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As Palavras JEAN-PAUL SARTRE Tradução de J. Guinsburg Capa de Marianne Peretti

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As PalavrasJEAN-PAUL SARTRETraduo de J. GuinsburgCapa de Marianne Peretti3 edioDIFUSO EUROPIA DO LIVRORua Bento Freitas, 362 Rua Marqus de Itu, 79 SO PAULO1967OBRAS DO MESMO AUTOR Da Gallimard?Romances:La NauseLes Chemins de la Libert:I. LAge de Raison;II. Le Sursis;III. La Mort dans lAme.Le MurTeatro:Les Mouches La Putain respectueuse2/165Huis Clos KeanLes Mains Sales NekrassovLe Diable et le Bon Dieu Les Squestrs dAltonaMorts sans Spulture Les TroyennesEnsaios literrios:Situations I, II, III, IV, V, VI et VII BaudelaireSaint Gent, Comdien et MartyrFilosofia:LImaginaireLtre et le NantCritique de la Raison DialectiqueEnsaios polticos:Rflexions sur la Question JuiveEntretiens sur la Politique, emcolaborao comDavid Rousset,Grard Rosenthal LAffaire Henri Martin3/165?De outros editresLImaginationEsquisse dune Thorie des motionsLExistentialisme est un HumanismeLes Jeux Sont Faits LEngrenage?J traduzidos em edio daDIFUSO EUROPIA DO LIVRO:A Idade da Razo SursisCom a Morte na AlmaReflexes Sbre o RacismoO Diabo e o Bom DeusA ImaginaoAs PalavrasQuesto de mtodoAs Troianas4/165Ttulo do original:Les MotsDireitos exclusivos para o Brasil: Difuso Europia do LivroCopyright by ditions GallimardJEAN-PAUL SARTREJean-Paul Sartreiniciaumanovatarefa: comunicarosentidoque,para le, tem a sua vida. AS PALAVRAS abrange o perodo da infncia.Nosedeveesperardssepequenolivroorelatosaudosistadeumvelho senhor que rememora episdios encantadores do mundo da cri-ana, ou rostos amados e desaparecidos. Nada disso. Aqui, o leitor en-contrar um requisitrio contra o mundo da criana e, honesto, nopoder deixar de examinar, por conta prpria, o que foi a sua infncia.5/165ILerA Madame Z.NA ALSCIA, por volta de 1850, um mestre-escola carregado de filhosconsentiuemtornar-semerceeiro. steegressodesejouumacom-pensao: j que renunciava a formar os espritos, um de seus reben-tos formariaas almas;haveriaum pastor na famliae seria Charles.Charles furtou-se, preferiu bater as estradas na trilha de umaamazona. Viraram o seu retrato contra a parede e proibiram que o seunome fsse pronunciado. De quem era a vez? Auguste apressou-se emimitarosacrifciopaterno:entrouparaocomrcioesentiu-sebem.Restava Louis, que no tinha predisposio acentuada: o paiapoderou-se daquele rapaz tranqilo e o converteu em pastor num ab-rir e fechar de olhos. Mais tarde Louis levou a obedincia a ponto deengendrar por seu turno um pastor, Albert Schweitzer, cuja carreira conhecida. Entretanto, Charles no conseguira encontrar a sua6/165amazona; o belo gesto do pai o marcara: conservou a vida tda o gstopelo sublime e aplicou seu af em fabricar grandes circunstncias compequenos acontecimentos. No pensava, como se v, em eludir a vo-cao da famlia: desejava dedicar-se a uma forma atenuada de espir-itualidade, aumsacerdcioquelhepermitisseasamazonas. Oma-gistriopermitiuacoisa:Charlesescolheuoensinodoalemo. De-fendeu uma tese sbre Hans Sachs, optou pelo mtodo direto do qualse dizia mais tarde inventor, publicou, com a colaborao de MonsieurSimonnot, um Deutsches Lesebuch apreciado, fz rpida carreira: M-con, Lyon, Paris. Em Paris, quando da distribuio dos prmios, pro-nunciou um discurso que logrou a honra de uma publicao em sep-arata: "Senhor Ministro, minhas Senhoras, meus Senhores, meuscaros filhos, jamais podereis adivinhar do que pretendo falar-vos ho-je! Da msica! Primava nos versos de improviso. Costumava coment-ar nas reunies de famlia: "Louis o mais piedoso, Auguste o maisrico e eu, o mais inteligente. Os irmos riam, as cunhadas mordiamos lbios. Em Mcon, Charles Schweitzer esposara Louise Guillemin,filha de umtabelio catlico. Ela detestoua viagemde npcias;Charles a raptara antes do fim do banquete e a jogara num trem. Aossetenta anos, Louise falava ainda da salada de alho-porro que lhes fraservidanumrestaurantedeestao:"Elecomiatodoobrancoemedeixava o verde. Passaram quinze dias na Alscia sem sair da mesa;os irmos contavam entre si em pato casos escatalgicos; de vez emquando, o pastor voltava-se para Louise e lhe traduzia as histrias, porcaridade crist. Ela no tardou em obter atestado de complacncia quea dispensou do comrcio conjugal e deu-lhe direito quarto separado;ela falava de suas enxaquecas, adquiriu o hbito de ficar na cama, ps-se a detestar o barulho, a paixo, os entusiasmos, tda a grande vidarudeeteatral dosSchweitzer. Aquelamulhervivaemaliciosa, masfria, pensava direito e mal, porque o marido pensava bem e de vis;porque ste era mentiroso e crdulo, ela duvidava de tudo: les pre-tendemqueaTerragira: oquesabemles. Rodeadadevirtuososcomediantes, passara a odiar a comdia e a virtude. Aquela realista to7/165sutil, extraviadaemumafamliadeespiritualistasgrosseiros, fz-sevoltairiana por desafio, sem ter lido Voltaire. Pequena e gorducha, cn-ica, jovial, tornou-se a pura negao; com um arquear de sobrancel-has, comumsorrisoimperceptvel, reduziaaptdasasatitudesgrandiloqentes para si mesma e sem que ningum o percebesse. Seuorgulho negativo e seu egosmo de recusa devoraram-na. No via nin-gum, tendodemasiadaaltivezparapleitearoprimeirolugarede-masiadavaidadeparacontentar-secomosegundo. "Saibam, dizia,fazer-se desejados. Foi muito desejada, depois cada vez menos e, porno ser vista, acabou sendo esquecida. Quase no mais saa de sua pol-trona ou de seu leito. Naturalistas e puritanos esta combinao devirtudes menos rara do que se pensa os Schweitzer gostavam daspalavrascruasque, rebaixandomui cristmenteocorpo, manifest-assem seu amplo consentimentos funes naturais:Louise gostavadas palavras encobertas. Lia muitos romances livres, apreciandomenos a intriga do que os vus transparentes a envolv-la: " ousado,est bem escrito, dizia com um ar delicado. Escorreguem, mortais, noqueiram segurar-se! Esta mulher de gelo julgou que ia morrer de rirquandoleuARaparigadefogodeAdolpheBelot.Divertia-secont-ando histrias de noites de npcias que acabavam sempre mal: ora omarido em sua pressa brutal, quebrava o pescoo da mulher contra aarmao da cama, ora a jovem desposada era encontrada, de manh,refugiadasobreoarmrio, nuaelouca. Louisevivianameia-luz;Charles entrava no quarto dela, empurrava as persianas, acendia tdasas lmpadas, e ela gemia levando as mos aos olhos; "Charles, voc es-tmecegando!Massuaresistncianoultrapassavaoslimitesdeuma oposio constitucional: Charles lhe inspirava mdo, uma prodi-giosa irritao e, por vzes, tambm amizade, desde que no a tocasse.Cedia-lhe em tudo to logo le se punha a gritar. le lhe fz quatro fil-hos desurprsa: umameninaquemorreucompoucos anos, doisrapazes e outra menina. Por indiferena ou por respeito, Charles per-mitira que fssem criados na religio catlica. Incrdula, Louise f-loscrentesporaversoaoprotestantismo. Osdoisrapazestomaramo8/165partidodame;elaosdistancioudocementedaquelepaivolumoso;Charles nem sequer chegou a perceb-lo. O primognito, Georges, en-trou para a Polytechnique; o segundo, Emile, tornou-se professor dealemo. le me intriga: sei que permaneceu celibatrio mas que im-itava o pai em tudo, embora no o amasse. Pai e filho acabaram por seindispor; houve reconciliaes memorveis. Emile ocultava a sua vida;adorava a me e, at o fim, conservou o hbito de fazer-lhe, sem aviso,visitasclandestinas;cobria-adebeijosecarcias, depoispunha-seafalar do pai, primeiro ironicamente, a seguir com raiva e por fim partiabatendo a porta. Louise o amava, creio, mas le lhe inspirava temor:aqules dois homens rudes e difceis fatigavam-na, e ela preferia Ge-orgesquenuncaapareciaporl. Emilemorreuem1927, doidodesolido; debaixodeseutravesseiro, encontraramumrevlver; cempares de meias furadas, vinte pares de sapatos acalcanhados em suasmalas. Anne-Marie, afilhacaula, passouainfnciasentadanumacadeira. Ensinaram-lhe a aborrecer-se, a ficar direitinha e a coser. Elapossuadons: acharamque eradistintodeix-los incultos; brilho;cuidaramdeescond-lo. Aqulesburguesesmodestosealtivosjul-gavamabelezacomoalgoacimadeseusmeiosouabaixodesuacondio; permitiam-na s marquesas e s meretrizes. Louise ali-mentava o mais rduo orgulho; por receio de ser lograda, negava nosfilhos, no marido, em si mesma, as qualidades mais evidentes; Charlesno sabia reconhecer a beleza nos outros: confundia-a com a sade:desdeadoenadaespsa, consolava-secomrobustasidealistas, bi-godudas e coradas, que vicejavam sade. Cinqenta anos mais tarde,folheandoumlbumdefamlia, Anne-Marieseapercebeudequehavia sido bela.Mais ou menos por volta da mesma poca em que Charles Schweitzerencontrava Louise Guillemin, um mdico do interior desposou a filhade um rico proprietrio do Prigord e instalou-se com ela na triste ruaprincipal de Thiviers, em frente ao farmacutico. Logo aps o casrio,evidenciou-sequeosogronopossuavintm. Indignado, odoutor9/165Sartre ficou quarenta anos sem dirigir a palavra sua mulher; mesa,exprimia-se por meio de sinais e ela acabou por cognomin-lo "meupensionista. Partilhava de seu leito, no entanto, e, de tempos em tem-pos, sem uma palavra, a engravidava: ela deu-lhe dois meninos e umamenina; stes filhos do silncio chamaram-se Jean-Baptiste, Joseph eHlne. Hlne casou-se um pouco tarde com um oficial da cavalariaque enlouqueceu; Joseph fz o servio militar nos zuavos e retirou-sedesde ento casa dos pais. No tinha profisso: colhido entre o mut-ismo de um e o berreiro do outro, tornou-se gago e passou a vida a lut-ar com as palavras, Jean-Baptiste quis ingressar na Escola Naval, paraver o mar. Em 1904, em Cherbourg, oficial de marinha e j rodo pelasfebres da Cochinchina, ficou conhecendo Anne-Marie Schweitzer,apoderou-se daquela mocetona desamparada, desposou-a, fz-lhe umfilho a galope, eu, e tentou refugiar-se na morte.Morrer no fcil: a febre intestinal subia sempressa; houveremisses. Anne-Marie cuidava dle com devotamento, mas sem levara indecncia a ponto de am-lo. Louise prevenira-a contra a vida con-jugal: aps as bodas de sangue, era uma srie infinita de sacrifcios en-tremeada de trivialidades noturnas. A exemplo de sua me, a minhapreferiuodeveraoprazer. Nochegouaconhecerbemomeupai,nem antes nem depois do casamento, e por vzes devia perguntar-sepor que optaraaqule estranhopor morrer entre os seus braos.Transportaram-no para uma herdade a algumas lguas de Thiviers; opai vinha visit-lo diriamente em carriola. As viglias e os cuidadosesgotaram Anne-Marie, seu leite secou, arrumaram-me uma ama-de-leite no longe dali e eu tambm me empenhei em morrer: de enteritee talvez de ressentimento. Aos vinte anos, sem experincia nem con-selhos, minha me se dilacerava entre dois moribundos descon-hecidos;seucasamentodeconveninciaencontravasuaverdadenadoena e no luto. Eu, de minha parte, aproveitava a situao: naqueletempo, as mes aleitavam szinhas e longamente; sem a sorte dessaduplaagonia, euficariaexpostos dificuldades deumadesmama10/165tardia. Doente, desmamadofracomnove meses, afebre e oembrutecimento impediram-me de sentir a ltima tesourada que cortaoslaosentreameeofilho;mergulhei nummundoconfuso, po-voado de alucinaes simples e de frustos dolos. morte de meu pai,Anne-Marie e eu despertamos de um pesadelo comum; sarei. Mas am-bos ramos vtimas de um mal-entendido: ela reencontrava com amorumfilhoquejamais