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1 UFRRJ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE TESE AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS E A NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE GRANOVETTER PAULO HENRIQUE FURTADO DE ARAUJO 2009

AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL ... - Paulo... · ontologia do ser social de Lukács, o que envolve estes movimentos de limpeza e atualização. E, enquanto

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UFRRJ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

TESE

AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS E A

NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE GRANOVETTER

PAULO HENRIQUE FURTADO DE ARAUJO

2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CIÊNCIAS

CURSO DE PÓS

AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS E A NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE GRANOVETTER PAULO HENRIQUE FURTA

UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

CURSO DE PÓS-GRADUÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS E A NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE

PAULO HENRIQUE FURTADO DE ARAUJO

Sob a Orientação do Professor Dr. John Wilkinson

Tese submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em CiênciasPós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.

Seropédica, RJ Maio de 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO HUMANAS E SOCIAIS

GRADUÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,

AS POSSIBILIDADES DE UM DIÁLOGO: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS E A NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE

DO DE ARAUJO

Sob a Orientação do Professor

Tese submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Ciências, no curso de

Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.

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335.4 A663p T

Araujo, Paulo Henrique Furtado de. As possibilidades de um diálogo: a ontologia do ser social de Lukács e a nova sociologia econômica de Granovetter / Paulo Henrique Furtado de Araujo, 2009. 231 f. Orientador: John Wilkinson. Tese (doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Bibliografia: f. 219-231. 1. Ontologia – Teses. 2. Redes sociais – Teses. 3. Políticas públicas – Teses. 4. Marxismo – Teses. I. Wilkinson, John. II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. III. Título.

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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE

PAULO HENRIQUE FURTADO DE ARAUJO Tese submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Ciências, no curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade.

TESE APROVADA EM 07/05/2009

_________________________________________ John Wilkinson. Dr. UFRRJ

(Orientador)

________________________________________ Jorge Osvaldo Romano. Dr. UFRRJ

______________________________________ Luciana de Amorim Nóbrega. Dra. UFRRJ

______________________________________ Mário Duayer. Dr. UFF

______________________________________ João Leonardo Gomes de Medeiros. Dr. UFF

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Dedicatória Esta Tese é dedicada à Fátima, Porque não se envenenou, Porque nunca me abandonou, Porque nunca desistiu, Porque acreditou, Porque perseverou, Porque sempre foi a grande companheira da minha vida. E dedicada, com muito amor, aos nossos filhos: Pedro Henrique, Mariana e Gabriela.

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Agradecimentos Em primeiro lugar agradeço ao meu Orientador Prof. Dr. John Wilkinson, pela paciência que teve comigo, pela disponibilidade e confiança. Sem ele não teria conseguido realizar esta Tese. Agradeço aos meus amigos que me ajudaram a suportar e superar o período de produção da Tese. Período que coincidiu com uma fase de grande fragilidade emocional: Teresa Buonomo, que forneceu-me as fotocópias de “Per l’Ontologia dell’essere sociale”. Rita Maria da Silva Passos, amiga e companheira de teoria, análise, copo e muitos risos. Marco Antônio Vargas, que de colega de trabalho transformou-se num grande amigo e que sempre se dispôs a me ouvir nas horas de aflição. Mariana Iootty, com quem iniciei uma bela amizade. Um agradecimento especial ao Prof. Roberto Moreira por aceitar o convite (em cima da hora) para compor minha Banca de Qualificação e pelo Seminário de Doutorado por ele ministrado. Agradeço também aos colegas do Seminário (Sandro, Andréa, Betty, Letícia, Tatiana Walter e Rita) pelos nossos acordos e principalmente pelas divergências polêmicas. Hoje entendo que aquele grupo era a melhor expressão do espírito multidisciplinar do CPDA. Um agradecimento, muito importante para mim, faço ao meu velho amigo trotskista, Marcelo Paixão. Desde o tempo em que éramos simples estudantes e camaradas é o ser humano sempre disposto a ajudar, a acolher e a aconselhar. Muito obrigado! Obrigado por teres aceito (também em cima da hora) participar de minha banca de qualificação. Agradeço aos Professores Mário Duayer, João Leonardo Gomes de Medeiros, Luciana de Amorim Nóbrega e Jorge Osvaldo Romano por aceitarem participar de minha Banca de Doutorado. Agradeço aos Professores José Fiori e José Cassiolato por terem permitido que realizasse seus cursos no Instituto de Economia da UFRJ, enquanto aluno visitante. Muito aprendi com os dois. Agradeço a Sônia Christina Ardilha da Silva por me ajudar, com muita competência, a me entender melhor. Agradeço aos colegas do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ, que concederam-me dois anos de liberação integral para a realização do meu doutoramento. Agradeço aos Técnicos-Administrativos do CPDA, sempre disponíveis e atenciosos. Agradeço ao corpo docente do CPDA, em particular aos Professores Sérgio Leite e Ana Célia Castro. Muito obrigado!

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“(...) las categorías expresan por lo tanto formas de ser, determinaciones de existencia (…)” (Marx, 1987a:27)

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TOCANDO EM FRENTE (Almir Satter e Renato Teixeira)

Ando devagar porque já tive pressa E levo esse sorriso porque já chorei demais Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei Eu nada sei Conhecer as manhas e as manhãs O sabor das massas e das maçãs É preciso amor pra poder pulsar É preciso paz pra poder sorrir É preciso chuva para florir Penso que cumprir a vida seja simplesmente Compreender a marcha, Ir tocando em frente Como um velho boiadeiro levando a boiada Eu vou tocando os dias pela longa estrada Estrada eu sou, estrada eu vou Todo mundo ama um dia, todo mundo chora Um dia a gente chega, no outro vai embora Cada um de nós compõe a sua história Cada ser em si carrega o dom de ser capaz De ser feliz.

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RESUMO ARAUJO, Paulo Henrique Furtado de. As Possibilidades de um Diálogo: A Ontologia do Ser Social de Lukács e a Nova Sociologia Econômica de Granovetter. 2009. 330p. Tese (Doutorado em Ciências). Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2009. O pensamento marxiano e marxista tem por desafio libertar-se das imputações que ao longo do século XX terminaram por obliterar sua capacidade analítica e de intervenção. E, por sua própria constituição, exige uma atualização permanente no processo de captura das determinações do real em constante movimento. A construção de uma Ontologia por Lukács constitui-se num momento importante do trabalho de resgate do pensamento marxiano e de retomada da sua capacidade de interpretar e transformar o real concreto. O diálogo com a Nova Sociologia Econômica de Granovetter abre espaço para uma análise que desvele o nível meso da sociabilidade humana. As redes sociais interpessoais, enquanto manifestação do ser social colocam a possibilidade de um tipo de política pública que seja decorrência da teoria marxiana e marxista enquanto constructo científico e ideológico. Palavras chaves: ontologia, redes sociais, política públicas, marxismo

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ABSTRACT

ARAUJO, Paulo Henrique Furtado de. The Possibility of a Dialogue: The Ontology of Social Being of Lukács and New Economic Sociology of Granovetter. 2009. 330p. Thesis (Doctorate in Science). Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Agricultura e Sociedade, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2009. The Marxist and Marxist thought is free challenge is charged that during the twentieth century ended obliterate its analytical capacity and intervention. And, by its own constitution, requires a permanent upgrade in the capture of the determinations of the real in constant motion. Building an Ontology for Lukács is in an important moment of the work of redemption of Marxist thought and resumed its ability to interpret and transform the real concrete. Dialogue with the New Economic Sociology of Granovetter makes room for an analysis that unveiling the meso level of human sociability. Interpersonal social networks as a manifestation of social being raised the possibility of a type of public policy that is result of Marxist theory and Marxist as scientific and ideological construct. Key Words: ontology, social networks, public policy, Marxism.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO: QUESTÕES QUE ORIENTARAM NOSSA PESQUISA E A ESTRUTURAÇÃO DA TESE ................................................................................. 1 CAPÍTULO I: UMA RESENHA DA NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE GRANOVETTER.........................................................................................................13 1.1. Apresentação................................................................................................................. 13 1.2. Introdução .....................................................................................................................13 1.3. A Velha Sociologia Econômica ................................................................................... 14 1.4. Granovetter e a Nova Sociologia Econômica .............................................................. 28 CAPÍTULO II: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS ............................ 39 2.1. Porquê uma Ontologia Marxista? ..................................................................................39 2.2. A Historicidade do Ser e da Essência ...........................................................................42 2.3. A Categoria Trabalho .................................................................................................. 53 2.4. Trabalho, Posição de Fim, Dever Ser, Valores e Exteriorização ................................ 67 2.5. Trabalho e Estranhamento ............................................................................................79 2.6. Comentários Sobre a Categoria Reprodução ................................................................91 CAPÍTULO III: A ONTOLOGIA DE MARX SEGUNDO LUKÁCS: ALGUMAS NOTAS .................................................................................................................................... 111 3.1. Algumas Questões Iniciais Sobre a Ontologia de Marx ................................................. 111 3.2. O Método da Economia Política ...................................................................................... 116 3.3. A Tomada de Decisão do Indivíduo Dentre Múltiplas Alternativas, o Acaso e a Ontologia Marxiana do Ser Social ............................................................................................................ 134 CAPÍTULO IV: A NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA À LUZ DA ONTOLOGIA DE LUKÁCS.................................................................................................................... 143 4.1.Apresentação .............................................................................................................. 143 4.2.Algumas Observações sobre a Categoria Ideologia ................................................... 143 4.3.Weber a partir do olhar de Lukács ............................................................................. 157 4.4.Polanyi a partir do olhar de Lukács ........................................................................... 176 4.5.Granovetter a partir do olhar de Lukács .................................................................... 183 CAPÍTULO V: PENSANDO A POSSIBILIDADE DE UMA POLÍTICA PÚBLICA MARXISTA/MARXIANA...............................................................................................188 5.1. Introdução................................................................................................................... 188 5.2. Articulação entre Estado e Economia segundo Mészáros ...........................................188 5.3. Concepção Ontonegativa da Politicidade ....................................................................195 5.4. Hegemonia e Guerra de Posição: O Papel das Políticas Públicas ...............................198 5.4.1. Algumas Considerações Críticas ..............................................................................206

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5.5. Esboço de uma Proposta de Política Pública no Rumo da Constituição de uma Nova Hegemonia: Redes de Política Pública ............................................................................. 208 5.6. Considerações Finais ................................................................................................. 213 VI. CONCLUSÕES ....................................................................................................... 215 VII. BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................

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INTRODUÇÃO: QUESTÕES QUE ORIENTARAM NOSSA PESQUISA E A ESTRUTURAÇÃO DA TESE Originalmente entendíamos que o pensamento marxiano era uma teoria científica e ideológica poderosa para a interpretação e mudança da realidade concreta. Entretanto, entendíamos também que não era uma teoria estanque, pronta e acabada, mas que exigia, para se manter coerente com seus próprios termos, uma constante atualização, adaptação, no processo de intelecção do constante vir-a-ser do real concreto, dado. Além disso, sobre o pensamento de Marx existia o peso de um volumoso entulho teórico que se acumulou ao longo do século XX. De tal forma que para a execução da tarefa de atualização era preciso primeiro realizar um trabalho de “limpeza do terreno”. Assim sendo, procuramos realizar este duplo movimento na presente Tese. De tal forma que a tese principal, que estrutura nosso trabalho, é a da possibilidade de diálogo entre a chamada Nova Sociologia Econômica proposta por Granovetter e a proposta de uma ontologia do ser social de Lukács, o que envolve estes movimentos de limpeza e atualização. E, enquanto tese secundária, temos a viabilidade do pensar condições para a elaboração de uma determinada política pública a partir da teoria marxiana/marxista, o que envolve o movimento de atualização do pensamento de Marx. A idéia de que o pensamento marxiano e marxista sofre de um economicismo, determinismo econômico, que torna sua análise eivada por um mecanicismo vulgar, no qual as decisões individuais não têm peso ou importância no desenrolar das tendencialidades da sociedade, foi muito difundida por todo o século XX nos meios acadêmicos e não acadêmicos. Além disso, há sobre tal pensamento a acusação de não ser um pensamento científico, mas uma simples ideologia. Acreditamos que as construções teóricas do velho Lukács, que tem seu ápice no esforço consubstanciado em sua “Ontologia do Ser Social”, são a melhor resposta para essas críticas. Por isso, nos dedicamos ao estudo de sua “Ontologia” e procuramos resenhar e destacar os principais momentos do texto que se relacionam com nossa Tese. Ao mesmo tempo, sentíamos que todo o esforço de Lukács parecia deixar de fora um aspecto da sociabilidade. A forma específica de contatos que os indivíduos realizam no seu processo de produção e reprodução social. Acreditamos que por aqui fosse possível um diálogo com as propostas da Nova Sociologia Econômica de Granovetter, em particular na sua análise das redes sociais e, por extensão, dos laços interpessoais, da noção de enraizamento e de construção social da economia. Para tanto procuramos realizar uma resenha dos artigos representativos de Granovetter sobre tais questões e buscamos os fundamentos sociológicos dele noutros autores (Durkheim, Weber e Polanyi). Do confronto de posições percebemos que era possível, com várias restrições, a adoção da noção de redes sociais pelo marxismo, mas não como simples movimento epistemológico, mas enquanto manifestação ontológica da sociabilidade humana. E percebemos que era possível utilizar esse novo conhecimento para se pensar num certo tipo de política pública que seja aceitável pelo pensamento marxiano/marxista. Para isso passamos a tratar de algumas categorias como estado, política, poder, estratégia e tática, etc, para esboçar as características gerais que deveria assumir tal política pública. Nossa tese está organizada em cinco capítulos e uma conclusão, além desta introdução.

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No primeiro capítulo, fazemos uma resenha da Nova Sociologia Econômica (NSE) de Granovetter. A abordagem da Nova Sociologia Econômica nos levou a fazer um contraponto com a velha sociologia econômica, e, portanto, com a própria gênese da sociologia enquanto campo do conhecimento. Nesse processo buscamos reproduzir, sem a pretensão de esgotar ou mesmo fazer uma profunda análise crítica, alguns aspectos das teorias de alguns autores que trouxeram contribuições que serão aproveitadas pela NSE. Assim, passamos em revista por Durkheim e destacamos sua defesa da busca da neutralidade por parte do pesquisador diante do seu objeto de estudo. E enfatizamos o esforço dele em se contrapor à economia neoclássica que via as relações econômicas desenraizadas das relações sociais em geral. Para ele, o mercado é uma construção social, o que leva à sua inserção nas relações sociais. Na sociedade moderna, para Durkheim, fundada sobre a divisão social do trabalho e sobre o mercado, as relações mercantis criam laços que “mesmo sem passar por relações pessoais íntimas (...) se enraíza e participa do processo de reprodução das instituições sociais” (Raud-Mattedi, 2005:129). Por esse motivo Durkheim entende que a coesão social na sociedade moderna não exige a consciência orgânica dos indivíduos tal como ocorria nas sociedades tradicionais. A coesão social é dada pela interdependência derivada da divisão social do trabalho. Em suma, aqui radica seu entendimento de que as relações econômicas nas sociedades modernas permanecem enraizadas nas relações sociais. O segundo autor por nós abordado, nesse processo de identificar contribuições aproveitadas pela NSE, foi Weber. Procuramos expor de forma muito resumida alguns aspectos da sua teoria da ação social. Mas iniciamos com alguns comentários sobre a tentativa de afastamento de Weber em relação à sociologia positivista. Pois entendemos que sua construção teórica encontra-se eivada pelo fracasso nesse afastamento. Na sua sociologia econômica Weber procura explicar a inter-relação recíproca entre o que ele chama de fenômenos econômicos, fenômenos economicamente relevantes e fenômenos economicamente condicionados. Busca incorporar a estrutura social na análise econômica partindo da ação individual. E a ação individual, no seu entendimento, seria influenciada por interesses e orientada pela utilidade e voltada para o comportamento dos outros agentes. Ele constrói uma tipologia (tipos ideais) para a ação social e para a ação econômica. E argumenta que explicar a estrutura econômica exige a utilização de alguns conceitos específicos, como o de “regularidades determinadas pelo interesse”. Swedberg (2005:58) nos diz que para Weber tais regularidades provavelmente se transformarão em “formas regulares de comportamento coletivo que são algo muito comuns na economia”. A questão do enraizamento aparece em Weber quando ele trata dos conceitos de relações “comunais” e “associativas”. A questão do poder e da dominação, os conceitos de relações fechadas e abertas, de racionalidade e ação econômica racional são importantes na construção weberiana e são brevemente referidas por nós. Ainda que não use o termo “instituição” ou “instituição econômica”, Weber trata desta questão quando os vários tipos de ação social e econômica se complexificam, como é o caso para: propriedade, organização econômica, divisão do trabalho, etc. Em suma, a construção teórica de Weber parte da ação social individual, passa pelas relações e interações entre dois ou mais indivíduos e aponta como as ações econômicas desses indivíduos se transformam em organizações. O terceiro autor tratado foi Karl Polanyi, sendo que nos restringimos à análise do livro “A Grande Transformação”. No caso de Polanyi, a principal ligação com a NSE é o conceito de enraizamento e desenraizamento. Em suma Polanyi advoga que nas economias pré-capitalistas as relações econômicas estão enraizadas nas relações sociais (por exemplo, nas tradições, na

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religião) e nas economias de mercado auto-regulado há um desenraizamento das relações econômicas em relação às relações sociais. Agora as relações sociais são submetidas às relações econômicas. A essa constatação, Polanyi associa os conceitos de “moinho satânico” (decorrente da transformação do trabalho, da terra e do dinheiro em mercadorias “fictícias” na era do mercado auto-regulado) e de duplo movimento (no qual a sociedade procura reagir às ameaças, ao tecido social e à natureza, que o mercado auto-regulado com as mercadorias fictícias representa). Por fim tratamos da proposta de Granovetter de uma Nova Sociologia Econômica. Selecionamos alguns artigos representativos da construção teórica de Granovetter e procuramos apontar a existência de uma linha de continuidade entre eles. Em primeiro lugar assinalamos que Granovetter procura construir uma ligação teórica entre os níveis macro e micro de análise do sistema social, pois entende que a sociologia não fazia tal ligação de forma adequada. Para tanto ele vai explorar a força dos vínculos interpessoais (laços fortes, fracos ou inexistentes) que se verificam nas interações em pequena escala e que se relacionam com fenômenos macro tais como mobilidade social, organização política, etc. Ao contrário da velha sociologia econômica, a proposta de Granovetter é de questionar os fundamentos da teoria econômica neoclássica, rompendo com os limites tacitamente aceitos de delimitação de espaços científicos. A velha teoria econômica aceita, por exemplo, que os indivíduos atomizados buscam maximizar suas funções utilidade. Granovetter, não concorda com tal perspectiva e ao contrário defende que os indivíduos estão envolvidos em interações diversas através de estruturas específicas e que devem ser analisadas teoricamente. Por isso é tão caro a Granovetter o conceito de enraizamento. E Granovetter se aproxima da concepção de Durkheim e de Weber e se distancia de Polanyi ao compreender que na sociedade capitalista o agir econômico é necessariamente um agir social, portanto socialmente inserido, enraizado. Granovetter procura discutir como os comportamentos individuais e as instituições humanas são afetados pelas relações sociais. Aponta que no campo teórico há duas concepções opostas da influência das relações sociais: uma subsocializada (na qual não há relação de determinação entre estrutura social, relações sociais e atividades de produção, distribuição e consumo, o indivíduo é atomizado e suas decisões são pouco influenciadas pelas relações sociais) e outra sobressocializada (na qual as relações sociais influenciam mecanicamente o comportamento do indivíduo, no limite esse se assemelha a um autômato). Granovetter aponta que as duas visões convergem para uma visão atomizada do homem. O caminho alternativo de Granovetter a ambas concepções passa pela proposta de enraizamento exercido pelas redes sociais, por esse caminho as decisões individuais interagem entre si e contribuem para a constituição dos aspectos macro da formação social. Em outro momento, Granovetter argumenta que há uma construção social da economia. E isso é o exato oposto da concepção defendida pela chamada Nova Economia Industrial de Williamson. Nesta, as instituições são vistas como tendo um caráter natural e perene, como a única solução possível para a redução dos chamados custos de transação. A partir do conceito de construção social da economia, Granovetter pode demonstrar a relevância das redes de relações interpessoais para o processo de enraizamento da esfera econômica. Além disso, as redes antecedem a formação da instituição, a instituição é o resultado de uma estabilização, de uma cristalização das redes, e depois de formada a instituição a rede perde importância. No segundo capítulo procuramos apresentar alguns aspectos significativos da parte sistemática da “Ontologia do Ser Social” de Lukács. Acreditamos que nessa obra Lukács dá uma

