como já disse acima, acontece às vezesque esses dois impulsos sejam contrários e que o mais forte impeça o efeitodo outro. Ora, podemos distinguirduas espécies de movimentos excitadospelos espíritos na glândula: uns representam à alma os objetos que movem

os sentidos, ou as impressões que seencontram no cérebro e não efetuamqualquer esforço sobre a vontade; outros efetuam algum esforço sobre ela, asaber, os que causam as paixões ou osmovimentos dos corpos que as acompanham; e, quanto aos primeiros, embora impeçam amiúde as ações da

alma, ou sejam impedidos por ela,todavia, por não serem diretamentecontrários, não se verifica neles nenhum combate. Só os observamosentre os últimos e as vontades que lhesrepugnam: por exemplo, entre o esforço com que os espíritos impelem aglândula a causar na alma o desejo dealguma coisa e aquele com que a alma

a repele, pela vontade que tem de fugirda mesma coisa; e o que faz principalmente surgir esse combate é que, nãotendo a vontade o poder de excitardiretamente as paixões, como já foidito, é obrigada a usar de engenho eaplicar-se a considerar sucessivamentediversas coisas, das quais, se acontece

que uma tenha a força de modificarpor um momento o curso dos espíritos,pode acontecer que a seguinte não atenha e que os espíritos retomem ocurso logo depois, porque a disposiçãoprecedente nos nervos, no coração e nosangue não mudou, o que leva a alma a

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sentir-se impelida quase ao mesmotempo a desejar e a não desejar umamesma coisa; e daí é que se teve ocasião de imaginar nela duas potênciasque se combatem. Todavia, ainda se

pode conceber algum combate, pelofato de muitas vezes a mesma causaque excita na alma alguma paixãoexcitar também certos movimentos nocorpo, para os quais a alma em nadacontribui, e os quais detém ou procuradeter tão logo os apercebe, como sentimos quando aquilo que excita o medofaz também com que os espíritos en

trem nos músculos que servem paramexer as pernas na fuga, e com quesejam sustados pela vontade que temosde ser audazes.

Art. 48. Em que se conhece a força oua fraqueza das almas, e qual é o maldas mais fracas5 8.

Ora, é pela sorte desses combatesque cada qual pode conhecer a forçaou a fraqueza de sua alma; pois aqueles em quem a vontade pode, naturalmente, com maior facilidade, vencer aspaixões e sustar os movimentos docorpo que os acompanham têm, semdúvida, as almas mais fortes; mas háos que não podem comprovar a pró

pria força porque nunca levam a combate a sua vontade juntamente comsuas armas próprias, mas apenas comas que lhes fornecem algumas paixõespara resistir a algumas outras. O quedenomino as armas próprias são juízosfirmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal, consoante osquais ela resolveu conduzir as ações de

sua vida; e as almas mais fracas detodas são aquelas cuja vontade não sedecide assim a seguir certos juízos,

5 8 Outra vantagem: a possibilidade de distinguir asatitudes com respeito às paixões. As almas fortesdominam suas paixões por meio da só vontadeesclarecida. As almas mais fracas abandonam suavontade como presa das paixões contrárias que asagitam.

mas se deixa arrastar continuamentepelas paixões presentes, as quais,sendo muitas vezes contrárias umas àsoutras, a puxam, ora umas, ora outras,para seu partido e, empregando-a para

combater contra si mesma, põem aalma no estado mais deplorável possível. Assim, quando o medo representaa morte como um extremo mal, que sópode ser evitado pela fuga, se a ambição, de outro lado, representa a infâmia dessa fuga como um mal pior quea morte, essas duas paixões agitamdiversamente a vontade, que, obede

cendo ora a uma, ora a outra, se opõecontinuamente a si própria, e assimtorna a alma escrava e infeliz.

Art. 49. Que a força da alma nãobasta sem o conhecimento da verdade.

Na verdade, há pouquíssimos ho

mens tão fracos e irresolutos que nadaqueiram senão o que suas paixões lhesditam. A maioria tem juízos determinados, segundo os quais regula partede suas ações; e, embora muitas vezestais juízos sejam falsos e fundadosmesmo em algumas paixões pelasquais a vontade se deixou anteriormente vencer ou seduzir, todavia,

como ela continua seguindo-os quandoa paixão que os causou está ausente,podemos considerá-los como suasarmas próprias, e pensar que as almassão mais fortes ou mais fracas em virtude de poderem seguir mais ou menosesses juízos e resistir às paixões presentes que lhes são contrárias59. Mashá, entretanto, grande diferença entreas resoluções que procedem de algumafalsa opinião e as que se apoiam tão-

5 9 Cf. terceira parte do Discurso: "Quando nãoestá em nosso poder discernir as opiniões maisverdadeiras, devemos seguir as mais prováveis" (segunda máxima da moral "provisória"). Ora, ver-se-á que, no art. 170, Descartes prefere os juízos "certos e determinados", embora erróneos, àirre solução.

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AS PAIXÕES DA ALMA 247

somente no conhecimento da verdade;visto que, se seguirmos as últimas,estamos certos de não ter jamais doque nos lamentar nem arrepender, aopasso que o teremos sempre, se seguir

mos as primeiras, quando lhes descobrimos o erro6 0 .

Art. 50. Que não existe alma tão fracaque não possa, sendo bem conduzida,adquirir poder absoluto sobre as suas

 paixões.

E é útil aqui lembrar que, como jáfoi dito mais acima, embora cadamovimento da glândula pareça ter sidounido pela natureza a cada um de nossos pensamentos desde o começo denossa vida, é possível todavia juntá-losa outros por hábito, assim como aexperiência mostra nas palavras queexcitam movimentos na glândula, osquais, segundo a instituição da natureza, representam à alma apenas os seussons, quando proferidas pela voz, ou afigura de suas letras, quando escritas, eque, não obstante, pelo hábito adquirido em pensar no que significamquando ouvimos o som delas, ouentão, quando vemos suas letras, costumam fazer conceber mais essa significação do que a figura de suas letras,ou então o som de suas sílabas. É útiltambém saber que, embora os movimentos, tanto da glândula como dosespíritos e do cérebro, que representamà alma certos objetos sejam naturalmente unidos aos que provocam nelacertas paixões, podem todavia, por hábito, ser separados destes e unidos aoutros muito diferentes, e, mesmo, que

esse hábito pode ser adquirido por umaúnica ação e não requer longa prática.Assim, quando encontramos inopinadamente uma coisa muito suja num

6 0 Unicamente a vontade de fazer o melhor possível não basta, portanto, se ela não tende ao menos aser esclarecida pela razão. Ainda aqui verifica-sequão distanciado está Descartes do voluntarismocego.

alimento que comemos com apetite, asurpresa do achado pode mudar de talforma a disposição do cérebro que, emseguida, não possamos mais ver essealimento exceto com horror, ao passo

que até então o comíamos com prazer.É pode-se notar a mesma coisa nosanimais; pois, embora não possuam amenor razão, nem talvez61 nenhumpensamento, todos os movimentos dosespíritos e da glândula que provocamem nós as paixões não deixam de existir neles também e servem-lhes paramanter e fortalecer, não como em nós,

as paixões62

, mas os movimentos dosnervos e dos músculos que costumamacompanhá-las. Assim, quando umcão vê uma perdiz, é naturalmente levado a correr em sua direção, e, quando ouve um tiro de um fuzil, tal ruído oincita naturalmente a fugir; mas, nãoobstante, adestram-se comumente detal maneira os cães perdigueiros que a

vista de uma perdiz os leva a deter-se eo ruído que ouvem depois, quandoalguém atira à perdiz, os leva a correrpara ela. Ora, essas coisas são úteis desaber para encorajar cada um de nós aaprender a observar suas paixões; pois,dado que se pode, com um pouco deengenho, mudar os movimentos do cérebro nos animais desprovidos derazão, é evidente que se pode fazê-lomelhor ainda nos homens, e quemesmo aqueles que possuem as almasmais fracas poderiam adquirir umimpério absoluto sobre todas as suaspaixões, se empregassem bastante engenho em domá-las e conduzi-las.

61 Por que "talvez"? Sem dúvida, como nota Mme

Rodis-Lewis, porque a hipótese dos animais-má-quinas "beneficia-se somente do máximo de probabilidade".62 Os animais não têm paixões, visto que a paixãoé um fenómeno especificamente psicofísico: eles sópossuem reflexos. Mas , como se podem condicionaros reflexos, a fortiori poder-se-á, por meio da razão,modificar o efeito das paixões. Cumpre observarque não se trata aqui de uma terapêutica das paixões: estas não são de modo algum fenómenos patológicos. Cf. Lívio Teixeira, op. cit., pág. 219.

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SEGUNDA PARTE

DO NÚMERO E DA ORDEM DAS PAIXÕES

E A EXPLICAÇÃO DAS SEIS PRIMITIVAS"

63 PI ano desta parte:Arts. 51-52: pesquisa de um critério para a enumeração das paixões;

53-69: enumeração das paixões;70-137: estudo das paixões primitivas;138-148: conclusões morais.

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Art. 51. Quais as primeiras causas das paixões.

Já se sabe, pelo que se disse maisacima6 4, que a última e mais próximacausa das paixões da alma não é outrasenão a agitação com que os espíritosmovem a pequena glândula situada nomeio do cérebro. Mas isso não bastapara podermos distingui-las umas dasoutras; é mister procurar suas fontes eexaminar suas primeiras causas; ora,

ainda que possam algumas vezes sercausadas pela ação da alma, que sedetermina a conceber estes ou aquelesobjetos, e também pelo exclusivo temperamento do corpo ou pelas impressões que se encontram fortuitamenteno cérebro, como acontece quando nossentimos tristes ou alegres sem quepossamos dizer o motivo6 5, parece, noentanto, pelo que foi dito, que todaselas podem também ser excitadas pelosobjetos que afetam os sentidos e quetais objetos são suas causas mais comuns e principais; daí se segue que,para encontrar todas, basta considerartodos os efeitos desses objetos 6 6.

6 4 No art. 34.6 5 Distinção das três causas possíveis da agitaçãodos espíritos.6 6 Não são as diferenças entre os objetos, masentre os efeitos que podem produzir em nós que servirão de base para a classificação. "Descartes dizque se devem considerar todos os efeitos dos objetosexteriores sobre nós, o que entendemos incluir tantoo estudo dos fenómenos fisiológicos como dospsicológicos, que é realmente o que ele vai fazer."(Lívio Teixeira, op cit., pág. 162.)

Art. 52. Qual o seu emprego e como podemos enumerá-las.

Observo, além disso, que os objetosque movem os nossos sentidos nãoprovocam em nós diversas paixões devido a todas as diversidades que existem neles, mas somente devido àsdiversas formas pelas quais nos podemprejudicar ou beneficiar, ou então, emgeral, ser importantes; e que o empregode todas as paixões consiste apenas no

fato de disporem a alma a querer coisas que a natureza dita serem úteis anós, e a persistir nessa vontade, assimcomo a mesma agitação dos espíritosque costuma causá-las dispõe o corpoaos movimentos que servem à execução dessas coisas; eis por que, a fim deenumerá-las, cumpre apenas examinar,por ordem, de quantas maneiras dife

rentes que nos importam 6 7 podem osnossos sentidos ser movidos por seusobjetos; e farei aqui a enumeração de

6 ' " . . . dita serem úteis a nós" : sobre o alcancedesta doutrina, cf. Col. com Burman. "É possívelque, se um médico permitisse a seus doentes os alimentos e as bebidas que estes reclamam amiúde, asaúde deles se restabelecesse bem melhor do quecom essas drogas que dão ná usea . . . em tais casos,

a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela temperfeita consciência, interiormente, de seu estado, eo conhece bem melhor que um médico, que só vê oexterior." " . . . que nos importam": palavras essenciais; segundo Lívio Teixeira (op. cit., pág. 164) eGuéroult (op. cit., II, pág. 253), atestam que não setratará de uma notação estritamente fisiológica daspaixões (é o programa que Mesnard atribui aDescartes), mas que a ordem da enumeração obedecerá ao critério da prática e da conveniênciabiológicas.

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252 DESCARTES

todas as principais paixões, segundo aordem pela qual podem ser encontradas.

A ORDEM E A ENUMERAÇÃODAS PAIXÕES

Art. 53. A admiração.

Quando o primeiro contato comalgum objeto nos surpreende, e quandonós o julgamos novo, ou muito dife

rente do que até então conhecíamos oudo que supúnhamos que deveria ser,isso nos leva a admirá-lo e a nosespantarmos com ele; e, como issopode acontecer antes de sabermos dealgum modo se esse objeto nos éconveniente ou não 68 , parece-me que aadmiração é a primeira de todas aspaixões; e ela não tem contrário, porquanto, se o objeto que se apresentanada tem em si que nos surpreenda,não somos de maneira nenhuma afeta-dos por ele e nós o consideramos sempaixão.

Art. 54. A estima ou o desprezo, agenerosidade ou o orgulho, e a humil

dade ou a baixeza.

A admiração está unida a estima ouo desprezo, conforme seja a grandezade um objeto ou sua pequenez que

68 Frase que proporciona a Mesnard o ensejo parauma resposta à objeção anterior: como compreender esta frase, se a ordem da enumeração é ada conveniência biológica? Por que não situou Descartes em primeiro lugar as paixões em que o sangue desempenha papel considerável (como a "alegria", que ele denomina "a primeira das paixões" nacarta a Chanut, de 1." de fevereiro de 1647)? MmeRodis-Lewis replica: "Isso não significa que aadmiração não tenha nenhuma importância vital".(Descartes, Ed. Minuit, págs. 208-35.) O centro dodebate reside na concepção da "união-da-alma-com-o-corpo": Guéroult não a substantivou emexcesso? E não terá ele concedido demasiadaimportância ao "biológico" em Descartes?

admiremos. E podemos assim nos estimar ou nos desprezar a nós próprios;daí provêm as paixões e, em seguida,os hábitos69 de magnanimidade ou deorgulho e de humildade ou de baixeza.

Art. 55. A veneração e o desdém.

Mas, quando estimamos ou desprezamos outros objetos que consideramos como causas livres, capazes defazer o bem ou o mal, da estima procede a veneração, e do simples desprezo,o desdém.

Art. 56. O amor e o ódio.

Ora, todas as paixões precedentespodem ser excitadas em nós sem quepercebamos de modo algum se o objeto que os provoca é bom ou mau 7 0 .Mas, quando uma coisa se nos apre

senta como boa em relação a nós, istoé, como nos sendo conveniente, issonos leva a ter amor por ela; e, quandose nos apresenta como má ou nociva,isso nos incita ao ódio.

Art. 57. O desejo.

Da mesma consideração do bem edo mal nascem todas as outras paixões; mas, a fim de colocá-las por

69 Cf. Carias, a Elisabeth, de 15 de setembro de1645: "Tem-se razão de dizer na Escola que as virtudes são hábitos". "Os antigos denominavam habitus qualidades de um género à parte, que são essencialmente disposições estáveis que aperfeiçoam nalinha de sua natureza o sujeito em que se acham. Asaúde, a beleza, são hábitos do corpo. . . outros hábitos têm como sujeito as faculdades da alma: taiscomo as virtudes intelectuais e morais. Adquirimosesta última espécie de hábito através do exercício edo costume; mas nem por isso se deve confundir ohabitus com o hábito na acepção moderna dotermo, isto é, com o vezo mecânico e a rotina."(Maritain, Art et Scolastique, pág. 18.)

70 São, portanto, todas derivadas da admiração.Agora, as paixões que vão ser descritas serão todasbaseadas na representação do bem e do mal "comrespeito a nós".

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AS PAIXÕES DA ALMA 253

ordem, distingo os tempos71 e, considerando que elas nos levam a olhar ofuturo muito mais do que o presente,ou o passado, começo pelo desejo.Pois, não somente quando se deseja

adquirir um bem que ainda não se possui, ou evitar um mal que se julga passível de sobrevir, mas também quandose deseja apenas a conservação de umbem ou a ausência de um mal, que étudo aquilo a que essa paixão podeestender-se, é evidente que ela encarasempre o futuro.

Art. 58. A esperança, o temor, ociúme, a segurança e o desespero.

Basta pensar que a aquisição de umbem ou a fuga de um mal é possívelpara sermos incitados a desejá-la. Mas,quando consideramos, além disso, sehá muita ou pouca probabilidade de se

obter o que se deseja, aquilo que nosrepresenta haver muita excita em nós aesperança, e aquilo que nos representahaver pouca excita o temor, de que ociúme constitui uma espécie. Quando aesperança é extrema, muda de naturezae chama-se segurança ou confiança,assim como, ao contrário, o extremotemor torna-se desespero.

Art. 59. A irresolução, a coragem, aousadia, a emulação, a covardia e o

 pavor.

E podemos assim esperar e temer,ainda que a realização do que aguardamos não dependa de modo algum de

nós; mas, quando nos é representadocomo dependente, pode haver dificuldade na escolha dos meios ou na execução. Da primeira deriva a irresolu-

71 Outro critério: a "distinção dos tempos". Nãose trata de uma dedução a priori das paixões, comoem Spinoza, "mas de um esforço como que externoà natureza profunda das paixões". (Lívio Teixeira,op. cit., pág. 166.)

ção, que nos dispõe a deliberar e tomarconselho. À última opõe-se a coragemou a ousadia, de que a emulação constitui uma espécie. E a covardia é contrária à coragem, tal como o medo ou

o pavor à ousadia.

Art. 60. O remorso.

E, se estamos determinados a alguma ação, antes que seja suprimida airresolução, isso engendra o remorsode consciência, o qual não considera o

tempo vindouro, como as paixõesprecedentes, mas o presente ou opassado.

Art. 61. A alegria e a tristeza.

E a consideração do bem presenteexcita em nós a alegria, a do mal, atristeza, quando é um bem ou um mal

que nos é representado como nosso.

Art. 62. A zombaria, a inveja, a piedade.

Mas, quando nos é representadocomo pertencente a outros homens,podemos considerá-los dignos ou indignos disso; e, quando os consideramos dignos, isso não provoca em nósoutra paixão além da alegria, postoque para nós é algum bem ver que ascoisas acontecem como devem. Háapenas a diferença de que a alegriaprocedente do bem é séria, ao passoque a procedente do mal é acompanhada de riso e zombaria. Mas, se nós

os considerarmos indignos deles, obem excita a inveja, e o mal, a piedade,que são espécies de tristeza, E deve-senotar que as mesmas paixões relacionadas aos bens ou aos males presentespodem amiúde referir-se aos que estãopor vir, enquanto a opinião que se temde que hão de advir os representacomo presentes.

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254 DESCARTES

Art. 63. A satisfação de si mesmo e oarrependimento.

Podemos também considerar a

causa do bem ou do mal, tanto presente como passado. E o bem que foifeito por nós mesmos nos dá uma satisfação interior, que é a mais doce detodas as paixões, ao passo que o malprovoca o arrependimento, que é amais amarga.

Art. 64. O favor e o reconhecimento.

Mas o bem praticado por outros écausa de que os tenhamos em favor,ainda que não seja feito a nós; e, quando o é, ao favor juntamos o reconhecimento.

Art. 65. A indignação e a cólera.

Do mesmo modo, o mal praticadopor outros, não se relacionando a nós,faz somente com que desperte a nossaindignação para com eles; e, quando serelaciona conosco, suscita também acólera.

Art. 66. A glória e a vergonha.

Além disso, o bem que existe ouexistiu em nós, quando relacionadocom a opinião que os outros podem tera seu respeito, excita em nós a glória, eo mal, a vergonha.

Art. 67. Ofastio, o pesar e a alegria.

E às vezes a duração do bem provoca o tédio ou o fastio, ao passo que ado mal diminui a tristeza. Enfim, dobem passado resulta o pesar, que éuma espécie de tristeza, e do mal passado resulta o júbilo, que é uma espécie de alegria.

Art. 68. Por que essa enumeração das paixões é diferente da comumenteaceita.

Eis a ordem que me parece melhor

para enumerar as paixões. Sei muitobem que nisso me afasto da opinião detodos os que até agora escreveramsobre elas, mas não o faço sem granderazão. Pois os outros tiram suasenumerações do fato de distinguiremna parte sensitiva da alma dois apetites, que chamam um concupiscível e ooutro irascível72. E, como não conhe

ço na alma nenhuma distinção de partes, o que já disse acima, isto não meparece significar outra coisa senão queela tem duas faculdades, uma de dese

 jar e a outra de se irritar; e, posto queela tem da mesma forma as faculdadesde admirar, amar, esperar, temer e,assim, de receber em si cada uma dasoutras paixões:, ou de praticar as ações

a que essas paixões a impelem, nãovejo por que quiseram relacionar todascom a concupiscência ou a cólera.Além do que, tal enumeração nãocompreende todas as principais paixões, como creio que esta o faz. Faloapenas das principais, porque se poderiam ainda distinguir muitas outrasmais particulares, pois seu número é

indefinido.

Art. 69. Que há somente seis paixões primitivas7 3.