abandonararealmente; euvoltavaamimnoregao de uma estranha.Sem dinheiro nem profisso, Anne-Marie decidiu retomar casa dospais. Mas o insolente passamento de meu pai desgostara osSchweitzer: parecia-se demais a um repdio. Por no ter sabido prev-lo nem preveni-lo, minha me foi tida como culpada: tomara, tonta-mente, ummaridoquenodurara. EmrelaocompridaAriadneque voltou a Meudon, com um filho nos braos, todo mundo foi per-feito:meuavpedirasuaaposentadoria, leretomouoserviosemuma palavra de censura; minha av, por sua vez, mostrou discreto tri-unfo. Mas Anne-Marie, gelada de gratido, adivinhava a acusao soba capa dos bons procedimentos: as famlias, sem dvida, preferem asvivas s mes solteiras, mas por muito pouco. A fim de lograr o per-do, ela se desdobrou sem medida, dirigiu a casa dos pais, em Meudone depois em Paris, fz-se governanta, enfermeira, mordomo, dama decompanhia, criada, sem conseguir desarmar o mudo agastamento desua me. Louise achava fastidioso fazer o cardpio tdas as manhs eas contas tdas as noites, mas no suportava que algum os fizesse emseu lugar; permitiu que a desobrigassem de seus deveres, irritando-sepor perder as prerrogativas. Aquela mulher envelhecida e cnica s nu-tria uma iluso: julgava-se indispensvel. Ailuso desvaneceu-se:Louisecomeouasentircimedafilha.PobreAnne-Marie:passiva,teria sido acusada de constituir um fardo; ativa, era suspeita de querercomandara casa. Para evitaro primeiroescolho, precisou de tda asua coragem; para evitar o segundo, de tda a sua humildade. No de-moroumuitoparaqueajovemvivavolvesseaser menor: uma11/165virgem maculada. No lhe recusavam o dinheiro mido: esqueciam-sede d-lo; usouo seu guarda-roupa at o fio sem que meu av se lembrasse de renov-lo. Mal toleravam que sasse sozinha. Quando suas velhas amigas, cas-adas namaioria, convidavam-naparajantar, precisavasolicitar li-cena com muita antecedncia e prometer que estaria de volta antesdas dez. No meio da refeio, o dono da casa levantava-se da mesa afimdeacompanh-ladecarro.Nestenterim,decamisola,meuavmedia com os passos o seu quarto de dormir, de relgio na mo. l-timapancadadasdez, davaoberro. Osconvitesrarearameminhame se enfarou de prazeres to custosos.A morte de Jean-Baptiste foi o grande acontecimento de minha vida:devolveu minha me aos seus grilhes e me deu a liberdade. No hbom pai, a regra; que no se faa disso agravo aos homens e sim aolao de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, no h coisa melhor;fe-los, que iniqidade! Houvesse vivido, meupai ter-se-iadeitadosbremimcomtodooseucomprimentoeter-me-iaesmagado.Porsorte, morreu mo; em meio dos Enias que carregam s costas seusAnquises, passo de uma margem outra, s e detestando todos essesgenitores invisveis montados em seus filhos por tda a vida; deixei at-rs de mim um jovem morto que no teve tempo de ser meu pai e quepoderia ser, hoje, meu filho. Foi um mal, um bem? No sei; mas sub-screvodebomgradooveredictodeumeminentepsicanalista: notenho Superego.Morrer no tudo: mister morrer a tempo. Mais tarde, eu me sen-tiria culpado; um rfo consciente se condena; deslumbrados com suapresena, os pais se retiraram para seus apartamentos do cu. Eu, deminhaparte, estavaencantado: minhatristecondioimpunhare-speito, fundavaminhaimportncia; euincluaomeulutoentreasminhasvirtudes.Meupaitiveraagentilezademorrererradamente:12/165minhaavrepetiaquelesefurtarassuasobrigaes; meuav,justamente orgulhoso da longevidade Schweitzer, no admitia que al-gum desaparecesse aos trinta anos; luz dsse bito suspeito, acabouduvidandoqueseugenrohouvessealgumavezexistidoe, porfim,esqueceu-o. No precisei sequer esquec-lo: safando-se inglsa,Jean-Baptiste me recusara o prazer de conhec-lo. Ainda hoje,espanto-medopoucoqueseiaseurespeito. Noentanto, leamou,quis viver, viu-se morrer; quanto basta para fazer todo um homem.Masemrelaoquelehomem, ningum, emminhafamlia, soubetornar-se curioso. Durante vrios anos, pude ver, acima de meu leito, oretratodeumpequenooficial deolhoscndidos, comocrniore-dondo e pelado, de grandes bigodes: quando minha me voltou a cas-ar, o retrato sumiu. Mais tarde, herdei livros que lhe tinham perten-cido: uma obra de Le Dantec sbre o futuro da cincia, outra de We-ber, intitulada: Vers le nosivisme par Vidalisme absolu. Fazia msleituras, como todos os seus contemporneos. Nas margens, descobrirabiscos indecifrveis, signos mortos de uma pequena iluminao quefoi vivaebailantepor voltademeunascimento. Vendi os livros:aqule defunto me concernia to pouco. Eu o conheo de oitiva, comoo Mscara de Ferro ou o Cavaleiro de Eon e o que sei dle nunca serefereamim: seacasomeamou, semetomouemseusbraos, sevoltoupara ofilhoos olhos claros, hoje comidos, dissoningumguardou lembrana: so penas de amor perdidas. sse pai no se-quer uma sombra, nem sequer um olhar: le e eu pesamos, por algumtempo, sbreamesmaterra, s. Maisdoquefilhodeummorto,deram-meaentenderqueeuerafilhodomilagre.Daprovm,semdvida alguma, minha incrvel leviandade. No sou chefe, nem aspiroa vir a s-lo. Comandar e obedecer do no mesmo. O mais autoritriocomanda em nome de outro, de um parasita sagrado seu pai etransmite as abstratas violncias que padece. Jamais em minha vidadei ordens sem rir, sem fazer rir; porque no estou rodo pelo cancrodo poder: no me ensinaram a obedincia.13/165A quem obedeceria eu? Mostram-me uma jovem gigante e me dizemque minha me. Por mim, tom-la-ia antes por uma irm mais velha.Esta virgem sob vigilncia, submetida a todos, bem vejo que se encon-tra a para me servir. Eu a amo: mas como haveria de respeit-la, seningum a respeita? H trs quartos em nossa casa: o de meu av, o deminhaaveodas"crianas. As"crianassomosns: igualmentemenoreseigualmentesustentados. Mastdasasatenessoparamim. Emmeuquartoquepuseramumacamadema. Amadorme sozinha e desperta castamente; ainda estou dormindo quandoelacorreparatomar oseutubnobanheiro; retornainteiramentevestida: como terei nascido dela? Ela me conta suas desventuras e eu aouo com compaixo; mais tarde hei de despos-la a fim de proteg-la.Prometo-lhe:espalmareiminhamosbre ela, porei a seu servioaminha jovemimportncia. Pensar algumque irei obedecer-lhe?Tenho a bondade de ceder a seus rogos. Ela no me d ordens, alis:esboa em ligeiras palavras um futuro, louvando-me por eu me dignara realiz-lo: "Meu benzinho vai ficar bembonitinho, bemcom-portadinhoevaideixarqueeupingueessasgtasnonarizbemde-vagarinho. Eu caa na armadilha dessas profecias piegas.Restava o patriarca: parecia-se tanto com Deus Pai que muitas vzes otomavam por le. Um dia, entrou numa igreja pela sacristia; o procoameaava os tbios com os raios celestes: "Deus est a! le vos v! Derepente, os fiis descobriram, sob o plpito, um velho alto e barbudoque os observava: fugiram. Outras vezes, meu av dizia que se haviamatirado a seus ps. Tomou gsto pelas aparies. No ms de setembrode 1914, manifestou-se em um cinema de Arcachon; estvamos no bal-co, minha me e eu, quando le reclamou a luz; outros senhores com-punhamaoseuredorosanjosebradavam;"Vitria!Vitria!Deussubiu ao palco e leu o comunicado da batalha do Mame. Ao tempo emque sua barba era preta, fra Jeov e desconfio que Emile morrera porle, indiretamente. qule Deus daclerase empanzinava comosangue dos filhos. Mas eu surgia ao trmo de sua longa vida, sua barba14/165embranquecera, o fumo a amarelara e a paternidade no mais o diver-tia. Entretanto, tivesse le me engendrado, creio que no poderia deix-ar de assujeitar-me: por hbito. Minha sorte foi a de pertencer a ummorto: ummortoderramara algumas gtas de esperma que con-stituemopreocomumdeumfilho; euerafeudodosol, meuavpodiadesfrutar-mesemmepossuir: fui asua"maravilha, porquedesejava findar os dias como um velho maravilhado; tomou o alvitredemeconsiderarumsingularfavordodestino, umdomgratuitoesempre revogvel; o que iria exigir de mim? Eu o cumulava de satis-fao com a minha simples presena. le foi o Deus de Amor com abarba do Pai e o Sagrado Corao do Filho; le me fazia a imposiodasmoseeusentiasbreocrnioocalordesuapalma, lemechamava filhinho com uma voz que tremulava de ternura e as lgrimasembebiam-lheosolhosfrios. Todomundogritava:"ssemolequeodeixou louco! le me adorava, era patente. Amava-me? Numa paixoto pblica, sinto dificuldade em distinguir a sinceridade do artifcio:no creio que haja externado muita afeio aos seus demais netos; verdadequequasenoosviaequestesnotinhamamenorne-cessidade dle. Quanto a mim, eu dependia dle em tudo: le adoravaem mim a sua prpria generosidade.Na verdade, forava um pouco para o lado do sublime: era um homemdosculoXIXquesetomava, comotantosoutros, comooprprioVictor Hugo, por Victor Hugo. Considero aqule belo varo de barbaondulada, sempre entre dois lances teatrais, como o alcolatra entredois vizinhos, vtima de duas tcnicas que acabavam de ser descober-tas: a arte do fotgrafo e a arte de ser av. Tinha a sorte e a desgraade ser fotognico; suas fotos enchiam a casa: como no se praticavaentooinstantneo, adquiriraogstopelasposesepelosquadrosvivos; tudolhe serviade pretextoparasuspender os gestos, paraparalisar-senumabelaatitude, parapetrificar-se; adoravaaqulescurtos instantes de eternidade em que se tornava em sua prpria es-ttua. No guardei dle em virtude de seu gsto pelos quadros vivos15/165 seno imagens rgidas de lanterna mgica: no meio de um bosque,estou sentado num tronco de rvore, conto cinco anos: Charles Sch-weitzer usa um panam, um terno de flanela creme com riscas pretas,um colte de piqu branco, atravessado por uma corrente de relgio;seupince-nezpendedapontadeumcordo; inclinadoparamim,ergue um dedo com anel de ouro e fala. Tudo escuro, tudo mido,salvo a sua barba solar: le traz a aurola em trno do queixo. No seio que diz: eu estava preocupado demais em escutar para poder ouvir.Suponho que aqule velho republicano do Imprio estava ensinando-memeusdeverescvicosemerelatavaahistriaburguesa:houverareis,imperadores,eram muitomaus; por isso foram banidos,agora,tudo ia pelo melhor. noite, quando amos esper-lo no caminho, nso reconhecamos logo, entre a multido de viajantes que saam do fu-nicular, por sua alta estatura, por seu andar de mestre de minueto. Doponto mais distante em que nos avistasse, le se "colocava, a fim deobedecer s injunes de um fotgrafo invisvel: a barba ao vento, ocorporeto, ospsemesquadro, opeitoarqueado, osbraoslarga-mente abertos. A sse sinal, eu me imobilizava, eu me inclinava parafrente, era o corredor na hora da largada, o passarinho que vai saltardo aparelho; permanecamos alguns instantes face a face, um bonitogrupodeporcelanadeSaxe, depoiseumearremetia, carregadodefrutas e flres, da felicidadede meu av, e ia bater nos seus joelhoscom um esfalfamentofingidoe le me erguiado cho,me levavasnuvens, na ponta dos braos, atraa-me para junto de seu peito, mur-murando: "Meu tesouro! Era o segundo nmero, muito notado pelospassantes. Representvamosumaamplacomdiacomcemquadrosdiferentes; o flrte, os mal-entendidos logo dissipados, as implicnciascomplacentes e os pitos delicados, o despeito amoroso, os segredinhosternos e a paixo; imaginvamos empecilhos ao nosso amor a fim denos proporcionarmos a alegria de afast-los: eu era voluntarioso porvzes, mas os caprichos noconseguiammascarar minhadelicadasensibilidade; ele mostrava a vaidade sublime e cndida que convmaos avs, a cegueira, as fraquezas culpveis que ' Hugo recomenda. Se16/165me houvessem psto a po