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contribuição decisiva para a renovação do marxismo. Lukács defende que Marx funda uma nova concepção ontológica da sociabilidade humana, e isto se apresenta desde os escritos seminais de Marx. Para Marx a essência humana é “o conjunto de relações sociais”, e tal conjunto é posto pelos sujeitos individuais, logo a essência é necessariamente histórica, e é resultado da própria processualidade histórica. Assim sendo, decisões tomadas pelos indivíduos constitutivos de uma dada sociabilidade pode alterar “o conjunto das relações sociais” e, assim, alterar a própria essência humana. Ficando claro que não há um limite para a processualidade histórica, logo não há a um fim da história. Pode-se falar de um fim da pré-história humana que é dada pela formação sócio-metabólica do capital. Em resumo, Lukács está reafirmando a possibilidade ontológica da revolução social fundada na lógica humano-societária do trabalho. E este é o principal objetivo dele ao construir uma ontologia em pleno século XX. Nesse capítulo pontuamos que para Marx e Lukács, a essência é o lócus da continuidade, a essência não possui um grau maior de ser do que o fenômeno e tão pouco existe uma articulação entre essência e necessidade e fenômeno e causalidade. A contradição entre essência e fenômeno é histórica, a essência necessita do fenômeno para se desdobrar concretamente. Outro aspecto pontuado é o da relação entre essência-universalidade e fenômeno-singularidade. E mais uma vez, não há diferenciação que suponha que universalidade é mais portadora de ser do que singularidade, e vice-versa. O que as difere são as mediações que se fazem presentes a partir dos atos singulares. Entretanto, os traços universais são portadores de uma maior permanência nos processos sociais, pois do contrário, não seriam universais. Portanto, podem expressar “os traços essenciais com maior intensidade que a singularidade” (Lessa, 2002:276). As individualidades portam as “determinações mais genérico-essenciais do ser social”. Por isso, as escolhas feitas pelas individualidades a partir de alternativas concretas são fundamentais para o desenvolvimento humano. Essas escolhas irão levar ao desenvolvimento das substâncias específicas das individualidades e vão permitir uma elevação ou um rebaixamento do seu para-si das individualidades. Por isso, para Lessa (ibid., p. 277), a “essência genérico-social” se manifesta nas formações sociais como nas individualidades. Assim gênero humano e indivíduo humano não se diferenciam por algum estatuto ontológico, o gênero não é portador exclusivo da essência e a individualidade não é portadora exclusiva do fenômeno. Entre essência e fenômeno, e entre singularidade e universalidade há uma determinação reflexiva. No âmbito da categoria substância (entendida como algo histórico), resenhamos uma polêmica que envolve Lukács e as posições de Engels sobre tal categoria. A visão de Engels, após sua morte, foi instrumentalizada pelo marxismo vulgar que acabava por descaracterizar o próprio constructo marxiano. O desdobramento dessa polêmica nos levou a descrever, com Lukács, as três esferas ontológicas distintas: a inorgânica, a biológica e a social. Além de apontar a necessária articulação ontológica entre elas. Apontamos que a correta compreensão da distinção e da articulação entre elas exige a consideração da categoria “momento predominante”. O predomínio de um dos elementos é que vai garantir uma dinâmica e, portanto, uma direção para o processo de produção e de reprodução do ser em questão. A forma genérica do “momento predominante” é chamada de “salto ontológico” por Lukács. A passagem de uma esfera ontológica para outra se dá através do “salto ontológico”, ele é o momento negativo, da ruptura, da negação da esfera anterior. Entretanto, a explicitação categorial do novo ser vai exigir um longo e contraditório processo de construção de novas categorias, nova legalidade, etc. Esse é o momento positivo, de afirmação, de desenvolvimento do novo ser. Destacamos que a passagem do ser orgânico para o ser social exige um “salto ontológico” tal como o exigido na passagem do

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ser inorgânico para o ser orgânico. Mas no ser social, o momento predominante do salto ontológico é a reprodução através do pôr teleológico que necessariamente envolve alternativas. E nisto ele difere do ser orgânico cujo momento predominante é a reprodução muda do mesmo. Aqui podemos assinalar que o ser social tem um caráter histórico, e que sobre essa historicidade, e sobre a articulação ontológica entre o ser orgânico e o ser social e sobre o caráter puramente social do mundo dos homens, Lukács inicia a construção de sua Ontologia. Para entender a articulação e a distinção ontológica entre social e natureza (orgânica e inorgânica), Lukács vai tratar da categoria trabalho e da sua processualidade interna. No segundo item desse capítulo tratamos da categoria trabalho na Ontologia de Lukács. Segundo Lessa, para Lukács a categoria trabalho é a protoforma do agir humano. Não é que ela seja a categoria primeira, mas sim a categoria originária, mais simples, primária, “não poderia haver trabalho antes do ser social” (2007:36; nota 1). Para Lukács (1981:19) o trabalho é o fundamento ontológico de todas as outras formas de práxis social. O metabolismo social e sua reprodutibilidade exigem e comportam outros tipos de ação para além do trabalho, mas esses tipos não podem existir sem o trabalho. O momento que antecede e dirige a ação concreta de trabalho, portanto, o momento de planejamento da ação é chamado por Lukács de prévia-ideação. Nela, as conseqüências do agir são ante-vistas pela consciência do sujeito. Ainda que abstrata, a prévia-ideação é fundamental na práxis social concreta. Quando a prévia-ideação se efetiva na prática concreta, se concretiza num dado objeto, portanto transforma um dado setor da realidade, ocorre o que Lukács chama de objetivação. Assinalamos que entre a consciência que faz a prévia-ideação e o objeto que é o seu resultado concreto, há uma distinção no plano do ser. A distinção se dá entre o sujeito criador e a coisa objetivada e é o fundamento ontológico da exteriorização. Na exteriorização a subjetividade do criador é confrontada com a objetividade externa a ele. Nesse confronto verifica-se a validade dos seus conhecimentos e de suas habilidades e, ao mesmo tempo, desenvolvem-se novos conhecimentos e habilidades. “A exteriorização é o momento de transformação da subjetividade sempre associada ao processo de transformação da causalidade, a objetivação” (Lessa, 2007:39). O salto ontológico, pelo qual ser natural e trabalho sintetizam dialeticamente um novo ser, o ser social, ocorre quando o pôr teleológico do homem, do criador, utiliza a atividade, a legalidade e as causalidades próprias da natureza, reorganizando-as para a obtenção de suas finalidades elaboradas na consciência do criador. Tratamos da categoria de “segunda natureza” que Lukács traz a luz ao enfocar especificamente o ser social, o mundo dos homens. Para Lukács o sentido de “segunda natureza” está em que o objeto, enquanto objetivação da prévia-ideação, torna-se algo distinto do sujeito criador, passando a ter uma história própria e influenciando o criador e a sociabilidade na qual este está inserido. Aos olhos do criador, a objetivação é algo tão distinto dele quanto a “primeira” natureza (ser orgânico e inorgânico). No caso do mundo dos homens, esta totalidade só pode vir-a-ser enquanto fruto de atos individuais de pessoas concretas. Ao ser posta enquanto exterioridade objetiva, só pode ser transformada pelos atos dos mesmos indivíduos criadores. Por isso, tal transformação exige uma mudança na consciência destes indivíduos. Vimos, na seqüência que na Ontologia de Lukács ocorre uma articulação e irredutibilidade entre causalidade e teleologia. Toda processualidade ontológica possui um desenvolvimento causal, e o pôr teleológico do processo de trabalho, que envolve troca orgânica entre o ser social e o ser natural, tem que mobilizar legalidades naturais que são independentes dele. Esse pôr teleológico coloca em movimento séries causais, mas nunca coloca alguma coisa que seja em si

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teleológica. Ou seja, a dinâmica e o curso dessas séries causais não poderá nunca ser determinado pelo pôr teleológico que as originou. E, mais uma vez, é por esse motivo que as coisas objetivadas se defrontam com o sujeito criador como uma segunda natureza. Frisamos, com Lukács, que as legalidades do ser social são causalidades socialmente postas, diferentemente do que se verifica no ser orgânico cuja reprodução é puramente biológica ou no ser inorgânico que experimenta somente um eterno devir-outro. A distinção entre ser natural e ser social radica no fato de que a essência da categoria trabalho é a relação entre teleologia e causalidade, assim, o ser social é uma síntese entre teleologia e causalidade. No processo de trabalho é de fundamental importância o conhecimento do real existente, pois do contrário a objetivação torna-se impossível. No trabalho, portanto, há uma articulação entre objetividade e subjetividade que, teleologicamente, converte a causalidade em causalidade posta, sem que essa se converta em teleologia. Subjetivamente, argumenta Lukács, o ato de apreensão do real que antecede o pôr teleológico tem o caráter de reflexo. A compreensão da categoria reflexo por Lukács é muito diferente do tratamento a ela dado pelo marxismo vulgar. Para ele reflexo tomado ontologicamente nunca pode ser mera cópia do real pela consciência. Reflexo é “a forma especificamente social da ativa apropriação do real pela consciência na busca de meios” (Lessa, 2002:95). Reflexo é uma categoria associada ao trabalho do homem, é muito claro que ela não funda o real concreto e tão pouco, sozinha, funda a subjetividade. “Nem a consciência pode ser reduzida ao reflexo nem o objeto é pura e simplesmente refletido” (ibid.). O ato do reflexo enquanto forma social reproduz aproximativamente o real na consciência, nunca com exatidão ou identidade. O reflexo do real na consciência constitui uma nova forma de objetividade típica do ser social, o concreto pensado tem uma realidade própria na consciência, mas não constitui em si uma nova realidade. Na apreensão do real dado e na sua conversão em real explicado, a consciência realiza de forma ativa uma ação reflexiva. E esta ação é historicamente condicionada, determinada. Esse processo gnoseológico sofre a influência de outros complexos tais como a ideologia, a política, o estranhamento, etc. Em suma, para Lukács a categoria reflexo é fundamental para a constituição do ser social enquanto esfera ontológica específica. Após tratar da categoria reflexo, Lukács aborda a articulação entre ela e a categoria alternativa. Para ele, conforme Lessa (ibid., p. 104), a categoria alternativa é a categoria mediadora do processo de objetivação, ela faz a mediação entre o não-ser do reflexo e o ser teleologicamente posto. O indivíduo criador ou o coletivo humano opta por uma dentre várias alternativas possíveis em cada situação concreta, de maneira a transformar a prévia-ideação em ato concreto. Logo, a alternativa é o elo articulador entre a prévia-ideação e a objetivação. O trabalho tem sempre um caráter de alternativa, ele é sempre uma escolha pela objetivação de uma dada possibilidade e a não objetivação de outras tantas possibilidades. A alternativa é sempre um processo, ao findar um dado processo de trabalho todo um conjunto de novas alternativas se colocam para o sujeito (por exemplo, como utilizar o objeto, como conservar, etc). Claramente, a realização de uma possibilidade origina a necessidade de novas decisões que se apóiam sobre decisões já tomadas anteriormente, num quadro de crescente complexificação das mediações constitutivas de “cada alternativa possível e das decisões requeridas para essas escolhas” (Lessa, ibid., p. 108-109). O desenvolvimento das formas de sociabilidade humanas implica, nesse quadro, o afastamento sucessivo das barreiras naturais e o desabrochar de formas cada vez mais puras de sociabilidade nas quais o reflexo permanece como um movimento aproximativo da consciência em direção ao real concreto, sem jamais poder esgotá-lo.

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A categoria alternativa, em Lukács, está necessariamente articulada aos processos valorativos. Tais processos cumprem um papel ontológico fundamental no desenvolvimento das cadeias alternativas que serão objetivadas. Quanto mais desenvolvida a sociabilidade, tanto mais importante é o papel dos processos valorativos. O tratamento dos valores, da posição de fim, do dever ser e da exteriorização é feito no terceiro item desse capítulo. Lukács argumenta que a gênese dos valores se encontra no “ser-precisamente-assim existente” e se articulam com a causalidade, e isto de modo semelhante ao reflexo. A diferença é que os valores podem se transformar em relações sociais objetivas e o reflexo não. Os valores e os processos valorativos têm por fundamento o dever-ser. O dever-ser é o momento predominante na articulação específica da processualidade de escolha no contexto da posição de fim. Quando tratou do pôr teleológico em sua totalidade, Lukács assinalara que o momento predominante imediato era o desenvolvimento social objetivo, mas ao tratar do momento particular do pôr teleológico ele assinala que o momento predominante é o dever-ser. No âmbito dos atos humanos singulares, na esfera do trabalho, não é o passado que determina o presente, mas é o futuro teleologicamente posto que o determina. Mas isto só é válido para a esfera do trabalho, para o momento particular, específico do pôr teleológico. Tal como o trabalho serve de modelo para a práxis social mais desenvolvida, o dever-ser em sua forma mais primitiva serve de modelo para o dever-ser das relações sociais mais desenvolvidas. Mas não é correto reduzir os valores e processos valorativos à forma simples do dever-ser. O dever-ser é o medium entre homem e natureza, entre materialidade e valor, a função de intermediação é a base genética do dever-ser. O dever-ser é o momento predominante da escolha dentre alternativas. A alternativa liga a práxis social aos valores e leva à distinção entre o que é útil e o que é inútil para uma dada objetivação. E isto “é o fundamento último da gênese e do desenvolvimento dos valores” (Lessa, 2002b:128). Após tratar da distinção e articulação entre dever-ser e valor, acompanhamos Lukács na questão da objetividade do valor. O valor e a valoração são processos sociais, mas não é possível retirar o valor diretamente das propriedades naturais da coisa. Ao mesmo tempo, não é possível o valor só poder existir apoiado na coisa em-si existente. Logo, Lukács segundo Lessa (ibid., p. 129) apresenta um terceiro caminho no qual o “valor nem é exclusivamente produto da subjetividade, nem decorrência imediata da objetividade”. A objetividade dos valores se apresenta no cotidiano na relação “se ... então”, ou seja, uma coisa tem valor se cumpre a tarefa para a qual se destina. A valoração só pode operar tendo por fundamento as finalidades postas pelo trabalho, logo só opera “no interior da complexa articulação teleologia/causalidade que funda o ser social” (ibid., p. 131). O tratamento da ação dos processos valorativos sobre as individualidades e sobre a totalidade da formação social nos levou, acompanhando Lukács, a abordar a categoria exteriorização e esta nos leva à categoria de estranhamento. Lessa (ibid., p. 137) nos diz que para Lukács exteriorização é a ação de retorno da objetivação sobre o criador e, assim, sobre a totalidade social. Esta ação de retorno impulsiona a individuação e, a partir dela, a sociabilidade “a patamares crescentemente genéricos”. Já o estranhamento (ou alienação) constitui-se em obstáculo à plena realização da potencialidade humana. Nele há “uma ação que reproduz a desumanidade socialmente posta, enquanto a exteriorização é o momento de autoconstrução do gênero humano”. Ressaltamos que Lukács claramente diferencia exteriorização e objetivação. Vimos que objetivação é a conversão, através do trabalho, da teleologia em causalidade posta, o que permite transformar o real e dar origem a uma coisa ontologicamente diferenciada em relação ao seu criador.

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Há uma relação nítida entre dever-ser e individuação. O processo de trabalho realiza a objetivação da prévia-ideação e para isso tem que selecionar os comportamentos individuais que sejam adequados para a concretização da idéia. Logo, ocorre “a gênese e o desenvolvimento de um processo valorativo que tem por centro o comportamento do indivíduo, (...) e também de complexos valorativos que têm como nódulo o comportamento do indivíduo diante dos dilemas, alternativas, possibilidades, etc. que a sociabilidade em que vive coloca a cada momento histórico” (Lessa, ibid., p. 145). O caminho para a explicitação da categoria individuação possui três nexos ontológicos fundamentais: Primeiro, o movimento fundante e predominante da individuação é o devir-humano dos homens. O desenvolvimento do ser social afasta as barreiras naturais e possibilita o desenvolvimento de individualidades mais complexas e mediadas. Segundo, as ações dos indivíduos fundam a individuação e elas só existem “enquanto síntese de elementos genéricos e particulares” (Lessa, ibid., p. 147). O que explica por que a individuação só pode ocorrer em sociedade. Terceiro, “o desenvolvimento de uma malha de relações sociais crescentemente genérica é o fundamento ontológico da necessidade e, ao mesmo tempo, da possibilidade de, na individuação, atuarem valores e processos valorativos cada vez mais genéricos (Lukács pensa, acima de tudo, na ética)” (ibid.). No penúltimo item deste capítulo tratamos da relação entre trabalho e estranhamento. Para Lukács e para Marx, a categoria estranhamento está para além da troca orgânica homem-natureza, ela se apresenta na sociabilidade humana, nas relações dos homens entre si, esta categoria vai se explicitar na esfera da reprodução social. A gênese e reprodução do estranhamento, como ocorre com todas as categorias sociais, têm por mediação o pôr teleológico. Por isso, ao tratar da relação entre estranhamento e consciência, Lukács parte dos valores. Tanto o valor quanto o estranhamento radicam na reprodução social antes que na categoria trabalho. Para Lukács, segundo Lessa (ibid., p. 161), na gênese dos valores se apresenta a contraditoriedade do desenvolvimento social, e uma conseqüência disso é que na práxis social torna-se possível o desdobramento contraditório entre valores mais genéricos e valores mais particulares. Aqui, os atos individuais podem interagir com o processo de reprodução social global, optando pelo que possibilita o avanço ou obstaculiza a realização do potencial genérico da humanidade, o devir humano dos homens. No último item deste capítulo fizemos alguns comentários sobre a categoria de reprodução. Aqui argumentamos que Lukács aponta que a análise da categoria trabalho em si, implica numa abstração muito grande ainda que seja necessário assim proceder pelo seu caráter fundante do que é específico ao ser social. Mas o trabalho é uma categoria que só pode explicitar toda sua potencialidade na processualidade do complexo social automovente. Assim, Lukács argumenta que os atos do trabalho necessariamente e de forma contínua remetem para além de si mesmos de tal forma que a reprodução do ser social envolve sempre mudanças internas e externas a este ser. Para Lukács (1981:156) se a reprodução social se realiza em última análise nas ações dos indivíduos, elas para se realizarem devem se inserir num complexo relacional entre homens que têm uma dinâmica própria determinada, ou seja, homens concretos que existem, se reproduzem e operam na sociedade independentemente das suas consciências, e que tomam decisões alternativas. O contato e a influência recíproca desses complexos relacionais têm alguma polivalência, pois a tendência principal depende da legalidade geral da reprodução complexa da formação em questão, da sua estrutura, da sua linha evolutiva, do seu grau de desenvolvimento, etc. E lembra que disso deriva uma diferenciação entre os homens na reprodução do ser social.