Mas o número das que são simples e72 As obras que tratam das paixões, numerosas noséculo XVI, respeitavam ainda quase todas a divisão escolástica dos apetites entre o concupiscível e

o irascível (proveniente de Platão, cf. República,436 a 441 c). No concupiscível a alma sofre apenasa força de atração ou de repulsão do bem e do mal;no irascível, ela tende a enfrentar a dificuldade. Adistinção entre a alma e o corpo torna caduca estadivisão que Descartes julga arbitrária.73 A enumeração de Descartes é superior, pensaele, pelo fato de permitir distinguir as paixões primitivas. Mas Descartes não nos informa segundo qualcritério se efetua esta distinção.

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primitivas não é muito grande. Pois,passando em revista todas as que enumerei, pode-se facilmente notar que háapenas seis que são tais, a saber: aadmiração, o amor, o ódio, o desejo, á

alegria e a tristeza; e todas as outrascompõem-se de algumas dessas seis,ou então são suas espécies7 4 . Por isso,para que sua multidão não embaracenossos leitores, tratarei aqui separadamente das seis primitivas; e, em seguida, mostrarei de que forma todas asoutras tiram daí sua origem.

Art. 70. Da admiração; sua definiçãoe causa.

A admiração é uma súbita surpresada alma, que a leva a considerar comatenção os objetos que lhe parecem

raros e extraordinários. Assim, é causada primeiramente pela impressãoque se tem no cérebro, que representa oobjeto como raro e, por conseguinte,digno de ser muito considerado; emseguida, pelo movimento dos espíritos,que são dispostos por essa impressão atender com grande força ao lugar docérebro onde ela se encontra7 5, a fim

de fortalecê-la e conservá-la aí; comotambém são dispostas por ela a passardaí aos músculos destinados a reter osórgãos dos sentidos na mesma situação em que se encontram, a fim de queseja ainda mantida por eles, se por elesfoi formada.

7 4 O art. 149 indicará simplesmente que essas seispaixões "são como os géneros de que todas as outras constituem as espécies". Exemplo de recurso auma implicação dos géneros e das espécies que Descartes condenara no seu método. (Lívio Teixeira,op. cit., pág. 166.)7 5 Cf. Cartas, a Elisabeth, de maio de 1646. "Asurpresa que ela contém causa os movimentos maisrápidos de todos."

Art. 71. Que nesta paixão não ocorrequalquer mudança no coração nem nosangue.

E esta paixão tem a particularidade

de não notarmos de modo algum queseja acompanhada de qualquer mudança no coração e no sangue, como acontece com outras paixões. A razão éque, não tendo nem o bem nem o malpor objeto, mas só o conhecimento dacoisa que se admira, ela não se relaciona ao coração e ao sangue, dosquais depende todo o bem do corpo,mas apenas ao cérebro, onde ficam osórgãos dos sentidos que servem a esseconhecimento.

Art. 72. No que consiste a força daadmiração.

O que não a impede de ter muita

força por causa da surpresa, isto é, dasúbita e inopinada ocorrência da impressão que modifica o movimento dosespíritos, surpresa que é própria e articular a esta paixão; de sorte que,quando se encontra em outras, comocostuma encontrar-se em quase todas eaumentá-las, é porque a admiraçãoestá unida a elas. E a sua força depende de duas coisas, a saber, da novidadee do fato de o movimento que a causapossuir, desde o começo, toda a suaforça. Pois é certo que tal movimentoproduz mais efeito do que aqueles que,sendo de início fracos e só crescendopouco a pouco, podem ser facilmentedesviados. É certo também que os

objetos dos sentidos que são novos afe-tam o cérebro em certas partes que nãocostumam ser afetadas; e, sendo estaspartes mais tenras ou menos firmesque as endurecidas por uma agitaçãofrequente, isso aumenta o efeito dosmovimentos que esses objetos aí pro-

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vocam. O que não se julgará incrível,se se considerar que uma razão análoga faz com que, estando a planta denossos pés habituada a um contatobastante rude, devido ao peso do corpo

que sustenta, sintamos muito poucoesse contato quando andamos; aopasso que outro muito menor e maissuave, como o das cócegas, nos équase insuportável, por não nos sercomum.

Art. 73. O que é o espanto.

E essa surpresa tem tanto poderpara levar os espíritos localizados nascavidades do cérebro ao lugar ondeestá a impressão do objeto admiradoque, por vezes, impele todos para lá eos deixa de tal modo ocupados emconservar essa impressão que nenhumdeles passa ao cérebro, nem mesmo sedesvia de alguma forma das primeiraspegadas que seguiu no cérebro: o quefaz que o corpo inteiro permaneçaimóvel como uma estátua e que só percebamos do objeto a primeira face quese apresentou, e por conseguinte nãopossamos adquirir dele um conhecimento mais particular. É isso o que se

chama comumente estar espantado; eo espanto é um excesso de admiraçãoque só pode ser mau.

Art. 74. Para que servem todas as pai xões e no que elas prejudicam.

Ora, é fácil saber, pelo que foi dito

acima, que a utilidade de todas as paixões consiste apenas em fortalecer efazer durar na alma pensamentos, osquais é bom que ela conserve, e quepoderiam facilmente, sem isso, serobliterados. Assim como todo o malque podem causar consiste em fortalecer e conservar esses pensamentosmais do que o necessário, ou então em

fortalecer e conservar outros nos quaisnão vale a pena deter-se.

Art. 75. Para que serve particularmente a admiração.

E pode-se dizer particularmente daadmiração que ela é útil porque nosleva a aprender e a reter em nossamemória coisas que dantes ignorávamos; pois só admiramos o que nos parece raro e extraordinário; e coisa alguma pode parecer-nos assim senão

porque nós a ignorávamos, ou tambémporque é diferente das coisas queconhecíamos; pois é essa diferença quenos leva a chamá-la extraordinária.Ora, ainda que uma coisa que nos eradesconhecida se apresente de novo aonosso entendimento ou aos nossos sentidos, não a retemos por isso em nossamemória, se a ideia que dela temos nãofor fortalecida em nosso cérebro poralguma paixão, ou pela aplicação denosso entendimento, que a nossa vontade determina a uma atenção e reflexão particulares. E as outras paixõespodem servir-nos para notar as coisasque parecem boas ou más, mas só dispomos da admiração para as que pare

cem tão-somente raras. Por isso,vemos que os que não possuem qualquer inclinação natural para essa paixão são ordinariamente muito ignorantes.

Art. 76. No que ela pode prejudicar ecomo se pode suprir sua falta e corrigir 

seu excesso.

Mas acontece muito mais admirarmos em demasia e nos espantarmos aoperceber coisas que merecem pouca ounenhuma consideração, do que admirarmos demasiado pouco. E isso podesubtrair inteiramente ou perverter ouso da razão. Daí por que, embora seja

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bom ter nascido com alguma inclinação para esta paixão, porque isso nosdispõe para a aquisição das ciências,devemos todavia esforçar-nos em seguida para nos libertar dela o mais

possível7 6

. Pois é fácil suprir a suafalta por uma reflexão e atenção particulares, a que a nossa vontade semprepode obrigar nosso entendimentoquando julgamos que a coisa que seapresenta vale a pena; mas não háoutro remédio para impedir o admirarexcessivo senão adquirir o conhecimento de muitas coisas e exercitar-nos

na consideração de todas as que possam parecer mais raras e mais estranhas.

Art. 77. Que não são nem os maisestúpidos nem os mais hábeis os mais

 propensos à admiração.

De resto, embora só os embrutecidos e estúpidos não sejam levadosnaturalmente à admiração, isto nãosignifica dizer que os mais dotados deespírito sejam os mais inclinados a ela;mas são principalmente os que, embora possuam um senso comum assazbom, não têm, todavia, em grandeconta sua própria suficiência.

Art. 78. Que o seu excesso podeconverter-se em hábito quando sedeixa de corrigi-lo.

E, conquanto essa paixão pareçadiminuir com o uso, pois, quanto mais

7 6 A admiração pode estar na origem da ciência,mas, enquanto paixão, ela nos distancia do exercício da ciência. Encontram-se na correspondência deDescartes muitos ataques contra os amantes demaravilhas. Por exemplo, a propósito da história deuma jovem que apresenta todos os dias sobre ocorpo as chagas dos mártires cujas festas são celebradas, escreve: "O bom padre Mersenne é tãocurioso e fica tão alegre em ouvir alguma maravilhaque escuta favoravelmente todos os que lhe contamuma". (A Huyghens, 12 de março de 1640.)

encontramos coisas raras que admiramos, mais nos acostumamos a cessarde admirá-las e a pensar que todas asque podem apresentar-se depois sãovulgares, todavia, quando é excessiva e

nos leva somente a deter a atenção naprimeira imagem dos objetos que seapresentarem, sem adquirir deles outroconhecimento, deixa atrás de si um hábito que dispõe a alma a deter-se domesmo modo em todos os outros objetos que se apresentem, desde que lhepareçam, por pouco que seja, novos. E

é isso que faz durar a moléstia dos quesão cegamente curiosos7 7, isto é, queprocuram as raridades somente paraadmirá-las e não para conhecê-las:pois tornam-se pouco a pouco tãoadmirativos, que coisas de importâncianula não são menos capazes de retê-losdo que aquelas cuja pesquisa é maisútil.

Art. 79. As definições do amor e doódio7S.

O amor é uma emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos quea incita a unir-se voluntariamente aosobjetos que lhe parecem convenientes.

E o ódio é uma emoção causada pelosespíritos que incita a alma a quererestar separada dos objetos que se lheapresentam como nocivos. Eu digo quetais emoções são causadas pelos espíritos a fim de distinguir o amor e o ódio,que são paixões e dependem do corpo,tanto dos juízos que levam também a

alma a se unir voluntariamente às coisas que ela considera boas e a se separar daquelas que considera más como

7 7 O excesso de uma paixão é uma doença, desdeque não se tome a palavra no sentido patológico.7 8 O autor vai analisar as cinco outras paixões doponto de vista psicológico (arts. 79-96) e depois

 fisiológico (arts. 96-136).

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das emoções que só esses juízos excitam na alma79 .

Art. 80. O que significa unir-se ouseparar-se voluntariamente.

De resto, pela palavra voluntariamente, não pretendo falar aqui dodesejo80, que é uma paixão à parte e serelaciona com o porvir; mas do consentimento pelo qual nos consideramospresentemente unidos com o que amamos, de sorte que imaginamos um todo

do qual pensamos constituir apenasuma parte, e do qual a coisa amada é aoutra. Como, ao contrário, no ódionos consideramos como um todo sóinteiramente separado da coisa pelaqual se tem aversão.

Art. 81. Da distinção que se costuma fazer entre o amor de concupiscência eo de benevolência.

Ora, distinguem-se comumente duasespécies de amor, uma das quais é chamada amor de benevolência, isto é, queincita a querer o bem para o que seama; a outra é chamada amor deconcupiscência, isto é, que leva a dese

 jar a coisa que se ama. Mas me pareceque essa distinção considera apenas osefeitos do amor, e não a sua essência;pois, tão logo nos unimos voluntariamente a algum objeto, de qualquernatureza que seja, temos por ele bene-

7 9 Enquanto paixão, o amor não é apenas a antecipação consciente do bem ao qual desejo estar

unido: esta antecipação torna-se inseparável de suaressonância orgânica. Sobre os sentimentos puramente intelectuais, cf. art. 147.

8 0 O amor, neste sentido, deve ser diferenciado dodesejo (o amor no sentido comum será, ao contrário, o desejo que nasce do agrado, cf. art. 90). Elenão é a consciência da necessidade que se refere aoalimento ou ao objeto sexual, mas reveste ao mesmotempo o amor pela glória, pelo dinheiro, pela pátria. . . É em outro nível, como há de indicar o artigo seguinte, que o amor poderá compor-se com odesejo.

volência, isto é, unimos-lhe tambémvoluntariamente as coisas que cremoslhe serem convenientes: o que é um dosprincipais efeitos do amor. E se julgarmos que é um bem possuí-lo ou lhe

estar associado de outra forma que nãoa voluntária, desejamo-lo: o que é também um dos mais comuns efeitos doamor.

Art. 82. Como paixões muito diferentes combinam na medida em que participam do amor.

Não é necessário também distinguirtantas espécies de amor quantos osdiversos objetos que se podem amar;pois, por exemplo, embora a paixãoque um ambicioso nutre pela glória,um avarento pelo dinheiro, um bêbadopelo vinho, um bruto pela mulher quedeseja violar, um homem de honra por

seu amigo ou por sua amante e umbom pai por seus Filhos, sejam muitodiferentes entre si, todavia, por participarem do amor, são semelhantes. Masos quatro primeiros têm amor apenaspela posse dos objetos aos quais se refere sua paixão81, e não o têm pelosobjetos mesmos, pelos quais nutremsomente desejo misturado com outraspaixões particulares, ao passo que oamor de um bom pai por seus filhos étão puro que nada deseja deles e nãoquer possuí-los de outra maneira senãocomo o faz, nem estar unido a elesmais estreitamente do que já o está;mas, considerando-os como outrostantos ele próprio, procura o bem deles

como o seu próprio, ou mesmo commais cuidado, porque, representando-

8 ' A sexualidade está portanto afastada da essência do amor. Sobre esta ideologia do amor (inseparável no século XVII do preciosismo) e seu conteúdo social, poder-se-á consultar: René Bray, LaPréciosité et les Précieux; Octave Nada, Le Sentiment de I 'Amour dans t'Oluvre de Corneilte; PaulBénichou, Morales du Grand Siècle.

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se formar com eles um todo, do qualnão é a melhor parte, prefere muitasvezes os interesses deles aos próprios enão teme perder-se para salvá-los. Aafeição que as pessoas de honra sen

tem por seus amigos é dessa natureza,embora raramente seja tão perfeita; e aque sentem pela amada participamuito dela, mas também participa umpouco da outra.

Art. 83. Da diferença entre a simplesafeição, a amizade e a devoção*2.

Pode-se, parece-me, com melhorrazão ainda distinguir o amor pela estima que se dedica ao que amamos emcomparação com nós próprios; pois,quando estimamos o objeto de nossoamor menos que a nós mesmos, sentimos por ele simples afeição; quando oestimamos tal como a nós próprios,

isso se chama amizade; e, quando oestimamos mais, a paixão que alimentamos pode ser chamada devoção.Assim, pode-se ter afeição por umaflor, por um pássaro, por um cavalo;porém, a não ser que se tenha o espírito muito desregrado, não se pode nutrir amizade senão pelos homens. E

eles são de tal modo objeto dessa paixão, que não há homem tão imperfeitoque não se lhe possa dedicar amizademuito perfeita, quando se pensa seramado por ele e se tem a alma verdadeiramente nobre e generosa, conformeo que será explicado mais adiante nosartigos 154 e 156. No que concerne àdevoção, seu principal objeto é, sem

dúvida, a soberana Divindade, em relação à qual não podemos deixar de serdevotos quando a conhecemos como sedeve; mas podemos também sentirdevoção por nosso príncipe, pelo nosso

82 Acerca desse artigo, cf. Cartas, a Chanut, de 1."de fevereiro de 1647.

país ou nossa cidade, e mesmo por umhomem particular, quando o estimamos mais do que a nós próprios. Ora, adiferença que existe entre essas trêsespécies de amor aparece principal

mente através de seus efeitos; pois,posto que em todas nos consideramosunidos e juntos à coisa amada, estamos sempre prontos a abandonar aparte menor do todo que se compõecom ela para conservar a outra; o quefaz com que, na simples afeição, seprefira sempre a si próprio ao que se

ama e que, ao contrário, na devoção seprefira de tal modo a coisa amada aoeu próprio que não se receia morrerpara conservá-la. Viram-se muitasvezes exemplos disso nos que se expuseram à morte certa em defesa de seupríncipe ou de sua cidade, e até, algumas vezes, de pessoas particulares àsquais se haviam devotado.

Art. 84. Que não há tantas espécies deódio como de amor.

De resto, ainda que o ódio seja dire-tamente oposto ao amor, não se distinguem nele todavia tantas espécies, porque não se nota tanto à diferença que

existe entre os males de que se estáseparado voluntariamente como a queexiste entre os bens a que se está unido.

Art. 85. Do agrado e do horror.

E não encontro senão uma únicadistinção considerável que seja análoga num e noutro. Consiste em que osobjetos, tanto do amor como do ódio,podem ser representados à alma pelossentidos exteriores, ou então pelos interiores e por sua própria razão; poisdenominamos comumente bem ou malaquilo que nossos sentidos interioresou nossa razão nos levam a julgarconveniente ou contrário à nossa natu-

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reza; mas denominamos belo ou feioaquilo que nos é assim representadopor nossos sentidos exteriores, principalmente pelo da visão, o qual por sisó é mais considerado que todos os

outros83; daí nascem duas espécies deamor, a saber, o que se tem pelas coisas boas e o que se tem pelas belas, aoqual se pode dar o nome de agrado afim de não o confundir com o outro,nem tampouco com o desejo, a quemuitas vezes se atribui o nome deamor; e daí nascem, da mesma forma,

duas espécies de ódio, uma das quaisse relaciona com as coisas más e aoutra com as feias; e esta última podeser chamada horror ou aversão, paradistingui-la da outra. Mas o que hánisto de mais notável é que essas paixões de agrado e horror costumam sermais violentas que as outras espéciesde amor ou de ódio, visto que o que

chega à alma pelos sentidos toca maisfortemente do que aquilo que lhe érepresentado pela razão, e que, noentanto, elas contêm comumente'menos verdade; de sorte que, de todasas paixões, são as que mais enganam edas quais é preciso mais cuidadosamente se guardar.

Art. 86. A definição do desejo.

A paixão do desejo é uma agitaçãoda alma causada pelos espíritos que adispõem a querer para o futuro as coisas que se lhe representam como

8 3

"O termo belo parece reportar-se mais particularmente ao sentido da vista." (A Mersenne, 18 demarço de 1630.) O belo e o feio provocam sentimentos mais vivos porque são representados sem

 julgamento à base dos dados sensoriais. Em um artigo dos Etudes Cartésiennes (IX Congrès Int.Philo., 1937, Hermann), Victor Basch demonstrouhaver em Descartes os elementos de uma estéticasensualista e empirista: "O que comprouver a maisgente poder-se-á chamar o belo". (A Mersenne, ibidem.) Cabe notar aqui a assimilação do agrado sensorial ao sentimento do belo.

convenientes8 4.~ Assim, não se desejaapenas a presença do bem ausente mastambém a conservação do presente, edemais a ausência do mal, tantodaquele que já se tem como daquele

que se julga poder ainda colher nofuturo.

Art. 87. Que é uma paixão que nãotem contrário.

Sei muito bem que comumente naEscola se opõe a paixão que tende à

procura do bem, a única que se denomina desejo, àquela que tende à fugado mal, a qual se denomina aversão.Mas, desde que não há qualquer bemcuja privação não seja um mal, nemqualquer mal considerado como coisapositiva cuja privação não seja umbem, e que, buscando, por exemplo, asriquezas, foge-se necessariamente da

pobreza e, ao fugir das doenças, procu-ra-se a saúde e assim por diante, pare-ce-me que é sempre um mesmo movimento que leva à busca do bem econjuntamente à fuga do mal que lhe écontrário8 5. Observo nisto apenas adiferença de que o desejo alimentado,quando se tende a algum bem, é acompanhado de amor e em seguida deesperança e alegria; ao passo que omesmo desejo, quando se tende adistanciar-se do mal contrário a essebem, é acompanhado de ódio, de temor

8 4 No desejo, síntese do "concupiscível" e do"irascível", a emoção só tem sentido com respeito àvolição. Para Spinoza, o desejo (definido como aideia do esforço que o corpo existente desenvolvepara perseverar no ser) não será mais uma paixão,porém a condição de todas as paixões, pois estasnão passam de elaborações diversas do desejo pelaimaginação. Daí uma diferença radical com Descartes: a alma encarnada não sofre paixão, ela éinteiramente paixão — ao mesmo tempo, a paixão,não dependendo mais de um substrato psicológico,terá mais liberdade aparente em suas construções.8 5 Não sendo o desejo senão inclinação para aação, não pode ser modificado pela orientaçãodesta.

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e tristeza; o que é causa de o julgaremcontrário a si mesmo. Mas, se se querconsiderá-lo quando ele se refere iguale simultaneamente a algum bem paraprocurá-lo e ao mal oposto para evitá-

lo, pode-se ver mui evidentemente queum e outro constituem apenas umaúnica paixão.

Art. 88. Quais são as suas diversasespécies.

Haveria mais razão de distinguir o

desejo em tantas espécies diversasquão diversos os objetos que se procuram; pois, por exemplo, a curiosidade,que não é senão um desejo de conhecer, difere muito do desejo de glória, eeste do desejo de vingança, e assim pordiante. Mas aqui basta saber que hátantos desejos quantas espécies deamor ou de ódio e que os mais conside

ráveis e os mais fortes são os que nascem do agrado e do horror.

Art. 89. Qual é o desejo que nasce dohorror.