sco, l me teria trazido compotas; mas asduas mulheres aterrorizadas evitavama todo preo faz-lo. Almdisso, eu era uma criana bem comportada: achava meu papel to con-veniente que no saa dle. Na verdade, a pronta retirada de meu paime gratificara com um "dipo muito incompleto: no tinha Superegosemdvida, nemtampoucoqualqueragressividade. Minhamemepertencia, ningum me contestava sua tranqila posse: eu ignorava aviolncia e o dio; pouparam-me sse duro aprendizado, o cime; porno me haver chocado contra as suas arestas, s conheci inicialmentea realidade atravs de sua ridente inconsistncia. Contra quem, contrao que iria eu revoltar-me? O capricho de outrem nunca pretendera serminha lei.Consintogentilmentequemeponhamas meias, quemepinguemgtas no nariz, que me escovem e me lavem, que me vistam e me dis-pam, que me enfeitem e me esfreguem; no sei de coisa mais divertidadoquebancarobemcomportado.Nuncachoro,quasenorio,nofao barulho; aos quatro anos, pegaram-me salgando a compota: poramor cincia, suponho, mais do que por malvadeza; em todo caso, o nico crime de que guardo lembrana. Aos domingos, as senhorasvos vzes missa, paraouvir boamsicaouumorganistaderenome; nem uma nem outra praticante mas a f dos outros as pre-dispeaoxtasemusical; crememDeusotemposuficienteparaapreciar umatocata. Tais momentos dealtaespiritualidadefazemminhas delcias: todo mundo parece dormir, o caso de eu mostrar oque sei fazer: de joelhos sbre o genuflexrio, converto-me em esttua;cumprenomexerumdedodopsequer;olhofixamenteminhafrente, sem piscar, at que as lgrimas rolam sbre minhas faces; nat-uralmente, travo um combate titnico contra as formigas, mas estoucerto de vencer, to consciente me sinto de minha fra que no vaciloemsuscitaremmimastentaesmaiscriminosasparadaramimprprio o prazer de repeli-las: e se eu me levantasse gritando"Badabum!?17/165E se eu trepasse na coluna a fim de fazer pipi na pia de gua benta?Estas terrveis evocaes infundiro maior valor, dentre em pouco, sfelicitaes de minha me. Mas eu minto a mim mesmo; finjo estar emperigo a fimde acrescer a minha glria: eminstante algumastentaes foram vertiginosas; na verdade, receio muito o escndalo; sepretendo espantar, por minhas virtudes. Estas vitrias fceis me per-suadem de que possuo boa ndole; basta que eu me largue ao seu saborpara ser cumulado de elogios. Os maus desejos e os maus pensamen-tos, quando os h, vm de fora; apenas entram em mim, enlanguescemeseestiolam: soumauterrenoparaomal. Virtuosoporcomdia,nuncameesforonemmeobrigo: invento. Disponhodaliberdadeprincipesca do ator que mantm seu pblico de respirao suspensa erebusca em seu papel; adoram-me, portanto sou adorvel. Nada maissimples, se o mundo bemfeito. Dizem-me que soubelo, e euacredito. H algum tempo j, que trago no lho direito a belida que medeixar zarolho e vsgo, mas por ora nada aparece. Tiram de mim cen-tenas de fotos que minha me retoca a lpis de cr. Numa delas, que seconservou, sou rosado e louro, com cabelos cacheados, tenho as masredondase, noolhar, umaafvel defernciaparacomaordemes-tabelecida; a bca est inflada de hipcrita arrogncia: sei o que valho.No basta que minha ndole seja boa; cumpre que seja proftica: a ver-dade sai da boca das crianas. Muito prximas ainda da natureza, soprimas do vento e do mar: seus balbucios oferecem, a quem sabe ouvi-los, largos e vagos ensinamentos. Meuavatravessara olagodeGenebracomHenriBergson:"Euestavadoidodeentusiasmo, diziale, no tinha olhos suficientes para contemplar as cristas cintilantes,paraacompanharosreflexosdagua. MasBergson, sentadosbreuma maleta, no desviou o olhar de entre os ps. Conclua dste in-cidente de viagem que a meditao potica prefervel filosofia. lemeditou a meu respeito: no jardim, sentado num transatlntico, comum copo de cerveja ao alcance da mo, observava-me correr e saltar,procurava uma sabedoria em minhas palavras confusas e a18/165encontrava. Ri mais tarde daquela loucura; lamento: era o trabalho damorte. Charles combatia a angstia pelo xtase.Admirava em mim a obra admirvel da Terra de modo a persuadir-sede que tudo bom, at mesmo o nosso miservel fim. Aquela naturezaque se preparava para reav-lo, le ia procur-la nos cimos, nas vagas,em meio das estrelas, na fonte de minha jovem vida, a fim de poderabra-la por inteiro e de aceitar tudo dela, at a fossa que nela se lhecavava. No era a Verdade, era a sua morte que lhe falava atravs deminha bca. Nada h de espantoso, pois, se a inspida ventura de meusprimeiros anos apresentoupor vzes umsabor fnebre: eudeviaminha liberdade a um bito oportuno. Mas como: tdas as ptias somortes, todomundosabedisso; tdasascrianassoespelhosdamorte.Alm disso, meu av se compraz em encher os filhos. Aqule pai ter-rvel passou a vida a esmag-los; les entram na ponta dos ps e o sur-preendem aos joelhos de um pirralho: de partir o corao! Na lutadas geraes, crianas e velhos estabelecem amide causa comum: osprimeiros proferem os orculos e os segundos os decifram. A Naturezafala e a experincia traduz: aos adultos s resta calar a bca. falta deuma criana, tome-se um canicho: o ano passado, no cemitrio de ca-chorros, no trmulo discurso que se desenrola de tmulo em tmulo,reconheci as mximas de meu av: os ces sabem amar; so mais ter-nos do que os homens, mais fiis; possuem tato, um instinto sem jaaquelhespermitereconhecer oBem, distinguir osbonsdosmaus."Polnio, dizia uma inconsolada, s melhor do que eu: tu no me teri-as sobrevivido; eu te sobrevivo. Um amigo americano me acompan-hava: indignado, desferiu um pontap num Co de cimento e quebrou-lhe a orelha. Tinha razo: quando se ama demais s crianas e aos ani-mais, a gente os ama contra os homens.19/165Portanto, sou um canicho do futuro; profetizo. Digo coisas de criana,elas so retidas, e me so repetidas; aprendo a delas fazer outras. Digocoisasdehomem: sei proferir, semtomarares, palavras"acimademinha idade. Estas palavras so poemas; a receita simples: cumprefiar-se no Diabo, no acaso, no vazio, tomar emprestado frases inteirasaos adultos, reuni-las e repeti-las sem compreend-las. Em suma, pro-nuncio verdadeiros orculos e cada qual os entende como quer. O Bemnasce do fundo de meu corao, a Verdade nas jovens trevas de meuEntendimento. Admiro-me, com confiana: ocorre que meus gestos eminhas palavras gozam de uma qualidade que me escapa e que saltaaos olhos dos adultos; pouco importa!, oferecer-lhes-ei sem desfaleci-mentoodelicadoprazerquemerecusado. Minhaspalhaadasas-sumem aparncias de generosidade; as pobres criaturas se desolavampor no ter criana; enternecido, tirei-me do nada num transporte dealtrusmo e vesti a fantasia da infncia para lhes dar a iluso de ter umfilho. Minha me e minha av convidam-me freqentemente a repetiro ato de eminente bondade que me deu luz: lisonjeiam as manias deCharlesSchweitzer, seugstopeloslancesteatrais, poupam-lheassurprsas. Escondem-me atrs de um mvel, prendo a respirao, asmulheresabandonamoaposentooufazemdecontaquemeesque-ceram, eu me aniquilo; meu av entra no cmodo, cansado e abatido,como estaria se eu no existisse; de repente, saio de meu esconderijo,concedo-lhe a graa de nascer, le me percebe, entra no jgo, muda defisionomia e estende os braos para o cu: eu o cumulo de felicidadecom minha presena. Em uma palavra, eu me dou; dou-me sempre eem tda parte, dou tudo: basta-me empurrar uma porta para que tam-bm eu tenha a sensao de fazer uma apario. Coloco os meus cubosuns sbre os outros, desfao minhas massas de areia, chamo a grandesgritos; surge algum que exclama admirado;fiz mais um feliz. A re-feio, o sono e as precaues contra as intempries constituem as fes-tasprincipaiseasprincipaisobrigaesdeumavidatdacerimo-niosa. Como em pblico, qual um rei; se como bem, me congratulam;minha av mesma declara: "S ajuizado como le, para ter essa fome!20/165No cesso de me criar; sou o doador e a doao. Se meu pai vivesse, euconheceriameusdireitosemeusdeveres;leestmortoeeuosig-noro:notenhodireitos, poisoamormecumula;notenhodever,pois doo por amor. Um s mandato: agradar, tudo para a vitrina. Emnossa famlia, que dissipao de generosidade: meu av me faz viver eeu lhe fao a felicidade; minha me se devota a todos. Quando pensonisso, hoje, s ste devotamento me parece verdadeiro: mas nstendamos a passar por le em silncio.No importa: nossa vida apenas uma srie de cerimnias e consumi-mos o nosso tempo em nos sobrecarregar de homenagens. Eu respeitoos adultos com a condiode que me idolatrem;sou franco, aberto,doce como uma menina. Penso direito, inspiro confiana s pessoas:todo mundo bom porque todo mundo est contente. Considero a so-ciedade como uma rigorosa hierarquia de mritos e poderes. Os queocupam o tpo da escala do tudo quanto possuem aos que se encon-tram abaixo. No cuido, no entanto, de me situar no mais alto escalo:no ignoro que o reservam a pessoas severas e bem intencionadas quefazem reinar a ordem. Mantenho-me em um pequeno poleiro margin-al, no longe dessas pessoas e minha radiao se estende de cima parabaixo da escala. Em suma, envido todos os esforos para me afastar dopoder secular: nemabaixo, nemacima, alis. Netodeclerc1, sou,desde a infncia, um clerc: tenho a uno dos prncipes da Igreja, umajovialidade sacerdotal. Trato os inferiores como iguais: uma piedosamentira que lhes prego a fim de torn-los felizes e com a qual convmque sejam enganados at certo ponto. Com a minha empregada, com ocarteiro, com minha cadela, falo em voz paciente e temperada. Nestemundo em ordem existem pobres. Existem tambm carneiros de cincopatas, irmssiamesas, acidentesdeestradadeferro:taisanomaliasno so culpa de ningum. Os bons pobres no sabem que a sua fun-oexercitarnossagenerosidade;sopobresenvergonhados;pas-samresvalandoas paredes; saiocorrendo, passo-lhes rpidamenteuma moeda de dois soldos e, acima de tudo, dou-lhes de presente um21/165belo sorriso igualitrio. Acho que tm um ar estpido e no gosto detoc-los, mas eu me foro a faz-lo: uma prova; alm disso, cumpreque gostem de mim; sse amor embelezar-lhes- a vida. Sei que care-cem do necessrio e me apraz ser-lhes o suprfluo. Alis, qualquer quesejaasuamisria, jamais poderosofrer tantocomoomeuav:quando le era pequeno, acordava de madrugada e vestia-se noescuro;noinverno,paraselavar,precisavaquebraroglonobaldedgua. Felizmente, as coisas melhoraram depois: meu av cr no Pro-gresso, eu tambm: o Progresso, ste longo e rduo caminho que levaat mim.Era o Paraso. Tda manh, eu despertava em meio de um estupor dealegria, admirando a louca sorte que me fizera nascer na mais unidadas famlias, no mais belo pas do mundo. Os descontentesescandalizavam-me:doquehaviamdequeixar-se?Eramrevoltosos.Minha av, em particular, me causava as mais vivas inquietaes: eutinha a dor de constatar que ela no me admirava suficientemente. Defato, Louise me entendera. Censurava abertamente em mim o cabotin-ismo que no ousava reprovar no marido: eu era um polichinelo, umtruo, um careteiro, ela me mandava parar com meus "fingimentos.Euficavatantomaisindignadoquantodesconfiavaqueelatroavatambm de meu av: era "o eterno Esprito de contradio. Eu lhe re-spondia, ela exigia desculpas; certo de ser amparado, eu me recusava ad-las. Meu av agarrava no pulo o ensejo de mostrar sua fraqueza: to-mava o meu partido contra a sua mulher, que se levantava, ofendida,parairfechar-senoseuquarto. Inquieta, temendoosrancoresdeminha av, minha me falava