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Pois as circunstâncias que determinam o conteúdo, a forma, a direção das decisões alternativas dos homens são resultados da atividade humana. Para o gênero humano tal diferenciação vem a ser qualitativa, muito ampla e profunda, de modo que talvez pareça que isso coloque em causa a sua unidade. Mas, Lukács nos diz que isso é só uma aparência que o desenvolvimento histórico-social se encarrega, mais cedo ou mais tarde de dissolver. Nesse item argumentamos que Lukács apresenta de forma concentrada a articulação entre os atos singulares, as interações decorrentes deles, o surgimento de tendências a partir das interações dos atos singulares até o ponto em que os momentos sociais adquirem superioridade, deslocando ou fazendo desaparecer os aspectos apenas particulares. Dessa forma, quando na vida cotidiana o indivíduo se encontra com tais tendências, elas surgem aos seus olhos como forças sociais que reforçam o momento social-genérico. E, diz Lukács (ibid., p. 187), são nestas “somas e sínteses que se apresenta a continuidade do social, sendo que esta continuidade constitui um tipo de memória da sociedade que conserva o adquirido do passado e do presente e, fazendo-os veículos, premissas e pontos de apoio para o desenvolvimento futuro”. Para Lukács o movimento continuativo encontra na consciência dos homens seu intermediário (“medium”). E quando a consciência se põe como portadora e depositária da continuidade, o ser social vem a ser um ser-para-si, situação que não existe no âmbito do ser biológico e do ser inorgânico. Adiante abordamos a questão dos complexos sociais parciais, particulares. Para Lukács a necessidade ontológica de uma autonomia relativa e de uma especificidade desenvolvida ainda que não previsíveis e compreensíveis em termos lógicos, são racionais na perspectiva ontológica da sociedade. Por isso é que os complexos parciais podem cumprir suas funções no interior do processo reprodutivo global de forma tanto melhor, mais eficaz, quanto mais autonomamente possuem e refinam uma peculiaridade específica. E isso se verifica em todos os complexos que o desenvolvimento da sociabilidade humana produz. O próprio desenvolvimento da sociabilidade impede uma autonomização absoluta dos complexos particulares. Mas, para nosso autor, o principal a reter é que a inter-relação entre os complexos parciais é sempre intermediada pela consciência dos indivíduos humanos singulares, a consciência é o médium, o intermediário. Na prática não há um único indivíduo que ao longo de sua existência não entre em contato de forma variada com vários complexos particulares. Repare que aqui não importa que a consciência em questão seja falsa ou verdadeira, além disso, quanto mais desenvolvida for a sociedade, menor será o número de indivíduos que não realiza tais contatos. Continuando a expor a argumentação de Lukács, vimos que ele reafirma, mais uma vez, que o momento predominante dentre os complexos sociais parciais é a atividade econômica. Mas esta prioridade ontológica não faz com que desapareça a autonomia e especificidade dos vários complexos sociais parciais constitutivos da totalidade da formação social. Segundo nosso autor (ibid., p. 245), estes complexos parciais só encontram a sua verdadeira especificidade, a sua autonomia autêntica, quando reagem concretamente à dinâmica concreta do desenvolvimento econômico, quando executam o que tal desenvolvimento econômico requer da sociedade e opõem-se a ele em dadas condições objetivas e subjetivas. Lukács (ibid., p. 255) relembra que a reprodução social total é um processo que exige a inter-relação entre complexos sociais parciais relativamente autônomos, mas a reprodução social total tem a influência soberana sobre estas inter-relações. E o processo de reprodução social total tem, necessariamente, uma natureza bipolar. Tem dois pólos que delimitam seus movimentos reprodutivos, que o determinam em sentido positivo e negativo. Estes dois pólos são de um lado

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o processo reprodutivo em sua totalidade extensiva e intensiva, e de outro, o indivíduo singular cuja reprodução constitui a base do ser da reprodução total. Para Lukács (ibid., p. 256) é preciso buscar um terceiro caminho que se diferencie de dois outros caracterizados por suas falsas abstrações (um que entende o homem como simples objeto da legalidade econômica e outro que entende que a determinação essencial do ser-homem é ontologicamente independente da sua existência). Por esse terceiro caminho pode-se ter uma imagem ontologicamente correta da transformação do homem, no curso de desenvolvimento social, de mero exemplar da espécie humana, de homem singular, em homem real, enquanto portador de uma personalidade própria, de uma individualidade. O homem enquanto ser ativo reproduz-se no interior da sociedade. Lukács (ibid., p. 260) nos diz que ele é um ente complexo-unitário que reage concretamente à realidade concreta. Sua complexidade concreta é ao mesmo tempo premissa e resultado da reprodução, da sua concreta interação com o próprio ambiente concreto. A influência do ser social sobre a mais intima, mais pessoal forma de pensar, de sensibilidade, de ação e reação de cada indivíduo humano é irresistível e ativa. O terceiro caminho ontológico proposto por Lukács mostra um novo lado do seu conceito de substância, conceito que é universal e ao mesmo tempo histórico. Ele vem argumentando desde sempre que o elemento imediato do quadro histórico social é a decisão alternativa dos homens concretos. Assim conclui que: “Allo stesso modo in cui l’essere sociale si costruisce con queste catene variamente incrociantisi di decisioni alternative, cosí anche la vita singola dell’individuo è composta dal loro succedersi e derivare l’una dall’altra. Dal primo lavoro, come genesi dell’uomo, fino alle piú sottili decisioni psicologiche e spirituali l’uomo forma il proprio mondo esterno, contribuisce a edificarlo e rifinirlo, e al medesimo tempo con queste stesse azioni forma se stesso, passando da mera singolarità naturale a individualità entro una società” (ibid., p. 261). No capítulo 3 tratamos da ontologia de Marx segundo Lukács. Lukács, em seu livro “Ontologia do Ser Social”, apresenta primeiro a parte histórica do seu estudo, no qual trata de alguns autores, dentre os quais Marx. Somente na segunda parte do trabalho, na chamada parte sistêmica, ele discute as questões por nós resenhadas no capítulo 2. Resolvemos fazer essa inversão na nossa exposição por considerarmos que a explanação preliminar de questões como a razão de uma ontologia no século XX ajudaria no entendimento das questões relacionadas à ontologia de Marx. Iniciamos esse capítulo retomando algumas das questões e categorias expostas no capítulo 2 (centralidade do trabalho, pôr teleológico, diferenciação e integração entre as esferas inorgânica, orgânica e social, etc), mas agora referindo-as ao pensamento de Marx. A idéia é acompanhar Lukács na demonstração de que o pensamento de Marx funda-se na perspectiva ontológica. No segundo item deste capítulo acompanhamos a exposição de Lukács sobre o método da economia política de Marx. Lukács procura demonstrar como as considerações gnoseológicas/epistemológicas contidas na Introdução da “Crítica da Economia Política” de Marx se articulam com a perspectiva ontológica do pensamento marxiano. Assinala que a estrutura de “O Capital” só se torna compreensível quando se percebe as interações entre as esferas econômica e extra-econômica. E passa a tratar do método de exposição contido em “O Capital”, no qual Marx parte de níveis altos de abstração (Livro I, que não por acaso, inicia-se com a exposição da categoria valor) até os níveis mais concretos (Livro II, em que se destaca o

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processo global da reprodução econômica e os esquemas de reprodução e o Livro III, cujo destaque fica por conta da concretização desse processo e do tratamento para categorias que operam na esfera da aparência – lucro, juros, renda da terra, etc.). Quando trata do Livro III e da sua maior concreticidade, Lukács dá início à discussão sobre a articulação entre as leis gerais do modo de produção capitalista (leis tendenciais de movimento) e as leis que regulam os atos econômicos singulares. E este é o tema do terceiro e último tópico deste capítulo. Neste item, acompanhamos Lukács na explicação da articulação entre o lugar do indivíduo na história, a casualidade, a tomada de decisão individual e sua interação com as leis tendenciais gerais do ser social. Lukács ao tratar da estrutura fundamental dos processos sociais, explica que tais processos partem de posições teleológicas, determinadas em sentido alternativo, e tomadas por homens singulares. Mas dado o decurso causal das posições teleológicas, essas desembocam num processo causal, contraditoriamente unitário, dos complexos reais e de sua totalidade, e produzem conexões legais universais. Assim as tendências econômico-gerais que daí surgem são sempre síntese de atos individuais, realizadas pelo próprio movimento social. Por isso, diz Lukács (1979b:99) que para Marx “a lei é o movimento interno imanente e legal do próprio ser social”. Logo não há incompatibilidade entre legalidade e historicidade, pois na perspectiva ontológica “são formas de expressão – estritamente ligadas entre si – de uma realidade que, por sua essência, é constituída de diversos complexos heterogêneos e heterogeneamente movidos, os quais são unificados por aquela realidade em leis próprias do mesmo gênero” (ibid.). No quarto capítulo fazemos a contraposição entre a ontologia de Lukács e os desenvolvimentos da Nova Sociologia Econômica de Granovetter. Entendemos que um tratamento adequado de uma construção teórica, em particular situada no âmbito das Ciências Sociais, exige que a questão da ideologia seja enfrentada de forma preliminar. Para realizar tal movimento, no segundo item, após uma pequena introdução, abordamos a questão do pensar e de sua relação com o real para Marx. Em seguida, no mesmo item, passamos a tratar da ideologia tal como é tratada por Lukács em sua “Ontologia”. Ideologia não é entendida a partir da gnoseologia por Lukács, mas (e não poderia ser de outro modo) a partir da perspectiva ontológica, ela é uma função social e não uma espécie de ser. Logo é preciso analisar tal categoria a partir da função que ocupa na produção e reprodução do ser social, “(...) enquanto veículo de conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens” (Vaisman, 1989:421). Nos itens subseqüentes tratamos da lógica interna da construção teórica da Nova Sociologia Econômica, numa tentativa de mostrar seus limites e potencialidades para uma aproximação com a abordagem marxiana/marxista, por nós anteriormente delineada. Assim no terceiro e quarto itens tomamos, respectivamente, Weber e Polanyi enquanto autores a serem analisados a partir do olhar de Lukács. Pois são dois autores que trazem contribuições relevantes para a constituição da Nova Sociologia Econômica de Granovetter. O quinto e último item é dedicado ao próprio Granovetter. Não vamos adiantar as conclusões aqui, mas registramos que há uma pequena área de tangência entre as duas teorias que acreditamos pode ser melhor trabalhada ao pensarmos na possibilidade de um certo tipo de política pública que se apresente em acordo com o pensamento marxiano. E este é o assunto de nosso quinto e último capítulo. No quinto capítulo, intitulado “Um certo Olhar Marxista para as Políticas Públicas”, iniciamos tratando do papel do Estado na economia capitalista e sua necessidade ontológica para a reprodução do capital. Aqui acompanhamos a argumentação de Istvan Mészáros, ex-aluno de Lukács e continuador de seu legado teórico. Para ele capital não é sinônimo de capitalismo, capitalismo é um metabolismo social específico (ou modo de produção) que melhor permite a

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expansão do valor, ou seja, que melhor permite a expansão plena das potencialidades (positivas e negativas) do capital. O capital é relação social, é valor em expansão, necessariamente envolve trabalho assalariado e extração de tempo de trabalho não pago, valor excedente, valor a mais, mais-valia. Capital é uma forma incontrolável de controle sociometabólico, ele articula uma estrutura específica de comando. A ele todo o resto deve se ajustar (inclusive a natureza e os seres humanos), e devido ao seu caráter totalizador, ele estabelece uma correlação até então inimaginável entre economia e política. Frente aos defeitos estruturais do sistema do capital, o Estado moderno surge como a única estrutura capaz de corrigir, dentro dos limites últimos do sóciometabolismo do capital, a falta de unidade dos microcosmos (fragmentados internamente) que compõem internamente o sistema do capital. Para que os objetivos metabólicos do capital se concretizem, a sociedade deve se sujeitar ao modo de controle exigido e imposto pelo capital. E aqui, a divisão da sociedade em classes antagônicas entre si e a instituição do controle político são a expressão de tal sujeição. Ao Estado cabe garantir a unidade ausente entre produção e controle, e ele cumpri esta função protegendo legalmente o domínios das “personificações do capital” sobre a força de trabalho e garantindo a ilusória igualdade jurídico-formal. Mészáros argumenta que o Estado não pode ser descrito como uma superestrutura, mas ele é uma estrutura de comando abrangente que tem sua própria superestrutura (a superestrutura legal e política à qual Marx faz referência). O Estado não é autônomo ou independente em relação ao sistema do capital, ambos são um só e inserparáveis. O Estado é parte constitutiva da base material do sistema do capital. A superestrutura legal e política do Estado pode se alterar conforme exigem os contextos históricos e/ou ocorram mudanças na formação sócio-econômica. O terceiro item deste capítulo (“Concepção Ontonegativa da Política”) constitui-se num esforço para entendermos as categorias política e poder na teoria marxiana e, por extensão, na “Ontologia” de Lukács. Como vimos, o Estado é parte constituinte da base material da lógica expansionista do capital, assim, a política enquanto emanação dinâmica da luta pelo poder do Estado está subsumida à lógica do capital. Operamos aqui com a compreensão, presente em Marx e desenvolvida por Chasin, de que a política possui uma negatividade. A maioria dos pensadores entende a política a partir de uma perspectiva onto-positiva, como uma qualidade perene e positivamente indissociável do vir-a-ser do homem. Argumentamos aqui, que a política não pertence à essência do ser social, sua presença nele é extrínseca, contingente e circunstancial. A política só tem vez na pré-história da humanidade, atingindo seu ápice na formação sócio-metabólica do capital, na forma específica do Estado moderno. Nosso intuito é mostrar, portanto, que para Marx, pensar na superação da pré-história da humanidade significa pensar numa revolução radical, que é ir muito além da simples revolução política. Aqui se coloca a necessidade de uma metapolítica, na qual reconhecesse que a política, com sua negatividade é o único meio disponível para a superação da formação humano-societária do capital. E, essa política coloca de imediato e sempre a necessidade de seu próprio desaparecimento, o que exige ao mesmo tempo o desaparecimento dos irmãos siameses – Estado e capital. No quarto item (“Hegemonia e Guerra de Posição: O Papel das Políticas Pública”) trabalhamos com autores (Gramsci, C.N. Coutinho, Anderson, etc.) que discutem as novas conformações do Estado (=sociedade política + sociedade civil). E da análise crítica de suas posições constatamos que a guerra de posição, enquanto momento de obtenção de consenso entre as classes subalternas antecede a guerra de movimento (momento da coerção das classes e frações de classe que personificam a lógica humano-societária do capital).

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No atual momento da formação sócio-metabólica do capital é inegável que os movimentos sociais são um setor dinâmico da sociedade civil. E, também, é inegável que eles exercem um importante papel na constituição e na execução de políticas públicas. Assim, hoje, as políticas públicas são um importante espaço na luta pela hegemonia. Elas definem arcos de alianças entre classes sociais e frações de classe e com setores da burocracia estatal. Definem a utilização de recursos financeiros, materiais e de pessoal do Estado. Define os setores a serem privilegiados na adoção das medidas de política em si. Portanto, no quinto item (“Esboço de uma Proposta de Política Pública no Rumo da Constituição de uma Nova Hegemonia: Redes de Política Pública”) procuramos articular a estratégia mais geral delineada nos itens anteriores, uma noção de redes de políticas públicas enquanto forma de governança política e metodologia. A idéia é que essa articulação seja beneficiada pela possibilidade de diálogo entre a teoria de redes sociais de Granovetter e o pensamento marxista/marxiano, tal como delineamos nos capítulos anteriores. CAPÍTULO I: UMA RESENHA DA NOVA SOCIOLOGIA ECONÔMICA DE GRANOVETTER

1.1. Apresentação O presente capítulo apresenta uma resenha da nova sociologia econômica de Granovetter, enfocando em particular as noções de confiança, enraizamento (“embeddedness”), redes sociais e de construção social das instituições. Para tanto vamos retomar autores que reconhecidamente anteciparam essas noções: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Polanyi. Em seguida passamos para a contribuição de Mark Granovetter. Nosso objetivo é expor de forma clara os liames gerais destes autores para, no capítulo 4, examinar a possibilidade e coerência de incorporação das noções de redes sociais e enraizamento ao enfoque ontológico proposto pelo velho Lukács.