Ora, conquanto seja apenas ummesmo desejo que tende à busca de um

bem e à fuga do mal que lhe é contrário, assim como já foi dito, o desejoque nasce do agrado não deixa de sermuito diferente daquele que nasce dohorror; pois este agrado e este horror,que verdadeiramente são contrários,não são o bem e o mal que servem deobjetos a tais desejos, mas somenteduas emoções da alma que a predispõem a buscar duas coisas muito diferentes, a saber: o horror é instituídopela natureza para representar à almauma morte súbita e inopinada, de sorteque, embora seja às vezes apenas ocontato de um vermezinho, ou o rumorde uma folha tremulante, ou a suasombra, que provoque o horror, sente-

se primeiramente tanta emoção comose um perigo de morte mui evidente seoferecesse aos sentidos, o que engendrarepentinamente a agitação que leva aalma a empregar todas as suas forças

para evitar um mal tão presente; e éessa mesma espécie de desejo que sechama comumente de fuga ou aversão.

Art. 90. Qual é o que nasce do agrado.

Ao contrário, o agrado foi particularmente instituído pela natureza pararepresentar o gozo do que agradacomo o maior de todos os bens pertencentes ao homem, o que faz desejarardentemente esse gozo. É verdade quehá diversas espécies de agrados e queos desejos daí oriundos não são todosigualmente poderosos; pois, por exemplo, a beleza das flores nos incitasomente a mirá-las, e a dos frutos, a

comê-los8 6

. Mas o principal é o proveniente das perfeições que imaginamosnuma pessoa que pensamos capaz detornar-se outro nós mesmos; pois, coma diferença do sexo, que a naturezaestabeleceu nos homens bem como nosanimais destituídos de razão, ela estabeleceu também certas impressões nocérebro que fazem com que, em certa

idade e em certo tempo, nos consideremos como defeituosos e como se nãofôssemos senão a metade de um todo,do qual uma pessoa do outro sexo deveconstituir a outra metade, de sorte quea aquisição dessa metade é confusamente representada pela naturezacomo o maior de todos os bens imagináveis. E, ainda que se veja muitas pessoas desse outro sexo, nem por isso sedeseja muitas ao mesmo tempo, postoque a natureza não leva a imaginar quese necessite de mais de uma metade.Mas, quando numa se observa algo

8 6 Reafirmação de uma simples diferença de grauentre o agrado sensual e o prazer estético.

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que agrada mais do que aquilo que seobserva ao mesmo tempo nas outras,isso determina a alma a sentir somentepor ela todo o pendor que a naturezalhe dá para procurar o bem que ela lhe

representa como o maior que se possapossuir8 7; e esta inclinação ou este desejo que nasce assim do agrado levamais comumente o nome de amor doque a paixão de amor acima descrita.Por isso, produz os mais estranhosefeitos e é ele que serve de principalmatéria aos fazedores de romances eaos poetas.

Art. 91. A definição da alegria.

A alegria é uma agradável emoçãoda alma, na qual consiste o gozo queela frui do bem que as impressões docérebro lhe representam como seu.Digo que é nessa emoção que consite o

gozo do bem; pois, com efeito, a almanão recebe nenhum outro fruto detodos os bens que possui; e, enquantonão extrai deles nenhuma alegria,pode-se dizer que não os desfruta maisdo que se não os possuísse de modoalgum. Acrescento também que setrata do bem que as impressões do cérebro lhe representam como seu, a fim

de não confundir esta alegria, que éuma paixão, com a alegria puramenteintelectual, que chega à alma pelaexclusiva ação da alma, e que se podeconsiderar uma agradável emoção excitada em si própria, na qual consiste o

8 7 Há, portanto, na origem uma representação

"confusa" do gozo que incidirá num objeto determinado, muitas vezes graças a um processo-de condicionamento. "Quando eu era criança, amava umamenina de minha idade que era um pouco vesga;motivo pelo qual a impressão que se produzia pelavista em meu cérebro, quando eu mirava os seusolhos esgazeados, juntava-se de tal modo à que seproduzia nele para excitar em mim a paixão doamor, que muito tempo depois, vendo pessoas estrá-bicas, sentia-me mais propenso a amá-las do que aamar outras. . ." (Carias, a Chanut, 6 de junho de1647.)

gozo que ela frui do bem que seuentendimento lhe representa comoseu88 . É verdade que, enquanto a alma

está unida ao corpo, essa alegria intelectual não pode deixar de ser acompa

nhada da outra, que é uma paixão;pois, tão logo o nosso entendimentopercebe que possuímos algum bem,embora este bem possa ser tão diferente de tudo quanto pertence ao corpoque não seja de modo algum imaginável, a imaginação não deixa de provocar incontinenti alguma impressão nocérebro, da qual se segue o movimentodos espíritos que excita a paixão daalegria.

Art. 92. A definição da tristeza.

A tristeza é um langor desagradávelno qual consiste a incomodidade que aalma recebe do mal, ou do defeito que

as impressões do cérebro lhe representam como lhe pertencendo. E hátambém uma tristeza intelectual quenão é a paixão, mas que quase nuncadeixa de acompanhá-la.

Art. 93. Quais são as causas dessasduas paixões.

Ora, quando a alegria ou a tristezaintelectual excitam assim aquela que éuma paixão, sua causa é assaz evidente; e vê-se, por suas definições, que aalegria provém da opinião que se temde possuir algum bem, e a tristeza daopinião que se tem de encerrar algumma! ou algum defeito. Mas acontece

amiúde que nos sentimos tristes ou alegres sem que possamos tão distintamente advertir o bem ou o mal que são

8 8 Outro exemplo de emoção exclusiva da almaque não merece o nome de "paixão" no sentidoestrito. Mas, por meio da imaginação, esse sentimento puramente intelectual é convertido em paixão. No plano da união, a distinção entre as duas"alegrias" é, portanto, de direito, e não de fato.

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suas causas, a saber, quando este bemou este mal provocam suas impressõesno cérebro sem o intermédio daalma89, às vezes porque pertencemapenas ao corpo, e outras vezes tam

bém, ainda que pertençam à alma, porque ela não os considera como bem oumal, mas sob outra forma qualquer,cuja impressão está unida à do bem edo mal no cérebro90 .

Art. 94. Como essas paixões são excitadas por bens e males que se referemapenas ao corpo, e no que consistem o

 prazer físico9'' eddor.

Assim, quando gozamos de plenasaúde e o tempo é mais sereno do quede costume, sentimos em nós umcontentamento que não provém denenhuma função do entendimento, massomente das impressões que o movi

mento dos espíritos provoca no cérebro; e sentimo-nos igualmente tristescomo quando o corpo está indisposto,embora não saibamos que ele o esteja.Assim, o prazer dos sentidos é seguidode tão perto pela alegria, e a dor pelatristeza, que a maioria dos homens nãoos distingue de modo algum92 . Todavia, diferem tanto que podemos

algumas vezes sofrer dores com alegriae receber prazeres que desagradam.

8 9 "Sem o intermédio da alma não significa quenão tenhamos consciência desses estados, porque seassim fosse elas não seriam paixões, mas apenasque a causa deles não é a ideia de algum bem quepossuímos ou de um mal que nos afeta. A causadeles é um estado puramente fisjológico." (LívioTeixeira, op. cil., pág. 174.)

9 0 Ou então sua causa pode ser uma associaçãotornada inconsciente. "Assim, quando somos levados a amar alguém sem que saibamos a causa,podemos crer que isso vem do fato de haver algonele de semelhante ao que houve em outro objetoque amamos anteriormente, embora não saibamos oque é." (Cartas, a Chanut, 6 de junho de 1647.)91 Em francês chatouillemeni: prazer provenientede cócegas. Traduzimos por "prazer físico" porfalta de correspondente exato para o termo. (TV. dosT.)

Mas a causa de ser a alegria de ordinário seguida pelo prazer é que tudo oque se chama prazer ou sentimentoagradável consiste em que os objetosdos sentidos excitam nos nervos algum

movimento que seria capaz de prejudicá-los se não tivessem bastante forçapara lhe resistir, ou se o corpo não estivesse bem disposto; o que provocauma impressão no cérebro, a qual,sendo instituída pela natureza a fim detestemunhar esta boa disposição e estaforça, a representa à alma como umbem que lhe pertence, na medida em

que está unida ao corpo, e assim excitanela a alegria. E quase a mesma razãoque nos leva a obter naturalmente prazer em nos sentirmos comovidos portodas as espécies de paixões, mesmocom a tristeza e o ódio, quando essaspaixões são causadas apenas pelasestranhas aventuras a cuja represen

tação assistimos num teatro

93

, ou poroutros meios semelhantes, que, nãopodendo nos prejudicar de maneiraalguma, parecem aprazer nossa alma,tocando-a. E a causa de que a dor produz de ordinário a tristeza é que o sentimento chamado dor provém semprede alguma ação tão violenta que ofende os nervos; de sorte que, sendo insti

tuído pela natureza para significar àalma o dano que o corpo recebe poressa ação, e a sua fraqueza no fato denão lhe ter podido resistir, representa-lhe um e outro como males que lhe sãosempre desagradáveis, exceto quandocausam alguns bens que ela apreciamais do que a eles.

92 Assim como a alegria intelectual e a "paixão"na qual ela se insere, cumpre distinguir o bem-estarfisiológico e a paixão de alegria que ele produz.93 O estudo fisiológico começa pela descrição dosmovimentos corporais observados em cada uma dascinco paixões. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de1646: "É verdade que tive dificuldade em distinguiros que pertencem a cada paixão porque elas nuncaestão sós".

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Art. 95. Como podem também ser excitados por bens e males que a almanão nota, ainda que lhe pertençam;como são os prazeres que tiramos doaventurar-se ou do lembrar-se do mal

 passado.

Assim, o prazer que sentem muitasvezes as pessoas jovens em empreendercoisas difíceis e em expor-se a grandesperigos, embora não esperem daí qualquer proveito ou qualquer glória, surgeneles porque o pensamento de que é

difícil aquilo que empreendem provocaem seus cérebros uma impressão que,unida àquela que poderiam formar sepensassem que é um bem sentir-se bastante corajoso, bastante feliz, bastantedestro ou bastante forte, para se arriscar a tal ponto, é causa de que obtenham prazer disso. E o contentamentoque sentem os velhos quando se lem

bram dos males que sofreram provémde que eles se representam ser um bemo fato de terem podido, apesar de tudo,subsistir.

Art. 96. Quais são os movimentos dosangue e dos espíritos que causam ascinco paixões precedentes* 4.

As cinco paixões que comecei aexplicar aqui se acham de tal modounidas ou opostas umas às outras queé mais fácil considerá-las todas emconjunto do que tratar de cada umaseparadamente, assim como se tratouda admiração; e diferentemente dessa,a causa dessas paixões não reside uni

camente no cérebro, mas também nocoração, no baço, no fígado e em todasas outras partes do corpo, na medida

9 4 Sobre o prazer ambíguo que o espetáculo trágico proporciona, cf. Cartas, a Elisabeth, 6 de outubro de 1645. Descartes já escrevia no Compendium

 Musicae: "As elegias mesmas e as tragédias nosagradam tanto mais quanto mais excitam em nóscompaixão e dor. . .".

em que servem à produção do sangue edepois dos espíritos; pois, emboratodas as veias conduzam o sangue queelas contêm para o coração, acontece,no entanto, às vezes, que o de algumas

é impelido para ele com mais força doque o de outras; e acontece tambémque as aberturas por onde entra nocoração, ou, então, aquelas por ondesai, são às vezes mais largas ou maisapertadas umas que as outras.

Art. 97. As principais experiências

que servem para conhecer esses movimentos no amor.

Ora, considerando as diversas alterações que a experiência mostra emnosso corpo enquanto nossa alma éagitada por diversas paixões, observono amor, quando está só, isto é, quan

do não se acha acompanhado de qualquer intensa alegria, ou desejo, ou tristeza, que o batimento do pulso é iguale muito maior e mais forte que de costume; que se sente um doce calor nopeito, e que a digestão dos alimentos sefaz mui prontamente no estômago, demodo que essa paixão é útil para asaúde.

Art. 98. No ódio.

Observo, ao contrário, no ódio, queo pulso é desigual e mais fraco, e amiúde mais rápido; que se sentem frialda-des entremescladas de certo calor áspero e picante no peito; que o estômago

deixa de cumprir sua função e tende avomitar e rejeitar os alimentos ingeridos, ou ao menos a corrompê-los e aconvertê-los em maus humores.

Art. 99. Na alegria.

Na alegria, que o pulso é igual emais rápido que de ordinário, mas que

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não é tão forte ou tão grande como noamor; e que se sente um calor agradável que não fica apenas no peito, masse espalha também por todas as partesexternas do corpo, com o sangue que

para lá aflui em abundância; e que noentanto se perde às vezes o apetite,porque a digestão se faz pior do que decostume.

Art. 100. Na tristeza.

Na tristeza, que o pulso é fraco e

lento, e que sentimos em torno docoração como laços, que o apertam, epedaços de gelo que o gelam e comunicam sua frialdade ao resto do corpo; eque, apesar disso, não se deixa de terpor vezes bom apetite e sentir que oestômago não deixa de cumprir o seudever, contanto que não haja ódio misturado à tristeza.

Art. 101. No desejo.

Enfim, noto, de particular, no dese jo, que este agita o coração maisviolentamente do que quaisquer dasoutras paixões, e fornece ao cérebromais espíritos, os quais, passando daí 

aos músculos, tornam todos os sentidos mais agudos e todas as partes docorpo mais móveis.

Art. 102. O movimento do sangue edos espíritos no amor 9 5.

Essas observações, e muitas outras

que seria demasiado longo relacionar,deram-me motivo para julgar que,quando o entendimento se representaqualquer objeto de amor, a impressãoque tal pensamento efetua no cérebroconduz os espíritos animais, pelos ner-

9 5 Estudo dos fenómenos circulatórios nas paixõese de suas causas (arts. 102- 111).

vos do sexto par, aos músculos situados em torno dos intestinos e do estômago, da forma requerida a levar osuco dos alimentos, que se converteuem sangue novo, a passar prontamente

ao coração sem se deter no fígado, e,sendo aí impelido com mais força doque o é em outras partes do corpo, aentrar no coração com maior abundância e excitar nele um calor maior,por ser mais grosso do que aquele que

 já foi rarefeito muitas vezes ao passar erepassar pelo coração; o que o faz enviar também espíritos ao cérebro cujas

partes são mais grossas e mais agitadas que de ordinário; e esses espíritos,fortalecendo a impressão que o primeiro pensamento do objeto amávelnele ocasionou, obrigam a alma adeter-se nesse pensamento; e é nissoque consiste a paixão do amor.

Art. 103. No ódio.

Ao contrário, no ódio, o primeiropensamento do objeto que produzaversão conduz de tal modo os espíritos existentes no cérebro para os músculos do estômago e dos intestinos queimpedem o suco dos alimentos de se

misturar com o sangue, apertandotodas as aberturas por onde costumacorrer; e condu-los também de talmodo aos pequenos nervos do baço eda parte inferior do fígado, onde fica oreceptáculo da bile, que as partes dosangue que costumam ser rejeitadaspara esses lugares deles saem e correm,com o sangue que está nos ramos daveia cava, para o coração; o que causamuitas desigualdades em seu calor,tanto mais que o sangue provenientedo baço não se aquece e não se rarefazsenão a custo, e que, ao contrário, oprocedente da parte inferior do fígado,onde há sempre fel, se abrasa e dilatamui rapidamente; daí se segue que os

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espíritos que vão para o cérebro também têm partes muito desiguais emovimentos muito extraordinários;donde resulta que fortalecem nele asideias de ódio que já encontram aí impressas, e dispõem a alma a pensamentos cheios de acritude e amargura.

Art. 104. Na alegria.

Na alegria não são tanto os nervosdo baço, do fígado, do estômago oudos intestinos que atuam, mas os que

existem em todo o resto do corpo, eparticularmente aquele que fica emtorno dos orifícios do coração, o qual,abrindo e alargando tais orifícios, permite ao sangue, que os outros nervosexpulsam das veias para o coração, entrar e sair em maior quantidade que decostume; e, como o sangue que entãopenetra no coração já passou e repassou aí muitas vezes, vindo das artériaspara as veias, ele se dilata mui facilmente e produz espíritos cujas partes,sendo muito iguais e sutis, são própriaspara formar e fortalecer as impressõesdo cérebro que dão à alma pensamentos alegres e tranquilos.

Art. 105. Na tristeza.

Ao contrário, na tristeza, as aberturas do coração são fortemente contraídas pelo pequeno nervo que asenvolve, e o sangue das veias não é demodo algum agitado, o que determinaque vá muito pouco para o coração; e,

no entanto, as passagens por onde osuco dos alimentos corre do estômagoe dos intestinos ao fígado permanecemabertas, o que faz com que o apetitenão diminua, exceto quando o ódio, oqual muitas vezes está junto à tristeza,os fecha.

Art. 106. No desejo.

Enfim, a paixão do desejo tem istode próprio, que a vontade de obter

algum bem ou de fugir de algum malenvia prontamente os espíritos do cérebro a todas as partes do corpo capazesde servir às ações requeridas para talefeito, e particularmente ao coração eàs partes que lhe fornecem mais sangue, a fim de que, recebendo-o emmaior abundância do que de costume,envie maior quantidade de espíritos ao

cérebro, tanto para entreter e fortalecernele a ideia dessa vontade, como parapassar daí a todos os órgãos dos sentidos e todos os músculos que podem serempregados para obter o que se alme

 ja.

Art. 107. Qual é a causa desses movi

mentos no amor 9 6

.E do que foi dito acima deduzo as

razões de tudo isso, que há tal ligaçãoentre nossa alma e nosso corpo que,uma vez unida uma ação corporal aum pensamento, nenhum dos dois podeapresentar-se-nos em seguida sem que0 outro também não se apresente:como se vê nos que, tomando comgrande aversão qualquer beberagemquando doentes, não podem comer oubeber depois nada que se aproxime domesmo gosto sem sentir de novo amesma aversão; e, analogamente, nãopodem pensar na aversão que nutrempelos remédios sem que o mesmo gosto

lhes volte ao pensamento. Pois me parece que as primeiras paixões que anossa alma teve, quando começou aestar unida a nosso corpo, se devem a

9 6 Acerca dos arts. 107-111, cf. Cartas, a Chanut,1 ° de fevereiro de 1647.

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que algumas vezes o sangue, ou outrosuco que entrava no coração, era umalimento mais conveniente que ocomum para nele manter o calor, que éo princípio da vida; o que levava a

alma ajuntar voluntariamente a si essealimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmotempo os espíritos corriam do cérebropara os músculos, que podiam pressionar ou agitar as partes de onde vieraao coração, para fazer que estas lheenviassem mais; e tais partes eram oestômago e os intestinos, cuja agitaçãoaumenta o apetite, ou também o fígadoe o pulmão, que os músculos do diafragma podem pressionar: eis por quedesde então esse mesmo movimentodos espíritos sempre acompanhou apaixão do amor9 7.

Art. 108. No ódio.

Algumas vezes, ao contrário, chegava ao coração algum suco estranho,que não era próprio para manter ocalor, ou que podia mesmo extingui-lo;o que levava os espíritos que subiamdo coração para o cérebro a provocarna alma a paixão do ódio; e ao mesmotempo também esses espíritos iam docérebro aos nervos que podiam impeliro sangue do baço e das pequenas veiasdo fígado para o coração, a fim de obstar que aí entrasse esse suco nocivo; e,demais, àqueles que podiam repeliresse mesmo suco para os intestinos epara o estômago, ou também às vezesobrigar o estômago a vomitá-lo: daí resulta que esses mesmos movimentos

costumam acompanhar a paixão do9 ' Existe uma ligação primitiva entre o movimentodos espíritos e os estados sinestésicos que resultamdo estado de calor do coração. Durante cada umadessas ligações, a alma experimenta pela primeiravez o sentimento que desencadeará em seguida oprocesso de auto-reforçamento do qual não eraoriginariamente senão o simples concomitante.

ódio. E se pode ver a olho nu que há nofígado inúmeras veias ou condutosbastante largos, por onde o suco dosalimentos pode passar da veia portapara a veia cava, e daí para o coração,

sem se deter de modo algum no fígado;mas há também uma infinidade de outras menores, onde ele pode deter-se, eque contêm sempre sangue de reserva,como faz também o baço; sangue esseque, sendo mais grosseiro do que aquele que se acha em outras partes docorpo, pode melhor servir de alimentoao fogo que há no coração, quando oestômago e os intestinos deixam de lhofornecer.

Art. 109. Na alegria.

Aconteceu também algumas vezes,no começo de nossa vida, que o sanguecontido nas veias era um alimento bas

tante conveniente para manter o calordo corpo, e que elas o continham emtal quantidade que não havia a necessidade de buscar qualquer alimentoalhures; o que excitou na alma a paixão da alegria e fez, ao mesmo tempo,com que os orifícios do coração seabrissem mais do que de costume e queos espíritos corressem, abundantemente, do cérebro, não só para os nervos que servem para abrir esses orifícios, mas também, em geral, paratodos os outros que impelem o sanguedas veias para o coração, e impedemque a ele venha de novo o do fígado,do baço, dos intestinos e do estômago;eis por que esses mesmos movimentosacompanham a alegria.