baixinho, no dava humildemente razoao pai que encolhia os ombros e se retirava para o seu gabinete de tra-balho,elamesuplicavaenfimquefssepedirperdo.Eugozavademeu poder: era So Miguel e abatera o Esprito maligno. Por fim, iaescusar-me negligentemente. Afora isso, claro, eu a adorava; pstoque era minha av. Sugeriram-me cham-la Mamie e chamar o chefeda famlia por seu prenome alsaciano, Karl. Karl e Mamie, isto soava22/165melhor do que Romeu e Julieta, do que Filemo e Baucis. Minha meme repetia cem vezes por dia, no sem propsito: ''Karlemami nos es-peram; Karlemami ficaro contentes, Karlemami... evocando, pela n-tima unio dessas quatro slabas, o perfeito acrdo das pessoas. Eu sera meio trouxa, mas dava umjeito de parec-lo inteiramente:primeiro a meus prprios olhos. A palavra projetava sua sombra sbrea coisa; atravs de Karlemami, eu podia manter a unidade sem falhada famlia e verter sbre a cabea de Louise boa parte dos mritos deCharles. Suspeita e pecaminosa, minha av, sempre beira da queda,era sustentada pelo brao dos anjos, pelo poder de uma palavra.H verdadeiros malvados: os prussianos, que nos tomaram a Alscia-Lorena e todos os nossos relgios, salvo o de mrmore prto que ornaa lareira de meu av e que lhe foi oferecido, justamente, por um grupode alunos alemes; cabe perguntar onde que o roubaram. Compram-me livros de Hansi, mostram-me as figuras; no sinto qualquer anti-patiaporsseshomenzarresdeacarrosadoqueseassemelhamtanto a meus tios alsacianos. Meu av, que optou pela Frana em 71,vaidevezemquandoaGunsbach, aPfaffenhofen, visitarosquelficaram. Vou junto. Nos trens, quando um condutor alemo lhe pedeas passagens, nos cafs quandoumgarodemoraematend-lo,Charles Schweitzer fica vermelho de raiva patritica; as duas mulheresseagarramaseus braos: "Charles! Ondequevocestcomacabea?levai nosjogarforaeentoestaremosbemarrumados!Meu av ala o tom: "Quero s ver se so capazes de me jogar fora: es-tou em minha casa! Empurram-me para suas pernas, eu o olho comum ar splice, le se acalma: "Est bem, por causa do garto, suspira,passando a mo na minha cabea com os dedos secos. Tais cenas meindispem contra le, sem me indignar contra os ocupantes. De resto,Charlesnodeixadeexaltar-se, emGunsbach, comasuacunhada;vrias vzes por semana, atira o guardanapo sbre a mesa e deixa asala batendo a porta: no entanto ela no alem. Aps a refeio, va-mosgemeresoluaraseusps;lenosopeumacaraestanhada.23/165Como deixar de subscrever o jugamento de minha av: "A Alscia novale nada para le; ento no deveria voltar l com tanta freqncia?Alis, no aprecio tanto os alsacianos que me tratam sem respeito, enomesintotodesgostosoporquenolostiraram. ParecequevoucomdemasiadafreqncialojadomerceeirodePfaffenhofen, Sr.Blumenfeld, queeuoincomodopor qualquer ninharia. MinhatiaCaroline"fazponderaesaminhame;elasmesocomunicadas;porsuavez, Louiseeeusomoscmplices: eladetestaafamliadomarido. EmEstrasburgo, deumquartodehotel ondeestamosre-unidos, ouo sons estridentes e lunares, corro janela: o exrcito. Ficotodo feliz em ver desfilar a Prssia ao toque dessa msica pueril; batopalmas. Meu av permaneceu na cadeira, resmunga; minha me vemsussurrar-meaoouvidoquedevosairdajanela. Obedeoumtantoamuado. Detesto os alemes, por Deus!, mas sem convico. De resto,Charles s pode permitir-seuma pontinhadelicadade chauvinismo:em 1911, deixamos Meudon para nos instalar em Paris, 1 rue Le Goff,devia aposentar-se, mas acaba de fundar, para nos manter, o Institutdes Langues Vivantes: ensina-se a francs aestrangeiros de pas-sagem. Pelomtododireto. Osalunos, namaioria, provmdaAle-manha. Pagambem: meuavmeteoslusesdeouronoblsodopaletsemjamaiscont-los;minhaav,insone,introduz-sefurtiva-mente, noite, no vestbulo, a fim de cobrar o seu dzimo "s escondi-das, como ela mesma diz filha: numa palavra, o inimigo nossustenta; uma guerra franco-alem nos devolveria a Alscia e arruin-aria o Institut: Charles pela manuteno da Paz. Alm disso, h bonsalemes, que vm almoar em casa: uma romancista rubicunda e ca-beluda que Louise apelida com uma risota enciumada: "A Dulcinia deCharles; um doutor calvo que empurra minha me contra as portas etentabeij-la;quandoelasequeixatimidamente, meuavexplode:"Vocmeindispecomtodomundo!leddeombroseconclui:"Voc viu fantasmas, minha filha, e ela que se sente culpada. Todossses convidados compreendemque necessrio extasiar-se commeus mritos; mexemcomigo docilmente: quer dizer ento que24/165possuem, a despeito de suas origens, uma obscura noo do Bem. Nafesta de aniversrio da fundao do Institut, h mais de cem convivas,aperitivodechampanha, minhameeMlleMoutet tocamBachaquatro mos; em vestido de musselinaazul, com estrelinhasnos ca-belos, comasas, voudeconvidadoaconvidadooferecertangerinasnum csto; as pessoas exclamam: " realmente um anjo! Vamos l,nosocriaturastomsassim. Naturalmente, norenunciamosavingar aAlsciamrtir: emfamlia, emvozbaixa, comofazemosprimosdeGunsbachedePlaffenhofen, liquidamososbochespeloridculo; a gente ri cemvzes por noite, semse cansar, daqueleestudante que acaba de escrever numa verso francesa: "Charlotte es-tavaperclusadedoressbreotmulodeWerther, daquelejovemprofessor que, durante um jantar, considerou com desconfiana a suafatia de melo e acabou comendo-a por inteiro, com casca e sementes.Tais equvocos me inclinam indulgncia: os alemes so sres inferi-oresquetmasortedeseremnossosvizinhos; nslhesdaremosnossas luzes.Um beijo sem bigode, dizia-se ento, como um vo sem sal; acres-cento: e como o Bem sem o Mal, como minha vida entre 1905 e 1914.Se a gente s se define opondo-se, eu era o indefinido em carne e osso;se o amor e o dio so o verso e reverso da mesma medalha, eu noamavanadanemningum. rabemfeito: nosepodequerer aomesmo tempo odiar e agradar. Nem tampouco agradar e amar.Sou poisum narciso?Nem isso:preocupadodemaisem seduzir,es-queodemimmesmo. Afinal decontas, nomedivertetantofazermeleiras, garatujas e minhas necessidades naturais: para lhes infundirvalor a meus olhos, mister que ao menos um adulto se extasie commeus produtos. Felizmente, os aplausos nofaltam: escutemlesminha tagarelice ou a Arte da Fuga, os adultos esboam o mesmo sor-riso de degustao maliciosa e de conivncia; isto mostra o que sou no25/165fundo: umbemcultural. Aculturameimpregnaeeuadevolvofamlia por radiao, como os lagos, noite^ devolvem o calor do dia.Comecei minha vida como hei de acab-la, sem dvida: no meio doslivros. No escritrio de meu av, havia-os por tda parte; era proibidoespan-los exceto uma vez por ano antes do reinicio das aulas em out-ubro. Eu ainda no sabia ler e j reverenciava essas pedras erigidas:em p ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da bibli-oteca ou nobremente espacejadas em alias de menires, eu sentia quea prosperidade de nossa famlia delas dependia. Elas se pareciam t-das; eu foliava num minsculo santurio, circundado de monumentosatarracados, antigos, que me haviam visto nascer, que me veriam mor-rer e cuja permanncia me garantia um futuro to calmo como o pas-sado. Eu os tocava s escondidas para honrar minhas mos com suapoeira, mas no sabia bem o que fazer com les e assistia todos os diasa cerimnias cujo sentido me escapava: meu av to canhestro, ha-bitualmente, que minha me lhe abotoava as luvas manejava ssesobjetos culturais com destreza de oficiante. Eu o vi milhares de vzeslevantar-se comumar ausente, contornar a mesa, atravessar oaposento com duas pernadas, apanhar um volume sem hesitar, sem sedar o tempo de escolher, folhe-lo, enquanto voltava poltrona comum movimento combinado do polegar e do ndice, e depois, to logosentado, abri-lo com um golpe sco "na pginacerta, fazendo-oes-talar como um sapato. s vzes eu me aproximava a fim de observaraquelas caixas que se fendiam como ostras e descobria a nudez de seusrgos interiores, folhas amarelecidas e emboloradas, ligeiramente in-tumescidas, cobertas de vnulas negras, que bebiam tinta e recendiama cogumelo.No quarto de minha av os livros ficavam deitados; tomava-os de em-prstimoaumabibliotecacirculanteenuncachegueiavermaisdoque dois ao mesmo tempo. Tais bagatelas me lembravam os confeitosde Ano Nvo, porque suas folhas flexveis e brilhantes pareciam26/165cortadas em papel glac. Vivas, brancas, quase novas, serviam de pre-textoamistrioligeiros. Tdasexta-feira, minhaavvestia-separasair e dizia: "Vou devolv-los, de regresso, depois de desembaraar-sedo chapu negro e do vuzinho, ela os tirava do regalo e eu me pergun-tava, mistificado: "Sero os mesmos? Ela os "cobria cuidadosamentee, aps escolher um dles, instalava-se perto da janela, na sua bergrede oreIheiras, punha os culos, suspirava de ventura e lassitude,baixava as plpebras com um fino sorriso voluptuoso que vim a encon-trar depois nos lbios da Gioconda; minha me se calava, convidava-me a calar-me tambm; eu pensava na missa, na morte, no sono: eumeenchiadeumsilnciosagrado. Devezemquando, Louisedavauma risadinha; chamava a filha, indicava com o dedo uma linha e asduasmulherestrocavamumolharcmplice. Todavia, eunoapre-ciava aquelas brochuras demasiado distintas; eram intrusas e meu avno escondia que elas eram objeto de um culto menor, exclusivamentefeminino. No domingo, falta do que fazer, entrava no quarto de suamulher e plantava-se diante dela sem achar nada para lhe dizer; todomundo o observava, le tamborilava os dedos na vidraa e, nosabendooqueinventar, voltava-separaLouiseearrancava-lhedasmos o seu romance: "Charles!, gritava ela furiosa, voc vai desmarcara pgina! J, com as sobrancelhas altas, le lia; subitamente seu in-dicador golpeava a brochura; "No entendo patavina! Mas como que voc quer compreender?, replicava minha av: se voc est lendopelo meio! Afinal atirava o livro sbre a mesa e ia-se embora dandode ombros.Tinhacertamenterazo, poiseradoofcio. Eusabiadisso: lememostrara, numa prateleira da biblioteca, grandes volumes cartonadose recobertos de pano escuro. "stes a, menino, foi teu av que os fz.Que orgulho! Eu era neto de um arteso especializado na confeco deobjetos sagrados, torespeitvel quantoumfabricante de rgos,quantoumalfaiatedeeclesisticos. Euovi emao:todoano, erareeditado o Deutsche Lesebuch. Nas frias, a famlia inteira aguardava27/165as provas comimpacincia. Charles no suportava a inatividade,zangava-se para passar o tempo. O carteiro trazia enfim os grandes pa-cotes macios, o barbante era cortado com a tesoura; meu av desenro-lava as tiras, espalhava-as sbre a mesa da sala de jantar e cobria-as deriscos vermelhos; acadarrodecomposio, blasfemavaentreosdentes, mas no gritava mais quando a criada pretendia pr a mesa.Todomundoficavacontente.Empsbreumacadeira,eucontem-plavaemxtaseaquelaslinhasnegras, estriadasdesangue. CharlesSchweitzer meensinouqueexistiauminimigomortal, seuEditor.Meu av nunca soubera fazer contas; prdigo por desleixo, generosopor ostentao, acabou por cair, muito mais tarde, nessa doena dosoctogenrios, que a avareza, efeito da impotncia e do mdo de mor-rer. Naquela poca, ela se prenunciava apenas numa estranha descon-fiana: quando recebia, por ordem postal, o montante de seus direitosautorais, erguia os braos para o cu gritando que lhe estavam cort-andoagarganta, ouentoentravanoaposentodeminhaavede-clarava sombriamente: "Meu editor me assalta como numa floresta.Eu descobria, estupefato, a explorao do homem pelo homem. Semessa abominao, felizmente circunscrita, o mundo, no