1.2. Introdução A nova sociologia econômica surge com força a partir da contribuição seminal de Mark Granovetter e se potencializa como reação ao imperialismo econômico que se dispõe a tratar de temas antes reservados a Sociologia, a Ciência Política e a Demografia.1 Sendo que o tal enfoque econômico é aquele propiciado pela teoria dominante no âmbito da Ciência Econômica, ou seja, a teoria das escolhas racionais. Cabe ressaltar que a nova sociologia econômica toma a nova economia institucional de Oliver Williamson como alvo de críticas, pois ainda que essa última

1 Vide Steiner, 2006:29.

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tente explicar a constituição das instituições partindo de uma visão neoclássica reformada permanece enquanto uma visão subsocializada da ação humana.2 Granovetter (2003) identifica e critica o que ele entende ser o “outro lado da moeda” nessa questão da ação humana que é a visão sobressocializada. Tal visão se faz presente tanto na sociologia de Talcott Parsons quanto na teoria econômica dominante (Kenneth Arrow e Akerlof). Na visão subsocializada o agente econômico é entendido como capaz de tomar decisões estratégicas a cada momento de tal forma a sempre maximizar suas funções utilidade, logo estamos diante de um agente atomizado, para o qual as relações sociais têm pouca ou nenhuma importância nas suas tomadas de decisão maximizadora. Em suma, estamos dentro de um específico paradigma de racionalidade. Já a visão sobressocializada parece apontar para o agente como uma marionete cultural3, aqui “os padrões comportamentais são interiorizados, pelo que as relações sociais correntes têm apenas um efeito periférico sobre os comportamentos” (Granovetter, 2003:73). No momento cabe destacar que a nova sociologia econômica (doravante NSE) procura se constituir enquanto teoria capaz de dar uma explicação mais poderosa e, portanto, científica para os fenômenos mercantis do que a disponibilizada pela teoria econômica dominante. Para isso, ela vai utilizar-se de teorias alternativas as da teoria econômica para explicar a ação e racionalidade dos indivíduos reais e a constituição e reprodução das instituições. Ao ressaltarmos a importância da teoria da ação e das instituições, percebemos as afinidades entre a NSE e a antiga sociologia econômica de Durkheim e Weber para os quais os conceitos de ação e instituição tinham um papel central em suas construções teóricas. No presente trabalho, após apresentarmos de forma muito sucinta, as posições principais dos dois autores acima citados, vamos tratar (também de forma sucinta) do aporte de Karl Polanyi ao mesmo tema. Nesses três autores percebemos a tentativa de melhor articular a ações individuais e as grandes estruturas sociais no interior das quais essas ações são tomadas. Nossa idéia é identificar possíveis pontos de contato e potencialização da NSE apartir dos referidos autores, seguindo uma trilha já esboçada por autores como Steiner (2006), Swedberg (2004 e 2005) e Raud-Mattedi (2005). 1.3. A Velha Sociologia Econômica A sociologia enquanto campo do conhecimento remonta a Condorcet e ao iluminismo francês. Condorcet parece ser, “de todos os enciclopedistas” (Löwy, 1987:19) o que mais contribuiu inicialmente para o surgimento da idéia de que era possível a identificação de leis naturais da vida social e a constituição de uma ciência da sociedade baseada no paradigma das ciências da natureza. Conhecedor dos trabalhos de Turgot (fisiocrata) e de Smith, acreditava que a “economia política pode estar submetida à “precisão do cálculo” e ao método das ciências da natureza.” (idem) E generaliza esse entendimento para a totalidade dos fenômenos sociais, que estariam submetidos a leis similares às que operam na natureza. Leis constantes, gerais, necessárias e independentes da vontade do homem. A conclusão é da necessidade da constituição de uma “ciência natural da sociedade ou de uma ‘matemática social’ baseada no cálculo das probabilidades.”(idem) Ou seja, uma ciência neutra e isolada dos interesses e paixões inerentes aos pesquisadores e aos homens em geral. Ressalte-se que a construção teórica de Condorcet 2 Para se mais preciso, cabe registrar que Granovetter (2003:84) destaca que a análise de Willianson apresenta aspectos subsocializados e sobressocializados tais como os identificados no Leviathan de Hobbes. 3 Conforme Marques, 2003:4.

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situa-se no âmbito da luta para desvencilhar o conhecimento social dos interesses das classes dominantes de sua época, livre de preconceitos, bem entendido: a igreja e suas doutrinas teológicas e dogmas que sustentavam ideologicamente todo o edifício social da sociedade feudal. Saint-Simon, que foi discípulo de Condorcet, compartilha com seu mestre a idéia de que a ciência do homem deve ser constituída como um ramo da física ou da fisiologia, ou seja, deve utilizar os métodos das ciências naturais e assim tornar-se uma ciência positiva.4 Ele pretendeu constituir uma ciência da sociedade tendo por base o modelo biológico, daí designar como fisiologia social a sua nova ciência da sociedade. Tal proposta, mais ainda do que em Condorcet, deve ser vista a partir do quadro de luta empreendida por um socialista utópico contra as doutrinas das classes dominantes do período. Pois através dela comprova-se que “certas classes sociais são parasitas do organismo social” (Löwy, 1985:38 e Löwy, 1987:21). Com August Comte temos uma modificação fascinante na visão de mundo positivista. Comte fora discípulo de Saint-Simon, mas guardava em relação a esse e a Condorcet uma diferença fundamental: ele acreditava que o pensamento deveria ser totalmente positivo, isto é, deveria abandonar o viés crítico, a negatividade, os aspectos revolucionários do pensamento. Para ele Saint-Simon não conseguira descobrir as leis sociológicas por que seus preconceitos revolucionários o impediam. Reparemos como a noção de preconceito é agora utilizada de forma diferente do que já fora por Condorcet e Saint-Simon. Com estes o preconceito designa o preconceito das classes dominantes, clerical, absolutista, etc, com Comte passa a designar os preconceitos revolucionários. Daí a afirmação de Comte de que “seu método positivo deve consagrar teórica e praticamente à defesa da ordem real”. (Löwy, 1985:39)5. Apesar disso, Comte vai utilizar o mesmo princípio metodológico de Condorcet e Saint-Simon que é o de uma ciência natural da sociedade. E assim, defender a existência de uma homogeneidade epistemológica entre as ciências sociais e naturais, de forma a mostrar uma identidade entre sociedade e natureza, e uma dominação da vida social por leis naturais invariáveis. Em resumo: “Enquanto ciência natural da sociedade, a física social – mais tarde qualificada pelo neologismo sociologia – não pode ser senão tão neutra e livre de julgamentos de valor quanto a astronomia e a química (...). De fato, o discurso positivista pode (e deve) fazer economia de todo posicionamento ético ou político sobre o estado de coisas existente: “sem admirá-lo”, ele se limita a constatar que este estado é natural, necessário, inevitável, e é produto de ‘leis invariáveis’” (Löwy, 1987:24) O termo sociologia foi criado por Comte, mas é Durkheim quem a transforma em disciplina científica. E existe uma continuidade clara entre as metodologias utilizadas pelos dois. Ambos consideram os fatos sociais como coisas, Comte defendia que os fatos sociais devem ser considerados como fatos naturais submetidos a leis naturais, Durkheim concorda com tal formulação e defende que as leis sociais são semelhantes às leis naturais e os métodos que devem ser utilizados para a descoberta das leis sociais são os mesmos utilizados para as leis naturais. Ressalte-se que tal perspectiva está presente na economia política de então e segundo Durkheim: “Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis sociais são tão necessárias como as leis físicas. Segundo eles, é tão impossível a concorrência não nivelar pouco a pouco os preços... como os corpos não caírem de forma vertical... Estenda este princípio a todos os fatos sociais e a

4 Segundo Löwy (1985:38 e 1987:20) ele é o primeiro a usar este termo positivo. 5 Ver essa discussão também em Löwy, 1978:9-11 e 1987:22-25.

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sociologia estará fundada.” (Durkheim, La Science et l’Action, PUF, Paris, 1970, p. 80-81; Apud, Löwy, 1987:26) Todo esse constructo revela as bases de um naturalismo positivista associado à origem da própria sociologia. E este conceito que fora utilizado como instrumento revolucionário pelos ideólogos de 1789, agora é convertido numa “justificação científica da ordem social estabelecida”. (Löwy, 1987:27) Pois, segundo Durkheim a vontade humana não pode interromper, modificar uma lei natural. Por exemplo, seria utópico querer alterar a desigualdade social. Na perspectiva de associar a construção do conhecimento com o ponto de vista de classe social do pesquisador (algo refutado pelo positivismo que Durkheim alimenta), a burguesia (nas suas várias frações constitutivas) já perdera o seu papel revolucionário que tivera nas jornadas de 1789. Agora ela esforça-se para manter o status quo vigente.6 Durkheim acredita que haja uma homogeneidade no âmbito da teoria do conhecimento entre o ser natural e o ser social, logo conclui sobre a necessidade do sociólogo se colocar diante do seu objeto de estudo, da mesma forma que o fazem o físico, o químico, etc. De forma neutra, abrindo mão de seus preconceitos e prenoções. Assinale-se que tal procedimento vai se tornar uma exigência fundamental para todas as correntes positivistas.7 Assim, desconhece-se as características constitutivas da ciência social em relação a ciência natural, cujas causas são:

1. O caráter histórico dos fenômenos sociais, transitórios, perecíveis, suscetíveis de transformação pela ação dos homens. 2. A identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento. 3. O fato de que os problemas sociais suscitam a entrada em jogos de concepções antagônicas das diferentes classes sociais. 4. As implicações político-ideológicas da teoria social: o conhecimento da verdade pode ter conseqüências diretas sobre a luta de classes. (Löwy, 1978:15)

O mais importante para o presente trabalho é demonstrar que Durkheim constrói uma proposta de análise da economia que se põe como alternativa à proposta da economia neoclássica de ver as relações econômicas (de mercado) como desenraizadas das relações sociais em geral, para ele o mercado deve ser visto como construção social. Neste ponto é importante frisar que a abordagem dele se situa na esfera do mercado, o que Marx situa como a aparência do ser social com todas as conseqüências de perda de poder explicativo que se incorre ao ficar preso à esfera da aparência. O que, aliás, é típico também da economia neoclássica que Marx dizia ser a economia vulgar em contraposição à economia científica de Smith, Ricardo, etc. Retomando os comentários de Cécile Raud-Mattedi (2005) temos que Durkheim não define o que é o mercado, considerando-o como uma instituição, um fato social. E no cerne do mercado encontra-se a noção de contrato, e a sociedade moderna por ser uma sociedade de mercado é também uma sociedade contratual. Em Durkheim a troca mercantil que ocorre no quadro da divisão social do trabalho tem um papel socializador, pois a

6 Esta perspectiva tão bem delineada por Löwy nos textos citados, poderia ser proveitosa para Giddens (1998:119) desenvolver seu argumento de que “é errôneo considerá-lo [Durkheim – PH] primordialmente conservador no seu ponto de vista intelectual”. Pois o que Giddens aponta é para a necessidade sentida por Durkheim de conservar os avanços já obtidos pela burguesia industrial e continuar as transformações socioeconômicas necessárias para consolidar a nova ordem industrial. Neste sentido ele é duplamente conservador e revolucionário, mas isso não elimina seu compromisso intelectual-teórico com a sociedade fundada sobre a lógica do capital. 7 Conforme Löwy, 1987:29.

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(...) coesão social no âmbito da solidariedade orgânica nasce das interdependências decorrentes da especialização e da divisão social do trabalho. A sociedade moderna prescinde da forte consciência coletiva, que assegura a coesão social nas sociedades tradicionais, onde não há divisão do trabalho [sic – PH]. Portanto, a relação mercantil, que obriga pessoas a entrar no mercado para trocar bens e serviços indispensáveis à sua sobrevivência, encerra uma dimensão socializadora. No entanto, isto não ocorre espontaneamente, como pretendem Spencer e os economistas liberais. Portanto, a ordem social não decorre da busca egoísta de seu interesse por parte de cada indivíduo isolado. ‘Para que cooperem harmoniosamente [...] é necessário [...] que as condições dessa cooperação sejam estabelecidas para toda a duração de suas relações’, e isto será feito por regras formais (jurídicas) e/ou informais (tradição, normas) (Durkheim, 1995, p.200) (Raud-Mattedi, 2005:129)

Aqui já se percebe a importância que Durkheim atribui ao direito contratual e as regras informais na regulação do mercado. Mas a partir dessa perspectiva ele aponta que o mercado como pensado pelos economistas neoclássicos resultaria num tipo de solidariedade precária, pois fundada numa solidariedade inconstante, superficial e conflituosa. A verdadeira relação social, na sociedade baseada divisão social do trabalho só se constitui quando o agente econômico assume e se insere num conjunto de regras sociais (de direito, norma ou tradição) elaboradas coletivamente, ou seja, quando ele se insere numa relação contratual. Assim conclui Raud-Mattedi: “(...) a relação mercantil gera um laço social mesmo sem passar por relações pessoais íntimas, na medida em que esse laço não se esgota no único traço da troca, mas se enraíza e participa do processo de reprodução das instituições sociais” (2005:129). Raud-Mattedi retomando Chantelat sinaliza que tal perspectiva aberta por Durkheim pode ajudar o limite aparentemente presente na nova sociologia econômica de assumir uma visão intimista do laço social constitutivo do mercado. Com Durkheim ficaria claro que na sociedade moderna não é fundamental a consciência orgânica dos seus membros como ocorria nas sociedades tradicionais. Agora a coesão social é devida à interdependência originada pela divisão social do trabalho. Ainda sobre o enfoque de Durkheim é preciso lembrar o papel das instituições (no que ele antecipa em alguns aspectos a problemática da nova economia institucional) e das representações sociais na explicação do comportamento econômico. Daí diz Steiner:

Isto leva os durkheimianos a interessar-se pela imbricação estreita existente entre os comportamentos egoístas e os comportamentos baseados em normas sociais (por exemplo: a justiça nos contratos ou a fixação dos salários) ou em estruturas cognitivas (por exemplo, a representação do comerciante ou dos proprietários de imóveis na classe operária), já que ambas ditam elementos que são indispensáveis na análise das ocorrências sociais observadas (a multiplicidade crescente das trocas, o rendimentos do trabalho, a estrutura dos orçamentos operários e sua evolução). (2006:11)

Aqui entramos no âmbito das teorias da ação que têm em Weber uma tipologia muito conhecida e utilizada ainda hoje. Mas antes de tratarmos desta tipologia e das contribuições da sua sociologia econômica, vejamos como Weber tenta se dissociar, sem conseguir de fato, da sociologia positivista que teve em Durkheim um momento importante. Weber não é um autor positivista stricto sensu, teve divergências com o pensamento positivista, mas ele tem um ponto de convergência com o positivismo ao defender que a ciência social deve ser livre dos juízos de valor. Para entender um pouco melhor tal questão é preciso

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lembrar que Weber foi aluno de Rickert8 e este último propôs uma crítica forte às idéias positivistas ao dissociar os métodos das ciências naturais do método das ciências sociais-históricas. Rickert entendia que o estudo nas ciências sociais-históricas deveria necessariamente partir de certos valores prévios. Mas enquanto ele acreditava em valores universais, Weber negava essa possibilidade e defendia que cada nação, cada cultura, cada religião tem valores particulares e diferentes. De todo modo, para ambos (e ao contrário do que propunha Durkheim) os valores, as prenoções, não devem ser eliminados. Na verdade eles são indispensáveis no âmbito das ciências sociais para a delimitação do objeto de estudo, para a orientação da pesquisa, para a definição do que é essencial, dos instrumentais a serem utilizados, etc. Os valores vão permitir a formulação das perguntas a serem feitas sobre o objeto de estudo. Assim, quando trata da formulação do objeto da pesquisa, Weber constrói toda uma crítica aos postulados positivistas. Entretanto, quando parte para resposta, para as conclusões da pesquisa ele volta ao positivismo. Pois defende que o método de pesquisa deve seguir normas universalmente aceitas, objetivas, neutras, independentes dos valores, válidas para quaisquer pesquisadores independentemente dos seus valores, nacionalidades, religiões, etc.9 Assim há uma tensão no pensamento de Weber entre uma tendência historicista presente ao aceitar os valores como fundamentais para a delimitação do objeto de estudo e uma tendência positivista de entender que o método da pesquisa deve prescindir dos valores. Cabe registrar que enquanto Weber defende uma separação lógica entre valores e fatos10, existe uma ligação entre eles que vai além da lógica, uma ligação que é sociológica e conforme Löwy se manifesta em dois sentidos:

1. O conhecimento (ou a ignorância) dos fatos, da verdade objetiva, pode ter uma influência poderosa sobre as opções práticas, ética, sociais ou políticas de certos grupos ou camadas sociais. Por exemplo: a crença em que o aumento do salário seja a causa principal da inflação pode ter um efeito paralisante sobre a atividade reivindicatória dos operários, sua atitude face às greves, etc. 2. Os julgamentos de valor, os pontos de vista de classe, as ideologias, utopias e visões de mundo dos grupos sociais influenciam de forma decisiva – direta ou indireta, consciente ou não – o conjunto da atividade científica e cognitiva no domínio das ciências sociais. Isto é, tanto a problemática como a pesquisa empírica dos fatos e de sua causalidade, assim como sua interpretação social e histórica de conjunto (1987:40).

A escolha por parte do pesquisador do que é a problemática a ser estudada e nela do que é ou não essencial define um campo de visibilidade e de não-visibilidade, e impõe os limites para as possíveis respostas a que se chegará. Weber era por demais inteligente para não reconhecer este fato11, mas o remédio assinalado para este problema que ameaçava todos os seus pressupostos teóricos era o do autocontrole da parte do pesquisador para impedir a contaminação de sua pesquisa por seus valores, preconceitos e prenoções.

8 Conforme Löwy, 1985:45-55 e Löwy, 1987:33-47. 9 Löwy (1985:50-51) aponta que Weber acredita que o processo de construção do conhecimento pode estar livre do julgamento de valor por relacionar os valores às culturas nacional e religiosa, não relacionando às classes sociais. 10 Para ele não se pode deduzir os fatos a partir dos valores, pois os valores podem inspirar a questão que vai ser estudada mas não pode ser o ponto de partida de uma análise científica. Tampouco se pode deduzir os valores dos fatos, ou seja, da análise científica não podemos retirar juízos morais, padrões éticos, etc. 11 Conforme Löwy, 1987:42, encontramos em Théorie de la science, p. 126.