Art. 110. Na tristeza.

Às vezes, ao contrário, acontece queo corpo teve falta de alimento, e é oque deve ter feito sentir à alma a sua

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primeira tristeza, ao menos a que nãofoi unida ao ódio. Isso mesmo fez também com que os orifícios do coraçãose estreitassem, porque só recebempouco sangue, e porque uma parte bem

grande desse sangue veio do baço, poiseste é como que o último reservatórioque serve para fornecê-lo ao coraçãoquando a ele não vem o suficiente deoutras partes; eis por que os movimentos dos espíritos e dos nervos que servem para estreitar assim os orifícios docoração e para levar-lhe sangue dobaço acompanham sempre a tristeza.

Art. 111. No desejo.

Enfim, todos os primeiros desejosque a alma pode ter nutrido, quandorecém-juntada ao corpo, consistiramem receber as coisas que lhe eramconvenientes e repelir as que lhe eram

nocivas; e foi para estes mesmos efeitos que os espíritos começaram desdeentão a mover todos os músculos etodos os órgãos dos sentidos em todasas formas que eles podem movê-los;esta é a causa de que agora, quando aalma deseja alguma coisa, todo ocorpo se torna mais ágil e mais disposto a mover-se do que costuma ser

sem isso. E quando acontece, além domais, estar o corpo assim disposto,isso torna os desejos da alma mais fortes e mais ardentes98 .

Art. 112. Quais são os sinais exterioresdessas paixões".

O que estabeleci aqui faz entender

38 Esta embriogenia das paixões é indispensável àexplicação do mecanismo delas. Do mesmo modo,no plano da Física do corpo (e não mais da Psicofi-siologia), a Embriologia é necessária para acompreensão da Fisiologia da nutrição. (Cf. Description du Corps Humain.)99 Estudo dos sinais externos que acompanham aspaixões: arts. 112-136.

suficientemente a causa das diferençasdo pulso e de todas as outras propriedades que atribuí mais acima a essaspaixões, sem que seja necessário queeu me detenha para explicá-las mais.

Porém, como só notei em cada uma oque se pode observar quando ela estásó, e que serve para conhecer os movimentos do sangue e dos espíritos queas produzem, resta-me ainda tratar demuitos sinais exteriores que costumamacompanhá-las, e que se percebem bemmelhor quando muitas se acham misturadas em conjunto, como costumam

estar, do que quando se acham separadas. Os principais destes signos são asações dos olhos e do rosto, as mudanças de cor, os tremores, a languidez, odesmaio, os risos, as lágrimas, osgemidos e os suspiros.

Art. 113. Das ações dos olhos e do

rosto.

Não há nenhuma paixão que alguma ação particular dos olhos nãodeclare: e isso é tão manifesto emalguns, que mesmo os criados maisestúpidos podem notar nos olhos doamo se este está zangado com eles ou

não está. Mas ainda que percebamosfacilmente tais ações dos olhos e saibamos o que significam, nem por isso éfácil descrevê-las, porque cada uma secompõe de muitas mudanças que ocorrem no movimento e na figura do olho,as quais são tão particulares e tãopequenas que cada uma delas é imperceptível separadamente, embora o queresulta de sua conjunção seja bastantefácil de reparar. Pode-se dizer quase omesmo das ações do rosto que tambémacompanham as paixões; pois, emborasejam maiores que as dos olhos, étodavia incómodo distingui-las, e sãotão pouco diferentes que há homensque fazem quase a mesma expressão

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quando choram que outros quandoriem. É verdade que existem algumasque são assaz notáveis, como as rugasda fronte, na cólera, e certos movimentos do nariz e dos lábios na indignação

e na zombaria, mas não parecem sertão naturais quanto voluntárias. E emgeral todas as ações, tanto do rostocomo dos olhos, podem ser modificadas pela alma, quando, querendoesconder sua paixão, ela imagina fortemente outra contrária; de sorte quepodemos utilizá-las tanto para dissimular nossas paixões como para decla

rá-las.

Art. 114. Das mudanças de cor.

Não podemos tão facilmente impe-dir-nos de ruborizar ou empalidecerquando alguma paixão nos dispõe atanto, porque tais mudanças não de

pendem dos nervos e dos músculos,como as precedentes, e provêm maisimediatamente do coração, o qual sepode chamar a fonte das paixões, namedida em que prepara o sangue e osespíritos para produzi-las. Ora, é certoque a cor do rosto não vem senão dosangue, o qual, correndo continuamente do coração, através das artérias,para todas as veias, e de todas as veiaspara o coração, colore mais ou menoso rosto, conforme preencha mais oumenos as pequenas veias que se dirigem à sua superfície.

Art. 115. Como a alegria faz rubori zar.

Assim, a alegria torna a cor maisviva e mais vermelha porque, abrindoas comportas do coração, faz com queo sangue corra mais depressa em todasas veias e com que, tornando-se maisquente e mais sutil, infle moderadamente todas as partes do rosto, o que

lhe dá um ar mais ridente e maisalegre.

Art. 116. Como a tristeza faz empalidecer.

A tristeza, ao contrário, estreitandoos orifícios do coração, faz com que osangue corra mais lentamente nasveias e com que, tornando-se mais frioe mais espesso, tenha necessidade deocupar nelas menos lugar; de sorteque, retirando-se das mais largas, que

são as mais próximas do coração,abandona as mais afastadas, e, sendoas do rosto as mais visíveis, isto o fazparecer pálido e descarnado, principalmente quando a tristeza é grande ousobrevêm prontamente, como vemosno pavor, no qual a surpresa aumentaa ação que aperta o coração.

Art. 117. Como se ruboriza muitasvezes estando-jse triste.

Mas acontece muitas vezes que nãoempalidecemos estando tristes, e que,ao contrário, ruborizamos; o que sedeve atribuir às paixões que se juntamà tristeza, a saber, o amor ou o desejo,

e às vezes também o ódio. Pois taispaixões aquecem ou agitam o sangueque vem do fígado, dos intestinos e deoutras partes interiores, impelem-nopara o coração, e daí, pela grande artéria, para as veias do rosto, sem que atristeza que aperta de um e de outrolado os orifícios do coração possaimpedir isso, exceto quando é excessi

va. Mas, ainda que seja apenas moderada, impede facilmente que o sangueassim vindo às veias do rosto desçapara o coração, enquanto o amor, odesejo ou o ódio para ele impelemoutro sangue das partes interiores; eispor que este sangue, estando detido emtorno da face, a torna rubra, e mesmo

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mais rubra do que durante a alegria,porque a cor do sangue parece tantomais viva quanto corre menos rapidamente, e também porque assim se podereunir mais nas veias da face do quequando os orifícios do coração estãomais abertos. Isto transparece principalmente na vergonha, que é compostade amor a si próprio e de um desejo premente de evitar a infâmia presente, oque faz vir o sangue das partes interiores para o coração, depois daí, atravésdas artérias, para a face, e com isso

uma moderada tristeza que impedeesse sangue de voltar ao coração. Omesmo transparece tão comumentequando se chora; pois, como direi logomais, é o amor unido à tristeza quecausa a maioria dás lágrimas; e omesmo surge na cólera, onde amiúdeum rápido desejo de vingança se mistu

ra ao amor, ao ódio e à tristeza.Art. 118. Dos tremores.

Os tremores têm duas causas diversas: uma consiste no fato de chegaremàs vezes muito poucos espíritos do cérebro para os nervos, e a outra de àsvezes chegarem aí em demasia para

poderem fechar bem as pequenas passagens dos músculos que, segundo foidito no artigo 11, devem ser fechadospara determinar os movimentos dosmembros. A primeira causa aparece natristeza e no medo, assim como quando trememos de frio, pois estas paixõespodem, da mesma maneira que a frial

dade do ar, espessar o sangue de talforma que não forneça ao cérebro bastantes espíritos para enviá-los aos nervos. A outra causa aparece amiúde nosque desejam ardentemente algo, e nosque estão fortemente comovidos pelacólera, como também nos que estãoébrios: pois estas duas paixões, assimcomo o vinho, fazem ir às vezes tantos

espíritos ao cérebro que não podem serdaí regularmente conduzidos para osmúsculos.

Art. 119. Da languidez.

A languidez é uma disposição pararelaxar e ficar sem movimento, que ésentida em todos os membros; provém,tal como o tremor, do fato de não iremsuficientes espíritos para os nervos,mas de uma forma diferente; pois acausa do tremor é que não os há bas

tantes no cérebro para obedecerem àsdeterminações da glândula quando elaos impele para algum músculo, aopasso que o langor procede do fato dea glândula não os determinar a ir paraalguns músculos de preferência a outros.

Art. 120. Como ela é causada peloamor epelo desejo.

E a paixão que causa mais comumente este efeito é o amor, unido aodesejo de uma coisa cuja aquisição nãose imagina possível no momento presente; pois o amor ocupa de tal formaa alma em considerar o objeto amado,que emprega todos os espíritos que seencontram no cérebro em representar-lhe a imagem e detém todos os movimentos da glândula que não sirvampara tal efeito. E cumpre notar, notocante ao desejo, que a propriedadeque lhe atribuí de tornar o corpo maismóvel só lhe convém quando se imagi

na que o objeto desejado é tal que sepode desde esse momento fazer algoque sirva para adquiri-lo; pois se, aocontrário, se imagina que é impossívelnaquele momento fazer algo de útilpara isso, toda a agitação do desejopermanece no cérebro, sem passar demodo algum aos nervos, e sendo aí inteiramente empregada em fortalecer

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a ideia do objeto desejado, deixa oresto do corpo languescente.

Art. 121. Que também pode ser causada por outras paixões.

É verdade que o ódio, a tristeza emesmo a alegria também podem causar certo langor quando são muito violentos, porque ocupam inteiramente aalma em considerar seu objeto, principalmente quando se lhe junta o desejode uma coisa para cuja aquisição em

nada podemos contribuir no momentopresente. Mas, como nos detemosmuito mais a considerar os objetos queunimos a nós voluntariamente do queaqueles de que nos separamos ouquaisquer outros, e como a languideznão depende de uma surpresa, masnecessita de algum tempo para se formar, ela se encontra muito mais no

amor do que em todas as outraspaixões.

Art. 122. Do desmaio.

O desmaio não está muito afastadoda morte, pois se morre quando o fogoque há no coração se extingue porcompleto, e só se cai em desmaioquando ele é de tal modo abafado queainda permanecem alguns restos decalor que podem em seguida reacendê-lo. Ora, há muitas indisposições docorpo que nos podem levar assim atombar em desfalecimento; mas entreas paixões apenas a extrema alegria,

nota-se, dispõe desse poder; e creio quea forma para causar tal efeito é que,abrindo extraordinariamente os orifícios do coração, o sangue das veiasentra nele tão de repente e em tão grande quantidade, que o calor não poderarefazê-lo assaz prontamente paralevantar as pequenas peles que fechamas entradas dessas veias: é por esse

meio que ele abafa o fogo, o qual costuma manter quando entra no coraçãoapenas com medida.

Art. 123. Por que não se desmaia de

tristeza.

Parece que uma grande tristezasobrevinda inopinadamente deve apertar de tal modo os orifícios do coraçãoque pode também extinguir-lhe o fogo;mas, não obstante, não se observa queisso aconteça, ou, se acontece, é muito

raramente; a razão disso, creio, é quenão pode haver no coração tão poucosangue que não baste para manter ocalor, quando esses orifícios estãoquase fechados.

Art. 124. Do riso.

O riso consiste em que o sangue queprocede da cavidade direita do coraçãopela veia arteriosa, inflando de súbito erepetidas vezes os pulmões, faz comque o ar neles contido seja obrigado asair daí com impetuosidade pelo gas-nete, onde forma uma voz inarticuladae estrepitosa; e tanto os pulmões, ao seinflarem, quanto este ar, ao sair, impe

lem todos os músculos do diafragma,do peito e da garganta, mediante o quemovem os do rosto que têm com elesqualquer conexão; e não é mais queessa ação do rosto, com essa voz inarticulada e estrepitosa, que chamamosriso.

Art. 125. Por que ele não acompanhaas maiores alegrias.

Ora, ainda que pareça ser o riso umdos principais sinais da alegria, essanão pode todavia provocá-lo, excetoquando é apenas moderada e há alguma admiração ou algum ódio misturado com ela: pois verificamos por

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experiência que, quando estamos extraordinariamente alegres, nunca omotivo dessa alegria nos leva a estourar de riso, e não podemos mesmo sera ele levados por qualquer outra causa,

exceto quando estamos tristes; e arazão disso é que, nas grandes alegrias,o pulmão está sempre tão cheio de sangue que não pode encher-se maisrepetidamente.

Art. 126. Quais são as suas principaiscausas.

E só posso notar duas causas quefaçam assim subitamente inflar o pulmão. A primeira é a surpresa da admiração, a qual, estando unida à alegria,pode abrir tão prontamente os orifíciosdo coração que grande abundância desangue, entrando de repente em seulado direito pela veia cava, aí se rarefaz e, passando daí à veia arteriosa,infla os pulmões. A outra é a misturade algum líquido que aumenta a rarefa-ção do sangue; e não encontro nadamais próprio para isso do que a partemais fluida daquele que procede dobaço, parte que, sendo impelida para ocoração por alguma ligeira emoção de

ódio, ajudada pela surpresa da admiração e misturando-se com o sangue quevem dos outros lugares do corpo, oqual a alegria faz entrar nele comabundância, pode levar este sangue adilatar-se aí muito mais que de ordinário; da mesma maneira que vemos umaporção de outros líquidos se inflarem

de repente, estando sobre o fogo, quando se lança um pouco de vinagre novasilhame em que se acham; pois amais fluida parte do sangue proveniente do baço é de natureza semelhante à do vinagre. A experiênciatambém nos mostra que, em todas ascircunstâncias que podem produzireste riso estrepitoso que vem do pul

mão, há sempre algum pequeno motivode ódio, ou ao menos de admiração. Eaqueles cujo baço não é muito sadioestão sujeitos a ser não só mais tristes,mas também, por intervalos, mais ale

gres e mais dispostos a rir que osoutros: posto que o baço envia duasespécies de sangue para o coração,uma muita espessa e grosseira, quecausa a tristeza; a outra muito fluida esutil, que causa a alegria. E amiúde,depois de rir muito, sentimo-nos naturalmente inclinados à tristeza, porque,

estando esgotada a parte mais fluidado sangue do baço, a outra, mais grosseira, segue-a para o coração.

Art. 127. Qual é sua causa na indignação.

Quanto ao riso que acompanha

algumas vezes a indignação, é comu-mente artificial e fingido; mas, quandonatural, parece vir da alegria que sentimos ao verificar que o mal que nosindignou não pode ofender-nos e, comisso, que estamos surpresos com anovidade ou com o encontro inopinadodeste mal; de modo que a alegria, oódio e a admiração para ele contri

buem. Todavia, quero crer que é possível também produzi-lo sem qualqueralegria, pelo simples movimento daaversão, que envia sangue do baço aocoração, onde é rarefeito e impelidopara o pulmão ao qual infla facilmentese o encontra quase vazio; e em geraltudo o que pode inflar subitamente opulmão desta maneira causa a açãoexterior do riso, exceto quando a tristeza a transmuda na dos gemidos e dosgritos que acompanham as lágrimas. Aesse propósito, Vives escreveu de sipróprio que, estando uma vez muitotempo sem comer, os primeiros bocados que metia na boca o obrigavam arir; o que podia provir do fato de seu

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pulmão, vazio de sangue devido à faltade alimento, se encher prontamentecom o primeiro suco que passava doestômago para o coração, e que só aimaginação de comer podia levá-lo,

antes mesmo que o dos alimentos ingeridos aí chegasse.

Art. 128. Da origem das lágrimas.

Assim como o riso jamais é causadopelas maiores alegrias, também as lágrimas nunca provêm de extrema tristeza, mas somente da que é moderadae acompanhada, ou seguida, de algumsentimento de amor, ou também de alegria. E, para compreender bem a suaorigem, cumpre observar que, emborasaia continuamente uma porção devapores de todas as partes de nossocorpo, não há todavia nenhuma deonde saiam tantos como dos olhos, por

causa da grandeza dos nervos ópticose da multidão de pequenas artérias poronde eles lhes vêm; e que, assim comoo suor se compõe apenas de vaporesque, saindo das outras partes, se convertem em água em suas superfícies,do mesmo modo as lágrimas se tornamvapores que saem dos olhos.

Art. 129. Da maneira como os vaporesse transmudam em água.

Ora, como já escrevi nos Meteoros,ao explicar de que forma os vapores doar se convertem em chuva, que issoprovém do fato de serem mais abundantes ou menos agitados que de ordi

nário, assim creio que, quando os quesaem do corpo são muito menos agitados que de costume, ainda que nãosejam tão abundantes, não deixam dese converter em água, o que provoca ossuores frios que procedem algumasvezes da fraqueza, quando se estádoente; e creio que, quando são muito

mais abundantes, desde que não sejamcom isso mais agitados, se convertemtambém em água, o que é causa dosuor que surge quando se faz algumexercício. Mas então os olhos não

suam, porque, durante os exercícios docorpo, como a maioria dos espíritosvai para os músculos que servem paramovê-lo, vão menos para os olhos,através do nervo óptico. E é apenasuma e mesma matéria que compõe osangue, enquanto está nas veias ou nasartérias, e os espíritos quando ele está

no cérebro, nos nervos ou nos músculos, e os vapores quando sai em formade ar, e enfim o suor ou as lágrimasquando se espessa em água sobre asuperfície do corpo ou dos olhos.

Art. 130. Como o que causa dor aoolho excita-o a chorar.

E não consigo notar senão duas causas que façam os vapores que saem dosolhos se transmudarem em lágrimas. Aprimeira é quando a figura dos porospor onde passam é mudada por qualquer acidente que seja: pois isso, retardando o movimento desses vapores e

modificando sua ordem, pode levá-losa se converterem em água. Assim,basta que um argueiro caia no olhopara arrancar-lhe algumas lágrimasporque, excitando neles a dor, altera adisposição de seus poros; de sorte que,tornando-se alguns mais estreitos, aspequenas partes dos vapores passam

neles menos depressa, e que, em vez desaírem como antes igualmente distantes umas das outras, e permaneceremassim separadas, acabam por encon-trar-se, porque a ordem destes porosestá perturbada, mediante o que elas se

 juntam e assim se convertem emlágrimas.

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Art. 131. Como se chora de tristeza.

A outra causa é a tristeza seguida deamor ou de alegria, ou em geral dequalquer causa que leva o coração aimpelir mais sangue pelas artérias. Atristeza é aí requerida porque, resfriando todo o sangue, estreita osporos dos olhos; mas, como à medidaque os estreita diminui também aquantidade de vapores a que devemdar passagem, isto basta para produzir

lágrimas se a quantidade desses vapores não for ao mesmo tempo aumentada por alguma outra causa; e nada aaumenta mais do que o sangue enviadoao coração, na paixão do amor. Porisso vemos que os que estão tristes nãoderramam continuamente lágrimas,mas apenas por intervalos, quandofazem alguma nova reflexão sobre osobjetos pelos quais têm afeição.

Art. 132. Dos gemidos que acompanham as lágrimas.

E então os pulmões também se enchem às vezes de repente pela abundância do sangue que entra aí dentro eque expulsa o ar que costumam conter,o qual, saindo pelo gasnete, engendraos gemidos e os gritos que costumamacompanhar as lágrimas; e esses gritossão comumente mais agudos do que osque acompanham o riso, embora sejamproduzidos quase da mesma maneira;a razão disso é que os nervos que ser

vem para alargar ou estreitar os órgãosda voz, para torná-la mais grossa, oumais aguda, estando unidos aos queabrem os orifícios do coração durantea alegria e os contraem durante a tristeza, fazem com que esses órgãos sealarguem ou se estreitem ao mesmotempo.

Art. 133. Por que choram facilmenteos velhos e as crianças.

As crianças e os velhos são maisinclinados a chorar do que os de meia-

idade, mas é por razoes diversas. Osvelhos choram amiúde de afeição e dealegria; pois essas duas paixões unidasem conjunto enviam muito sangue aocoração e daí muitos vapores aosolhos; e a agitação desses vapores é detal forma retardada pela frialdade desuas índoles que se convertem facil

mente em lágrimas, conquanto nenhuma tristeza as precedesse. Porque se alguns velhos choram também muifacilmente por irritação, não é tanto otemperamento de seus corpos mas o de'seus espíritos que os dispõe a tanto; eisso só acontece aos que são tão fracosque se deixam sobrepujar inteiramente

por pequenos motivos de dor, medo oupiedade. O mesmo ocorre com ascrianças, que não choram quase de alegria, mas muito mais de tristeza,mesmo quando ela não é acompanhada de amor; pois têm sempre bastante sangue para produzir muitosvapores, os quais, tendo seu movi

mento retardado pela tristeza, se convertem em lágrimas.

Art. 134. Por que algumas criançasempalidecem em vez de chorar.