entanto,apresentar-se-iabemfeito:ospatresdavamsegundosuascapacid-ades aos operrios segundo seus mritos. Por que era preciso que oseditres, ssesvampiros, odescompusessem, bebendoosanguedemeu pobre av? Meu respeito cresceu por aqule santo homem cujodevotamentonoobtinharecompensa: fui preparadodesdecedoatratar omagistriocomoumsacerdcioe aliteraturacomoumapaixo.Eu no sabia ainda ler, mas j era bastante esnobe para exigir os meuslivros. Meu av foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente OsContos do poeta Maurice Bouchor, narrativas extradas do folclore eadaptadas ao gsto da infncia por um homem que conservara, diziale, olhos de criana. Eu quis comear na mesma hora as cerimniasdeapropriao. Peguei osdoisvolumezinhos, cheirei-os, apalpei-os,28/165abri-os negligentemente na"pginacerta, fazendo-os estalar. De-balde: eu no tinha a sensao de possu-los. Tentei sem maior xitotrat-los como bonecas, acalent-los, beij-los, surr-los. Quase em l-grimas, acabei por dep-los sbre os joelhos de minha me. Ela levan-tou os olhos de seu trabalho: "O que queres que eu te leia, querido? AsFadas? Perguntei, incrdulo: "As Fadas esto a dentro?A histriameerafamiliar: minhamecontava-acomfreqncia, quandomelavava, interrompendo-se parame friccionar comgua-de-colnia,para apanhar,debaixoda banheira,o sabo que lhe escorregaradasmos e eu ouvia distraidamente o relato bem conhecido; eu s tinhaolhosparaAnne-Marie, amadetdasasminhasmanhs; eustinhaouvidosparaasuavozperturbadapelaservido;eumecom-prazia com suas frases inacabadas, com suas palavras sempre atrasa-das, com sua brusca segurana, vivamente desfeita, e que descambavaem derrota, para desaparecer em melodioso desfiamento e se recom-por aps um silncio. A histria, isso vinha por fora: era o lao de seussolilquios. Duranteotempotodoemquefalava, ficvamossseclandestinos, longedoshomens, dosdeusesedossacerdotes, duascoras nobosque, comoutras coras, as Fadas; eunoconseguiaacreditar que se houvesse composto um livro a fim de incluir nle steepisdiodenossavidaprofana, querecendiaasaboeagua-de-colnia.Anne-Marie fz-me sentar sua frente, emminha cadeirinha;inclinou-se, baixouasplpebraseadormeceu. Daquelerostodees-ttua saiu uma voz de gsso. Perdi a cabea: quem estava contando? oqu?eaquem?Minhameausentara-se:nenhumsorriso, nenhumsinal deconvivncia, euestavanoexlio. Almdisso, eunorecon-heciaasualinguagem. Ondequearranjavaaquelasegurana?Aocabo de um instante, compreendi: era o livro que falava. Dle saamfrases que me causavam mdo: eram verdadeiras centopias, formig-avamdeslabaseletras, estiravamseusditongos, faziamvibrarasconsoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e29/165suspiros, ricas em palavras desconhecidas, encantavam-se por si pr-prias e com seus meandros, sem se preocupar comigo; s vzes desa-pareciam antes que eu pudesse compreend-las, outras vzes eu com-preendiadeantemoe elascontinuavama rolarnobrementeparaoseu fim sem me conceder a graa de uma vrgula. Seguramente, o dis-curso no me era destinado. Quanto histria, endomingara-se: o len-hador, a lenhadora e suas filhas, a fada, tdas essas criaturinhas, nos-sos semelhantes, tinham adquirido majestade; falava-se de seus farra-pos com magnificncia; as palavras largavam a sua cr sbre as coisas,transformando as aes em ritos e os acontecimentos em cerimnias.Algum se ps a fazer perguntas: o editor de meu av, especializado napublicao de obras escolares, no perdia ocasio de exercitar a jovemintelignciadeseusleitores.Pareceu-mequeumacrianaerainter-rogada: nolugar dolenhador, oque faria? Qual das duas irmspreferiria? Por qu? Aprovava o castigo de Babette? Mas essa crianano era absolutamente eu, e fiquei com mdo de responder. Respondino entanto: minha dbil voz perdeu-se e senti tornar-me outro. Anne-Marie, tambm, era outra, com seu ar de cega superlcida: parecia-meque eu era filho de tdas as mes, que ela era a me de todos os filhos.Quando parou de ler, retomei-lhe vivamente os livros e sa com lesdebaixo do brao sem dizer-lhe obrigado.Com o tempo senti prazer naquele deflagrador que me arrancava demimmesmo:MauriceBouchorsedebruavasbreainfnciacomasolicitudeuniversalqueoschefesdeseodedicamaosclientesdosgrandes magazines; isto me lisonjeava. Aos relatos improvisados, pas-sei a preferir os relatos pr-fabricados; tornei-me sensvel sucessorigorosa das palavras: a cada leitura voltavam, sempre as mesmas e namesma ordem, eu as esperava. Nos contos de Anne-Marie, as persona-gens viviam ao deus-dar como ela prpria fazia: adquiriam destinos.Euestava na Missa: assistia ao eterno retorno dos nomes e doseventos.30/165Tive ento cimes de minha me e resolvi tomar-lhe o papel. Apossei-medeumlivrointituladoTribulaesdeumChinsnaChinaeotransportei paraumquartodedespejo; a, empoleiradosbreumacama de armar, fiz de conta que estava lendo: seguia com os olhos aslinhas negras sem saltar uma nica e me contava uma histria em vozalta, tomando o cuidado de pronunciar tdas as slabas.Surpreenderam-meoumelhor, fizcomquemesurpreendessemgritaram admirados e decidiram que era tempo de me ensinar o alfa-beto. Fui zelosocomoumcatecmeno; iaapontodedar amimmesmo aulas particulares; eu montava na minha cama de armar com oSem Famlia de Hector Malot, que conhecia de cor e, em parte recit-ando, empartedecifrando, percorri-lhetdasaspginas, umaapsoutra: quando a ltima foi virada, eu sabia ler.Fiquei loucodealegria: eramminhasaquelasvozesscasemseuspequenos herbrios, aquelas vozes que meu av reanimava com o ol-har, que le ouvia e eu no! Eu iria escut-las,encher-me-iade dis-cursoscerimoniososesaberiatudo.Deixavam-mevagabundearpelabiblioteca e eu dava assalto sabedoria humana. Foi ela quem me fz.Mais tarde, ouvi centenas devzes os anti-semitas censuraremosjudeus de ignorarem as lies e os silncios da natureza; eu replicava:Neste caso, sou mais judeu do que les. As densas lembranas, e adoce sem-razo das crianas do campo, em vo procur-las-ia, eu, emmim. Nuncaesgaravatei aterranemfarejei ninhos, noherborizeinem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passar-inhos e meus ninhos, meu animaisdomsticos, meu estbulo e meucampo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua es-pessurainfinita, asuavariedadeeasuaimprevisibilidade. Eumelanava a incrveis aventuras: era preciso escalar as cadeiras, as mesas,com o risco de provocar avalanches que me teriam sepultado. As obrasda prateleira superior ficaram por muito tempo fora de meu alcance;outras,maleuasdescobri,meforamarrebatadasdasmos;outras,ainda, escondiam-se: eu as apanhara umdia, comeara a l-las,31/165acreditava t-las reposto no lugar, mas levava uma semana parareencontr-las. Tive encontros horrveis: abria um lbum, topava comuma prancha em cres, insetos horrveis pululavam sob minha vista.Deitadosbreotapte, empreendi ridasviagensatravsdeFonte-nelle, Aristfanes, Rabelais: as frases resistiam-me maneira dascoisas; cumpria observ-las, rode-las, fingir que me afastava e retorn-arsubitamenteaelasdemodoasurpreend-lasdesprevenidas: namaioria das vzes, guardavamoseusegrdo. EueraLaProuse,Magalhes, Vasco da Gama; descobria estranhos indgenas: "Heauton-timorumenos numa traduo de Terncio em alexandrinos, "idiossin-crasia numlivro de literatura comparada. Apcope, Quiasmo,Parangonecemoutroscafresimpenetrveisedistantessurgiamaovirar uma pgina e a sua simples apario deslocava todo o pargrafo.Estas palavras duras e negras, s vim a conhecer-lhes o sentido dez ouquinzeanos maistardee, aindahoje, conservamsua opacidade: ohumo de minha memria.A biblioteca quase s abrangia grandes clssicos da Frana e da Ale-manha. Havia gramtica tambm, alguns romances clebres, os Con-tosEscolhidosdeMaupassant, obrassbrearteumRubens, umVan Dyck, um Drer, um Rembrandt que os alunos de meu av lhehaviam ofertado por ocasio de um Ano Nvo. Magro universo. Mas oGrandLaroussesubstituaparamimtudo; eupegavaumtomoaoacaso, atrs da escrivaninha, na penltima prateleira. A-Bello, Belloc-ChouCi-D, Mele-PoouPr-Z(estasassociaesdeslabasestavamconvertidasemnomesprpriosquedesignavamossetoresdosaberuniversal: haviaaregioCi-D, aregioPr-Z, comsuafaunaesuaflora, suas cidades, seus grandes homens e suas batalhas); eu o depos-itava penosamente sbre a pasta de mesa de meu av, abria-o, desan-inhavadleosverdadeirospssaros, procediacaasverdadeirasborboletas pousadas em verdadeiras flores. Homens e animais se en-contravaml,empessoa:asgravuraseramseuscorpos,otextosuaalma, sua essncia singular; fora dos muros, eram encontrados vagos32/165esboos que se aproximavam mais ou menos dos arqutipos sem at-ingir asuaperfeio: noJardindAcclimatation, osmacacoserammenos macacos, no Jardin du Luxembourg, os homens era menos ho-mens. Platnico por condio, eu ia do saber ao seu objeto; achava naidia mais realidade que na coisa. Foi nos livros que encontrei o uni-verso:assimilado, classificado, rotulado, pensadoeaindatemvel;econfundi adesordemdeminhasexperinciaslivrescascomocursoaventuroso dos acontecimentos reais. Da veio sse idealismo de quegastei trinta anos para me desfazer.Avidaquotidianaeralmpida: freqentvamospessoasassentadasque falavam alto e bom som, que baseavam suas certezas em sadiosprincpios, na Sabedoria das Naes, e no se dignavam distinguir-medo comum a no ser por um certo maneirismo da alma ao qual eu es-tava perfeitamente habituado. Apenas emitidas, suas opinies me con-venciam por uma evidncia cristalina e simplria; se queriam justifi-car sua conduta, forneciam razes to enfadonhas que s podiam serverdadeiras, seuscasosdeconscincia, complacentementeexpostos,me perturbavam menos do que me edificavam: eram falsos conflitosde antemo resolvidos, sempre os mesmos; suas faltas, quando as re-conheciam, quasenopesavam: aprecipitao, certairritaoleg-tima, mas sem dvida exagerada, alterara-lhes o juzo; por felicidade,haviam percebido a tempo; os erros dos ausentes, mais graves, nuncaeramimperdoveis: jamais se detratava algum, entre ns, masconstatavam-se, naaflio, osdefeitosdeumcarter. Euescutava,compreendia, aprovava, achavataispalavrastranquilizadorasenoestava errado j que se destinavam a tranqilizar: nada irremedivele, no fundo, nada se mexe, as vs agitaes da superfcie no devemocultar-nos a calma morturia que nosso quinho.Nossos visitantes despediam-se, eu ficava s, evadia-me dstecemitrio banal, ia juntar-me vida, loucura nos livros. Bastava-meabrir um dles para redescobrir sse pensamento inumano, inquieto,33/165cujas pompas e trevas ultrapassavam meu entendimento, que saltavade uma idia a outra, to depressa que eu largava a prsa cem vzespor pgina, deixando-a escapulir, aturdido, perdido. Euassistia aacontecimentos que meu av julgaria certamente inverossmeis e que,no obstante, possuam a deslumbrante verdade das coisas escritas. Aspersonagens surgiam sem o menor aviso, amavam-se,indispunham-se, esganavam-se umas s outras: o sobrevivente consumia-se detristeza, juntava-se no tmulo ao amigo, terna amante que acabavade assassinar. O que se havia de fazer? Estava eu destinado, como aspessoas grandes, a inculpar, a felicitar, a absolver? Mas sses excntri-cos no pareciam absolutamente guiar-se por nossos princpios e seusmotivos, mesmoquandoeramapresentados, meescapavam. Brutomata o filho, Mateo Falcone faz o mesmo. Tal prtica parecia bastantecorriqueira. Aoredordemim, noentanto, ningumrecorreraaela.Em Meudon, meu av brigava com meu tio Emile, e eu ouvira seus gri-tos nojardim: noparecia, entretanto, quehouvessepensadoemabat-lo. Como julgava le os pais infanticidas? Quanto a mim, eu meabstinha:meusdiasnocorriamperigo,poiseuerarfoeaquleshomicdios de aparato me divertiam um pouco; mas, nos relatos quedeles eram feitos, sentia uma aprovao que me desorientava. Hor-cio, por exemplo; eu era obrigado a conter-me a custo para no cuspirna gravura que o mostrava de capacete, com a espada nua, correndoatrs da pobre Camila. Karl cantarolava s vzes:On rpeut pas f plus proch parentsQue frre et soeur assurment... 