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Tratando agora da sociologia econômica de Weber cabe mencionar que ela busca explicar fenômenos econômicos (instituições econômicas como mercado e empresa), fenômenos não econômicos que influenciam os fenômenos econômicos (fenômenos economicamente relevante) e fenômenos não econômicos influenciados pelos fenômenos econômicos (fenômenos economicamente condicionados). Segundo Swedberg (2005:288) um exemplo dos primeiros tipos de fenômenos é obtido em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo na tese de que o protestantismo ajudou a dar forma à mentalidade capitalista moderna. O fenômeno economicamente condicionado “seria a localização de agentes em diferentes classes e estratos, a qual influencia as crenças religiosas”. (idem) Weber se propõe a introduzir a estrutura social na análise econômica partindo da ação individual. Esta ação é motivada por interesses e se orienta pela utilidade e para o comportamento dos outros agentes. Aqui o hábito e as emoções influenciam a ação social. Na sua tipologia da ação social exposta no capítulo 1 de Economia e Sociedade, Weber fala de quatro tipos principais12: ação social tradicional que é movida pelo hábito ou tradição; ação social afetiva, movida pelas emoções; ação social racional com relações a valores movida por interesses ideais e ação racional com relação a fins (instrumental racional) que é movida por interesses materiais. No capítulo 2 do mesmo livro Weber fala de ação econômica que tem um escopo mais limitado a um tipo de atividade quando comparado com o conceito de ação social. No primeiro parágrafo deste capítulo ele diz: “Uma ação será denominada ‘economicamente orientada’ na medida em que, segundo seu sentido visado, esteja referida a cuidados de satisfazer o desejo de obter certas utilidades” (Weber, 1999:37) Repare que o conceito de utilidade em Weber, conforme Swedberg (2005:53), diz respeito tanto a mercadorias (objetos) quanto a serviços. E Swedberg destaca três dimensões no conceito de utilidade de Weber: 1) o importante não é a qualidade inerente ao objeto, mas o uso que se faz dele; 2) o conceito de utilidade como base da ação econômica, inclui a geração de lucro; 3) enfatiza a oportunidade econômica e as incertezas associadas na ação econômica. Nesse mesmo capítulo 2, Weber discute diferentes tipos de ação social econômica. A primeira distinção é a que separa a economia doméstica da geração de lucros. Em seguida ele apresenta outras tipologias que vão instrumentalizar a distinção entre economia doméstica e geração de lucro: 1º.) A ação econômica pode ser racional ou tradicional, e esta se aplica tanto a economia doméstica quanto a geração de lucros. Sendo que o tradicional está associado ao comportamento da unidade familiar tradicional, o oikos (unidade econômica comum na Grécia antiga, voltada para a subsistência e para o atendimento das necessidades do senhor do oikos e dos que o cercavam), a manufatura tradicional e às formas obsoletas de ganhar dinheiro. Já a racional associa-se à família moderna, a atividade bancária moderna e a empresa moderna. 2º.) Distingue entre ‘ação econômica’ e ação economicamente orientada’. Ação economicamente orientada engloba “ (...) as ações que não são primariamente orientadas pelas ações econômicas, mas que ainda assim, levam em conta considerações econômicas; e em segundo lugar, as ações que são diretamente orientadas por objetivos econômicos, mas que usam a violência para alcançá-los” (Swedberg, 2005:57). Weber também introduz alguns conceitos para tratar das lutas na economia. “Um deles é o ‘poder de controlar e dispor’, que é semelhante ao poder econômico” (idem, p. 58). Assim, Swedberg alinhava três elementos, que segundo ele, caracterizam o conceito de ação econômica: “(1) há uma tentativa pacífica de obter o poder de

12 Vide Swedberg, 2005:47 Steiner, 2006:23.

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controlar e dispor; 2) essa ação é dirigida para algo que oferece uma oportunidade de utilidade (seja para satisfazer as próprias necessidades, seja para obter lucros); e 3) a ação é orientada pelo comportamento dos outros.” (ibid.) Nos capítulos 1, 2 e 3 da Primeira Parte do Volume 1 de “Economia e Sociedade”, Weber apresenta alguns conceitos importantes para a discussão sobre a estrutura econômica, conforme nos lembra Swedberg (2005). Vamos apontar alguns desses conceitos aqui, acompanhando os destaques de Swedberg. De início destacamos o conceito de “regularidades determinadas pelo interesse”, pois Weber identifica que regularidades de ação social determinadas por interesses individuais “(...) tendem a se transformar em formas regulares de comportamento coletivo que são muito comuns na economia.” (2005:58) O comportamento dos preços é um bom exemplo deste caso, pois os agentes individuais não são coagidos a fazer as mesmas escolhas, mas ao seguirem seus interesses particulares suas ações tornam-se similares. Os conceitos de relações “comunais” e “associativas” nos põe em contato com o conceito de enraizamento de Mark Granovetter13. Relações “comunais” “(...) implicam um sentimento de fazer parte de um mesmo conjunto, ao passo que as relações associativas dizem respeito a um acordo racional, que caracteristicamente envolve interesses” (p. 59). Logo, ações econômicas são associativas, sendo o mercado um dos casos mais puros. Pois compradores e vendedores entram em contato por parcos instantes e podem não mais se reencontrar. Mas Weber destaca que mesmo nas relações “associativas” existe um sentimento de pertencimento a um grupo. O poder é algo presente e importante na construção teórica de Weber, principalmente se considerarmos as relações interconectadas de luta, concorrência e seleção e o de dominação. Weber no oitavo parágrafo do capítulo 1 de “Estado e Sociedade” diz que

Uma relação social denomina-se luta quando as ações se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros. Denominamos ‘pacíficos’ aqueles meios de luta que não consistem em violência física efetiva. A luta pacífica é ‘concorrência’ quando se trata da pretensão formalmente pacífica de obter para si o poder de disposição sobre oportunidades desejadas também por outras pessoas. Há ‘concorrência regulada’, na medida em que esta, em seus fins e meios, se orienta por uma ordem. À luta (latente) pela existência, isto é, pelas possibilidades de viver ou de sobreviver, que se dá entre indivíduos ou tipos humanos sem que haja intenções dirigidas contra outros, denominamos ‘seleção’: ‘seleção social’ quando se trata das possibilidades que pessoas concretas têm na vida; ‘seleção biológica’ quando se trata das probabilidades de sobrevivência do patrimônio genético (Weber, 1999:23-24).

Sobre poder e dominação ele diz, no décimo sexto parágrafo do capítulo 1 da mesma obra que:

Poder significa toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade. Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis; disciplina é a probabilidade de encontrar obediência pronta, automática e esquemática a uma ordem, entre uma pluralidade indicável de pessoas, em virtude de atividades treinadas (ibid., p. 33).

13 Voltaremos a isso mais adiante neste capítulo.

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O capítulo 3 de “Economia e sociedade” intitula-se “Os tipos de dominação”, nele Weber defende que todo sistema político funda-se numa forma de dominação. A economia por fazer parte do sistema político acaba tendo o seu funcionamento submetido a este tipo de dominação política. No capitalismo moderno o Estado coloca os limites para o funcionamento da economia, nas sociedades antigas a organização política dominante tinha uma relação de dominação direta sobre a economia. Segundo Swedberg (2005:60) no âmbito da economia temos relações de dominação, daí ele chamar “(...) esse tipo de dominação caracterizado, em primeiro lugar e principalmente, pelas relações no seio das organizações econômicas, de dominação econômica (em contraposição à dominação política). Uma das condições do capitalismo de racionalidade máxima, por, exemplo, é exatamente a de que as organizações econômicas sejam estruturadas como ‘sistemas de dominação’”. Mas para Weber a dominação não está presente no mercado, ainda que existam agentes em posição vantajosa por terem poder de controlar e dispor das mercadorias. Os conceitos de “relações fechadas” e “relações abertas” são muito importantes para a sociologia econômica de Weber, daí ser necessário retomá-los aqui. Ele as define no parágrafo 10 do capítulo 1 de “Economia e Sociedade”, vejamos:

Uma relação social (...) será designada aberta para fora, quando e na medida em que a participação naquela ação recíproca, que a constitui segundo o conteúdo de seu sentido, não é negada, por sua ordem vigente, a ninguém que efetivamente esteja em condições e disposto a tomar parte nela. Ao contrário, é chamada fechada para fora quando e na medida em que o conteúdo de seu sentido ou sua ordem vigente exclui, limita ou liga a participação a determinadas condições (1999:27).

Essas relações abertas e fechadas dominam a economia e estão relacionadas às tentativas feitas pelos agentes econômicos de se apropriarem e obterem, se possível, o monopólio das oportunidades econômicas. Quando a expectativa por parte dos agentes econômicos estabelecidos é de que a entrada de novos agentes melhore a posição individual dele, ele se movimentará para manter as relações abertas; caso contrário vai se movimentar por relações fechadas. Como exemplos, podemos lembrar dos cartéis, monopólios, mercado interno de trabalho, etc. O conceito de racionalidade e de ação econômica racional também tem um papel importante na sociologia econômica de Weber. Segundo Swedberg “(...) [Para Weber – PH] uma das tarefas da sociologia econômica é estudar a evolução do comportamento econômico racional para a ‘racionalidade econômica’ (...) como parte de um movimento histórico mais amplo.” (2005:62) Mas em dois aspectos a racionalidade econômica de Weber se separa da racionalidade econômica proposta pela teoria econômica neoclássica. Weber entende o comportamento racional como algo que evolui historicamente, como uma variável e não um pressuposto, um axioma (como faz a teoria neoclássica). E Weber distingue entre “racionalidade formal” e “racionalidade substantiva”. A formal situa-se em torno do cálculo e a substantiva opera com valores absolutos. A teoria neoclássica até tenta tirar conclusões éticas partindo do conceito de ótimo de Pareto, mas Weber trata da relação entre economia e ética por outro caminho e mostra que a ação orientada pelo valor com racionalidade substantiva pode ser tão racional quanto a lógica econômica formal.

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Swedberg (2005) assinala que Weber não usa o termo “instituição” ou “instituição econômica” 14, entretanto, ao iniciar sua análise a partir dos vários tipos de ação social e econômica que depois se complexificam está tratando de “instituições”. Portanto, a ação social e econômica em situações mais complexas vai constituir-se em “instituições”. Vamos destacar algumas dessas “instituições” abordadas por Weber, e que têm papel importante em sua sociologia econômica, como “propriedade”, organização econômica, divisão e combinação do trabalho e mercado. Weber fala de propriedade no parágrafo 10 do capítulo 1 de “Economia e Sociedade”, no contexto de sua discussão sobre apropriação e relação social fechada. Ele diz que “(...) propriedade (do indivíduo, da comunidade ou da sociedade) [são – PH] as possibilidades hereditariamente apropriadas por este ou aquelas; caso sejam alienáveis, designamo-las propriedade livre.” (1999:27) Assinale-se que a propriedade, para Weber, até pode ter uma dimensão legal não sendo isso uma condição necessária para que ela exista. A “instituição” organização econômica também é discutida, por Weber, no contexto de relações fechadas. A edição brasileira de “Economia e Sociedade” (1999) parece falar de “associação” e “comunidade” ao invés de organização. O parágrafo 12 do capítulo 1 trata de associação (organização) em geral, e diz: “Chamamos de ‘associação’ uma relação social fechada para fora ou cujo regulamento limita a participação quando a observação de sua ordem está garantida pelo comportamento de determinadas pessoas, destinado particularmente a esse propósito: de um dirigente e, eventualmente, um quadro administrativo que dado o caso, têm também, em condições normais, o poder de representação.” (p. 30) E no capítulo 2 da Segunda Parte do Volume 1 do mesmo livro ele diz:

A relação social pode orientar-se, de acordo com o sentido de algum modo subjetivamente concebido pelos participantes, por resultados puramente econômicos: satisfação de necessidades ou lucro. Constitui, no caso, o fundamento de uma comunidade econômica. Ou pode servir-se da gestão econômica própria como meio de obter outros resultados pelos quais se orienta: comunidades de gestão econômica. Ou, na orientação de uma ação social, combinam-se resultados econômicos e extra-econômicos. Ou, por fim, pode não se verificar nenhum dos casos. (p. 230)

Swedberg (2005) sintetiza esse caminho proposto por Weber e que sai do indivíduo, de sua ação social individual, passa pelas relações entre dois ou mais indivíduos que interagem e mostra como as ações econômicas dos indivíduos se transformam em: (a) organizações econômicas (por exemplo, a firma) que são relações sociais fechadas e impostas por equipes administrativas, (b) organizações economicamente ativas (por exemplo, a igreja), (c) organizações regulamentadoras (sindicatos) e (d) organizações que impõem uma ordem formal (o Estado liberal).15 A firma ou empresa capitalista é vista por Weber como a única organização econômica verdadeiramente “revolucionária” pois ao buscar a geração de lucro através da exploração de novas oportunidades, ela se apresenta ligada a um tipo específico de ação racional. E isto nega o

14 Na edição brasileira o parágrafo 15 do primeiro capítulo intitula-se “Empresa e associação de empresa, união e instituição”. E diz que “(...) instituição [é – PH] uma associação cuja ordem estatuída se impõe, com (relativa) eficácia, a toda ação com determinadas características que tenha lugar dentro de determinado âmbito de vigência”. (1999:32) Seria o caso de se examinar o texto no original em alemão para dirimir essa questão. 15 Vide Swedberg, 2005:68, figura 2.2.

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tradicionalismo econômico e suas formas de explorar as oportunidades econômicas na esfera do mercado. Weber observa que as firmas com direitos adquiridos também podem tentar impedir a obtenção racional de lucros o que ameaçaria a dinâmica futura do capitalismo. 16 Swedberg lembra que “Weber faz uma distinção entre a firma como organização racional de geração de lucro (“firma”) e como entidade técnica (“estabelecimento”). Também faz uma descrição sumária da organização interna da firma capitalista típica.” (2005:69) Para tratar da instituição econômica de mercado, vamos utilizar os comentários de Swedberg (2005). Ele diz que para Weber o mercado tem uma estrutura “amorfa”, mas tem uma estrutura social e pode ser encontrado num lugar específico. “Uma organização pode ou não ser responsável pelo mercado. Apesar disso, sua essência social consiste em atos de troca repetidos (...). É dirigida ao parceiro de troca (com quem se troca) e aos concorrentes (que são suplantados por uma oferta mais vantajosa). A primeira interação pressupõe um contato direto (“luta pelo preço”), ao passo que a segunda forma de relação é indireta (“luta entre concorrentes”) (p. 70) Swedberg defende que a idéia básica de mercado de Weber pode ser dinamizada com a introdução dos conceitos de relações abertas e fechada. Pois alguns agentes econômicos podem querer fechar o mercado para novos entrantes e outros podem querer mantê-lo aberto. Registre-se que em “Economia e Sociedade”, Weber trata das formas pelas quais ocorre a regulação da liberdade do mercado, o que lembra a questão das relações econômicas fechadas. Essas formas seriam: pela lei, pela tradição, pela convenção ou regulação voluntária. Segundo Weber, os mercados são antípodas dos grupos de status. Isto ocorre por que os mercados não se ocupam das qualidades pessoais ou da honra dos agentes, tudo o que importa é o que está sendo trocado. Logo o mercado dificilmente é influenciado por questões éticas e morais. No capítulo 2 da Parte 1 do Volume 1 de “Economia e Sociedade”, Weber diz que não vai apresentar uma teoria de preços e ao longo deste livro ele faz observações favoráveis à teoria da utilidade marginal e a sua forma de explicar os preços. Entretanto ele, repetidamente fala que as lutas econômicas entre os agentes e outros elementos semelhantes de ação social determinam os preços. Pois para explicar os preços reais é preciso explicar o que acontece na prática e não só na teoria da utilidade marginal. Acreditamos que as observações e comentários acima realizados sobre Weber nos ajudem a constituir um esboço de sua sociologia econômica que posteriormente vamos confrontar com a nova sociologia econômica de Granovetter. E para este mesmo fim vamos tratar da contribuição de enraizamento de Polanyi. Vamos tratar somente do livro “A Grande Transformação” de Karl Polanyi. O autor defende que as economias pré-capitalistas estão enraizadas na tradição e na religião ao passo que a economia capitalista (ou nas suas palavras a economia de “mercado auto-regulado”) não está. Mas estas conclusões quanto ao desenraizamento da sociedade dominada pelos mercados auto-regulados só surge após o autor discutir as causas e conseqüências do estabelecimento do “moinho satânico” e do “duplo movimento” inerentes à dinâmica expansiva do mercado auto-regulado. Para Polanyi , a Revolução Industrial inglesa liberou um instrumento de produção com capacidades até então desconhecidas para produzir mercadorias ao mesmo tempo que permitia a redução dos seus custos de fabricação. Tal instrumento eram as máquinas complexas e os

16 Esta colocação lembra a discussão estabelecida por Schumpeter em “Capitalismo, Socialismo e Democracia”.

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sistemas fabris que as utilizavam nos seus processos produtivos. Quando do seu surgimento, ganha força na sociedade inglesa a idéia do mercado auto-regulável. Ele ressalta que essa Revolução ocorre numa sociedade de perfil agrário e comercial na qual agricultores e comerciantes compram e vendem os produtos da terra. Mas com as máquinas complexas a produção dispendiosa de agora só pode se adaptar à sociedade existente, transformando esta sociedade. O comerciante é o agente que irá tomar a frente deste mecanismo. Ele venderá as mercadorias como sempre fez, mas não vai mais comprá-las prontas, vai adquirir trabalho e matéria-prima e fabricar o produto a ser vendido. São óbvias as conseqüências disto para a sociedade. Como as máquinas complexas envolvem um grande investimento inicial na sua construção e aquisição, é preciso que se produzam grandes quantidades de mercadorias com elas para diluir este custo fixo inicial. Logo, tanto os fluxos de venda das mercadorias fabricadas quanto o fluxo de compra de matéria-prima a ser processada não pode ser interrompido. Logo, para o comerciante que arrisca seu dinheiro nessa nova empreitada é fundamental que os fatores trabalho e matéria-prima, estejam disponíveis, para quem possa pagar por eles, nas quantidades necessárias para a continuidade do fluxo produtivo. Naturalmente, tais novidades levam a uma mudança radical no funcionamento da outrora sociedade agrícola. Agora a comunidade como um todo vai depender do fluxo contínuo de produção para obter renda, emprego e provisões. Muda, também, a motivação da ação do membro da sociedade. Antes o que o movia era a subsistência, agora a busca do lucro. Agora as transações são transações monetárias, o que exige a presença do dinheiro em cada espaço da vida industrial. “Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa e, qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. (...) [Este sistema de mercado - PH] uma vez estabelecido, tem que se lhe permitir funcionar sem interferência externa. Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado. Os preços devem ter a liberdade de se auto-regularem.” (Polanyi, 2000:60) Polanyi conclui que o mercador-produtor vende apenas “artefatos”, e se não houver demanda para eles “o tecido da sociedade não precisa ser afetado” (idem, p. 61). Entretanto, para que haja produção, ele compra matérias-primas (natureza) e trabalho (homem) – segundo Polanyi (ibid.) “a produção de máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias” – caso ele não encontre demanda para seus artefatos, suas compras de matérias-primas e trabalho diminuirão. A conclusão inevitável é de que: “Obviamente, a desarticulação causada por tais engenhos deve desorganizar as relações humanas e ameaçar de aniquilamento o seu habitat” (ibid.) Assim Polanyi demarca sua discordância com as “robbisonadas” típicas da economia vulgar lembrando que a sociedade de mercado auto-regulado é uma criação recente na história humana. E recorrendo a antropologia aponta que nas sociedades primitivas não existia a modificação do homem como ser social, ou dizendo o mesmo de outro modo, nela a economia do homem está submetida, enraizada, em suas relações sociais. O sistema econômico é dirigido por motivações não-econômicas, não se trata de buscar o máximo lucro, mas de cumprir exigências sociais, garantir sua situação social e seu patrimônio social. A pergunta chave então é como, nas sociedades primitivas, se garantia a ordem na produção e distribuição de valores de uso17. A resposta dada por Polanyi, ainda com base na antropologia, é que “dois princípios de

17 Polanyi não parece se preocupar com a correção no uso das categorias econômicas. Assim, ele chama qualquer coisa de mercadoria mesmo não tendo sido ela produzida para o mercado, ou seja, mesmo não possuindo valor de

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comportamento não associados basicamente à economia [estão agindo – PH]: reciprocidade e redistribuição.” (ibid., p. 67). Além do princípio da domesticidade. O princípio de comportamento de reciprocidade “atua principalmente em relação à organização sexual da sociedade, isto é, família e parentesco” (ibid., p. 67). A subsistência familiar e a produção são salvaguardadas pela reciprocidade. A reciprocidade, que nos povos ditos “não-civilizados” garante (junto com a redistribuição) o funcionamento do sistema produtivo - mesmo na ausência de registros escritos e um aparato administrativo específico - é “facilitada pelo padrão institucional da simetria” (ibid., p. 68). A simetria é encontrada nas subdivisões da tribo, na localização dos povoados e nas relações intertribais, o que garante uma ampla reciprocidade que não poderia ser verificada caso fosse fundada em atos isolados de troca. O princípio de comportamento de redistribuição “(...) é importante principalmente em relação a todos aqueles que têm uma chefia em comum e têm, assim, um caráter territorial” (ibid., p. 67) Aqui uma parte importante da produção da aldeia é entregue ao chefe geral que a armazena e quando das atividades comunais (festas, danças, etc) os redistribui. Mas esse sistema econômico tem motivações não-econômicas. O padrão institucional da centralidade vai cumprir para o princípio da redistribuição a mesma função que o padrão institucional da simetria cumpri para a reciprocidade. Para Polanyi o princípio da centralidade está de algum modo presente em todos os grupos humanos e orienta-os “para a coleta, armazenagem e redistribuição de bens e serviços” (ibid., p. 68-69). Daí ele conclui dizendo que simetria e centralidade respondem às necessidades da reciprocidade e redistribuição de tal forma que ambos (padrões institucionais e princípios de comportamento) se ajustam entre si. E nesse contexto, de normalidade, fica garantida a divisão social do trabalho e afastada a intervenção de qualquer motivação econômica individual como a busca de lucro. Logo não há espaço para regateios, barganhas, etc, a virtude é encarnada pela doação, pela dádiva. “Na verdade, o sistema econômico é mera função da organização social” (ibid., p. 69). Polanyi adverte para o fato de que esses princípios e padrões não estão restritos a produtores primitivos, comunidades pequenas ou algo similar. Para ele uma economia sem lucro e sem mercado não precisa ser simples, e dá como exemplos de comunidades complexas que utilizavam um ou mais desses princípios o circuito Kula da Melanésia Ocidental, o reinado de Hamurabi na Babilônia, o novo Império do Egito, a antiga China, o império dos Incas, etc. O terceiro princípio é o da domesticidade que “consiste na produção para uso próprio”. (ibid., p. 73) Ele não é mais antigo que os princípios da reciprocidade e da redistribuição, mas só ganha destaque quando a agricultura atinge um patamar mais avançado para garantir a satisfação das necessidades domésticas. O padrão institucional da domesticidade é a autarquia, o grupo fechado, para o qual se produzia e armazenava visando à satisfação de suas necessidades. Polanyi reafirma que até o fim do feudalismo na Europa Ocidental, todos os sistemas econômicos foram organizados pelos princípios da reciprocidade, redistribuição ou domesticidade ou uma combinação deles. E nessa

(...) estrutura, a produção ordenada e distribuição dos bens era assegurada através de uma grande variedade de motivações individuais, disciplinadas por princípios gerais de comportamento. E entre essas motivações, o lucro não ocupava lugar proeminente. Os costumes e a lei, a magia e a religião

uso, valor de troca e valor em abstrato, vide o último parágrafo da página 69. Voltaremos a essas observações críticas a ele, a Weber e a Granovetter, após termos exposto as linhas gerais da ontologia marxiana do ser social.