Todavia, há algumas que empalidecem em vez de chorar quando estãozangadas; o que pode testemunharhaver nelas um juízo e uma coragemextraordinários, a saber, quando issoprovém do fato de considerarem agrandeza do mal e se prepararem paraforte resistência, tal como fazem osque são mais idosos; mas trata-se maiscomumente de marca de má índole, a

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saber, quando isto provém do fato deserem propensas ao ódio ou ao medo;pois estas são paixões que diminuem amatéria das lágrimas, e vê-se, aocontrário, que as que choram mui

facilmente são propensas ao amor e àpiedade.

Art. 135. Dos suspiros.

A causa dos suspiros é muito diferente da causa das lágrimas, emborapressuponham, como essas, a tristeza;pois, ao passo que somos incitados a

chorar quando os pulmões estão cheiosde sangue, somos incitados a suspirarquando se acham quase vazios, e quando alguma imaginação de esperançaou de alegria abre o orifício da artériavenosa, que a tristeza estreitara, porque então, caindo o pouco sangue queresta nos pulmões de repente no lado

esquerdo do coração por essa artériavenosa, e sendo para aí impelido pelodesejo de alcançar esta alegria, o qualagita ao mesmo tempo todos os músculos do diafragma e do peito, o ar éimpelido prontamente pela boca paraos pulmões, a fim de preencher neles olugar deixado por esse sangue; e é issoque se chama suspiro.

Art. 136. De onde provêm os efeitosdas paixões que são particulares a certos homens.

De resto, para suprir aqui em poucas palavras tudo quanto se poderiaacrescentar no tocante aos diversosefeitos ou às diversas causas das paixões, contentar-me-ei em repetir oprincípio em que se apoia tudo o queescrevi, a saber, que há tal ligaçãoentre a nossa alma e o nosso corpoque, quando se uniu uma vez qualqueração corporal com algum pensamento,nenhum ds dois torna a apresentar-sea nós sem que o outro também esteja

presente, e que não são sempre as mesmas ações que unimos aos mesmospensamentos; pois isso basta para dara razão de tudo quanto cada um de nóspode advertir de particular em si ou em

outrem, no tocante a esta matéria, eque não foi ainda explicado10 0. E, porexemplo, é fácil pensar que as estranhas aversões de alguns, que os impedem de suportar o odor das rosas ou apresença de um gato, ou coisas semelhantes, provêm apenas do fato deterem sido no começo de suas vidasfortemente ofendidos por quaisquerobjetos parecidos, ou então de teremcompartilhado do sentimento de suasmães, que se viram por eles ofendidasquando grávidas; pois é certo que hárelação entre todos os movimentos damãe e os da criança que está em seuventre, de modo que o que é contrárioa uma prejudica a outra. E o odor das

losas pode ter causado grande dor decabeça a uma criança quando ainda seachava no berço, ou então um gatopode tê-la amedrontado fortemente,sem que ninguém tivesse reparadonisso ou que em seguida restasse qualquer lembrança, embora a ideia daaversão que tivera então por estasrosas ou por este gato permaneça

impressa em seu cérebro até o fim davida.

Art. 137. Do uso das cinco paixõesaqui explicadas, na medida em que serelacionam ao corpo1 ° ' .

Depois de ter dado as definições do

100 "Todos os cérebros não se acham dispostos damesma maneira", dizia o art. 39. A explicação domecanismo geral das paixões pode ser, pois, completada por uma psicologia individual e histórica.Lívio Teixeira (págs. 179-80) mostra no que as linhas que seguem antecipam certos temas da psicanálise. Cumpre notar, no entanto, que, em Descartes, a relação de associação se reduz à contiguidadede dois "traços" e que não é expressiva, como emFreud.

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amor, do ódio, do desejo, da alegria,da tristeza, e tratado de todos os movimentos corporais que as causam ou asacompanham, só nos resta consideraraqui o seu uso. No tocante a isso, cum

pre observar que, segundo o que anatureza instituiu, elas se relacionamtodas ao corpo e são dadas à alma apenas na medida em que a ele está unida;de sorte que o seu uso natural é incitara alma a consentir e a contribuir nasações que podem servir para conservaro corpo ou para torná-lo de algumaforma mais perfeito; e nesse sentido atristeza e a alegria são as duas primeiras a serem empregadas. Pois a almanão é imediatamente advertida das coisas que prejudicam o corpo senão pelosentimento que tem da dor, o qual produz nela primeiramente a paixão datristeza, em seguida o ódio pelo queprovoca esta dor, e em terceiro lugar o

desejo de se livrar dela; do mesmomodo, a alma não é imediatamenteadvertida das coisas úteis ao corposenão por uma espécie de prazer físicoque, excitando nela a alegria, engendraem seguida o amor por aquilo que secrê ser a sua causa, e enfim o desejo deadquirir aquilo que pode fazer com que

se continue nesta alegria ou então quese goze ainda, depois, de outra semelhante. O que mostra que todas ascinco são muito úteis com respeito aocorpo, e mesmo que a tristeza antecedede alguma forma e é mais necessáriaque a alegria, e o ódio mais que oamor, porque importa mais repelir as

coisas que prejudicam e podem destruir do que adquirir as que acres-

1 0 ' Última parte: conclusões práticas. Comodevem as paixões contribuir para a harmonia dasubstância composta? A ordem do estudo será aseguinte: o das paixões do ponto de vista do corpo(art. 137); do ponto de vista da alma (art. 139); namedida em que nos levam à ação (art. 143).

centam alguma perfeição sem a qual sepode subsistir.

Art. 138. De seus defeitos e dos meiosde corrigi-los.

Mas embora este uso das paixõesseja o mais natural que elas possam tere embora todos os animais sem razãoconduzam a sua vida apenas por movimentos corporais semelhantes aos quecostumam em nós acompanhá-las, enas quais elas incitam nossa alma aconsentir, no entanto nem sempre tal

uso é bom, posto que há muitas coisasnocivas ao corpo que não causam, nocomeço, nenhuma tristeza ou queproporcionam mesmo alegria, e outrasque lhe são úteis, ainda que de iníciosejam incómodas10 2. E, além disso,fazem parecer, quase sempre, tanto osbens como os males que representam,bem maiores e mais importantes doque são, de modo que nos incitam aprocurar uns e a fugir de outros commais ardor e mais cuidado do que éconveniente103, como vemos tambémque os animais são muitas vezes enganados por meio de engodos, e que paraevitar pequenos males precipitam-seem outros maiores; eis por que deve

mos servir-nos da experiência e darazão para distinguir o bem do mal econhecer seu justo valor, a fim de nãotomarmos um pelo outro e não nosentregarmos a nada com excesso.

Art. 139. Do uso das mesmas pai xões, na medida em que pertencem à

alma, e primeiramente do amor.O que bastaria se tivéssemos em nós

102 Primeira reserva: limitação da validade dasmensagens vitais como guias da ação.103 Segunda reserva: a paixão pode desencadearuma reação desproporcionada. Sobre este ponto, épossível a comparação com os animais-máquinas,por definição desprovidos de paixões.

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apenas o corpo, ou se este fosse anossa melhor parte; mas, desde que ésomente a menor, devemos principalmente considerar as paixões na medidaem que pertencem à alma, em relação

à qual o amor e o ódio provêm doconhecimento1 ° 4 e precedem a alegriae a tristeza, exceto quando essas duasúltimas tomam o lugar do conhecimento, de que são espécies. E, quandoeste conhecimento é verdadeiro, isto é,quando as coisas que ela nos leva aamar são verdadeiramente boas, e asque nos leva a odiar são verdadeira

mente más, o amor é incomparavelmente melhor do que o ódio; ele nãopoderia ser demasiado grande e nuncadeixa de produzir a alegria. Digo queeste amor é extremamente bom porque,unindo a nós verdadeiros bens, nosaperfeiçoa outro tanto. Digo tambémque não poderia ser demasiado grande,pois tudo o que o mais excessivo pode

fazer é nos unir tão perfeitamente aesses bens que o amor que temos particularmente por nós mesmos não introduza aí qualquer distinção, o que creionunca poderá ser mau; e é necessariamente seguido de alegria, porque nosrepresenta o que amamos como umbem que nos pertence.

Art. 140. Do ódio.

O ódio, ao contrário, não pode sertão pequeno que não prejudique; enunca existe sem tristeza. Digo quenão pode ser demasiado pequeno porque não somos incitados a qualquer

ação pelo ódio ao mal, que não pudés-1 0 4 E não mais da sensação física, como no esquema precedente (sentimento de dor — paixões detristeza, ódio, desejo; sentimento de prazer — paixões de alegria, amor, desejo). Entre as paixõesengendradas pela sensação e as paixões engendradas pelo conhecimento, Descartes assinala duasdiferenças: 1." inversão da ordem no esquema genético; 2." privilégio do amor sobre o ódio.

semos sê-lo ainda mais pelo amor aobem, ao qual é contrário, ao menosquando este bem e este mal são bastante conhecidos; pois confesso que oódio ao mal, que só se manifesta pelador, é necessário com respeito aocorpo; mas não falo aqui senão daquele que resulta de um conhecimentomais claro, e relaciono-o apenas com aalma. Digo também que nunca existesem tristeza, porque, sendo o mal apenas uma privação, não pode ser concebido sem algum sujeito real em queexista; e nada há de real que não tenha

em si alguma bondade, de modo que oódio que nos afasta de algum mal afas-ta-nos, pelo mesmo meio, do bem aque está unido10 5, e a privação dessebem, sendo representada à nossa almacomo um defeito que é seu, excita nelaa tristeza: por exemplo, o ódio que nosdistancia dos maus costumes de alguém distancia-nos pelo mesmo meio

de sua convivência, na qual poderíamos sem isso auferir algum bemcuja privação nos irrita. E assim emtodos os outros ódios pode-se notaralgum motivo de tristeza.

Art. 141. Do desejo, da alegria e datristeza.

Quanto ao desejo, é evidente que,quando procede de um verdadeiroconhecimento, não pode ser mau,desde que não seja excessivo e esseconhecimento o regule. É evidentetambém que a alegria não pode deixarde ser boa, nem a tristeza de ser má,

em relação à alma, porque é na tristezaque consiste toda incomodidade que aalma recebe do mal, e é na alegria queconsiste todo gozo do bem que lhe pertence; de maneira que, se não tivéssemos corpo, eu ousaria dizer que não

0 5 Retomada da equação ontológica entre não-sere mal, ser e bem.

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poderíamos nos abandonar demais aoamor e à alegria, nem evitar demais oódio e a tristeza; mas os movimentoscorporais que o acompanham podemser todos nocivos à saúde, quando são

muito violentos, e, ao contrário, ser-lheúteis quando são apenas moderados1 0 6 .

Art. 142. Da alegria e do amor, com parados com a tristeza e o ódio.

De resto, posto que o ódio e a tristeza devem ser rejeitados pela alma,

mesmo quando procedem de verdadeiro conhecimento, com maior razãodevem sê-lo quando provêm de algumafalsa opinião. Mas é de duvidar que oamor e a alegria sejam bons ou nãoquando se acham tãó mal fundados; eparece-me que, se os considerarmosprecisamente naquilo que são em sipróprios com respeito à alma, poderemos'dizer que, embora a alegria sejamenos sólida e o amor menos vanta

 joso do que quando possuem um melhor fundamento, não deixam de serpreferíveis à tristeza e ao ódio tão malfundados1 ° 7: de modo que, nos recontros da vida em que não podemos evitar o azar de sermos enganados108,

agimos sempre melhor pendendo paraas paixões que tendem para o bem doque para aquelas que dizem respeito ao

i o 6 p o r estar a alma unida a um corpo, o amor e aalegria, intrinsecamente bons, podem ser excessivose o ódio e a tristeza, intrinsecamente maus, nãodevem no entanto ser banidos em absoluto. Vê-seaqui no que a Moral, enquanto baseada na Psicofi-siologia, difere de uma Moral de "espíritos puros".Vê-se também no que é perigoso falar de uma Moralde Descartes: os preceitos podem diferir segundo ascondições em que o problema é colocado.1 °

7 E a concessão extrema que Descartes podefazer na linha de uma Moral psicofisiológica. Descartes expressará opinião diferente na carta a Elisabeth, de 6 de outubro de 1645, na qual a mesmaquestão é examinada, não mais psicologicamente,porém na perspectiva do bem absoluto.108 É preciso ainda adquirir a certeza de que o"verdadeiro conhecimento" é impossível no imediato.

mal, ainda que seja apenas para evitá-lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsaalegria vale mais que uma tristeza cujacausa é verdadeira. Mas não ousodizer o mesmo do amor em relação ao

ódio; pois, quando o ódio é justo, afas-ta-nos apenas do objeto que contém omal de que é bom estar separado, aopasso que o amor que é injusto nos unea coisas que podem prejudicar, ou, aomenos, que não merecem ser tão consideradas por nós como o são, o que nosavilta e nos rebaixa.

Art. 143. Das mesmas paixões, namedida em que se referem ao dese

 jo' 09.

E é mister notar exatamente que oque acabo de dizer dessas quatro paixões só se verifica quando são consideradas precisamente em si próprias e

não nos levam a nenhuma ação; pois,na medida em que excitam em nós odesejo, por cujo intermédio regulam osnossos costumes, é certo que todasaquelas cuja causa é falsa podemprejudicar, e que, ao contrário, todasaquelas cuja causa é justa podem servir, e mesmo que, quando são igualmente mal fundadas, a alegria é comu-

mente mais nociva que a tristeza,porque esta, infundindo retenção ereceio, predispõe de alguma maneira àprudência, ao passo que a outra tornainconsiderados e temerários os que selhe abandonam.

Art. 144. Dos desejos cuja realização

só depende de nós.

Mas, dado que essas paixões não

109 Com essa última rubrica, aparece a Moralpropriamente dita. A questão da verdade ou da falsidade da paixão, que permanecia bastante secundaria nos parágrafos precedentes, passa agora aoprimeiro plano. Daí a oposição entre os arts. 142 e143.

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podem levar a nenhuma ação, excetopor intermédio do desejo que excitam,é particularmente esse desejo que devemos ter o cuidado de regular; e é nissoque consiste a principal utilidade da

Moral110

: ora, como disse hápouco111, esse desejo é sempre bom,quando segue um verdadeiro conhecimento, assim não pode deixar de sermau, quando se funda em algum erro.E me parece que o erro mais comu-mente cometido no tocante aos desejosé o de não distinguirmos suficientemente as coisas que dependem inteiramente de nós das que não dependem demodo algum112: pois, quanto às quedependem tão-somente de nós, isto é,de nosso livre arbítrio, basta saber quesão boas para não poder desejá-lascom demasiado ardor113, porque é seguir a virtude fazer as coisas boas quedependem de nós, e é certo que nunca

se poderia ter um desejo ardente demais pela virtude, além de que, nãopodendo deixar de lograr o que desejamos dessa forma, porquanto só de nósé que depende, recebemos sempre asatisfação que daí esperávamos11 4.Mas a falta que se costuma cometernesse particular nunca é desejar demasiado, mas somente desejar demasiadopouco; e o soberano remédio contraisso é libertar o espírito, tanto quantopossível, de toda espécie de outrosdesejos menos úteis, e depois procurarconhecer muito claramente e conside-

110 A Moral não é, portanto, entendida como técnica de regulamentação deduzida da explicação do

fenómeno psicofisiológico, mas como resposta àpergunta: como devemos regrar a paixão do desejo?Ela aparece como técnica concernente a uma paixão particular.111 No art. 141.1 ' 2 Quanto à retomada por Descartes dessa distinção estóica — que permitira responder à questãoética —, cf. Cartas, a Elisabeth, 4 de agosto de1645.ii3. É a primeira parte da resposta.11 4 Nota epicurista: a virtude é concebida comoum meio a serviço da felicidade.

rar com atenção a bondade do que é dedesejar.

Art. 145. Dos que não dependemsenão de outras causas, e o que é a

 fortuna.

Quanto às coisas que não dependemde modo algum de nós, por boas quepossam ser, jamais devemos desejá-lascom paixão11 5, não só porque podemnão acontecer, e por isso nos afligirtanto mais quanto mais tivermos dese

 jado, mas principalmente porque, ocupando nosso pensamento, elas nos desviam de dedicar nossa afeição a outrascoisas cuja aquisição depende de nós.E há dois remédios geraiscontra essesdesejos vãos: o primeiro é a generosidade, de que falarei abaixo; o segundoé que devemos amiúde refletir sobre aprovidência divina, e nos representar

que é impossível que alguma coisaaconteça de maneira diferente da determinada desde toda a eternidade poresta providência; de sorte que ela écomo uma fatalidade ou uma necessidade imutável que cumpre opor à fortuna para destruí-la como uma quimera que provém apenas do erro de nossoentendimento116 . Pois não podemosdesejar senão o que consideramos deuma maneira como possível, e nãopodemos considerar possíveis as coisasque só dependem de nós na medida emque pensamos que dependem da fortuna, isto é, que julgamos que possamacontecer, e que outrora aconteceramoutras semelhantes. Ora, essa opinião

baseia-se apenas no fato de não conhe-

1 ' 5 Segunda parte da resposta. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de 1646.11 e O desconhecimento da concatenação universaldos fenómenos provoca não a ilusão do livre arbítrio, como em Spinoza, mas a crença na fortuna,isto é, numa providência caprichosa cujas decisõessão imprevisíveis em si (e que nada tem a ver com oDeus cartesiano).

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cermos todas as causas que contribuem para cada efeito; pois, quandouma coisa que estimamos depender dafortuna não ocorre, isso testemunhaque alguma das causas necessárias

para produzi-la falhou, e, por conseguinte, que era absolutamente impossível, e que jamais aconteceu outrasemelhante, isto é, produção da qualhouvesse faltado também uma causasemelhante: de modo que, se não tivéssemos ignorado isso de antemão,nunca a teríamos considerado comopossível, nem, por conseguinte, a tería

mos desejado1 1 7

.Art. 146. Dos que dependem de nós ede outrem.

É mister, portanto, rejeitar inteiramente a opinião vulgar de que há forade nós uma fortuna que faz com que ascoisas sobrevenham ou não sobreve-nham, a seu bel-prazer, e saber quetudo é conduzido pela providênciadivina, cujo decreto eterno é de talmodo infalível e imutável que, exce-tuando as coisas que este mesmodecreto quis pôr na dependência denosso livre arbítrio118, devemos pen-

1 ' 7 Não é, pois, a ignorância que é condenável,mas o fato de julgar possível ou impossível um

acontecimento cuja modalidade (possível ou impossível) só poderemos conhecer quando ele for atual.Primado do atual sobre o virtual, definição daprovidência como uma causalidade motriz sem fissuras: vemos que a aproximação com os estóicosnão é apenas literal. Sobre o antiplatonismo e oantiaristotelismo dos estóicos, cf. V. Goldschmidt,Système StoTcien, págs. 84-85: "Eles haviam construído um pressuposto metafísico. . . capaz de alicerçar e orientar uma explicação científica domundo, levada até os ínfimos pormenores: poisnada absolutamente, nem ser nem acontecimento,

prescinde de causa ou de fim". De outro lado, areferência ao encadeamento universal, no espíritodo Pórtico, torna inacolhível uma interpretaçãodessa passagem como afirmação do determinismocientífico.11 8 Segundo Crisipo e Epicteto, a própria autonomia e a liberdade que temos de usar as coisasconformemente à nossa natureza entram na ordemprovidencial.

sar que, com respeito a nós, nadaacontece que não seja necessário ecomo que fatal, de sorte que não podemos sem erro desejar que aconteça deoutra forma119. Mas, como a maioria

de nossos desejos se estende a coisasque não dependem de nós nem todasde outrem, devemos exatamente distinguir nelas o que depende apenas denós, a fim de estender nosso desejotão-somente a isso; e quanto ao mais,embora devamos considerar sua ocorrência inteiramente fatal e imutável, afim de que nosso desejo não se ocupe

de modo algum com isso, não devemosdeixar de considerar as razões quelevam mais ou menos a esperá-la, a fimde que essas razões sirvam para regular nossas ações120: pois, por exemplo, se tivéssemos de tratar de algo emum lugar onde pudéssemos ir por doiscaminhos diversos, um dos quais costuma ser muito mais seguro do que o

outro, embora talvez o decreto daprovidência seja tal que, se formospelo caminho considerado mais seguro, seremos certamente roubados, eque, ao contrário, poderemos passarpelo outro sem qualquer perigo, nãodevemos por isso ser indiferentes àescolha de um ou de outro, nem repousarmos sobre a fatalidade imutáveldesse decreto; mas a razão quer queescolhamos o caminho que costumaser o mais seguro; e nosso desejo deveser realizado nesse particular quandonós o seguimos, qualquer que seja omal que daí nos sobrevenha, porque,sendo este mal em relação a nós inevitável, não temos nenhum motivo de

aspirar a sermos dele isentos, massomente executar da melhor forma o

' 1 9 Doutrina estóica da cooperação com o destino.120 A afirmação da fatalidade deve apenas nosimpedir de desejar com paixão as coisas que nãodependem de nós, mas não excluir os juízos prováveis e nos conduzir ao fatalismo e à indiferença.