2Isto me perturbava: se me houvessem dado, por sorte uma irm, elame seria mais prxima doque Anne-Marie? Doque Karlemami?Ento seria minha amante. Amante no passava ainda de um trmotenebroso comque eu me deparava s vzes nas tragdias deCorneille. Os amantes se beijam e se prometem mutuamente dormir34/165na mesma cama (estranho costume: por que no em camas geminadascomo minha me e eu fazamos?). Eu nada mais sabia; porm, sob asuperfcie luminosa da idia, pressentia certa massa velosa. Em todocaso, irmo, euseriaincestuoso. Eusonhavacomisso. Derivao?Camuflagem de sentimentos proibidos? bem possvel. Eu tinha umairm mais velha, minha me, e aspirava a ter uma irm caula. Aindahoje 1963 realmente o nico lao de parentesco que me comove.Cometi o grave rro de procurar muitas vzes entre as mulheres essairm que no sobreveio: denegado, fui condenado s custas. Isso noimpede que ressuscite, ao escrever essas linhas, a clera de que fui to-mado contra os assassinos de Camila; ela to fresca e to viva que mepergunto se o crime de Horcio no constitui uma das fontes de meuanti-militarismo:osmilitaresmatamsuasirms.Euteriamostrado,eu, quele soldado! Para comeo de conversa, ao poste! E doze balasnocouro! Euvirava a pgina; caracteres tipogrficos me demon-stravam o meu engano: era preciso absolver o sororicdio. Por algunsinstantes, eu bufava, batia o casco, como um touro decepcionado pelanegaa. Depois, apressava-me a jogar cinzas sbre a minha fria. Eraassim mesmo; eu devia tirar da minha vantagem; eu era demasiadojovem. Tomaratudosavessas; anecessidadedaabsolvioestavajustamente estabelecida pelos numerosos alexandrinos que me haviampermanecidohermticosouquesaltaraporimpacincia.Eugostavadessa incerteza e de que a histria me escapasse de todo lado; isso medesorientava. Reli vinte vzes as derradeiras pginas de Madame Bo-vary; ao fim, sabia pargrafos inteiros de cor, sem que a conduta dopobre vivo se me tornasse clara: le encontrava cartas; era razo sufi-cienteparadeixarcrescerabarba?LanavaumolharsombrioparaRodolphe, logoguardava-Iherancordeque, efetivamente?Eporque lhe dizia: "No lhe quero mal? Por que que Rodolphe o achava"cmico e um pouco vil? A seguir Charles Bovary morria: de tristeza?dedoena?Eporqueodoutoroabria,setudoestavaacabado?Eugostava daquela resistncia coricea que eu nunca conseguia vencer;mistificado, estafado, degustava a ambigidade voluptuosa de35/165compreender sem compreender: era a espessura do mundo; o coraohumano de que meu av falava de bom grado em famlia, parecia-meinspido e co em tda parte, salvo nos livros. Nomes vertiginosos con-dicionavam meus humores, mergulhavam-me em terrores ou melan-colias cujas razes me fugiam. Eu dizia "Charbovary e via, em partealguma, um barbudo em frangalhos passeando num recinto: era in-suportvel. Nafontedestasansiosasdelciashaviaacombinaodedois temores contraditrios. Eu receava cair de ponta-cabea num uni-versofabulosoedeerrar nleincessantemente, emcompanhiadeHorcio, de Charbovary, sem esperana de reencontrar a rue Le Goff,Karlemami eminhame. E, deoutrolado, adivinhavaqueaqulesdesfilesdefrasesofereciamaosleitoresadultossignificaesquesemefurtavam. Euintroduziaemminhacabea,pelosolhos,palavrasvenenosas, infinitamente mais ricas do que eu pensava; uma fra es-tranha recompunha emmim, pelo discurso, histrias de loucosfuriosos que no me concerniam, uma tristeza atroz, a runa de umavida: noiaeucontaminar-me, morrerenvenenado?AbsorvendooVerbo, absorvidopela imagem,eu s me salvava,em suma,pela in-compatibilidade dsses dois perigos simultneos. Ao cair do dia, per-dido numa selva de palavras, estremecendo ao menor rudo, tomandoos estalos doassoalhopor interjeies, acreditavadescobrir alin-guagem em estado natural, sem os homens. Com que covarde alvio,com que decepo, reencontrava a banalidade familial quando minhame entrava e acendia a luz exclamando: "Meu pobre benzinho, assimvoc se arranca os olhos! Esgazeado, eu saltava em p, gritava, corria,bancava o palhao. Mas at mesmo nesta infncia reconquistada, eumeamofinava; doquefalamoslivros?Quemosescreve?Porqu?Revelei minhas inquietaes a meu av que, depois de refletir, julgouchegada a hora de me libertar e o fz to bem que me marcou.Pormuitotempofizera-mepularsbreasuapernaesticada, cant-ando: "A cavalo sbre o meu selote; le vai soltando traques no seutrote3 e eu ria escandalosamente. No cantou mais: sentou-me nos36/165joelhos e fitou-me no fundo dos olhos: "Sou homem, repetia le comvozpblica, souhomemenadadoquehumanomeestranho.Exagerava muito: como Plato fz com o poeta, Karl expulsava de suaRepblicaoengenheiro, omercador eprovvelmenteooficial. Asfbricas estragavam-lhe a paisagem; das cincias puras, apreciavaapenas a pureza. Em Gurigny, onde passvamos a ltima quinzena dejulho,meutioGeorgesnoslevavaavisitarasfundies:faziacalor,homens brutais e mal vestidos nos empurravam; aturdido por rudosgigantescos, eu morria de mdo e de tdio; meu av observava a fun-dioassobiando, pordelicadeza, masseuolharpermaneciamorto.No Auvergne, em contrapartida, no ms de agsto, le farejava pelasaldeias, plantava-se diante de velhas construes, golpeava os tijoloscom a ponta da bengala: "Isso que voc est vendo a, menino, dizia-me com animao, um muro galo-romano. Gostava tambm da ar-quitetura religiosa e, embora abominasse os papistas, nunca deixavadeentrarnasigrejasquandoeramgticas;romnticas,dependiadeseuhumor. Quasenoiaaconcertos, mas freqentara-os: amavaBeethoven, sua pompa, suas grandes orquestras; Bach tambm, semarrebatamento. s vzes acercava-se do piano e, semsentar-se,atacava com os dedos entorpecidos alguns acordes: minha av dizia,com um sorriso fechado: "Charles compe. Seus filhos haviam-se tor-nado Georges sobretudo bons executantes que detestavam Beeth-oven e preferiam a tudo o mais a msica de cmara; tais divergnciasdeopinionoperturbavammeuav;lediziacombonsares:"OsSchweitzer nascerammsicos. Oitodias, apsomeunascimento,como eu parecesse distrair-me com o tinido de uma colher, decretaraque eu tinha ouvido.Vitrais, arcobotantes, portais esculpidos, coros, crucificaes talhadasna madeira ou na pedra, Meditaes em verso ou Harmonias poticas:estasHumanidadesnoslevavamdiretamenteaoDivino.Tantomaisquanto cumpria juntar-lhes as belezas naturais. O mesmo spro mod-elava as obras de Deus e as grandes obras humanas; o mesmo arco-ris37/165brilhava na espuma das cascatas, cintilava entre as linhas de Flaubert,luzia nos claros-escuros de Rembrandt: era o Esprito. O Esprito fa-lava a Deus dos Homens, aos homens le dava testemunho de Deus.NaBeleza, meuavviaapresenacarnaldaVerdadeeafontedasmais nobres elevaes. Emcertas circunstncias excepcionais quando uma tempestade sobrevinha na montanha, quando VictorHugo estava inspirado podia-se atingir o Ponto Sublime em que oVerdadeiro, o Belo e o Bem se confundiam.Eu achara a minha religio: nada me pareceu mais importante do queumlivro. Nabiblioteca, euviaumtemplo. Netodesacerdote, viviasbre o telhado do mundo, no sexto andar, empoleirado no mais altogalho da rvore Central: o trono era o poo do elevador. Eu ia e vinhasbre meu balco; atirava aos passantes um olhar de cima;cumprimentava, atravs da grade, Lucette Moreau, minha vizinha, quepossua minha idade, meus cachos louros e minha tenra feminilidade,eureentravanacellaounopronaosenuncadesciadaempessoa:quando minha me me levava ao Luxembourg isto : diriamente eu emprestava meu farrapo s baixas regies, porm o meu corpo glor-ioso no abandonavao seu poleiro e creio que ainda l se encontra.Todo homem tem seu lugar natural; nem o orgulho nem o valor lhefixam a altitude: a infncia que decide. O meu um sexto andar par-isiense com vista para os telhados. Por muito tempo eu sufoquei nosvales, asplanciesmeprostraram; eumearrastavasbreoplantaMarte, a gravidade me esmagava; bastava-me subir em cima de umatoca para reaver a alegria: reconquistava o meu sexto andar simblico,volvia a respirar o ar rarefeito das Belas-Letras, o Universo se escal-onavaameuspsetodacoisasolicitavahumildementeumnome;atribu-lo era ao mesmo tempo cri-la e tom-la. Sem essa iluso cap-ital, eu jamais teria escrito.Hoje, 22 de abril de 1963, corrijo ste manuscrito no dcimo andar deumacasanova: pelajanelaaberta, divisoumcemitrio, Paris, as38/165colinas de Saint-Cloud, azuis. dizer minha obstinao. Tudo mudou,no entanto, Criana, quisesse eu merecer esta posio elevada,cumpriria ver em meu gsto pelos pombais um efeito da ambio daverdade, uma compensao por minha pequena estatura. Mas no; oproblema no era trepar em minha rvore sagrada: eu j estava nela,recusava-me a descer; no se tratava de me colocar acima dos homens;eu queria viver em pleno ter entre os simulacros areos das Coisas.Mais tarde, longe de me agarrar a bales, pus todo o meu zlo em ir aofundo: foi preciso calar solas de chumbo. Por sorte, aconteceu-me svzes roar sbre areias nuas, em espcies submarinas cujo nome mecompetiainventar. Outrasvzes, nohaviaoquefazer: umairres-istvel leveza me retinha superfcie. Por fim, meu altmetro se desar-ranjou: sou, ora ludio, ora escafandrista,e amide ambas as coisasjuntas como convm em nossa especialidade: moro no ar por hbito efuo o cho sem muita esperana.Erapreciso, todavia, falar-medosautores. Meuavf-locomtato,sem calor. Ensinou-me o nome dsses homens ilustres; a ss, recitavapara mim mesmo a lista, de Hesodo a Hugo, sem uma omisso: eramos Santos e os Profetas. Charles Schweitzer consagrava-lhes, afirmava,verdadeiroculto. Eles o incomodavam,no obstante: sua importunapresena impedia-o de atribuir diretamente ao Esprito Santo as obrasdo Homem. Por isso nutria secreta preferncia pelos annimos, pelosconstrutores que tiverama modstia de apegar-se diante de suascatedrais, pelo autor inumervel das canes populares. No detestavaShakespeare, cuja identidade no estava determinada. Nem Homero,pelo mesmo motivo. Nem quaisquer outros sbre cuja existncia nohouvesse inteira certeza. Para os que no quiseram ou no souberamobliterarostraosdesuavida,encontravadesculpasdesdequeest-ivessem mortos. Mas condenava em bloco os seus contemporneos exceo de Anatole France e de Courteline que o divertia. Charles Sch-weitzer desfrutava orgulhosamente a considerao que era dedicada sua idade avanada, sua cultura, sua beleza, s suas virtudes; sse39/165luteranonoseproibiadepensar, mui biblicamente, queoEternoabenoara-lhe a Casa. mesa, recolhia-se por vzes, a fim de tomaruma vista cavaleira sbre a sua vida e concluir: "Meus filhos, como bomagentenoternadaasereprovar. Seusarrebatamentos, suamajestade, seu orgulho e seu gsto pelo sublime encobriam uma tim-idezdeespritoquelhevinhadesuareligio, deseusculoedaUniversidade, seumeio. Por estarazosentiarepugnnciasecretapelosmonstrossagradosdesuabiblioteca, criaturasmalvadascujoslivrosconsiderava,nofundodesimesmo,comoincongruncias.Eume enganava: a reserva que aparecia sobumentusiasmo de en-comenda, euatomavapelaseveridadedeumjuiz; seusacerdcioelevava-o acima dles. De qualquer maneira, me soprava o ministro doculto, o gnio no seno um emprstimo: cumpre merec-lo atravsde grandes sofrimentos, de provas modesta e firmemente suportadas;a gente acaba ouvindo vozes e escreve sob ditado. Entre a primeira re-voluo russa e o primeiro conflito mundial, quinze anos aps a mortede Mallarm, no momento em que Daniel de Fontanin descobria LesNourritures terrestres, um homem do sculo XIX impunha a seu netoas idias em curso no tempo de Lus Filipe. Assim, dizem, se explicamas rotinas camponesas: os pais vo aos campos, deixando os filhos nasmos dos avs. J na partida eu estava com um handicap de oitentaanos.Devomequeixarporisso?Nosei:nasnossassociedadesemmovimento os atrasos proporcionam s vzes avanos. Seja como fr,atiraram-me sse osso duro de roer e eu o trabalhei to bem que vejo odia s avessas. Meu av desejara me enfastiar sorrateiramente dos es-critores, stes intermedirios. Obteve o resultado contrrio: confundio talento e o mrito. Essa brava gente se me assemelhava: quando euerabemcomportado, quandoagentavavalentementemeusdodis,fazia jus a lauris, a uma recompensa; era a infncia. Karl Schweitzermemostravaoutras crianas, comoeuvigiadas, provadas, recom-pensadas, que souberam guardar durante a vida tda a minha idade.Sem irmo nem irm e sem camaradas, converti-os em meus primeir-osamigos. Haviamamado, padecidocomrigor, comoosherisde40/165seus romances, e sobretudo tinham acabado bem; eu evocava seus tor-mentos com um enternecimento algo jovial; como deviam estar con-tentes, os rapazes, quando se sentiam muito infelizes; diziam a si mes-mos; "Que sorte!, um belo verso vai nascer!A meus olhos, no se achavam mortos; pelo menos, no inteiramente:haviam-semetamorfoseadoemlivros. Corneilleeraumgordorubi-cundo, rugoso, com lombada de couro, que cheirava a cola. Essa per-sonagem incmoda e severa, de palavras difceis, possua arestas queme feriamas coxas quando o transportava. Mas, apenas aberto,oferecia-me suas estampas, escuras e doces como confidncias.Flaubert era um magrio em tela, inodoro, pontilhado de sardas. Vict-orHugo,omltiplo,aninhava-seemtdasasprateleirasaomesmotempo. Istoquantoaoscorpos; notocantesalmas, assediavamasobras; as pginas eram janelas; de fora um rosto se colava vidraa,algum me espiava; eu fingia nada perceber, continuava minha leitura,com os olhos cravados nas palavras sob a mirada fixa do defunto Chat-eaubriand. Tais inquietaes no duravam muito; o resto do tempo, euadoravameuscompanheirosde brinquedo.Eu os coloqueiacimadetudo e me foi contado sem espanto meu que Carlos Quinto apanharado cho o pincel de Ticiano: bela coisa!, um prncipe feito para isso.Todavia, eu no os respeitava: por que iria louv-los por seremgrandes? Cumpriam apenas com o dever. Eu acusava os outros de ser-em pequenos. Em suma, compreendera tudo s avessas e fazia da ex-ceo a regra: a espcie humana tornou-se um comit restrito, cercadodeanimaisafetuosos. Sobretudomeuavprocediademasiadomalcom les para que eu pudesse lev-los totalmente a srio. Parara de lerdesde a morte de Victor Hugo; quando nada mais tinha a fazer, relia.Masseuofcioeratraduzir. Naverdadedeseucorao, oautordoDeutsches Leisebuch considerava a literatura universal como seu ma-terial. Com indiferena, classificava os autores por ordem de mrito,masestahierarquiadefachadamalescondiasuaspreferncias, queeramutilitrias: Maupassant subministravaaos alunos alemes as41/165melhores verses; Goethe, vencendo por uma cabea Gottfried Keller,erainigualvel paraostemasdecomposio. Humanista, meuavtinhaosromancesempoucaestima; professor, censurava-osforte-mente por causa do vocabulrio. Acabou no mais suportando senoos trechos escolhidos e eu o vi, alguns anos mais tarde, deleitar-se comum extrato de Madame Bovary, selecionado por Mironneau para asLectures, quando Flaubert completo esperava h vinte anos o seu bel-prazer. Eu sentia que le vivia dos mortos, o que no deixava de com-plicar minhas relaes comstes; apretextoderender-lhes culto,mantinha-os em suas cadeias e no se privava de espostej-los a fimde transport-los mais comodamente de uma lngua a outra. Descobri-lhes ao mesmo tempo a grandeza e a misria. Mrime, para a sua des-graa, convinha ao Curso Mdio; em conseqncia, levava uma duplaexistncia: na quarta prateleira da biblioteca, Colomba era uma frescapomba de cem asas, congelada, ofertada e sistematicamente ignorada;nenhumolharjamaisadeflorou. Mas, nafileiradebaixo, amesmavirgem estava encerrada num imundo livreco escuro e fedorento; nema histria nema lngua tinhammudado, apenas havia notas emalemo e um lxico; vim a saber, alm disso, num escndalo sem igualdesde a violao da Alscia-Lorena, que fra editado em Berlim. sselivromeuavenfiavaduasvzesporsemananapasta,cobrira-odemanchas, de marcas vermelhas, de queimaduras e eu o detestava: eraMrime humilhado. Era s abri-lo que eu morria de tdio: cada slabaseescondiasobminhavista, talcomofazia, noInstitut, nabcademeu av. Impressos na Alemanha, para serem lidos por alemes, o queeram, alis, stes signos conhecidos e irreconhecveis, seno a contra-fao das palavras francesas? Mais um caso de espionagem: seria sufi-ciente cavar um pouco para descobrir, sob os disfarces gauleses, os vo-cbulos germnicos espreita. Acabei por me perguntar se no existi-am duas Colombas, uma feroz e verdadeira e outra falsa e didtica, as-sim como h duas Isoldas.42/165As tribulaes de meus amiguinhos convenceram-me que eu era seupar. No possua nem seus dotes nem seus mritos e ainda no preten-dia escrever, mas, neto de sacerdote, eu lhes era superior pelo nasci-mento; sem dvida alguma eu estava predestinado; no a seus martri-os sempre um tanto escandalosos, mas a algum sacerdcio; seria sen-tinela da cultura, como Charles Schweitzer. E depois eu estava vivo emuitoativo: nosabiaaindaretalharosmortosmasimpunha-lhesmeus caprichos: tomava-os em meus braos, carregava-os, depunha-ossbreoassoalho,abria-os,tornavaafech-los,tirava-osdonadapara nle voltar a mergulh-los: eram meus bonecos, aqueles homens-troncos,eeusentiacompaixodaquelamiservelsobrevidaparalis-ada, que se chamava sua imortalidade. Meu av encorajava tais famili-aridades: tdas as crianas so inspiradas, nada tm a invejar aos po-etas que so pura e simplesmente crianas. Eu estava doido por Cour-teline, perseguiaacozinheiraatacozinhaparaler-lheemvozaltaThodore cherche des allumettes. Os outros divertiam-se com o meuentusiasmo; desvelos solcitos desenvolveram-no, converteram-no empaixo pblica. Um belo dia meu av me disse negligentemente:"Courteline deve ser boa praa. Se voc gosta tanto dle, por que nolhe escreve? Escrevi, Charles Schweitzer guiou minha pena e resolveudeixar vrios erros ortogrficos emminha carta. Alguns jornaisreproduziram-na, h alguns anos, e no foi sem irritao que a reli. Eume despedia com essas palavras "vosso futuro amigo, que me pare-ciam inteiramente naturais: entre meus familiares figuravam Voltairee Corneille; como escritor vivo, iria le recusar minha amizade?Courteline recusou-se e fz bem: respondendo ao neto, tropearia noav. Na poca, julgamos severamente tal silncio: "Admito, disseCharles, que tenha muito trabalho mas, pelo diabo que seja, a gentesempre responde a uma criana.Aindahoje, resta-messevciomenor, afamiliaridade. Tratossesilustres defuntos comoamigos de peito: acrca de Baudelaire, de43/165Flaubert, expresso-me sem rodeios e, quando me recriminam por isso,tenho sempre vontade de responder: "No se metam em nossos neg-cios. les me pertenceram, vossos gnios, eu os tive em minhas mos,eu os amei apaixonadamente, com tda irreverncia. Vou ento , an-dar de luvas com les? Mas do humanismo de Karl, dsse humanismodeprelado, dleeumelivrei nodiaemquecompreendi quetodohomem o homem todo. Como so tristes as curas: a linguagem des-encantada; os heris da pena, meus antigos pares despojados de seusprivilgios, retornaram s fileiras: visto luto por les duas vzes.Oqueacabodeescreverfalso. Verdadeiro. Nemverdadeironemfalso, como tudo o que se escreve sbre os loucos, sbre os homens.Relatei os fatos com a exatido que a minha memria permitiu. Masat que ponto creio eu no meu delrio? Esta a questo fundamental eno entanto no sou eu quem decide dela. Vi posteriormente que po-demos conhecer tudo em nossas afeies exceto a sua fra, isto , asua sinceridade. Os prprios atos no serviro de padro, a menos quese haja provado que no so gestos, o que nem sempre fcil. Vejamantes; sozinho no meio dos adultos, eu era um adulto em miniatura, efazialeiturasadultas;sissojsoafalso, pstoque, nomesmoin-stante, eucontinuavasendoumacriana. Nopretendoquefosseculpado: era assim, tudo; o que no impede que minhas exploraese minhas caadas fizessem parte da Comdia familial, que as pessoasse encantassem com elas, que eu o soubesse: sim, eu sabia disso, tododia, uma criana maravilhosa despertava os engrimanos que seu avno lia mais. Eu vivia acima de minha idade como h quem viva acimade seus meios: com zlo, com fadiga, custosamente, para a vitrina. Malempurravaaportadabiblioteca, encontrava-menoventredeumvelho inerte: a grande secretria, a pasta de mesa, as manchas de tinta,vermelhas e pretas, sbre o mata-borro rosa, a rgua, o vidro de cola,ocheiroinfectodefumoe, noinverno, oavermelhamentodaSala-mandra, os estalidos da mica, era Karl em pessoa, reificado: no eraprecisomaisparamepremestadodegraa, eucorriaaoslivros.44/165Sinceramente? O que quer dizer isso? Como poderia eu fixar apstantosanos, sobretudoainapreensvel emovediafronteiraquesepara a posse da cabotinagem? Eu me deitava de bruos, diante dasjanelas, com um livro aberto minha frente, um copo d'gua avermel-hadominhadireitae,minhaesquerda,numprato,umafatiadepo com compota. At na solido eu estava em representao: Anne-Marie, Karlemami haviamviradoessaspginasmuitoantesqueeutivesse nascido, era o saber dles que se estendia a meus olhos; noite,interrogavam-me: "Oquequevocleu?Oquequevoccom-preendeu?, eu o sabia, eu estava em trabalho de parto, eu daria luzuma palavra de criana; fugir aos adultos na leitura, era o melhor meiodecomunicar-secomeles;ausentes,ofuturoolhardlespenetrava-mepelooccipital, tornavaasairpelaspupilas, curvavaaonvel docho aquelas frases cem vzes lidas que eu lia pela primeira vez. Visto,eumevia:via-melercomoalgumseouvefalar. Acasomudaraeutanto desde o tempo em que fingia decifrar "o chins na China antesde conhecer o alfabeto? No: o jgo continuava. s minhas costas, aporta abria-se, vinham ver "o que eu estava inventando: eu blefava,levantava-me de um salto, repunha nas; as obras de meus amiguinhosserviram-mefreqentementededebulhadorasdepreces. Aomesmotempo, eu era acometido de terrores e prazeres de verdade; ocorria-meesquecer o meu papel e sair a tda pressa, levado por uma louca baleiaque no era outra seno o mundo. E tire-se uma concluso! Em todocaso, meu olhar trabalhavaas palavras:era precisoexperiment-las,decidirdeseusentido;aComdiadacultura, nofimdecontas, mecultivava.Eu fazia entretanto verdadeiras leituras: fora do santurio, em nossoquarto ou debaixo da mesa da sala de jantar; daquelas eu no falava aningumeningum,salvominhame,mefalavadelas.Anne-Marielevaraasriomeusacessosfingidos. Abrira-secomaMamiesbresuasinquietaes. Minhaavfoiumaaliadasegura:"Charlesnorazovel, disse. le quem