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cooperavam para induzir o indivíduo a cumprir as regras de comportamento, as quais, eventualmente, garantiam o seu funcionamento no sistema econômico. (ibid., p. 75)

A partir do século XIX, com o advento da revolução industrial e das máquinas complexas, o mercado adquire um lugar central na vida econômica. O princípio de comportamento da permuta, da troca, depende do padrão de mercado para sua efetivação. O princípio da permuta pode ocorrer sem ocupar um papel central numa sociedade, desde que os outros princípios sejam dominantes. Mas enquanto os padrões de simetria, centralidade e autarquia não criam instituições específicas para uma única função, o padrão de mercado cria – o próprio mercado. Daí que o controle do sistema econômico pelo mercado implica em

(...) dirigir a sociedade como se fosse um acessório do mercado. Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico. A importância vital do fator econômico para a existência da sociedade antecede qualquer outro resultado. Desta vez, o sistema econômico é organizado em instituições separadas, baseado em motivos específicos e concedendo status especial. A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas próprias leis. Este é o significado da afirmação familiar de que uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado. (ibid., p. 77)

Agora a questão é explicar a transformação de mercados isolados em uma economia de mercado, mercados reguláveis num mercado auto-regulável. O fato é que tal transformação não foi resultado natural da difusão dos mercados – pois para Polanyi eles têm uma natureza não expansiva. Mas o resultado de intervenções estatais que tinham por objetivo fazer frente às tendências dissolutivas do padrão social prevalecente pela atuação do mercado e pelas tendências iniciadas com o predomínio da máquina. Construindo a gênese dos mercados Polanyi assinala que eles

não são instituições que funcionam principalmente dentro de uma economia, mas fora dela. Eles são locais de encontro para um comércio de longa distância. [Numa sociedade primitiva – PH] Os mercados locais, propriamente ditos, são de pouca importância. Além disso, nem os mercados de longa distância, nem os mercados locais são essencialmente competitivos. Conseqüentemente, tanto num como noutro caso é pouca a pressão para se criar um comércio territorial, o assim chamado mercado interno ou nacional. (ibid., p.78)

Demarcando sua diferença de compreensão com a “doutrina clássica”, ele defende que a origem do comércio se encontra numa esfera externa a comunidade, não estando relacionado com a organização interna da economia. E esse comércio de longa distância é entendido como “(...) resultado da localização geográfica das mercadorias e da ‘divisão do trabalho’ dada pela localização” (ibid., p. 79). Eventualmente pode até engendrar mercados o que vai permitir a barganha e o regateio que a “doutrina clássica” vê como propensão natural do ser humano. Entretanto, o comércio externo prescindia do mercado, pois estaria mais calcado na aventura, caça, guerra, etc do que na permuta. Naturalmente o autor reconhece que em fases posteriores os mercados se tornam predominantes no comércio exterior. Ainda que a crítica à “doutrina clássica” seja pertinente, ela peca ao não perceber que o fator que determina em última instância

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a existência do comércio, mesmo a longa distância, é o aumento de produtividade da comunidade e que por sua vez só pode ser obtido com o aumento da divisão social do trabalho no seio da comunidade. Voltando a gênese dos mercados, Polanyi lembra que mercados externos, locais e internos/nacionais são diferentes entre si no tamanho, funções e origens. Quanto aos mercados externos, apontamos alguns dos seus traços nos parágrafos anteriores. O mercado local limita-se ao comércio de mercadorias da região que por motivos de tamanho, peso ou por serem perecíveis não podem ser transportados por longas distâncias. Eles são mercados de vizinhança e não iniciaram o comércio interno ou nacional. Além disso, não são os atos individuais que favoreceram o surgimento do mercado local nas “(...) sociedades em que predominam outros princípios de comportamento econômico.” (ibid., p. 81) O comércio externo é que favoreceu o desenvolvimento de mercados locais nos lugares de parada dos mercadores. Mas, nas sociedades mais primitivas existiam um conjunto de limitações contra a ampliação da influência do mercado na vida social – costume, lei, religião, magia, etc. E Polanyi frisa que mesmo as cidades e a civilização urbana, que seriam produtos do desenvolvimento dos mercados locais, tiveram um papel de impedir a expansão das práticas do mercado pelo campo e de se enraizarem na vida econômica da sociedade mais primitiva.

O mercado interno ou nacional, para Polanyi, foi criado pela intervenção do Estado. Isto como reação a separação operada na sociedade européia medieval entre o comércio local e o comércio a longa distância. Tal separação “(...) foi a reação da vida urbana à ameaça do capital móvel de desintegrar as instituições da cidade.” (ibid., p. 85-86) Pois o mercado local era controlável e o comércio de exportação não.18 Assim, as cidades medievais obstaculizaram a formação do mercado nacional ou interno. E o Estado nacional viu-se obrigado a criar o mercado interno/nacional. Ao longo dos séculos XV e XVI, utilizando-se dos princípios mercantilistas, o Estado derrubou as barreiras entre o comércio local e intermunicipal, passou a ignorar as diferenças entre campo e cidade e entre as cidades e províncias. Ou seja, atacou frontalmente o protecionismo arraigado nas cidades, libertando o comércio dos limites da cidade (Polanyi, 2000:86-87). Mas as cidades protecionistas até então tinham conseguido evitar, com sucesso, dois perigos: o monopólio e a competição19. A solução dada pelo Estado “(...) foi a total regulamentação da vida econômica, só que agora em escala nacional e não mais apenas municipal”. (idem) Esse movimento visava em última instância defender o próprio funcionamento dos mercados naquelas circunstâncias, pois a ruptura do equilíbrio entre oferta e procura poderia levar a paralisia do próprio mercado. Nesse caso os ofertantes tradicionais deixam de ofertar por não terem garantia de preço e o mercado se encaminha para uma situação de monopólio. O mesmo valendo para o lado da demanda. Assim, o fim das restrições, tributos e proibições sobre o mercado que era conseguido pela intervenção de Estado, facilitava a atuação de “aventureiros” que desestabilizavam os mercados e não garantiam a sua permanência nos mesmos. Daí dizer Polanyi que “(...) embora os novos mercados nacionais até certo ponto fossem

18 Por exemplo, no que diz respeito a fabricação de tecidos para a exportação, a forma de organização do trabalho se dava com base no trabalho assalariado fugindo do controle das guildas e corporações de ofício. Vide Polanyi, 2000:85. 19 Segundo Polanyi (2000:87) já existia o entendimento de que a concorrência poderia levar ao monopólio, mas o monopólio era muito mais temido pois poderia pôr em perigo a comunidade pois estava ligado às necessidades da vida.

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competitivos, inevitavelmente, o que prevalecia era o aspecto tradicional da regulamentação e não o novo elemento da competição.” (ibid., p. 87)

Em termos de gênese dos mercados, segundo Polanyi, estamos num momento em que as práticas mercantilistas livraram o comércio das particularidades locais, mas ao mesmo tempo houve um aumento da regulamentação. “O sistema econômico estava submerso em relações sociais gerais; os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e regulada, mais do que nunca, pela autoridade social”. (ibid., p. 88) Isso se verifica até as vésperas da Revolução Industrial Inglesa, mas daí em diante teremos o mercado auto-regulável. É importante destacar que para Polanyi os mercados e as regulações nasceram juntos, ao contrário do que imagina a economia vulgar (neoclássica). O surgimento do mercado auto-regulável contraria a tendência de desenvolvimento existente até esse momento. E uma economia de mercado só pode existir enquanto um sistema econômico hegemonizado pelos mercados, de tal forma que a produção, a distribuição e o consumo são dominados pela atuação do mercado auto-regulável. A produção e a distribuição de mercadorias são reguladas apenas pelos preços. Os preços devem operar de tal forma a garantir a igualação entre oferta e demanda das mercadorias. E isto só será possível se os indivíduos buscam sistematicamente o máximo lucro em termos monetários. Logo é preciso a presença do dinheiro, e ressalta-se a centralidade dos preços para o funcionamento de todo o sistema econômico. No mercado auto-regulado toda produção é destinada ao mercado e todos os rendimentos são obtidos pela venda das mercadorias. Sendo necessário existir mercados para todos os bens e serviços assim como para o trabalho, a terra e o dinheiro.

Polanyi chama de mercadorias fictícias o trabalho, a terra e o dinheiro, defendendo que de fato não são mercadorias. Incorrendo assim em grave erro científico, mas que não chega a surpreender diante de sua recusa em operar com a teoria do valor trabalho enquanto teoria explicativa dos preços, e de sua definição tautológica de lucro: “(...) sendo a renda chamada de lucro, na verdade a diferença entre dois conjuntos de preços, o preço dos bens produzidos e seus custos, i.e., o preço dos bens necessários para produzi-los” (p. 90)20.

Antes de tratarmos das mercadorias fictícias com mais detalhes, vamos tratar de outros pressupostos para a existência de mercados auto-reguláveis. No que diz respeito ao Estado e a política, não devem ser adotadas quaisquer medidas ou políticas econômicas que alterem a ação dos mercados auto-regulados. A formação de preços e os rendimentos só podem ter por base a venda das mercadorias. Logo, oferta e demanda também não podem ser reguladas ou fixadas. As únicas políticas válidas e aceitáveis são aquelas que garantam a auto-regulação do mercado de forma a permitir que o mercado seja o único organizador da vida econômica. Polanyi ressalta que antes da era dos mercados auto-regulados a transferência e restrições, direitos de propriedade, formas de uso, etc sobre a terra e o trabalho “(...) ficavam à parte da organização da compra e venda, e sujeitas a um conjunto inteiramente diferente de regulamentações institucionais”. (ibid., p. 91) Assim, a atividade produtiva estava enraizada na organização da sociedade, nas relações sociais. Com os mercados auto-regulados isso deixa de ocorrer.

20 No capítulo 4 da presente tese e após expormos a perspectiva da ontologia marxiana do ser social, voltaremos aos comentários críticos sobre Polanyi.

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Por isso, o mercado auto-regulado não pode prescindir da “(...) separação institucional da sociedade em esferas econômica e política”. (ibid., p. 92) Assim, a sociedade passa a se subordinar as exigências dos mercados auto-regulados, logo a economia de mercado exige uma sociedade de mercado. E, como assinalamos mais acima, para Polanyi a economia de mercado deve subjugar todos os produtos da indústria além do trabalho, da terra e do dinheiro. E a terra e o trabalho nada mais são do que o meio ambiente e os seres humanos, e a sociedade é constituída pelos seres humanos e existe no meio ambiente, na natureza. Daí diz Polanyi: “Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado”. (ibid., p. 93) Mas, como também já assinalamos, trabalho, terra e dinheiro não são mercadorias, para Polanyi na verdade são mercadorias fictícias.21 E, para ele, os mercados de trabalho, terra e dinheiro são organizados com base nessa ficção. E quaisquer políticas que tentassem travar tais mercados colocariam em risco o próprio sistema auto-regulado. Mas permitir que esse “moinho satânico” atue levará ao desmoronamento da própria sociedade.22 Daí ele concluir que: “A história social do século XX foi, assim, o resultado de um duplo movimento; a ampliação da organização do mercado em relação às mercadorias genuínas foi acompanhada pela sua restrição em relação às mercadorias fictícias” (ibid., p. 98).23

21 “Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para venda mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia”. (Polanyi, 2000:94) 22 “Despojados da cobertura protetora das instituições culturais, os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos do abandono social; morreriam vítimas de um agudo transtorno social, através do vício, da perversão, do crime e da fome. A natureza seria reduzida a seus elementos mínimos, conspurcadas as paisagens e os arredores, poluídos os rios, a segurança militar ameaçada e destruído o poder de produzir alimentos e matérias-primas. Finalmente, a administração do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas periodicamente, pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tão desastrosos para os negócios como as enchentes e as secas nas sociedades primitivas. Os mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a sua substância humana natural, assim como a sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico”. (Polanyi, 2000:95) 23 Polanyi prossegue o parágrafo dizendo: “Enquanto, de um lado, os mercados se difundiam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos assumiu proporções inacreditáveis, de outro uma rede de medidas e políticas se integravam em poderosas instituições destinadas a cercear a ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro. Enquanto a organização dos mercados mundiais de mercadorias, dos mercados mundiais de capitais e dos mercados mundiais de moedas, sob a égide do padrão-ouro, deu um momentum sem paralelo ao mecanismo de mercados, surgiu um movimento bem estruturado para resistir aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado. A sociedade se protegeu contra os perigos inerentes a um sistema de mercado auto-regulável, e este foi o único aspecto abrangente na história desse período” (ibid.). No capítulo 11, páginas 163-164, Polanyi volta à questão do duplo movimento e o personifica “como a ação de dois princípios organizadores da sociedade, cada um deles determinando seus objetivos institucionais específicos, com o apoio de forças sociais definidas e utilizando diferentes métodos próprios. Um foi o princípio do liberalismo econômico, (...). O outro foi o princípio da proteção social (...).

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Um balanço preliminar da contribuição de Polanyi é que ele acertadamente ressalta a importância do enraizamento das relações econômicas nas relações sociais nas comunidades primitivas, mas parece forçar demais o argumento ao desconsiderar as formas de enraizamento presentes na sociedade dominada pelo modo de produção capitalista plenamente desenvolvido. É nesse sentido que argumenta Swedberger (2005:92-93; nota: 44):

Nesse artigo [‘Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness’ – Mark Granovetter – PH], bem como em conversas com o autor, Granovetter afirma a afinidade entre a sociologia econômica de Weber e sua própria análise da imbricação [enraizamento – PH]. Karl Polanyi, é preciso acrescentar, via a ‘imbricação’ [enraizamento – PH] de uma forma diferente: as economias pré-capitalistas, dizia ele, estão imbricadas [enraizadas – PH] na religião e na tradição, ao passo que as economias capitalistas não estão: (...)

1.4. Granovetter e a Nova Sociologia Econômica

A nova sociologia econômica surge no início dos anos 80 do século XX, sendo que o marco da sociologia econômica moderna é o artigo de Granovetter “Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness” de 1985. Este artigo realiza uma crítica brilhante (Swedberg, 2003:230) à Nova Economia Institucional e desloca a crítica à economia neoclássica do conceito irreal de racionalidade dos agentes para sua incapacidade de endogeneizar as estruturas sociais no seu corpo científico. Para Granovetter trata-se de considerar na análise tanto atores racionais quanto as estruturas sociais por eles constituída. Assim ele nega o que ele identifica como concepções sobressocializadas e subsocializadas do homem na economia e na sociologia. A principal diferença entre a nova e a velha sociologia econômica é que a nova busca questionar as teorias neoclássicas em seus fundamentos, a velha não tinha tal ousadia. Ela simplesmente aceitava o postulado de que os indivíduos são maximizadores de funções de utilidade e se encontram separados uns dos outros, atomizados. Para a nova sociologia econômica os indivíduos não estão separados, mas envolvidos em interações através de estruturas específicas que precisam ser analisadas teoricamente. Aqui o conceito de “enraizamento” é introduzido. Ele se apresenta enquanto antípoda da noção de indivíduo atomizado. Conforme lembra Swedberg (2003), para Polanyi, a economia estava “enraizada” nas sociedades pré-capitalistas, Granovetter tenta mostrar que na sociedade capitalista o agir econômico é necessariamente um agir social. Sendo fato que apesar de dizer que é necessário um desenvolvimento do conceito de “enraizamento”, ele próprio não completou até agora este desenvolvimento. Como o agir econômico está enraizado no agir social, ele propõe a compreensão deste agir social no contexto de redes sociais. Ou seja, o agir econômico encontra-se “enraizado” em redes de relações sociais, interpessoais. Em um artigo de 1991 (“Economic Institutions as Social Constructions: A Framework for Analysis”) Granovetter introduz o conceito de “construção social da economia”. Enquanto que para a Nova Economia Institucional as instituições têm um caráter natural, perene, sendo a única possível para cumprir as funções que cumpre e reduzindo custos de transação. Para Granovetter,

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partindo do conceito de “construção social da economia”, as redes de relações interpessoais têm um papel importante, fundamental, nos momentos anteriores à formação de uma instituição. Depois de formada a instituição, a importância das redes interpessoais diminui. Ele exemplifica isto com o caso da indústria norte-americana de distribuição de eletricidade e as redes articuladas por Samuel Insull. Do exposto até aqui, podemos apontar que as contribuições de Durkheim, Weber e Polanyi, têm grande importância para a construção teórica de Granovetter e da Nova Sociologia Econômica. Para o real domínio da contribuição de Granovetter e sua possível crítica da perspectiva ontológica, faz-se necessário realizarmos um esforço de apreensão dos liames teóricos propostos por ele nos artigos por nós selecionados a partir de sua relevância para a construção teórica do autor. Iniciando com o artigo “The Strength of Weak Ties" de 1973, Granovetter aponta a preocupação em apresentar uma proposta de ponte teórica entre os níveis macro e micro de análise do sistema social, pois entende que a teoria sociológica não apresenta de forma convincente a intersecção entre estes níveis. Acredita que a força dos vínculos interpessoais que ocorrem concretamente nas interações em pequena escala, pode ser relacionado com vários fenômenos macro como “(...) diffusion, social mobility, political organization, and social cohesion in general” (1973:1361). Para o autor a noção intuitiva de força de um vínculo interpessoal pode ser apresentada da seguinta forma:“(...) the strength of a tie is a (probably linear) combination of the amount of time, the emotional intensity, the intimacy (mutual confiding), and the reciprocal services which characterize the tie. Each of these is somewhat independent of the other, though the set is obviously highly intracorrelated” (idem). E quanto a tipologia dos laços o autor diz que: “It is sufficient for the present purpose if most of us can agree, on a rough intuitive basis, whether a given ties is strong, weak, or absent” (ibid.). A relação entre os vínculos duais e o nível macro, as grandes estruturas, é demonstrada por Granovetter (ibid., p. 1362) a partir da hipótese de dois indivíduos A e B escolhidos arbitrariamente e um conjunto de indivíduos (“S = C, D, E, ...”) que se relaciona com A, com B ou com ambos. Assim, “The hypothesis which enables to related dyadic ties to larger structures is: the stronger the tie between A and B, the larger the proportion of individuals is S to whom they will both be tied, that is, connected by weak or strong tie. This overlap in their friendship circles is predicted to be least when their tie is absent, most when it is strong, and intermediate when it is weak” (ibid.). O autor prossegue argumentando que os laços fortes terminam por se tornarem compromissos de longo prazo. Assim, se A se relaciona com B e com C, e se B e C não têm relação, os laços de B e C com A provavelmente levarão ao surgimento de alguma interação entre eles (B e C). Formulando de forma mais precisa as implicações para grandes redes de relações, Granovetter vai tratar da tríade proibida. Sua investigação foca sobre a existência de laços fortes, fracos ou ausentes entre A e B e um membro C do conjunto S. A tríade menos provável de ser verificada é aquela em que A e B estão fortemente unidos, “(...) A has a strong tie to some friend C, but the tie between C and B is absent. This trial is shown in figure 1. To see the consequences of this assertion, I will exaggerate it in what follows by supposing that the triad shown never occurs – that is, that B-C tie is always present (whether weak or strong), given the other two strong ties. Whatever results are inferred form this supposition should tend to occur in the degree that the triad in question tends to absent”.