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que nosso entendimento pode conhecer, assim como suponho que o executamos. E é certo que, quando nos exercitamos em distinguir assim afatalidade da fortuna, habituamo-nosfacilmente a regrar de tal modo nossosdesejos, na medida em que sua realização não depende senão de nós, que elespodem sempre nos proporcionar inteira satisfação.

Art. 147. Das emoções interiores daalma.

Acrescentarei somente mais umaconsideração que me parece servirmuito para nos impedir de receberqualquer incomodidade das paixões;nosso bem e nosso mal dependemprincipalmente das emoções interioresque são excitadas na alma apenas pela

própria alma, no que diferem dessaspaixões, que dependem sempre dealgum movimento dos espíritos; e, embora essas emoções da alma estejammuitas vezes unidas às paixões que selhes assemelham, podem amiúde também encontrar-se com outras, e mesmonascer das que lhe são contrárias121.

Por exemplo, quando um marido chorasua mulher morta, que (como aconteceàs vezes) ele ficaria irritado de vê-laressuscitada, pode suceder que seucoração seja oprimido pela tristeza quenele provocam o aparato dos funerais ea ausência de uma pessoa a cujo convívio estava acostumado; e pode suceder

que alguns restos de amor ou de piedade que se apresentam à sua imaginaçãoarranquem verdadeiras lágrimas deseus olhos, não obstante sentir secreta

121 A tranquilidade da alma pode ficar assimresguardada pelas emoções da própria alma quepodem estar em contradição com as paixões.

alegria no mais íntimo da alma, emoção que possui tanto poder que a tristeza, e as lágrimas que a acompanhamem nada podem diminuir sua força. Equando lemos aventuras estranhas

num livro, ou quando as vemos representadas num teatro, isso excita àsvezes em nós a tristeza, outras vezes aalegria, ou o amor, ou o ódio, e geralmente todas as paixões, segundo adiversidade dos objetos que se oferecem à nossa imaginação; mas com issotemos prazer de senti-las erguerem-se

em nós, e esse prazer é uma alegriaintelectual que pode tanto nascer datristeza como de todas as outraspaixões.

Art. 148. Que o exercício da virtude é um soberano remédio contra as pai

 xões.

Ora, posto que essas emoções interiores nos tocam mais de perto e têm,por conseguinte, muito mais podersobre nós do que as paixões que seencontram com elas, e das quais diferem, é certo que, contanto que a almatenha sempre do que se contentar em

seu íntimo, todas as perturbações quevêm de outras partes não dispõem depoder algum para prejudicá-la; masantes servem para aumentar a sua alegria, pelo fato de, vendo que não podeser por eles ofendida, conhecer comisso sua própria perfeição. E, para quea nossa alma tenha assim do que estarcontente, precisa apenas seguir estritamente a virtude122. Pois, quem quer

12 2 A ação moral não resulta, portanto, do conhecimento do verdadeiro, mas da tendência para omelhor. Ela se define menos pela espera objetiva dobem do que pelo intento de esperá-lo. Essa dissociação da sabedoria e da ciência permite, portanto,uma aproximação com a "vontade boa" kantiana.

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que haja vivido de tal maneira que suaconsciência não possa censurá-lo denunca ter deixado de fazer todas ascoisas que julgou serem as melho

res123

(que é o que chamo aqui seguira virtude), recebe daí uma satisfaçãotão poderosa para torná-lo feliz que osmais violentos esforços da paixão

nunca têm poder suficiente para perturbar a tranquilidade de sua alma.

123 Guéroult (op. cit., II, 264), assinalando queesse texto desmente o art. 50, acrescenta: "Pode-setentar conciliar esses textos concebendo que, no

homem que tem consciência de haver agido para oque ele cria ser o melhor, isto é, virtuosamente, estepesar não poderia perturbar a tranquilidade daalma. Na realidade, Descartes oscila entre duasposições diferentes sem poder optar definitivamentepor nenhuma delas".

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TERCEIRA PARTE

DAS PAIXÕES PARTICULARES

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Art. 149. Da estima e do desprezo.

Após haver explicado as seis paixões primitivas, que são como os géneros de que todas as outras constituemespécies, observarei aqui sucintamenteo que há de particular em cada umadessas outras, e manterei a mesmaordem segundo a qual as enumerei

mais acima12 4

. As duas primeiras sãoa estima e o desprezo; pois, emboraesses nomes signifiquem ordinariamente apenas as opiniões desapaixonadas que se têm do valor de cadacoisa, todavia, dado que dessas opiniões nascem às vezes paixões às quaisnão foram atribuídos nomes particulares, parece-me que esses possam ser-lhes atribuídos. E a estima, na medidaem que é uma paixão, é uma inclinação da alma para representar a si ovalor da coisa estimada, inclinaçãocausada por movimento particular dosespíritos de tal modo conduzidos aocérebro que fortalecem as impressõesque servem para este efeito; cpmo, ao

contrário, a paixão do desprezo é umainclinação da alma para considerar abaixeza ou a pequenez daquilo quedespreza, causada pelo movimento dosespíritos que fortalecem a ideia destapequenez.

, 2 4 Nos arts. 53 a 67.

Art. 150. Que essas duas paixões são

apenas espécies de admiração.

Assim, essas duas paixões são apenas espécies de admiração125, pois,quando não admiramos a grandezanem a pequenez de um objeto, não lhedamos nem mais nem menos importância do que a razão nos dita que

devemos dar, de forma que o estimamos ou o desprezamos então sem paixão; e, conquanto muitas vezes a estima seja excitada em nós pelo amor, e odesprezo pelo ódio, isso não é universal e provém apenas do fato de estarmos mais ou menos inclinados a considerar a grandeza ou a pequenez de umobjeto em virtude de termos mais ou

menos afeição por ele.Art. 151. Que podemos estimar-nos oudesprezar-nos a nós próprios.

Ora, essas duas paixões podem emgeral referir-se a todas as espécies deobjetos; mas são principalmente notáveis quando as referimos a nós mesmos, isto é, quando é nosso próprio1 2 6 O começo da Terceira Parte leva a compreender melhor o papel e a importância da admiração, que havia sido isolada das cinco outras paixõesprimitivas na Segunda Parte. A admiração institui aestima e o desprezo, isto é, as paixões valorizantesque se apresentam sempre misturadas a outras paixões (amor, ódio), sem se confundirem, no entanto,com elas.

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mérito que estimamos ou desprezamos; e o movimento dos espíritos queas causa é, então, de tal modo manifesto que muda mesmo a expressão, os

gestos, o andar e em geral todas asações dos que concebem uma melhorou pior opinião de si próprios que deordinário12 6.

Art. 152. Por que motivo podemosestimar-nos.

E, como uma das principais partesda sabedoria é saber de que forma epor que motivo cada qual deve esti-mar-se ou desprezar-se12 7, procurareiaqui dizer minha opinião128. Noto emnós apenas uma coisa que nos possadar a justa razão de nos estimarmos, asaber, o uso de nosso livre arbítrio e o

império que temos sobre as nossasvontades; pois só pelas ações quedependem desse livre arbítrio é quepodemos com razão ser louvados oucensurados e ele nos faz de algumamaneira semelhantes a Deus, tornan-do-nos senhores de nós próprios, contanto que não percamos, por covardia,os direitos que ele nos concede12 9.

' 2 6 Enquanto passionais, os julgamentos de estimae desprezo exprimem um desvio em relação à normal, isto é, ao juízo "que a razão nos dita".12 7 No prefácio dos Princípios, a sabedoria é definida como o perfeito conhecimento de tudo o queum homem pode saber tanto para a conduta de suavida como para a preservação da saúde e a invenção de todas as artes. A ideia que o homem deveformular de seu valor é, portanto, uma "das principais partes" desse saber.12 8

Deve ser comparado com "creio que..." doart. 153: a especulação ética não nos oferece a segurança da ciência. Efetivamente, ver-se-á o quanto aMoral de Descartes está impregnada de elementosideológicos.12 9 «o livre arbrítrio é por si a coisa mais nobreque possa existir em nós, na medida em que nostorna de algum modo parecidos a Deus e parece noseximir de lhe ser sujeitos." (Carts, a Cristina daSuécia, 20 de novembro de 1647.)

Art. 153. No que consiste a generosidade.

Assim creio que a verdadeira generosidade, que leva um homem a esti-mar-se ao mais alto ponto em que podelegitimamente estimar-se, consiste apenas, em parte, no fato de conhecer quenada há que verdadeiramente lhe pertença, exceto essa livre disposição desuas vontades, nem por que deva serlouvado ou censurado senão pelo seubom ou mau uso1 3 0 , e, em parte, no

fato de ele sentir em si próprio umafirme e constante resolução de bemusá-la, isto é, de nunca carecer de vontade para empreender e executar todasas coisas que julgue serem as melhores1 3 1 ; o que é seguir perfeitamente avirtude.

Art. 154. Que ela impede que se des preze os outros.

Os que têm esse conhecimento e sentimento de si próprios persuadem-sefacilmente de que cada um dos outroshomens também os pode ter de si, porque nisso nada há que dependa deoutrem132. Daí por que nunca despre

zam ninguém; e, embora vejam muitasvezes que os outros cometem faltas quefazem aparecer suas fraquezas, sen-tem-se todavia mais inclinados a desculpá-los do que a censurá-los e a crerque é mais por falta de conhecimento

130 "Sob esse aspecto, a generosidade é o conhecimento da resposta a uma das mais altas questões

que a mente humana pode propor-se,a saber: j>orque devemos estimar-nos ou desprezar-nos? E oproblema dos fins morais." (Lívio Teixeira, op. cit.,pág. 193.)131 Segundo aspecto da generosidade: ela é não sóconhecimento, porém esforço da vontade.132 A generosidade permite o reconhecimento dooutro enquanto livre: nessa medida, ela permite arealização dos atos de generosidade (na acepçãocorrente do termo).

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do que por falta de boa vontade que ascometem; e, como não pensam sermuito inferiores aos que possuem maisbens ou honras, ou mesmo mais espírito, mais saber, mais beleza, ou emgeral que os superam em algumas outras perfeições, também não se julgammuito acima dos que superam, porquetodas essas coisas lhes parecem muitopouco consideráveis em comparaçãocom a boa vontade, pela qual tão-so-mente eles se apreciam, e que supõemtambém existir, ou ao menos poder

existir, em cada um dos outros homens133.

Art. 155. Em que consiste a humildadevirtuosa.

Assim, os mais generosos costumamser os mais humildes; e a humildadevirtuosa consiste apenas em que a

reflexão que fazemos sobre a debilidade de nossa natureza e sobre as faltas que podemos ter cometido outrora,ou somos capazes de cometer agora,que não são menores do que as quepodem ser cometidas por outros, écausa de não nos preferirmos a ninguém e de pensarmos que os outros,tendo seu livre arbítrio tanto quantonós, também podem usá-lo bem.

Art. 156. Quais são as propriedades dagenerosidade e como ela serve de remédio contra todos os desregramentos^3 4

das paixões.

Os que são generosos dessa forma133 Ela possibilita também a fundação de umaMoral universal, isenta de preconceitos de casta oude "classe". Embora a "boa vontade" cartesiananada tenha a ver com a "vontade boa" kantiana,vemos surgir, aqui, uma exigência bastante comparável de universalidade ética.13 4 Cumpre distinguir desregramento e excessodas paixões, pois o excesso constitui apenas um doscasos do desregramento.

são naturalmente levados a fazer grandes coisas, e todavia a nada empreender de que não se sintam capazes; e,como nada estimam mais do que fazerbem aos outros homens e desprezar oseu próprio interesse, por esse motivosão sempre perfeitamente corteses, afáveis e prestativos para com todos. Ecom isso são inteiramente senhores desuas paixões135, particularmente dosdesejos, do ciúme e da inveja, porquenão há coisa cuja aquisição dependadeles que julguem valer bastante para

ser muito desejada; e do ódio para comos homens, porque os estimam a todos;e do medo, porque a confiança quedepositam na sua própria virtude ostranquiliza; e enfim da cólera, porque,apreciando muito pouco todas as coisas dependentes de outrem, nunca concedem tanta vantagem a seus inimigosa ponto de reconhecer que são por eles

ofendidos.

Art. 157. Do orgulho.

Todos os que concebem boa opiniãode si próprios por alguma outra causa,qualquer que seja, não têm verdadeiragenerosidade, mas somente orgulho,

que é sempre muito vicioso, embra oseja tanto mais quanto a causa pelaqual nós nos estimamos for mais injusta; e a mais injusta de todas é quandose é orgulhoso sem nenhum motivo;isto é, sem que se pense por isso haverem si qualquer mérito pelo qual sedeva ser estimado, mas só porque nãose faz caso do mérito, e porque, imagi-nando-se que a glória não passa deuma usurpação, crê-se que os que seatribuem mais glória são os que a têm

1 3 5 A generosidade não extirpa as paixões: é areguladora destas. Daí sua importância em Moral,pois a principal utilidade daquela é justamente a"regulação do desejo" (art. 144).

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mais. Esse vício é tão desarrazoado eabsurdo, que eu teria dificuldade emacreditar que existem homens que sedeixam levar por ele, se jamais alguémtivesse sido louvado injustamente; mas

a lisonja é tão comum em toda parteque não há homem, por defeituoso queseja, que não se veja muitas vezes estimado por coisas que não merecem nenhum louvor, ou mesmo que merecemcensura; o que dá ocasião aos maisignorantes e aos mais estúpidos deincidirem nesta espécie de orgulho13 6.

Art. 158. Que os seus efeitos sãocontrários aos da generosidade.

Mas, qualquer que seja a causa pelaqual alguém se estima, se for diferenteda vontade que se sente em si mesmode usar sempre bem o próprio livrearbítrio, da qual eu disse que vem a

generosidade, ela produz sempre umorgulho mui censurável, e que é tãodiversa dessa verdadeira generosidadeque produz efeitos inteiramente contrários; pois todos os outros bens, como oespírito, a beleza, as riquezas, as honras, etc., costumando ser tanto maisapreciados quanto em menos pessoasse encontrem, e sendo mesmo para a

maioria de tal natureza que não podemser comunicados a muitos, isso leva osorgulhosos a esforçarem-se por rebaixar todos os outros homens, e, sendoescravos de seus desejos, têm a almaincessantemente agitada pelo ódio, inveja, ciúme ou cólera.

Art. 159. Da humildade viciosa.

Quanto à baixeza ou humildadeviciosa, consiste principalmente nofato de nos sentirmos fracos ou pouco

1 3 6 A generosidade, virtude ética, opõe-se ao orgulho, produto da adulação social. Esta distinçãoentre o valor moral e os falsos valores sociais é umdos aspectos mais importantes desta Terceira Parte.

resolutos, e, como se não dispuséssemos do uso inteiro de nosso livrearbítrio, de não podermos impedir-nos de fazer coisas das quais sabemosque nos arrependeremos depois13 7; e

também no fato de crermos que nãopodemos subsistir por nós próprios,nem passar sem muitas coisas cujaaquisição depende de outrem. Assim édiretamente oposta à generosidade; eacontece muitas vezes que os que possuem o espírito mais baixo são os maisarrogantes e soberbos, da mesma maneira como os mais generosos são os

mais modestos e os mais humildes.Mas, enquanto os que têm o espíritoforte e generoso não mudam dehumor nas prosperidades ou adversidades que lhes ocorrem, os que o têmdébil e abjeto são conduzidos apenaspela fortuna, e a prosperidade não osinfla menos que a adversidade os tornahumildes. Mesmo se vê amiúde que serebaixam vergonhosamente peranteaqueles de quem esperam algum proveito ou temem algum mal, e que aomesmo tempo se elevam insolentemente acima daqueles de quem nãoesperam nem temem coisa alguma.

Art. 160. Qual é o movimento dos

espíritos nessas paixões.

De resto, é fácil reconhecer que oorgulho e a baixeza não são somentevícios, mas também paixões, porque asua emoção aparece fortemente noexterior dos que são subitamente inflados ou abatidos por alguma novacircunstância; mas é de duvidar que agenerosidade e a humildade, que sãovirtudes, possam também ser paixões,porque seus movimentos aparecem

1 3 7 A humildade viciosa engendra o oportunismo ea frouxidão (o retrato que segue é o do "arrivista");mas, fundamentalmente, ela consiste em assumircom complacência a nossa fraqueza e, em caso denecessidade, nos desculpar dela. No que já está próxima da "má-fé" no sentido sartriano.

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menos, e porque se afigura que a virtude não concorda tanto com a paixãocomo o faz o vício. Todavia, não vejorazão que impeça que o mesmo movimento dos espíritos que serve para fortalecer um pensamento, quando temum fundamento que é mau, não o

Íiossa fortalecer também, quando o seuiindamento é justo; e como o orgulho

e a generosidade consistem apenas naboa opinião que temos de nós próprios,e só diferem em que esta opinião éinjusta num e justa na outra, parece-me que podemos relacioná-los a uma

mesma paixão, que é excitada por ummovimento composto pelos da admiração, da alegria e do amor, tanto do quetemos por nós próprios como do quetemos pela coisa que leva alguém a seestimar: como, ao contrário, o movimento que excita a humildade, quervirtuosa, quer viciosa, é composto dosda admiração, da tristeza e do amor

que se sente por si próprio, misturadocom o ódio que se nutre pelos própriosdefeitos, que fazem com que a gente sedespreze; e toda a diferença que observo nesses movimentos é que o da admiração goza de duas propriedades: aprimeira, que a surpresa a torna fortedesde o começo, e a outra, que é igualem sua continuação, isto é, que os espí

ritos continuam movendo-se na mesmaproporção no cérebro. Dessas propriedades a primeira encontra-se bem maisno orgulho e na baixeza do que nagenerosidade e na humildade virtuosa;e, ao contrário, a última se nota maisnaquelas do que nessas duas outrasj arazão disso é que o vício provemordinariamente da ignorância138 , e

138 Como observa Lívio Teixeira, é assaz difícilencontrar um critério objetivo que possa separarorgulho e generosidade ( vício e virtude), dadoque nascem do mesmo mecanismo psicofisiológico.Aparentemente, o critério é puramente fisiológico:variação ou regularidade no movimento dos espíritos. Na realidade, é de ordem intelectual (conhecimento ou ignorância que engendra a surpresa). Cf. oadágio canis peccans est ignorans que Descartesrelembra a Mersenne (27 de abril de 1637).

que os que menos se conhecem são osmais sujeitos a se ensoberbecerem e ase humilharem mais do que devem,porque tudo quanto lhes acontece denovo os surpreende e faz com que, atri-buindo-o a si próprios, se admirem eque se estimem ou se desprezem, conforme julguem que o que lhes sucede éou não em seu proveito. Mas, comomuitas vezes após uma coisa que osensoberbeceu sobrevêm outra que oshumilha, o movimento de suas paixõesé variável;^ ao contrário, nada há nagenerosidade que não seja compatível

com a humildade virtuosa, nem aliásque as possa mudar, o que torna seusmovimentos firmes, constantes e sempre muito semelhantes a si próprios.Mas não surgem tão de surpresa, porquanto os que se estimam dessa maneira conhecem suficientemente quais sãoas causas que os fazem estimarem-se;todavia, pode-se dizer que essas causassão tão maravilhosas (a saber, o poderde usar nosso livre arbítrio, que nosleva a nos apreciarmos a nós mesmos,e as imperfeições do sujeito em quemestá esse poder, que nos levam a nãonos estimarmos demais) que todas asvezes que no-las representamos denovo proporcionam sempre nova ad

miração.

Art. 161. Como pode ser adquirida agenerosidade.

É mister notar que o que chamamoscomumente virtudes são hábitos daalma que a dispõem a certos pensamentos, de modo que são diferentesdestes pensamentos, mas podem produzi-los e reciprocamente serem poreles produzidas. É preciso notar também que tais pensamentos podem sergerados somente pela alma, mas ocorre muitas vezes que algum movimentodos espíritos os fortaleça e, nesse caso,

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são ações de virtude e ao mesmotempo paixões da alma139; assim, embora não haja virtude à qual o bomnascimento pareça contribuir tantocomo a que nos leva a nos apreciarmos

apenas segundo o nosso justo valor, eainda que seja fácil crer que todas asalmas postas por Deus em nossos corpos não são igualmente nobres e fortes1 4 0 (o que me levou a chamar estavirtude de generosidade1 4 1 , segundo ouso de nossa língua, de preferência amagnanimidade, segundo o uso da

Escola, onde não é muito conhecida), écerto, no entanto, que a boa formaçãomuito serve para corrigir os defeitos donascimento, e que, se nos ocuparmosmuitas vezes em considerar o que é olivre arbítrio e quão grandes são asvantagens advindas do fato de se teruma firme resolução de usá-lo bem,

assim como, de outro lado, quão inúteis e vãos são todos os cuidados queafligem os ambiciosos, podemos excitar em nós a paixão e em seguidaadquirir a virtude da generosidade1 4 2 ,sendo esta como que a chave de todasas outras virtudes e um remédio geralcontra todos os desregramentos daspaixões; parece-me que tal considera-

13 9 Além de seus aspectos intelectual e volitivo, agenerosidade é também uma paixão: a regularidadedo curso dos espíritos que a opõe às paixões-víciosnão a subtrai às leis do fenómeno passional.1 4 0 "O entendimento de alguns não é tão bomquanto o de outros", observa Descartes na dedicatória dos Princípios e "os que, com vontade cons5tante de bem fazer e cuidado muito particular de seinstruir, têm também excelente espírito, alcançam

sem dúvida um grau mais elevado de sabedoria doque os outros." (Ibid.) Pode haver ainda diferençasna "força da alma" evocada nos arts. 36 e 48.1 41 A fim de sublinhar o seu caráter em parteinato.1 42 A paixão de generosidade predispõe à virtudede generosidade, entendida como habitus implantado na alma. Esta não coincide de pronto comaquela.