incita o menino, eu mesma vi. Estaremos45/165bem arranjados quando esta criana ficar anmica. s duas mulheresevocaram tambm a estafa e a meningite. Seria perigoso e intil atacarmeu av de frente: elas foram de vis. Durante um de nossos passeios,Anne-Marie parou como que por acaso diante da banca que ainda seencontrana esquinado boulevardSaint-Michele da rua Soufflot: viimagens maravilhosas, suas cres gritantes fascinaram-me, pus-me aexigi-las e as obtive; a pea estava pregada: tdas as semanas eu quer-ia o Cri-Cri, L'patant, Les Vacances, Les Trais Boy-scouts de Jeande la Hire e A Volta do Mundo em Aeroplano de Arnould Galopin queapareciamemfascculossquintas-feiras. Deumaaoutraquinta-feira, eu pensava na guia dos Andes, em Marcel Dunot, no pugilistadepunhosdeferro,emChristian,oaviador,muitomaisdoqueemmeusamigosRabelaiseVigny.Minhameps-seaprocurarobrasquemedevolvessemainfncia: houveprimeiro"oslivrinhosrosa,coletneas mensais de contos de fada, depois, pouco a pouco, Os Fil-hos do Capito Grant, O ltimo dos Moicanos, Nicolas Nickleby, OsCinco Soldos de Lavarde. AJlioVerne, ponderado demais, eupreferiaasextravagnciasdePauld'lvoi.Mas,qualquerquefsseoautor, adorava as obras da coleo Hetzel, pequenos teatros cuja capavermelha de borlas de ouro representava o pano de bca: a poeira desol, sbre as bordas, constitua a rampa. Devo a estas caixas mgicas e no s frases equiilbradas de Chateaubriand meus primeiros en-contros com a Beleza. Abrindo-as, eu esquecia tudo: isso era ler? No,mas morrer de xtase: de minha abolio nasciam imediatamente in-dgenas armados de zagaias, a selva, umexplorador de capacetebranco. Eueraviso, euinundavadeluzasbelasfacesescurasdeAuda, as suas de Philas Fogg. Liberta de si mesma enfim, apequena maravilha se deixava converter em puro maravilhamento. Acinqentacentmetrosdoassoalhonasciaumafelicidadesemamonemcoleira, perfeita. ONvoMundopareciaaprincpiomaisin-quietante do que o Antigo: pilhava se nle, matava-se; o sangue corriaaos borbotes. ndios, hindus, moicanos, hotentotes raptavamadonzela, amarravam seu velho pai e prometiam faz-lo perecer sob os46/165mais atrozes suplcios. EraopuroMal. Mas lesapareciaparaprosternar-se perante o Bem: no captulo seguinte, tudo ficariarestabelecido. Brancoscorajososprocederiamaumahecatombedeselvagens, cortandoascordasdopai, quesejogarianosbraosdafilha. Apenasosmausmorriamealgunsbonsmuitosecundrioscujo procedimento figurava entre as despesas imprevistas da histria.Deresto, aprpriamorteeraassepsiada:caa-secomosbraosemcruz e um pequeno orifcio redondo sob o seio esquerdo ou, se a in-veno do fuzil ainda no se verificara, os culpados eram "passados afiodeespada. Eugostavadestabelaexpresso: imaginavaaqulefulgor reto e branco, a lmina; ela penetrava como em manteiga e saapelascostasdofora-da-lei, quesucumbiasemperderumagtadesangue. Por vzes a morte era mesmo ridcula: como a daquele sarra-ceno que, em A filha de Rolando, creio, lanava o seu corcel contra odeumcruzado;opaladinodescarregava-lhesbreocrnioumbelogolpe de sabre que o fendia de alto a baixo; uma ilustrao de GustaveDor representava a peripcia. Como era divertido! As duas metadesdo corpo, separadas, comeavam a tombar, descrevendo cada qual umsemicrculo em trno de um estribo; espantado, o cavalo se empinava.Por muitos anos no pude ver a estampa sem rir at as lgrimas. En-fim, eu retinha o que devia: o Inimigo, detestvel, mas, no fim de con-tas, inofensivo, pois que seus projetos no se consumavam e mesmo,apesar de seus esforos e de sua astcia diablica, serviam a causa doBem; eu constatava, com efeito, que o retorno ordem vinha sempreacompanhado de um progresso: os heris eram recompensados, rece-biam honrarias, marcas de distino, dinheiro; graas sua intrepidez,um territrio era conquistado, um objeto de arte subtrado aos nativose transportado para nossos museus; a mocinha se apaixonava pelo ex-plorador que lhe salvara a vida, tudo acabava em um casamento. Des-sas revistas e dsses livros extra minha fantasmagoria mais ntima: ootimismo.47/165Tais leituras permanecerampor muitotempoclandestinas; Anne-Marie no precisou sequer me advertir: consciente da indignidade queconstituam, no soprei a seu respeito uma s palavra ao meu av... Eume acanalhava, tomava liberdades, passava frias no bordel, mas noolvidava que minha verdade restara no templo. De que servia escan-dalizar o sacerdote com o relato de meus extravios? Karl acabou pormesurpreender;zangou-secomasduasmulhereseestas, aproveit-ando um momento em que le retomava flego, atiraram tudo sbreminhas costas: eu vira as revistas, os romances de aventura, cobiara-os, reclamara, podiam elas mos recusar? Esta hbil mentira encostavaomeuavnaparede: eraeu, eusquemenganavaColombacomaquelas debochadas, pintadas a mais no poder. Eu, a criana proft-ica, a jovempitonisa, oliacindas Belas-Letras, manifestava umfurioso pendor para a infmia. Cabia-lhe escolher: ou eu no profet-izavacoisaalgumaoucumpriarespeitarmeusgostossemprocurarcompreend-los. Pai, Charles Schweitzer teria queimado tudo, av op-tou pela indulgncia magoada. Eu no pedia mais do que isso e contin-ueiaprazivelmenteminhaduplavida.Elanuncacessou:aindahoje,leio com mais vontade a "Srie Negra do que Wittgenstein.Eu era o primeiro, o incomparvel, em minha ilha area; ca na ltimafileiraquandomesubmeteramsregrascomuns. Meuavdecidiramatricular-me no Liceu Montaigne. Certa manh, conduziu-me casado diretor e lhe gabou os meus mritos; meu nico defeito era ser adi-antado demais para a minha idade. O diretor aceitou tudo: puseram-me no terceiro ano primrio e cheguei a acreditar que ia me dar comas crianas de minha idade. Mas no: aps o primeiro ditado meu avfoi convocado s pressas pela diretoria; voltou enfurecido, tirou de suapasta um maldito papel coberto de garranchos, de manchas e jogou-osbreamesa:eraacpiaqueeuentregara. Haviam-lhechamadoaatenoparaaortografia"lelapenovachemeleten4etentaram explicar-lhe que o meu lugar era no primeiro ano. Diante do"lapen ovache minha me caiu na gargalhada; meu av a48/165interrompeucomumolharterrvel. Comeoupormeacusardemvontade e por me ralhar pela primeira vez em minha vida, depois de-clarou que me haviam menosprezado; na manh seguinte, retirou-medo liceu e se indisps com o diretor.Eu nada compreendera do caso e meu malogro no me afetara: eu erauma criana prodgio que no sabia ortografia, s. Alm disso, volteisem aborrecimento minha solido; amava o meu mal. Perdera, semmesmo notar, a oportunidade de tornar-me verdadeiro: encarregaramM. Livin, um professor parisiense, de me dar aulas particulares; levinha quase todos os dias. Meuav me comprara uma pequenacarteira individual, feita de umbancoe uma estante de madeirabranca. Eu me sentava no banco e M. Livin passeava ditando.Parecia-se comVincent Auriol e meu av afirmava que le eraPedreiro-Livre; "quando lhe digo bom dia, dizia-nos com a repugnn-cia assustada de um homem de bem exposto s tentativas de um ped-erasta, le desenha com o polegar o tringulo manico sbre a palmade minha mo. Eu o detestava porque esquecia de me acarinhar: eujulgava que ele me considerava, no semrazo, uma criana re-tardada. Um dia sumiu, no sei mais por qu: talvez tivesse , comunic-ado a algum a sua opinio a meu respeito.Passamos algum tempo em Arcachon e fui escola comunal: os princ-pios democrticos de meu av assim o exigiam. Mas le queria tam-bm que l eu fsse mantido parte do vulgo. Recomendou-me nosseguintes trmos ao mestre-escola: "Meu caro colega, confio-vos o quepossuo de mais caro. M. Barrault usava barbicha e pince-nez: veio be-ber vinho moscatel em nossa vila e declarou-se lisonjeado com a confi-ana que nle depositava um membro do ensino secundrio. Fazia-mesentarnumacarteiraespecial, aoladodesuacadeirae, duranteosrecreios, conservava-me a seu lado. ste tratamento de favor parecia-me legtimo; o que pensavam os "filhos do povo meus iguais, eu ig-noro: creio que pouco ligavam. Quanto a mim, a turbulncia dles me49/165fatigavaeeuachavadistintomeentediarjuntodeM. Barrault, en-quanto les brincavam de barra.Duasrazesmelevaramarespeitaromeuprofessor:lemequeriabem e tinha hlito forte. Os adultos devem ser feios, enrugados, inc-modos; quandometomavamemseusbraos, nomedesagradavasentir uma leve averso a sobrepujar: era a prova de que a virtude noera fcil. Havia alegrias simples, triviais: correr, saltar, comer doces,beijaractisdoceeperfumadademinhame; pormeuatribuamaior valor aos prazeres rebuscados e mesclados que experimentavanacompanhiadoshomensmaduros; arepulsaquemeinspiravamfazia parte do seu prestgio: eu confundia a averso com o esprito deseriedade. Eu era esnobe. Quando M. Barrault se inclinava sbre mim,seu alento me infligia esquisitos embaraos; eu respirava com zlo oodor ingrato de suas virtudes. Um dia, descobri uma inscrio muitorecente no muro da Escola; aproximei-me e li: O pai Barrault umputo. Meu corao bateu quase a romper-se; o estupor pregou-me nolugar; fiquei com mdo. "Puto, isso s podia ser uma dessas palavrasfeias que pululavam nos bas-fonds do vocabulrio e com as quais umacriana bem educada nunca se depara; curta e brutal, possua a hor-rvel simplicidadedasbestaselementares. Jerademaisl-la:jureino pronunci-la, ainda que em voz baixa. Eu no queria que aquelaidia negra agarrada parede saltasse para a minha bca a fim de semetamorfosear no fundo de minha garganta em negra clarinada. Se eufizesse cara de que no a notara, talvez ela reentrasse num buraco deparede. Mas, quando desviava o olhar, era para encontrar a infame de-nominao: o pai Barrault, que me aterrava mais ainda: na palavra"puto, afinal decontas, eumelimitavaaadivinharosentido;massabia muito bem quem era chamado "pai Fulano em minha famlia:os jardineiros, os carteiros, o pai da empregada, em suma, os velhospobres. Algum via a M. Barrault, o professor, o colega de meu av,sob o aspecto de um velho pobre. Algures, em uma cabea, verrumavastepensamentomalsoecriminoso. Emquecabea?Naminha,50/165talvez. Nobastavaterlidoainscrioblasfematriaparatornar-secmplicedesacrilgio?Parecia-meaomesmotempoqueumloucocruel zombavademinhapolidez, demeurespeito, demeuzlo, doprazer que eu sentia cada manh em tirar o casquete ao dizer "Bomdia, Senhor Professor e que eu mesmo era sse louco, que as palavrasfeias e os pensamentos feios formigavam em meu corao. O que queme impedia, por exemplo, de gritar a pleno pulmo: "sse velho sagifede como umporco? Murmurei: "Opai Barrault fede e tudocomeoua girar: fugi chorando. Na manh seguinte, recuperei aminha deferncia por M. Barrault, por seu colarinho de celulide e suagravata borboleta. Mas, quando se debruava sbre o meu caderno, eudesviava a cabea contendo a respirao.No outono seguinte, minha me tomou a deciso de me matricular naInstitution Poupon. Era preciso subir uma escada de madeira, penet-rar numa sala do primeiro pavimento; as crianas agrupavam-se emsemicrculo, silenciosamente; sentadas no fundo do aposento, retas ecomas costas contra a parede, as mes vigiavamoprofessor. Oprimeirodeverdaspobresmasquenosensinavameradistribuirigualmente os elogios e as boas notas em nossa academia de prodgio.Se uma delas esboava um movimento de impacincia ou se mostravademasiadosatisfeitacomumaboaresposta, asSenhoritasPouponperdiam alunos e ela perdia o emprgo.1Usado com o duplo sentido de letrado e clrigo.2No se pode ser parente mais prximo / Que irm