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(ibid. p. 1363) O significado da tríade proibida é desvelado com o uso do conceito de ponte. Ponte seria uma linha numa rede que “(...) provides the only path between two points (...). Since, in general, each person has a great many contacts, a bridge between A and B provides the only route along which information or influence can flow from any contact of A to any contact of B, and, consequently, from anyone connected indirectly to A anyone connected indirectly to B. Thus, in the study of diffusion, we can expect bridges to assume an important role”. (p. 1364) Granovetter prossegue argumentando que estando a tríade ausente o mais provável é que um vínculo fraco apresente-se como uma ponte. Vejamos:

Consider the strong tie A-B: if A has another strong tie to C, then forbidding the triad of figure 1 implies that a tie exists between C and B, so that the path A-C-B exist between A and B; hence, A-B is not a bridge. A strong tie can be a bridge, therefore, only if neither party to it has any other strong ties, unlikely in a social network of any size (though possible in a small group). Weak ties suffer no such restriction, though they are certainly not automatically bridges. What is important, rather, is that all bridges are weak ties (ibid.).

O autor adverte que em grandes redes só raramente um vínculo específico proporciona um caminho único entre dois pontos, mas esta função de ponte pode ser servida localmente. Ao tratar disto ele apresenta a idéia de grau de uma ponte. “I will refer to a tie as a ‘local bridge of degree n’ if n represents the shortest path between its two points (other than itself), and n > 2. (…) As with bridges in a highway system, a local bridge in a social network will be more significant as a connection between two sectors to the extent that it is the only alternative for many people – that is, as its degree increases. A bridge in the absolute sense is a local one of infinite degree. By the same logic used above, only weak ties may be local bridges” (ibid., 1365). Tomando a sugestão de Davis, Granovetter defende que em interações entre dois indivíduos quaisquer, a probabilidade de que ocorra um fluxo de informações entre eles dependerá de forma diretamente proporcional do número de relacionamentos de amizade (que são caminhos que conectam ambos) que ocorrem entre eles e de forma inversamente proporcional da extensão destes caminhos. Os laços fracos que forem pontes locais criarão mais caminhos e mais curtos. Daí Granovetter arremata dizendo:

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Intuitively speaking, this means that whatever is to be diffused can reach a larger number of people, and traverse greater social distance (i.e., path length), when passed through weak ties rather than strong. If one tells a rumor to all his close friends, and they do likewise, many will hear the rumor a second and third time, since those linked by strong ties tend to share friends. If the motivation to spread the rumor is dampened a bit on each wave o retelling, then the rumor moving through strong ties is much more likely to be limited to a few cliques than that going via weak ones; bridges will not be crossed (ibid.; 1366).

Quanto à tendência da literatura especializada de enfatizar que ou o comportamento do indivíduo é formado e limitado pela rede ou que os indivíduos podem manipular as redes para conseguir objetivos específicos, Granovetter se posiciona associando tal questão à outra que também carece de acordo na literatura: redes de ego (“ego’s network”) devem ser tratadas como compostas só por aqueles a quem ego está diretamente ligado ou devem incluir os contatos dos seus contatos. Assim ele defende que:

Analyses stressing encapsulation of an individual by his network tend to take the former position, those stressing manipulation of networks, the latter, since information or favors available through direct contacts may depend on who their contacts are. I would argue that by dividing ego’s network into that part made up of strong and nonbridging weak ties on the one hand, and that of bridging weak ties on the other, both orientations can be dealt with. Ties in the former part should tend to be to people who not only know one another, but who also have few contacts not tied to ego as well. In the ‘weak’ sector, however, not only will ego’s contacts not be tied to one another, but they will be tied to individuals not tied to ego. Indirect contacts are thus typically reached through ties in this sector; such ties are then of importance not only in ego’s manipulation of networks, but also in that they are the channels through which ideas, influences, or information socially distant from ego may reach him. The fewer indirect contacts one has the more encapsulated he will be in terms of knowledge of the world beyond his own friendship circle; thus, bridging weak ties (and the consequent indirect contacts) are important in both ways (ibid.; 1370-71).

Tal proposta de Granovetter se desdobra no exemplo do mercado de trabalho. Na busca por emprego, os laços fortes de um indivíduo que busca emprego estão motivados a ajudá-lo com informações sobre oportunidades de colocação, mas o alcance dos laços fortes é limitado o que limita o alcance das informações. Tal não ocorre com os laços fracos que são constituídos por indivíduos que movem-se por círculos diferentes do indivíduo que busca emprego e têm acesso a informações diferentes das que este indivíduo possui usualmente. Assim, para os indivíduos, os laços fracos tornam possível a oportunidade de mobilidade e, para o nível macro, os laços fracos reforçam a coesão social efetiva. Pois a troca de emprego, por parte de um indivíduo, implica que ele se movimenta entre laços diferentes e, ao mesmo tempo, estabelece uma união entre estes laços. Com isto, as idéias fluem entre grupos e constroem um “sentido de comunidade”.24

24 “From the individual’s point of view, then, weak ties are an important resource n making possible mobility opportunity. Seen from a more macroscopic vantage, weak ties play a role in effecting social cohesion. When a man changes jobs, he is not only moving from one network of ties to another, but also establishing a link between these. Such a link is often of the same kind which facilitated his own movement. Especially within professional and technical specialties which are well defined and limited in size, this mobility sets up elaborate structures of bridging weal ties between the more coherent clusters that constitute operative networks in particular locations. Information and ideas thus flow more easily through the specialty, giving it some ‘sense of community’, activated at meetings

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Granovetter encerra este artigo sinalizando que seu modelo de sistema interpessoal não é voltado para pequenos grupos ou grupos reduzidos e alocados em postos institucionais ou organizacionais. Mas tem por foco unir estes níveis de pequena escala a outros maiores e mais complicados. “This is why emphasis here has been placed more on weak ties than on strong. Weak ties are more likely to link members of different small groups than are strong ones, which tend to be concentrated within particular groups” (ibid., p. 1376). E por fim acrescenta que “The major implication intended by this paper is that the personal experience of individuals is closely bound up with larger-scale aspects of social structure, well beyond the purview or control of particular individuals” (ibid., p. 1377). O segundo artigo de Granovetter escolhido pela sua relevância e impacto foi publicado originalmente em 1985 no American Journal of Sociology e intitula-se “Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness”. Como o título enuncia, o autor preocupa-se em discutir a forma como os comportamentos individuais e as instituições humanas são afetados pelas relações sociais, o que, lembra ele, é uma questão clássica para a teoria social. Ele assinala que é possível dividir a compreensão da influência das relações sociais entre uma concepção sobressocializada do homem (“a conception of people as overwhelming sensitive to the opinions of others and hence obedient to the dictates of consensually developed systems of norms and values, internalized through socialization, so that obedience is not perceived as a burden” (p. 54).) e uma concepção atomizada e subsocializada do homem (“In the undersocialized account, atomization results from narrow utilitarian pursuit of sel-interest” (p. 56).), pouco influenciada pelas relações sociais. Diante destas alternativas consideradas por ele como insatisfatórias, é apresentada a proposta de enraizamento (“(…) the behavior and institutions to be analyzed are so constrained by ongoing social relations that to construe them as independent is a grievous misunderstanding” (p. 53).). Neste artigo, o foco é para o enraizamento do comportamento econômico. Assinala que a visão da chamada escola substantivista de Karl Polanyi, entende que o comportamento econômico, nas sociedades pré-mercantis, era fortemente enraizado nas relações sociais e com a dominação das sociedades mercantis ele se tornou mais autônomo. Nestas últimas as transações econômicas já não são definidas por obrigações sociais ou familiares, mas pelo cálculo racional do lucro individual dos agentes econômicos. “It is sometimes further argued that the traditional situation is reversed: instead of economic life being submerged in social relations, these relations become an epiphenomenon of the market” (p. 53)”. Mas o autor lembra que entre os economistas profissionais, poucos aceitam a idéia de que há um declínio do enraizamento devido ao processo de modernização mercantil das sociedades. A maioria entende que o enraizamento verificando nas sociedades pré-mercantis não era muito diferente do verificado nas sociedades mercantis. O marco inicial de tal perspectiva foi dado por Smith, posteriormente a chamada “nova economia institucional” (North, Williamson, etc) retomou o interesse pelo estudo das instituições sociais. Para esta escola do pensamento econômico, “(...) behavior and institutions previously interpreted as embedded in earlier societies, as well as in our own, can be better understood as resulting from the pursuit of self-interest by rational, more or less atomized individuals” (p. 54).

and conventions. Maintenance of weak ties may well be the most important consequence of such meetings” (ibid., p. 1373).

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Granovetter distingue-se destas duas perspectivas por entender que o nível de enraizamento nas sociedades pré-mercantis é menor do que o postulado pela escola substantivista de Polanyi, e que o grau de enraizamento mudou menos com a passagem para as sociedades mercantis do que o que defende esta escola. Por outro lado, ele entende que o nível de enraizamento nas sociedades mercantis é maior e mais substancial do que o considerado pelos economistas em geral e pela “nova economia institucional” em particular. Ele adianta que não irá discutir neste artigo questões das sociedades pré-mercantis, mas vai desenvolver teoricamente o conceito de enraizamento, ilustrando-o com uma questão chave para a “nova economia industrial”: “which transaction in modern capitalist society are carried out in the market, and which subsumed within hierarchically organized firms? (ibid.). No âmbito da sociologia moderna, assinala nosso autor, Talcott Parsons havia reconhecido o problema da ordem colocado originalmente por Hobbes25. Sendo que Hobbes trabalhava com uma concepção atomizada e subsocializada do homem, concepção idêntica à da tradição utilitarista. Parsons, na tentativa de superar tal concepção desenvolveu outra concepção na qual o homem encontra-se sobressocializado e seus padrões de comportamento são interiorizados de modo que as relações sociais nas quais eles estão inseridos têm efeito pequeno sobre eles. Em 1961 Dennis Wrong, também segundo nosso autor, advertia para o predomínio desta concepção sobressocializada na sociologia e para a necessidade de romper com o utilitarismo atomista e concordava com a ênfase dada ao enraizamento dos indivíduos no contexto social, ainda que advertindo para o risco de haver um exagero na aceitação do nível de enraizamento e para o risco da noção de enraizamento eliminar o conflito da análise. Passando para a análise da economia clássica e neoclássica, assinala que ambas seguem a tradição utilitarista na qual a ação humana é atomizada e subsocializada. Não há relação de determinação entre estrutura social, relações sociais e as atividades de produção, distribuição e consumo. A estrutura de mercado de concorrência perfeita com seu grande número de compradores e vendedores impede que quaisquer deles influenciem os preços ou quantidades negociadas, não há barganha para alterar preço, não há reclamação, ajustamentos mútuos, etc, além disto não há contato humano prolongado o que impede relações duradouras entre os agentes. Esta estrutura de auto-regulação é, para muitos, politicamente interessante. E, além disso, garante a interdição do problema da ordem de Hobbes. Pois se a economia é entendida como algo sem relações sociais duradouras e desprovida de instituições, não há espaço para desconfiança e má-fé. Ou seja, ao contrário da proposta de Hobbes de uma autoridade autocrática que garanta a ordem a partir do seu aparato repressivo, a idéia do liberalismo difundida pela escola neoclássica é de que a concorrência perfeita interdita o uso da força, da fraude ou da má-fé. Primeiro por que todos os agentes conhecem perfeitamente os mercados. Segundo as informações estão disponíveis a custo zero. E por fim, se por acaso surgirem desconfianças quanto ao comportamento de algum agente, pode-se recorrer a outro agente que se comporte de acordo com o mercado de concorrência perfeita. Por isso, relações sociais e o contexto institucional tornam-se sem importância. Quando muito são obstáculos circunstanciais para o funcionamento adequado da concorrência perfeita. Granovetter ressalta a ironia (segundo ele de grande importância teórica) de que as concepções subsocializadas e sobressocializadas estão de acordo quanto ao fato de que as ações e 25 “In Hobbes’s argument, disorder arises because conflict-free social and economic transaction depend on trust and the absence of malfeasance. But these are unlikely when individuals are conceived to have neither social relationships nor institutional context – as in the ‘state of nature’” (ibid., p. 55).

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decisões dos agentes são tomadas por atores atomizados. Para a concepção subsocializada, “atomization results from narrow utilitarian pursuit of sel-interest” (p. 56). Para a concepção sobressocializada resulta do “(...) fact that behavorial patterns have been internalized and ongoing social relations thus have only peripheral effects on behavior. That the internalized rules of behavior are social in origin does not differentiate this argument decisively from a utilitarian one, in which the source of utility functions is left open, leaving room for behavior guided entirely by consensually determined norms and values – as in the oversocialized view” (ibid.). Ou seja, as duas concepções desenraizam os atores do seu contexto social dado.26 Voltando-se para os economistas modernos, Granovetter assinala que ao tentarem incorporar em seus esquemas teóricos as influências sociais, eles acabam representando-as de forma sobressocializada. “In so doing, they reverse the judgment that social influences are frictional but sustain the conception of how such influences operate” (p. 57). Utiliza como exemplo a teoria dos mercados de trabalho segmentados de Michael Piore e o estudo de Bowles e Gintis que faz um balanço das conseqüências da educação americana27. Conclui, acertadamente, que estas concepções sobressocializadas da influência das relações sociais sobre o comportamento individual são mecânicas. Basta conhecer a classe social do indivíduo ou seu lugar no mercado de trabalho e sabe-se todo seu comportamento e formas de tomada de decisão. As relações sociais funcionam como uma força externa que condiciona o comportamento dos indivíduos sem provocar outros efeitos. Se soubermos como o indivíduo é afetado pelas relações e estruturas sociais, elas se tornam irrelevantes para a análise. “Social influences are all contained inside an individual’s head, so, in actual decision situations, he or she can be atomized as any Homo economicus, though perhaps with different rules for decision” (ibid.). Tratando do esforço de economistas, como Gary Becker, de considerar as relações sociais em suas análises, Granovetter adverte que eles ignoram o enraizamento histórico e estrutural destas relações, ou seja, não consideram a história destas relações e sua posição frente a outras relações. As descrições fornecidas por estas teorias são de ligações interpessoais estilizadas, convencionais, sem conteúdo, história ou posicionamento estrutural. O agente atua de acordo com sua posição formal dentro da estrutura social e de acordo com o conjunto de papéis que nela cumpre. Dentro do esquema conceitual geral, este procedimento leva a atribuir um papel menor às relações individuais, com a ênfase recaindo nas estruturas perenes que irão determinar os papéis normativos (p. 57-8). Assim ele conclui que:

26 Granovetter prossegue e assinala que: “This ironic merger is already visible in Hobbe’s Leviathan, in which the unfortunate denizens of the state of nature, overwhelmed by the disorder consequent to their atomization, cheerfully surrender all their rights to an authoritarian power and subsequently behave in a docile and honorable manner; by the artifice of a social contract, they lurch directly from an undersocialized to an oversocialized state” (p. 57). 27 Segundo Granovetter, Piore entende que cada segmento do mercado de trabalho tem um padrão de tomada de decisão. Decisões com base em escolha racional seriam tomadas nos mercados de trabalho primário-superior, decisões por hábito seriam tomadas no primário-inferior e por comando no secundário. E haveria uma correlação entre este padrão de tomada de decisão e a origem de classe-cultura dos trabalhadores (classe média ou operária). Já Bowles e Gintis, ainda segundo Granovetter, entendem que em função do modelo educativo a que têm acesso, as diferentes classes irão desenvolver diferentes padrões cognitivos. Assim, indivíduos que executarão trabalhos menos qualificados, serão treinados para seguir regras e aqueles destinados à posições de elite voltam-se para relacionamentos sociais que se encaixem com os níveis superiores da hierarquia da produção (p. 74).

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In economic models, this treatment of social relations has the paradoxical effect of preserving atomized decision making even when decisions are seen to involve more than one individual. Because the analyzed set of individuals – usually dyads, occasionally larger groups – is abstracted out of social context, it is atomized in its behavior from that of other groups an from the history of its own relations. Atomization has not been eliminated, merely transferred to the dyadic or higher level of analysis. Note the use of an oversocialized conception – that of actors behaving exclusively in accord with prescribed roles – to implement an atomized, undersocialized view (p. 58).