ção bem merece ser observada1 4 3 .

Art. 162. Da veneração.

A veneração ou o respeito é uma

inclinação da alma não só para estimar o objeto que reverencia mas também para se lhe submeter com algumtemor, a fim de procurar torná-lo favorável; de maneira que só alimentamosveneração pelas causas livres que julgamos capazes de nos fazerem bem oumal, sem que saibamos qual dos doishão de fazer; pois temos amor e devo

ção mais do que simples veneração poraquelas de quem não esperamos senão0 bem e temos ódio por aquelas dequem não esperamos senão o mal; e, senão julgarmos que a causa deste bemou deste mal seja livre, não nos submeteremos a ela para procurar torná-lafavorável. Assim, quando os pagãos

mostravam veneração pelos bosques,fontes ou montanhas, não eram propriamente essas coisas mortas quereverenciavam, mas as divindades que

 julgavam presidi-las. E o movimentodos espíritos que provoca esta paixãocompõe-se daquele que excita a admiração e daquele que excita o medo, deque falarei adiante.

Art. 163. Do desdém.

Do mesmo modo, o que chamo desdém é a inclinação da alma para desprezar uma causa livre, julgando a seurespeito que, embora por sua naturezaseja capaz de fazer bem ou mal, está,

1 43 "Não é claro", pergunta Henri Lefebvre a propósito desse texto, "que Descartes se dirige às duasclasses dominantes do século XVII, a burguesia e ofeudalismo? Que lhes propõe um ideal comum quelhes permitiria a reconciliação?. . . Ideologicamente, essa coexistência momentânea exigiu adeterminação de uma figura do homem, aceitável aomesmo tempo pela burguesia e pela classe feudal."(Descartes, Ed. Minuit, págs. 249 a 255.)

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no entanto, tão abaixo de nós que nãonos pode causar nem um nem outro. Eo movimento dos espíritos que o excitaé composto dos que provocam a admiração, a segurança ou a ousadia.

Art. 164. Do uso dessas duas paixões.

São a generosidade, a fraqueza doespírito ou a baixeza que determinam obom e o mau uso dessas duas paixões:pois, quanto mais a alma é nobre egenerosa, tanto maior é a inclinaçãopara tributar a cada qual o que lhe

pertence144

; e assim não se temsomente uma mui profunda humildadeperante Deus, mas também se rendesem repugnância toda a honra e o respeito que é devido aos homens, a cadaum segundo o grau e a autoridade quetem no mundo, e desprezam-se apenasos vícios. Ao contrário, os que possuem o espírito baixo e fraco estãosujeitos a pecar por excesso, às vezespor reverenciarem e temerem coisasque são dignas unicamente de desprezo, e outras vezes por desdenhareminsolentemente as que mais merecemrespeito; e passam amiúde mui prontamente da extrema impiedade à superstição, depois da superstição à impieda

de, de sorte que não há vício nemdesregramento de espírito de que nãosejam capazes.

Art. 165. Da esperança e do temor.

 A esperança é uma disposição daalma para se persuadir de que advirá oque deseja, a qual é causada por ummovimento particular dos espíritos, asaber, pelo da alegria e do desejo misturados em conjunto; e o temor é outra

1 4 4 A generosidade, envolvendo uma justa apreciação da liberdade, impede, assim, o desregramentodas paixões que concernem às "causas livres".

disposição da alma que a persuade deque a coisa desejada não advirá; e é denotar que, embora essas duas paixõessejam contrárias, é possível tê-las asduas juntas, a saber, quando se repre

sentam ao mesmo tempo diversasrazões, das quais umas fazem julgarque a realização do desejo é fácil e outras a fazem parecer difícil.

Art. 166. Da segurança e do desespero.

E nunca uma dessas paixões acompanha o desejo sem que não deixealgum lugar à outra: pois, quando aesperança é tão forte que expulsa inteiramente o temor, ela muda de naturezae se chama segurança ou confiança; e,quando estamos certos de que aquiloque desejamos advirá embora continuemos a querer que advenha, deixamos, no entanto, de ser agitados pelapaixão do desejo, que levava a buscar

com inquietação sua ocorrência; domesmo modo, quando o receio é tãoextremo que tira todo lugar à esperança, converte-se em desespero; e essedesespero, representando a coisa comoimpossível, extingue inteiramente odesejo, o qual só se dirige às coisaspossíveis.

Art. 167. Do ciúme.O ciúme é uma espécie de temor que

se relaciona ao desejo de conservar aposse de algum bem; e não provémtanto da força das razões que fazem

 julgar que se pode perdê-lo como dagrande estima que se lhe concede, aqual leva a examinar até os menores

motivos de suspeita e a tomá-los porrazões fortemente consideráveis.

Art. 168. Em que essa paixão pode ser honesta.

E, porque se deve ter mais cuidado

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em conservar os bens que são muitograndes do que os que são menores,essa paixão pode ser justa e honestaem certas ocasiões. Assim, por exemplo, um capitão que guarda uma praça

de grande importância tem o direito deser cioso, isto é, de desconfiar de todosos meios pelos quais seria possívelsurpreendê-la; e uma mulher honestanão é censurada de ser ciosa de suahonra, isto é, de preservar-se não só deproceder mal mas também de evitaraté os menores motivos de maledicência.

Art. 169. Em que é censurável.

Mas rimos de um avarento quando éciumento de seu tesouro, isto é, quando0 come com os olhos e não se afastadele com medo de que lho roubem;pois não vale a pena guardar odinheiro com tanto zelo. E despreza-se

um homem que sente ciúme de suamulher, porque isso testemunha quenão a ama seriamente e que alimentamá opinião de si ou dela: digo que nãoa ama seriamente; pois, se nutrisse umverdadeiro amor por ela, não teria amenor inclinação para dela desconfiar;mas não é a ela que propriamente ama,mas somente o bem que imagina consistir em sua posse exclusiva; e nãotemeria perder este bem, caso não julgasse que é indigno dele ou então quesua mulher é infiel145. Além disso,esta paixão relaciona-se apenas a suspeitas e desconfianças, pois não épropriamente ser ciumento esforçar-sepor evitar qualquer mal, quando se tem

 justo motivo de receá-lo.1 4 s Esta condenação do ciúme é, sem dúvida, omelhor exemplo do recuo da moral aristocrática(sentimento exacerbado da honra, vaidade social ligada à posse sexual). Para o generoso, a mulher éuma "causa livre" que só merece que a gente se lheapegue na medida em que se lhe reconhece liberdade e que se lhe concede confiança. A aproximação com certas análises de Simone de Beauvoir éfácil.

Art. 170. Da irre solução.

A irresolução também é uma espéciede receio que, retendo a alma comosuspensa entre várias ações possíveis, é

causa de que não execute nenhuma, eassim que disponha de tempo paraescolher antes de se decidir, no queverdadeiramente apresenta certa utilidade que é boa; mas, quando duramais do que o necessário, e quandoleva a empregar no deliberar o temporequerido para o agir, é muito má. Ora,afirmo que é uma espécie de receio,

conquanto possa acontecer, quando sedeve escolher entre muitas coisas cujabondade parece muito igual, que sepermaneça incerto e irresoluto sem quese sinta por isso nenhum receio; poisesta espécie de irresolução provémsomente daquilo que se apresenta, enão de qualquer emoção dos espíritos;

eis por que não é uma paixão, a nãoser que o temor de falhar na escolhaaumente a incerteza. Mas este receio étão comum e tão forte em alguns quemuitas vezes, embora nada tenham aescolher e vejam apenas uma só coisaa tomar ou a deixar, ele os retém e fazcom que se detenham inutilmente aprocurar outras; e então é um excesso

de irresolução que vem de um desejodemasiado grande de bem proceder1 4 6

e de uma fraqueza do entendimento, oqual, não tendo noções claras e distintas, as tem somente muito confusas: eispor que o remédio contra este excessoé o de acostumar-se a formar juízoscertos e determinados no tocante a

todas as coisas que se apresentem e acrer que se desempenha sempre o dever

1 4 6 Cf. o comentário de Lívio Teixeira: "Correr orisco de errar é não só um mal menor que a irresolução ou a inação mas é condição de todo o bem possível, uma vez que se tenha o homem esforçado paraalcançar os melhores juízos possíveis". (Op. cit.,págs. 205-206.) Cf. Cartas, a Elisabeth, de 1.° desetembro de 1645 e de 15 de setembro de 1645.

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dir-me de que a natureza haja dado aoshomens qualquer paixão que seja sempre viciosa e não tenha nenhum usobom e louvável, todavia é difícil paramim adivinhar em que essas duas

podem servir. Parece-me apenas que acovardia tem certo emprego quandonos isenta de labores que poderíamosser incitados a tomar por razões veros-símeis, se outras razões mais certas,que os fizeram julgar inúteis, não houvessem provocado esta paixão; pois,além de isentar a alma desses labores,também serve então para o corpo, pelo

fato de que, retardando o movimentodos espíritos, impede a dissipação desuas forças. Mas vulgarmente é muitonociva, porque desvia a vontade dasações úteis; e, como provém apenas dofato de não se ter suficiente esperançaou desejo, basta aumentar em si próprio essas duas paixões para corrigi-la.

Art. 176. Do uso do medo.

Pelo que concerne ao medo ou aopavor, não vejo como possa jamais serlouvável e útil; por isso não constituiuma paixão particular, mas somenteum excesso de covardia, de espanto ede receio, que é sempre vicioso, assim

como a ousadia é um excesso de coragem que é sempre bom, contanto queseja bom o fim que se propõe; e, porque a principal causa do medo é a surpresa, nada há de melhor para se livrardele do que usar de premeditação epreparar-se para todos os acontecimentos cujo temor possa causá-lo.

Art. 177. Do remorso.O remorso de consciência é uma

espécie de tristeza que vem da dúvidasobre se uma coisa que se faz ou se fezé boa e pressupõe necessariamente adúvida: pois, se estivéssemos inteiramente seguros de que o que se faz é

mau,. abster-nos-íamos de fazê-lo,tanto mais que a vontade só se dirigeàs coisas que possuem alguma aparência de bondade; e, se tivéssemos certeza de que aquilo que já se fez é mau,

deveríamos sentir arrependimento enão apenas remorso. Ora, o uso dessapaixão está em se examinar se a coisade que se duvida é boa ou não, ou de seimpedir que a façamos outra vez,enquanto não estivermos certos de queseja boa. Mas, porque pressupõe omal, o melhor seria que jamais houvesse motivo de senti-la; e pode-se preveni-la através dos mesmos meiospelos quais é possível livrar-se dairresolução.

Art. 178. Da zombaria.

A derrisão ou zombaria é uma espécie de alegria mesclada de ódio que

resulta do fato de se perceber algumpequeno mal numa pessoa que julgamos digna dele: temos ódio por essemal e alegria por vê-lo em quem édigno dele; e, quando isto sobrevêminopinadamente, a surpresa da admiração é causa de cairmos na gargalhada,conforme o que já foi dito mais acimasobre a natureza do riso. Mas esse maldeve ser pequeno; pois, se for grande,não se pode crer que quem o tem omereça, a não ser que sejamos de índole muito má ou lhe dediquemos muitoódio.

Art. 179. Por que os mais imperfeitoscostumam ser os mais zombeteiros.

E vemos que os que possuem defeitos muito patentes, por exemplo, osque são coxos, caolhos, corcundas, ouque receberam alguma afronta em público, são particularmente inclinados àzombaria; pois, desejando ver todos osoutros tão desgraçados como eles, esti-

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mam muito os males que lhes acontecem e consideram-nos dignos deles.

Art. 180. Do uso da troça.

Pelo que respeita à troça modesta,que repreende utilmente os vícios,fazendo-os parecer ridículos, sem queentretanto a gente mesma se ria dissonem testemunhe nenhum ódio contraas pessoas, não é uma paixão, masuma qualidade de homem de bem, quepatenteia a alegria de seu humor e atranquilidade de sua alma, as quais

constituem marcas de virtude e muitasvezes também a finura de seu espírito,por saber dar uma aparência agradávelàs coisas de que zomba.

Art. 181. Da utilidade do riso na troça.

E não é desonesto rir quando se

ouvem as troças de um outro; elaspodem mesmo ser tais que significariaestar pesaroso não se rir delas; mas,quando troçamos nós próprios, é maisconveniente abstermo-nos disso, a fimde não parecermos surpresos com ascoisas que dizemos, nem admiradoscom a finura que temos em inventá-los; e isto faz com que surpreendamtanto mais aos que as ouvem.

Art. 182. Da inveja.

O que se chama comumente inveja éum vício que consiste numa perversidade de natureza que leva certa gente ase desgostar com o bem que vê aconte

cer aos outros homens; mas sirvo-meaqui dessa palavra para significar umapaixão que nem sempre é viciosa. A inveja portanto, enquanto é uma paixão,é uma espécie de tristeza mesclada deódio que nasce do fato de se ver acontecer o bem àqueles que julgamosindignos dele: o que só podemos pen

sar com razão apenas dos bens de fortuna; pois, quanto aos da alma oumesmo do corpo, na medida em que ostemos de nascença, é suficiente parasermos dignos deles tê-los recebido de

Deus, antes de estarmos capacitados acometer qualquer mal.

Art. 183. Como pode ser justa ouinjusta.

Mas quando a fortuna envia bens aalguém que verdadeiramente não os

merece, e quando a inveja não é provocada em nós senão porque, amandonaturalmente a justiça, ficamos desgostosos pelo fato de ela não ser observada na distribuição desses bens, é umzelo que pode ser desculpável, mormente quando o bem que invejamos aoutros é de tal natureza que pode

converter-se em mal nas mãos deles;como1 4 9 é o caso de algum cargo ouserviço em cujo exercício eles possamcomportar-se mal, e desejamos paranós o mesmo bem e somos impedidosde tê-lo, porque outros menos dignos opossuem, isso torna essa paixão maisviolenta, e ela não deixa de ser desculpável, desde que o ódio nela contido serelacione apenas com a má distribuição do bem que se inveja e não com aspessoas que o possuem ou o distribuem. Mas há poucas que sejam tão

 justas e tão generosas a ponto de nãoalimentar ódio por aqueles que osimpedem de adquirir um bem que nãoé comunicável a muitos, e que haviam

desejado para eles próprios, embora osque o adquiriram sejam tanto ou maisdignos. E o que é ordinariamente maisinvejado é a glória; pois, embora a dosoutros não impeça que a ela possamos

1 4 9 No que Descartes afasta-se de Aristóteles, paraquem a inveja é sempre viciosa. Cf. art. 195.

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aspirar, ela torna, todavia, o seu acessomais difícil e encarece o seu preço.

Art. 184. De onde vem que os invejosos estejam sujeitos a ter a tez plúm

bea.

De resto, não há nenhum vício queprejudique tanto a felicidade dos homens como o da inveja: pois, os quetrazem esta mácula, além de se afligirem a si próprios, perturbam tambémao máximo de seu poder o prazer dosoutros e têm ordinariamente a tez

plúmbea, isto é, mesclada de amarelo epreto como que de sangue pisado: daí vem que a inveja seja chamada livor em latim; o que concorda muito bemcom o que foi dito mais acima dosmovimentos do sangue na tristeza e noódio; pois este faz com que a bile amarela, proveniente da parte inferior dofígado, e a negra, proveniente do baço,espalhem-se do coração pelas artériasem todas as veias; e aquela faz comque o sangue das veias tenha menoscalor e corra mais lentamente do quede ordinário, o que basta para tornarlívida a cor. Mas como a bile, tanto aamarela quanto a negra, pode tambémser enviada às veias por muitas outras

causas, e como a inveja não as impelepara aí em quantidade bastante grandepara mudar a cor da tez, a não ser queseja muito grande e de longa duração,não se deve pensar que todos os queapresentam essa cor sejam propensos aela.

Art. 185. Da compaixão. A compaixão é uma espécie de tris

teza misturada de amor ou de boa vontade para com aqueles a quem vemossofrer algum mal de que os julgamosindignos. Assim, é contrária à invejaem virtude de seu objeto, e à zombariapor considerá-los de outra maneira.

Art. 186. Quais são os mais compassivos.

Os que se sentem muito fracos emuito expostos às adversidades da for

tuna parecem ser mais inclinados doque os outros a esta paixão, porque serepresentam o mal de outrem comopodendo acontecer-lhes; e assim sãocomovidos à piedade mais pelo amorque dedicam a si próprios do que peloque dedicam aos outros.

Art. 187. Como os mais generosos sãotocados por essa paixão.

Entretanto, os que são mais generosos e têm o espírito mais forte, demodo que não temem nenhum mal emrelação a si próprios e se mantêm paraalém do poder da fortuna, não estãoisentos de compaixão quando vêem a

imperfeição dos outros homens eouvem suas queixas; pois é uma parteda generosidade ter boa vontade paracom todos. Mas a tristeza desta comiseração não é mais amarga1 5 0 ; e,como a que é causada pelas açõesfunestas que se vê representarem numteatro, ela está mais no exterior e nosentido do que no interior da alma, a

qual tem, entretanto, a satisfação depensar que cumpre o seu dever, pelofato de compadecer-se dos aflitos. E hánisto a diferença de que, ao passo que

0 vulgo tem compaixão dos que se lastimam, porque pensa que os males quesofrem são muito deploráveis, o principal objeto da compaixão dos maiores

homens é a fraqueza dos que vêemlastimar-se, porque não julgam que nenhum acidente que possa acontecerseja um mal tão grande quanto acovardia dos que não podem sofrercom constância; e, embora odeiem osvícios, nem por isso odeiam os que a

1 50 Cf. Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 1645.

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eles estão sujeitos, e sentem por elesapenas compaixão1 S1.

Art. 188. Quais são os que não são por ela tocados.

Mas só os espíritos malignos e inve josos odeiam naturalmente todos oshomens, ou então os que são tão brutais, e de tal forma estão cegados pelaboa fortuna, ou desesperados pela má,que pensam que nenhum mal possaacontecer-lhes, são insensíveis à com

paixão.

Art. 189. Por que esta paixão excita achorar.

Além disso, chora-se mui facilmentenessa paixão, porque o amor, enviandomuito sangue ao coração, faz com que

saiam muitos vapores pelos olhos, eporque a frialdade da tristeza, retardando a agitação desses vapores, osfaz transformarem-se em lágrimas, segundo o que foi dito acima.

Art. 190. Da satisfação de si próprio.

A satisfação que sempre têm os queseguem constantemente a virtude é umhábito de sua alma que se chamatranquilidade e descanso de consciência; mas a que se adquire de novoquando se praticou recentemente alguma ação que se julga boa é uma paixão, a saber, uma espécie de alegria, aqual creio ser a mais doce de todas,

porquanto sua causa depende apenasde nós próprios. Todavia, quando essacausa não é justa, isto é, quando asações de que se tira muita satisfaçãonão são de grande importância, ou sãomesmo viciosas, ela é ridícula e não1 61 Esta piedade do generoso, no fim de contasdesdenhosa, permite-nos medir quão distante está agenerosidade da caridade cristã.

serve senão para produzir um orgulhoe uma arrogância impertinente: é o quese pode observar particularmente nosque, crendo-se devotos, são apenascarolas e supersticiosos; isto é, que, à

sombra de irem amiudadamente à igre ja, de recitarem muitas preces, de usarem cabelos curtos, de jejuarem, dedarem esmola, pensam ser inteiramente perfeitos, e imaginam-se tãograndes amigos de Deus, que nadapoderiam fazer que lhe desagradasse, eque tudo quanto lhes dita sua paixão ébom zelo, embora ela lhes dite às vezesos maiores crimes que os homens possam cometer, como trair cidades,matar príncipes, exterminar povos inteiros, só porque não seguem as suasopiniões1 52.

Art. 191. Do arrependimento.

O arrependimento é diretamentecontrário à satisfação de si próprio, e éuma espécie de tristeza proveniente dese julgar que se praticou qualquer máação; e é muito amarga, porque suacausa procede apenas de nós; o quenão impede, no entanto, que seja muitoútil quando é verdade que a ação de

que nos arrependemos é má e quandotemos disso um conhecimento certo,visto que ela nos incita a proceder melhor outra vez. Mas acontece muitasvezes que os espíritos fracos se arrependem de coisas que praticaram semsaber seguramente que eram más;persuadem-se disso unicamente porqueo temem; e se houvessem feito ocontrário, arrepender-se-iam da mesmamaneira: o que constitui neles umaimperfeição digna de compaixão; e os

' 52 "Os que são verdadeiramente pessoas de bemnão adquirem a reputação de ser devotos tantoquanto os supersticiosos e hipócritas." (Dedicatóriados Princípios.) Essa passagem dá testemunho daseparação instituída entre moral e religião: a fé nãopoderia dispensar a moralidade definida laicamente.

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remédios contra esse defeito são osmesmos que servem para sanar airresolução1 S3.

Art. 192. Do favor.

O favor é propriamente um desejode que aconteça o bem a alguém paracom o qual temos boa vontade; massirvo-me aqui dessa palavra para significar tal vontade na medida em que éprovocada em nós por alguma boaação daquele para com o qual temos

boa vontade; pois somos naturalmentelevados a amar os que fazem coisasque estimamos boas, ainda que daí nãonos advenha nenhum bem. O favor,nesse sentido, é uma espécie de amor, enão de desejo, embora o desejo de quesuceda o bem a quem favorecemos oacompanhe sempre; e está comumente

unido à piedade, porque as desgraçasque vemos ocorrer aos infelizes sãocausa de que efetuemos maior reflexãosobre seus méritos.

Art. 193. Do reconhecimento.

O reconhecimento também é uma

espécie de amor excitado em nós poralguma ação daquele por quem o sentimos, e pela qual cremos que ele nos fezalgum bem, ou ao menos que teve aintenção de fazê-lo. Assim, o reconhecimento contém tudo o que há no favore mais o fato de se fundar numa açãoque nos toca e que sentimos desejo de

retribuir: eis por que possui muitomais força, principalmente nas almas,por pouco nobres e generosas quesejam.

i 53 "Não há motivo de se arrepender, quando sefez o que se julgou o melhor", escreve Descartes aElisabeth (6 de outubro de 1645) mas, nessa mesmacarta, ele matiza a afirmação.

Art. 194. Da ingratidão.

Quanto à ingratidão, não é uma paixão, pois a natureza não pôs em nósnenhum movimento dos espíritos que aexcite; mas é apenas um vício direta-mente oposto ao reconhecimento, namedida em que esse é sempre virtuosoe um dos principais laços da sociedadehumana; eis por que tal vício só pertence aos homens brutais e tolamentearrogantes que pensam que todas ascoisas lhes são devidas, ou aos estúpi

dos que não fazem nenhuma reflexãosobre os benefícios que recebem, ouaos fracos e abjetos que, sentindo a suaimperfeição e as suas necessidades,procuram baixamente o socorro dosoutros, e, depois de havê-lo recebido,odeiam-nos, porque, não tendo vontade de lhes prestar outro semelhante, ounão tendo esperança de podê-lo, e ima

ginando que todo mundo é tão mercenário como eles e que não se praticanenhum bem exceto com esperança deser por ele recompensado, pensam queos enganaram.

Art. 195. Da indignação.

A indignação é uma espécie de ódioou de aversão que se nutre naturalmente contra os que praticam algummal, de qualquer natureza que seja; emuitas vezes está misturado com a inveja ou com a compaixão; mas seu ob-

 jeto é totalmente diferente, pois só ficamos indignados contra os que fazem obem ou o mal às pessoas que não omerecem, mas temos inveja dos querecebem esse bem, e sentimos compaixão pelos que recebem esse mal. É verdade que de alguma maneira representa praticar o mal possuir um bemde que não se é digno; o que foi talveza causa pela qual Aristóteles e seus

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seguidores, supondo que a inveja ésempre um vício1 s 4, deram o nome deindignação à que não é viciosa.

Art. 196. Por que ela está às vezesunida à compaixão e outras vezes à

 zombaria.

É também, de certo modo, receber omal o fazê-lo: daí resulta que alguns

 juntam à sua indignação a compaixão,e outros a zombaria, conforme estejamdotados de boa ou má vontade com

relação aos que vêem cometer faltas, eé assim que o riso de Demócrito e osprantos de Heraclito podem ter procedido da mesma causa1 5 s .

Art. 197. Que ela é muitas vezesacompanhada da admiração e não é incompatível com a alegria.

A indignação é também amiúdeacompanhada de admiração: pois costumamos supor que todas as coisasserão feitas da maneira que julgamosboa. Eis por que, quando acontecem deoutro modo, isso nos surpreende e nosadmira. Ela tampouco é incompatívelcom a alegria, embora esteja mais

ordinariamente unida à tristeza: pois,quando o mal que nos indigna nãopode prejudicar-nos e consideramosque não queríamos fazer algo semelhante, isto nos proporciona certo prazer; e é talvez uma das causas do risoque acompanha às vezes tal paixão1 5 6.

Art. 198. De seu uso.

De resto, a indignação se nota muitomais nos que querem parecer virtuosos

1 5 4 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, cap. 7,§§ 15-16.1 5 5 Exemplo tradicional: Demócrito rindo das tolices dos homens e Heraclito deplorando-as.1 5 6 Cf. art. 127.

do que nos que o são verdadeiramente;pois, embora os que amam a virtudenão possam ver sem alguma aversãoos vícios dos outros, não se apaixonamsenão contra os maiores e extraordinários. É ser difícil e tristonho o sentirmuita indignação por coisas de poucaimportância; é ser injusto senti-laspelas que não são em nada censuráveis; e é ser impertinente e absurdo nãorestringir essa paixão às ações doshomens, e estendê-la às obras de Deusou da natureza, como o fazem os que,

não estando jamais contentes com asua condição nem com a sua fortuna,ousam achar o que dizer da condutado mundo e dos segredos da providência.

Art. 199. Da cólera.

A cólera também é uma espécie deódio ou de aversão que alimentamoscontra os que praticaram algum mal,ou procuraram prejudicar, não indiferentemente a quem quer que seja, masparticularmente a nós. Assim, contémtudo o que a indignação contém eainda mais o fato de fundar-se numaação que nos toca e de que desejamosnos vingar; pois esse desejo a acompanha quase sempre; e ela é diretamenteoposta ao reconhecimento, como aindignação ao favor; mas é incomparavelmente mais violenta que essas trêsoutras paixões, porque o desejo derepelir coisas nocivas e de se vingar é omais imperativo de todos. O desejo

unido ao amor que se tem por si próprio é que fornece à cólera toda a agitação do sangue que a coragem e aousadia podem causar; e o ódio fazque seja principalmente o sangue bilio-so, vindo do baço e das pequenas veiasdo fígado, que receba esta agitação eentre no coração, onde, devido à sua

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abundância e à natureza da bile a queestá misturado, excita um calor maisáspero e mais ardente do que o quepodem aí excitar o amor ou a alegria.

Art. 200. Por que os que ela faz enrubescer são menos de recear do que osque ela faz empalidecer.

E os sinais exteriores dessa paixãosão diferentes, conforme os diversostemperamentos das pessoas e a diversidade das outras paixões que a compõem ou se lhe juntam. Assim, há osque empalidecem ou tremem quandose encolerizam e há os que enrubescemou mesmo choram; e julga-se comu-mente que a cólera dos que empalidecem é mais de temer do que a cólerados que enrubescem: a razão disso éque, quando não se quer, ou não sepode tirar vingança de outra forma, ex-ceto pela expressão ou por palavras,emprega-se todo o calor e toda a forçadesde o início da comoção, o que écausa de enrubescer; além do que, àsvezes, o pesar e a piedade que se tempor si próprio, porque a gente não

pode vingar-se de outra maneira, sãocausas de chorar. E, ao contrário, osque se reservam e se decidem a umamaior vingança tornam-se tristes porque se julgam a isso obrigados pelaação que os põe em cólera; e sentemalgumas vezes receio dos males quepodem seguir-se da resolução por elestomada, o que os torna primeiro pálidos, frios e trémulos; mas, quando chegam em seguida a executar a sua vingança, esquentam-se tanto maisquanto mais frio sentiram no começo,tal como vemos que as febres que seiniciam pelo frio costumam ser as maisfortes.

Art. 201. Que há duas espécies de cólera e os que têm mais bondade são osmais sujeitos à primeira.

Isso nos adverte de que se podemdistinguir duas espécies de cólera: umaque é muito rápida e se manifestamuito por fora, mas que no entantotem pouco efeito e pode facilmenteaplacar-se; outra que não aparecetanto no início, mas que rói mais ocoração e tem efeitos mais perigosos.

Os que possuem muita bondade emuito amor são os mais sujeitos à primeira; pois ela não nasce de um profundo ódio, mas de uma pronta aversão que os surpreende, porque, sendopropensos a imaginar que todas as coisas devem seguir segundo a maneiraque julgam ser a melhor, tão logoacontecem de outra forma admiram-see ofendem-se, amiúde, mesmo sem quea coisa os haja tocado em particular,visto que, tendo muita afeição, interes-sam-se por aqueles a quem amam talcomo por si próprios1 5 7 . Assim, o queseria, para outro, motivo apenas deindignação, é para eles motivo de cólera; e porque a inclinação que têm para

amar os leva a ter muito calor e muitosangue no coração, a aversão que ossurpreende não pode enviar para eletão pouca bile que não cause de iníciogrande emoção neste sangue; mas estaemoção quase não dura, porque aforça da surpresa não continua e porque, tão logo se apercebem de que o

motivo que os irritou não devia emocioná-los tanto, arrependem-se1 S8.

1 5 7 Cf. Cartas, a Chanut, 1.° de fevereiro de 1647.1 5 8 "São comumente os melhores homens que,vendo de um lado a morte de um filho e de outro operigo de um irmão, são por isso mais violentamente comovidos. Eis por que as faltas assim cometidas, sem nenhuma malícia premeditada, são, pare-ce-me, as mais desculpáveis." (Cartas, a Huyghens,1648.)

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AS PAIXÕES DA ALMA 301

Art. 202. Que são as almas fracas ebaixas que se deixam dominar pelaoutra.

 A outra espécie de cólera, em quepredomina o ódio e a tristeza, não é decomeço tão aparente, a não ser talvezporque faz empalidecer o rosto; massua força é aumentada pouco a poucopela agitação de ardente desejo de sevingar excitado no sangue, o qual,estando misturado com a bile que éimpelida para o coração da parte infe

rior do fígado e do baço, provoca neleum calor fortemente áspero e picante.E como são as almas mais generosasque sentem mais reconhecimento,assim são as mais orgulhosas, maisbaixas e mais débeis que se deixammais dominar por essa espécie de cólera; pois as injúrias parecem tantomaiores quanto mais o orgulho nosleva a nos estimarmos a nós próprios,e também tanto maiores quanto maisapreciamos os bens que elas tiram, osquais se estimam tanto mais quantomais fraca e mais baixa é a alma, porque são bens que dependem de outrem.

Art. 203. Que a generosidade serve deremédio contra seus excessos.

Demais, ainda que essa paixão sejaútil para nos dar vigor a fim de repeliras injúrias, não há, todavia, nenhumade que se devam evitar os excessoscom mais cuidado, porque, perturbando o juízo, levam muitas vezes acometer faltas de que depois se temarrependimento, e mesmo porque algumas vezes impedem que essas injúriassejam tão bem repelidas como poderíamos fazer se sentíssemos menosemoção. Mas, como nada há que atorne mais excessiva do que o orgulho,creio que a generosidade é o melhor

remédio que se possa encontrar contraseus excessos, porque, levando-nos aapreciar muito pouco todos os bensque podem ser arrebatados, e aocontrário, a estimar muito a liberdade

e o império absoluto de nós próprios,e, ainda, a deixar de tê-lo quando qualquer pessoa nos pode ofender, ela fazcom que tenhamos apenas desprezo ouquando muito indignação em face dasinjúrias com que os outros costumamofender-se1 59 .

Art. 204. Da glória.O que recebe aqui o nome de glória

é uma espécie de alegria fundada noamor que se tem por si próprio e queprovém da opinião ou da esperança desermos louvados por alguns outros.Assim, é diferente da satisfação interior que nasce da opinião de se ter feito

alguma boa ação; pois às vezes somoslouvados por coisas que não cremosser boas e censurados por outras quecremos ser melhores: mas uma e outrasão espécies de estima que temos pornós próprios, bem como espécies dealegria; pois é motivo de nos apreciarmos o ver que somos apreciadospelos outros1 6 0 .

Art. 205. Da vergonha.

 A vergonha, ao contrário, é umaespécie de tristeza também fundada noamor a si próprio e que provém da opinião ou do temor de sermos censura-1 5 9 Cf. Cartas, a Chanut, 1.° de novembro de1646. A generosidade, por implicar o conhecimentodo verdadeiro valor do homem, o livre arbítrio, é omeio de nos curar da cólera, sem que possamos seracusados de covardia. A gente só se livra da cóleralivrando-se da excessiva auto-estima e da suscetibi-lidade è injúria daí decorrente. Nisso Descartes seaparta uma vez mais do ideal aristocrático.

1 6 0 Análise que pode ser aplicada à glória corne-liana — ao mesmo tempo estima por si próprio eamor-próprio social.

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dos; é, além do mais, uma espécie demodéstia ou de humildade e desconfiança de si próprio: pois, quando agente se estima tanto que não podeimaginar-se desprezada por ninguém,

não se pode facilmente ter vergonha.

Art. 206. Do uso dessas duas paixões.

Ora, a glória e a vergonha têm omesmo uso pelo fato de nos incitaremà virtude, umapela esperança e a outrapelo temor; é somente necessário ins

truir o juízo no tocante ao que é verdadeiramente digno de censura ou louvor, a fim de não ficarmosenvergonhados de proceder bem e nãoauferirmos vaidade de nossos vícios,como acontece a muitos. Mas não ébom despojar-se inteiramente dessaspaixões, tal como faziam outrora os cínicos; pois, ainda que o povo julgue

muito mal, dado que não podemosviver sem ele, e que nos importa sermos estimados por ele, devemos muitas vezes seguir suas opiniões mais doque as nossas, no tocante ao exteriorde nossas ações1 61.

Art. 207. Da impudência.

A impudência ou o descaramento,que é um desprezo pela vergonha, eamiúde também pela glória, não é umapaixão, porque não há em nós nenhummovimento particular dos espíritos quea excite; mas é um vício oposto à vergonha, e também à glória, na medida

1 6 1 O Discurso falava das "opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso que fossem comu-mente recebidas ná prática pelos mais sensatosdaqueles com os quais eu devia viver". Confissão deoportunismo e conformismo? Esse conformismo,responde Lívio Teixeira, "vem da clareza com quese percebem as limitações da Moral social, bemcomo as dificuldades que deparam aqueles que sepropõem transformá-la. Este conformismo social deDescartes é, antes de tudo, uma atitude de inteligência e boa vontade, em uma palavra, de generosidade". (Op. cit., pág. 209.)

em que uma e outra são boas, assimcomo a ingratidão se opõe ao reconhecimento e a crueldade à compaixão. Ea principal causa do descaramentodecorre de termos recebido muitas

vezes grandes afrontas; pois não hápessoa que, quando jovem, não imagine que o louvor é um bem e a infâmiaum mal muito mais importantes à vidado que se verifica por experiência maistarde, quando, tendo-se recebido algumas afrontas assinaladas, a gente se vêinteiramente privada de honra e desprezada por todos. Eis por que se tornam descarados os que, não medindo obem e o mal senão pelas comodidadesdo corpo, vêem que continuam gozando destas, após tais afrontas, tantoquanto antes, ou mesmo às vezes bemmais, porque ficam desobrigados demuitas coerções que a honra lhesimpunha e porque, se a perda de bens

estiver unida à sua desgraça, encon-tram-se pessoas caridosas que lhosdão.

Art. 208. Do fastio.

O fastio é uma espécie de tristezaproveniente da mesma causa de queproveio antes a alegria; pois somos detal forma compostos, que a maioriadas coisas de que desfrutamos sãoboas em relação a nós apenas por certotempo, e tornam-se em seguida incómodas: o. que transparece principalmente no beber e no comer, que sãoúteis apenas enquanto temos apetite esão nocivos quando não mais o temos;

e, porque cessam de ser então agradáveis ao gosto, chamou-se essa paixãofastio.

Art. 209. Do pesar.

O pesar é também uma espécie detristeza, que é uma particular amargura, pelo fato de estar sempre unida a

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algum desespero e à memória do prazer que o gozo nos deu; pois nuncalamentamos senão os bens de quegozamos e que se acham de tal modoperdidos que não alimentamos nenhu

ma esperança de recuperá-los aotempo e à maneira em que os lamentamos.

Art. 210. Do júbilo.

Enfim, o que chamo júbilo é umaespécie de alegria que apresenta de

particular o fato de sua doçura seraumentada com a lembrança dosmales que sofremos e dos quais nossentimos aliviados, da mesma maneiracomo nos sentimos livres de algum pesado fardo que tivéssemos carregadopor longo tempo sobre nossos ombros.E nada vejo de muito notável nessastrês paixões; por isso as coloquei aqui

apenas para seguir a ordem da enumeração que fiz mais acima; mas parece-me que essa enumeração foi útil paramostrar que não omitimos nenhumaque fosse digna de alguma consideração particular.

Art. 211. Um remédio geral contra as

 paixões.

E agora que as conhecemos todas,temos muito menos motivo de as temerdo que tínhamos antes; pois verificamos que são todas boas por naturezae que só devemos evitar o seu mau usoou os seus excessos, contra os quais os

remédios que expliquei poderiam bastar, se cada um tivesse cuidado bastante para praticá-los. Mas, comoincluí entre esses remédios a premedi-tação e a indústria pela qual se podemcorrigir os defeitos naturais, exercitan-do-nos em separar em nós os movimentos do sangue e dos espíritos dospensamentos aos quais costumam

estar unidos, confesso que há poucaspessoas que se tenham suficientementepreparado dessa maneira contra todasas espécies de recontros, e que essesmovimentos excitados no sangue pelos

objetos das paixões seguem primeirotão prontamente das simples impressões que se fazem no cfebro e dadisposição dos órgãos, ainda que aalma não contribua para tanto, dequalquer maneira, que não há nenhuma sabedoria humana capaz de resis-tir-lhes quando não estamos para isso

bem preparados. Assim, muitos nãopoderiam abster-se de rir, quando lhesfazem cócegas, embora não colhamdaí nenhum prazer; pois a impressãoda alegria e da surpresa que outrora osfez rir pelo mesmo motivo, estandodesperta em sua fantasia, faz com queseus pulmões sejam subitamente inflados, contra a vontade, pelo sangue que

o coração lhes envia. Assim, os quetêm, por natureza, forte pendor para asemoções da alegria e da compaixão, oudo medo, ou da cólera, não podemimpedir-se de desmaiar, ou de chorar,ou de tremer, ou de ter o sangue todoagitado como se tivessem febre, quan-

. do a sua fantasia é fortemente tocadapelo objeto de alguma dessas paixões.Mas o que se pode sempre fazer em talocasião, e que eu julgo poder apresentar aqui como o remédio mais geral e omais fácil de praticar contra todos osexcessos das paixões, é, sempre que sesinta o sangue assim agitado, ficaradvertido e lembrar-se de que tudoquanto se apresenta à imaginação

tende a enganar a alma e a fazer comque as razões empregadas em persuadir o objeto de sua paixão lhe pareçammuito mais fortes do que são, e as queservem para dissuadir muito mais fracas. E quando a paixão persuade apenas de coisas cuja execução sofre alguma delonga, cumpre abster-se de

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pronunciar na hora qualquer julgamento e distrair-se com outros pensamentos até que o tempo e o repouso tenham apaziguado inteiramente aemoção que se acha no sangue. E,

enfim, quando ela incita a ações notocante às quais é necessário tomaruma resolução imediata, é mister que avontade se aplique principalmente aconsiderar e a seguir as razões contrárias àquelas que a paixão representa,ainda que pareçam menos fortes: comoquando se é inopinadamente atacadopor algum inimigo e a ocasião não per

mite que se empregue algum tempo emdeliberar. Mas o que me parece que osque estão acostumados a refletir sobreas suas ações podem sempre fazer é,quando se sentirem tomados de medo,esforçarem-se por desviar o pensamento da consideração do perigo,representando-se as razões pelas quaishá muito mais segurança e mais honrana resistência do que na fuga; e, aocontrário, quando sentirem que o dese

 jo de vingança e a cólera os incitam acorrer inconsideradamente para aqueles que os atacam, lembrar-se-ão depensar que é uma imprudência o per-

der-se, quando é possível sem desonrasalvar-se, e que, se a partida é muitodesigual, vale mais efetuar uma honesta retirada ou tomar quartel do queexpor-se brutalmente a uma morte

certa.

Art. 212. Que é somente delas quedepende todo o bem e todo o mal destavida.

De resto, a alma pode ter os seusprazeres à parte; mas, quanto aos que

lhe são comuns com o corpo, dependem inteiramente das paixões: demodo que os homens que elas podemmais emocionar são capazes de apreciar mais doçura nesta vida. É verdadeque também podem encontrar nelamais amargura, quando não sabembem empregá-las e quando a fortunalhes é contrária; mas a sabedoria éprincipalmente útil neste ponto, porqueensina a gente a tornar-se de tal formaseu senhor e a manejá-las com tal destreza que os males que causam sãomuito suportáveis, tirando-se mesmocerta alegria de todos.