Novamente aponta para o fato de que as concepções sobressocializadas e subsocializadas convergem para uma visão atomizada do homem. E argumenta que os homens não são como átomos isolados de um dado contexto social, e tão pouco são autômatos dirigidos pelo mecanicismo das relações sociais exógenas a ele. Granovetter arremata, de forma muito apropriada, lembrando que “Their attempts at purposive action are instead embedded in concrete, ongoing systems of social relations” (ibid.). Este é o seu horizonte de pesquisa: os homens realizam ações com teleologia, mas ações enraizadas em relações sociais concretas. Granovetter volta-se em seguida para as questões da confiança e da má-fé, e toma a teoria econômica como espaço para discuti-las. Identifica duas respostas para estas questões, uma fundada na ótica subsocializada do indivíduo (caso da nova economia institucional de Oliver Williamson) e outra na fundada na ótica sobressocializada (vide Kenneth Arrow ou Akerlof). Para a escola da nova economia institucional os arranjos sociais e as instituições são as soluções eficientes para determinados problemas econômicos. A má-fé pode ser evitada por arranjos institucionais que desencorajam a má-fé. Sendo que estes arranjos não produzem confiança, antes a substituem. Os principais tipos de arranjos institucionais seriam os contratos explícitos e implícitos e as estruturas de autoridade que impeçam o oportunismo. Mas por não tratar das relações sociais concretas, não percebem que as obrigações associadas e decorrentes delas desencorajam a má-fé independentemente dos arranjos institucionais. Daí Granovetter dizer que “Substituting these arrangements for trust results actually in a Hobbesian situation, in which any rational individual would be motivated to develop clever ways to evade them; it is then hard to imagine that everyday economic life would not be poisoned by ever more ingenious attempts at deceit” (p. 60). Os economistas que, ao contrário da nova economia institucional, aceitam que algum grau de confiança tem que existir nas relações sociais devido à incapacidade dos arranjos institucionais impedirem o recurso à força e à fraude, segundo Granovetter, não explicam a origem desta “moral generalizada”. Assim, ele aponta nesta corrente a presença de uma visão sobressocializada que aceita a presença de respostas automáticas e generalizadas por parte dos agentes econômicos, “(...) even though moral action in economic life is hardly automatic or universal (...)” (ibid.). A proposta do enraizamento de Granovetter defende que as redes sociais concretas nas quais os indivíduos estão inseridos estão na origem da confiança e do afastamento da má-fé e do oportunismo. Argumenta que a preferência constatada empiricamente em se negociar com agentes de reputação reconhecida28 (cuja informação é obtida junto a outros agentes que negociaram antes com ele) aponta que não há grande eficácia nos arranjos institucionais ou numa “moral generalizada”.

28 Note que Granovetter não opera com a reputação como uma mercadoria a partir da qual o agente pode calcular as vantagens e desvantagens de enganar outro agente. Ele aponta que tal concepção é subsocializada.

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Para evitar que o argumento de que as redes sociais vistas como o principal mecanismo de criação de confiança para as relações econômicas caia num novo funcionalismo otimista de manutenção da ordem econômica, Granovetter aponta que: (1) a solução para o problema da ordem dada pela noção de enraizamento não é tão universal quanto as soluções dadas pelas posições alternativas. Pois as redes sociais penetram de forma irregular e em diferentes graus nos vários segmentos da vida econômica, o que abre a possibilidade para desconfiança, oportunismo e desordem. (2) Ainda que as relações e redes sociais sejam condição necessária para a geração de confiança e honestidade, não são condição suficientes e podem inclusive produzir condições e meios para o surgimento de má-fé em proporção superior ao que ocorreria em sua ausência.29 Após delinear sua visão de enraizamento enquanto alternativa entre as perspectivas subsocializadas e sobressocializadas, Granovetter passa a crítica da teoria de Oliver Williamson (apresentada em “Markets and Hierarchies” e em outros artigos) enquanto momento de aplicação prática da perspectiva do enraizamento. Para Williamson uma questão relevante é entender as razões pelas quais certas funções econômicas passam a ser realizadas no interior da grande empresa hierarquizada ao invés de ocorrerem nos mercados com outras empresas fornecedoras. Sua solução recai num tipo de darwinismo que diz que a forma organizacional dominante numa dada situação é a que melhor resolve os problemas ligados aos custos de transação. Assim quando o resultado econômico é muito incerto, quando ocorrem freqüentemente, quando envolvem barreiras à saída (investimentos elevados e específicos), o mais provável é que as transações ocorram no interior das empresas organizadas hierarquicamente. Do contrário ocorrem no mercado, entre empresas. Duas razões podem ser listadas para a interiorização das transações pelas empresas hierarquicamente organizadas: (1º) A existência de uma racionalidade limitada, ou seja, a incapacidade dos agentes econômicos anteciparem problemas que possam vir a ocorrer em contratos de longa duração. Se há interiorização das transações, não é preciso fazer tal antecipação e nem realizar complexas transações e custosos contratos. (2º) O oportunismo é reduzido quando as transações são internalizadas, pois as relações de autoridade e hierarquia, e o relacionamento constante com parceiros de transação no interior da unidade industrial criam novos tipos de constrangimento. Em relação a esta argumentação, Granovetter posiciona-se assinalando que ela implica na redescoberta de Hobbes aplicado à esfera econômica. Tal análise inclui a mesma mistura de argumentos subsocializados e sobressocializados presentes no “Leviathan”.

The efficacy of hierarchical power within the firm is overplayed, as with Hobbe’s oversocialized sovereign state. The ‘market’ resembles Hobbe’s state of nature. It is the atomized and anonymous market of classical political economy, minus the discipline brought by fully competitive conditions

29 Granovetter lista três razões para isto: “1. The trust engendered by personal relations presents, by its very existence, enhanced opportunity for malfeasance. (…) 2. Force and fraud are most efficiently pursued by teams, and the structure of these teams requires a level of internal trust – ‘honor among thieves’ – that usually follows preexisting lines of relationship. (…) 3. The extent of disorder resulting from force and fraud depends very much on how the network of social relations is structured. (…)” (p. 62-3)

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– an undersocialized conception that neglects the role of social relations among individuals in different firms in bringing order to economic life. (p. 65)

Granovetter resume (p. 72-73) de forma breve as diferenças entre as explicações e previsões presentes nas propostas de mercados e hierarquias de Williamson e sua perspectiva de enraizamento. Williamson defende que a internalização das atividades econômicas complexas nas empresas hierarquicamente organizadas é a garantia da inexistência de oportunismo e má-fé e da existência de cooperação e ordem na vida econômica. Mas Granovetter, com base em estudos empíricos, argumenta que mesmo para transações complexas pode-se encontrar ordem no mercado, nas transações entre empresas e um nível alto de desordem no interior da empresa hierarquicamente organizada. E isto se deve à natureza das relações e das redes sociais criadas entre as empresas e no interior das empresas. Logo, para ele ordem e desordem, honestidade e má-fé respondem mais às estruturas das relações e redes sociais do que às formas institucionais. Entretanto, assinala que tal perspectiva traz novas implicações para a compreensão do surgimento da integração vertical no lugar das transações entre empresas via mercado. Supondo situações idênticas, pressões pela integração vertical ocorrerão quando tivermos um mercado no qual falte às empresas uma rede de relações pessoais que as una ou quando tal rede levar a conflitos, oportunismo, desordem e má-fé. Já quando tivermos uma rede de relações pessoais estável, garantindo a ocorrência de transações complexas, com padrões estáveis de comportamento entre as empresas, o mais provável é que não ocorram tais pressões pela integração vertical. A idéia de utilizar a noção de “pressões”, diz Granovetter, é uma tentativa de fugir do funcionalismo implícito na posição teórica de Williamson (a forma organizacional existente é sempre a mais adequada para a situação em questão). Mas Granovetter lembra que existem duas condições a serem satisfeitas para que se possa operacionalizar a noção de “pressões”: “(i) well-defined and powerful selection pressures toward efficiency must be operating, and (ii) some actor must have the ability and resources to ‘solve’ the efficiency problem by constructing a vertically integrated firm” (p. 72). Tomando os dois conceitos principais de Granovetter (“enraizamento” e “construção social da economia”) percebemos que eles são manuseáveis por diferentes correntes teóricas sem que se corrompam. Veja por exemplo, como a crítica de DiMaggio (1994) de que o conceito de “enraizamento” não contêm uma dimensão cultural, é resolvida pelo próprio autor ao propor um novo “enraizamento”, o cultural. Por fim cabe lembrar a advertência de Granovetter30 sobre a necessidade de estabelecer uma ligação adequada entre os níveis micro e macro de análise a partir de uma compreensão das relações sociais nas quais a vida econômica está enraizada. Nos próximos capítulos buscaremos apontar em que medida a proposta de uma Ontologia do Ser Social de Lukács, permite tal

30 “Finally, I should add that the level of causal analysis adopted in the embeddedness argument is a rather proximate one. I have had little to say about what broad historical or macrostructural circumstances have led systems to display the social-structural characteristics they have, so I make no claims for this analysis to answer large-scale questions about the nature of modern society or the sources of economic and political change. But the focus on proximate causes is intentional, for these broader questions cannot be satisfactorily addressed without more detailed understanding of the mechanisms by which sweeping change has its effects. My claim is that one of the most important and least analyzed of such mechanisms is the impact of such change on the social relations in which economic life is embedded. If this is so, no adequate link between macro- and micro-level theories can be established without a much fuller understanding of these relations” (Granovetter, 1985:75)

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ligação e é capaz de se colocar para além dos pressupostos sobre-socializados e subsocializados. Por fim, vamos explorar as possibilidades de integração do conceito de redes sociais de Granovetter com a proposta de Lukács. CAPÍTULO II: A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL DE LUKÁCS Este capítulo apresentará alguns comentários da parte sistemática31 de “Per une Ontologia dell’Essere sociale” que ajudarão na compreensão da contribuição mais geral de Lukács para a renovação do marxismo. Com este capítulo, acrescido do capítulo 3 em que abordaremos a ontologia de Marx, estaremos prontos para retomar criticamente as contribuições da Nova Sociologia Econômica e dos autores tratados no capítulo anterior. E aptos a apontar as possibilidades de diálogo e interação entre essas abordagens. 2.1. Porquê uma Ontologia Marxista? Inicialmente é preciso contextualizar a busca de Lukács pela construção de uma ontologia marxista. Lukács defende que Marx é “(...) o fundador de uma nova concepção ontológica do mundo dos homens” (Lessa, 2000:159). Sendo que tal concepção pode ser rastreada nos escritos de Marx, desde os da juventude até O Capital, conforme expõe Chasin (1995). E a construção de Lukács, segundo Lessa (2001) e Oldrini (2002), inicia-se com seu exílio em Moscou em 1930-31 quando teve contato com os “Manuscritos Econômicos-Filosóficos” de Marx e com os “Cadernos Filosóficos” de Lênin. E perpassa seus trabalhos até a elaboração da “Estética” que, segundo o próprio Lukács é a preparação para a “Ontologia”. Sendo que esta havia sido inicialmente concebida como uma introdução à “Ética” que acabou não sendo redigida32 devido à doença que acometeu nosso autor e que o levou a deixar inacabada a própria ontologia. O único capítulo dado como pronto para a publicação por Lukács foi “A Verdadeira e a Falsa Ontologia de Hegel”. O restante do material, conforme vários analistas, sofre de problemas de forma, repetições e imprecisões, que provavelmente seriam eliminadas numa escrita definitiva por Lukács. 31 O primeiro volume de “Per uma Ontologia dell’Essere Sociale” é chamado de parte histórica, pois compreende os capítulos referentes a Marx, Hegel, Hartmann, positivismo, etc. Já o segundo volume (que nesta edição é composta por dois tomos que contém os capítulos referentes ao trabalho, à reprodução, à ideologia e ao estranhamento) é dito parte sistemática. 32 Em resposta às críticas formuladas por seus alunos diletos que constituíam a chamada Escola de Budapeste (Agnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus e Mihály Vajda) Lukács, no seu último grande esforço intelectual, escreve “Prolegômenos à Ontologia do Ser Social”. Também conhecida como a “pequena” ontologia em contraposição à “grande” ontologia – “Per Uma Ontologia dell’essere sociale” (na edição brasileira intitulada “Ontologia do Ser Social”, a qual só apresenta os capítulos “A Falsa e a Verdadeira Ontologia de Hegel” e “Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx”.).

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Segundo Tertulian (1996) e Oldrini (2002) a leitura da “Ontologia” de Nikolai Hartmann e do volume I de “Philosophische Grundfragen” de Ernest Bloch funcionam como catalisadores para a construção conceitual embrionária presente nos textos de Lukács sobre a perspectiva ontológica. As obras ontológicas de Hartmann põem fim às restrições de Lukács quanto ao uso da palavra ontologia. “Para ele [Lukács – PH], tomando a conotação que lhe foi conferida por Heidegger, ela [a palavra ontologia – PH] só tem um valor negativo; significa, no melhor dos casos, ‘pura antropologia’, sociologia ‘mitologizada ontologicamente’, ‘pseudo-objetividade’ (...), isto é, elevação à realidade daquelas que são apenas ‘formas do pensamento’ (...)” (Oldrini, 2002:67). O contato com a “Ontologia” de Hartmann, “inculcaram, (...), a idéia de buscar na ontologia e nas suas categorias as bases do seu [de Lukács – PH] pensamento” (Tertulian, apud., Oldrini, 2002:68). Daqui surge uma orientação “ontológico-fundante”, a perspectiva ontológica prevalece sobre o “viés gnosiológico da pesquisa filosófica” (Oldrini, idem). Neste ponto, é adequado retomarmos as indagações de Lessa (2000 e 2007) sobre a razão de Lukács propor uma ontologia no século XX. Lessa (2000) assinala que tal proposição pode parecer inadequada se considerarmos que toda a evolução filosófica da Idade Média até o final do século XX demonstrou “(...) que a ontologia nada mais passa de uma vã tentativa de fixar em categorias não históricas a efemeridade essencial da existência humana (...) [Assim – PH] Que outra ontologia seria hoje possível senão a velha e carcomida metafísica que insiste em dissociar Ser de Existência para assim salvar a figura de Deus?” (p. 159). Mas, argumenta Lessa, que para Lukács a ontologia não tem como única possibilidade a metafísica tradicional e, mais ainda, para ele só é possível se colocar a questão da emancipação humana, da superação da sociabilidade fundada na exploração do homem pelo homem, ou seja, só é possível a colocação de uma “concepção de mundo autenticamente revolucionária” se resolvermos algumas questões ontológicas tradicionais, dentre as quais a da essência humana (p. 159-160). A concepção liberal de mundo, atualmente dominante, argumenta que a perenidade do capitalismo radica no fato dele expressar a “essência” humana. Esta “essência” humana é dada pelo homem ser proprietário privado (portanto, egoísta, mesquinho, competitivo), o que o leva a ter sua relação com os outros homens intermediada por seus interesses egoístas. Assim, esta concepção liberal é uma ideologia33 na qual “a essência do homem capitalista foi elevada à essência capitalista do homem” (2007:13). Esta ideologia é o espelhamento da sociabilidade engendrada pela lógica do capital, e nesta sociabilidade os homens se transformam em personificações das mercadorias, suas vontades são a manifestação das vontades, desejos e caprichos das mercadorias, das coisas criadas pelos homens, mas que por assim dizer adquirem vida própria e passam a dominar seus criadores. O capricho da mercadoria é ser vendida e poder realizar in totum o valor nela contido, independentemente das necessidades e desejos reais dos homens. O indivíduo tem na mercadoria enquanto expressão do capital (entendido como relação social) o espelho de todas as manifestações de sua existência. Ele só se reconhece enquanto indivíduo e enquanto pertencente à sociedade humana por intermédio das mercadorias, do capital. Aqui a sociedade humana é vista como um espaço para a disputa das riquezas materiais e os outros indivíduos são vistos como seus concorrentes diretos na aquisição destas riquezas. Fica claro que as condições peculiares da sociabilidade criada pelo capital são hipostasiadas para a explicação universal da essência humana. E revela-se a teleologia imposta à 33 Adiante trataremos do entendimento da categoria ideologia por Lukács. Por ora, registramos que não se trata de uma falsa concepção do mundo. Mas de uma proposta de resolução de conflitos sociais a partir de um dado ponto de vista.

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História por esta concepção de mundo. Assim, a essência imutável do homem vai se explicitando e se realizando ao longo das várias formações sociais até chegar à formação democrático-burguesa que generaliza as relações mercantis e cria um arcabouço jurídico-institucional que melhor se adequa à sua reprodução ampliada. Por fim, constituída tal formação finda-se a História, nada havendo para além disto. Ficando interditada sequer a colocação da questão da possibilidade de se ir para além do capital. O que nos leva a questionar, com Lessa (2000:161), qual o fundamento desta “natureza” essencial do homem, de onde ela vem? A resposta só pode radicar em alguma forma de transcendentalidade34. “Pois, apenas uma essência imposta aos homens por uma dimensão transcendente pode permanecer intocável pelo desenvolvimento histórico dos próprios homens. Em poucas palavras, a a-historicidade da essência requer, de forma absoluta, a transcendentalidade de seu fundamento último” (ibid.). Para Marx a questão se põe de forma completamente diferente. Na sexta tese sobre Feuerbach Marx afirma que a essência humana é “o conjunto das relações sociais” 35. E este “conjunto de relações sociais” é posto pelos indivíduos, por suas decisões e interações. Assim, a essência humana é social, pois feita pelos indivíduos, pelos homens. E é histórica, pois é resultado da própria processualidade histórica. Desta forma decisões do conjunto dos indivíduos podem alterar o “conjunto das relações sociais”, alterando a própria essência humana. Não há aqui um limite constituído pela essência humana para a processualidade histórica, não há um fim da história. Pelo contrário, Lukács reafirma a possibilidade ontológica da revolução fundada na

34 Lessa (2001:91) apresenta uma bela síntese de como as ontologias anteriores a Marx conceberam a essência humana como algo a-histórico e de como imputavam uma teleologia a História: “Em suma, todas as principais concepções ontológicas, da Grécia a Hegel, conceberam a essência humana como a-histórica, no preciso sentido que ela funda e determina a história da humanidade contudo não pode ser determinada ou alterada por ela. A imutabilidade da essência aparece como condição indispensável da história: a efemeridade dos fenômenos históricos apenas poderia existir fundada por uma instância externa à história. Desta concepção ontológica decorrem três conseqüências inevitáveis: o fundamento da história não pode ser ela própria, mas sim, uma instância a ela transcendente. Daqui, o caráter dualista das ontologias até Marx, Hegel incluso; por ser fundada em uma categoria não-histórica, o sentido da história decorre da essência da sua categoria fundante (a ordem cosmológica, o Mundo das Idéias, Deus, a “natureza” do proprietário privado burguês ou o Espírito hegeliano). A realização dessa essência se transforma no limite intransponível à história humana: o desenvolvimento da humanidade, por possuir um fundamento que não ele próprio, termina limitado por barreiras que não decorrem dele, e que por isso não as pode superar. É este elemento de todas as ontologias antes de Marx que as faz ideologias justificadoras do status quo da sociedade na qual surgiram. É aqui que reside explicitamente seu caráter mais conservador; por ter início e um fim determinados por uma essência a-histórica, as ontologias que tratamos não poderiam evitar uma concepção teleológica da história. O destino humano teria sua explicitação última no sentido da história, sentido este determinado do exterior da história enquanto tal”. 35 “Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não empreende a crítica dessa essência real, vê-se, portanto, obrigado: 1 – a fazer caso omisso da trajetória histórica, fixar o sentido religioso em si mesmo e pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado; 2 – nele, a essência humana só pode ser concebida como ‘espécie’, como generalidade interna, muda, que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos” (Marx, K e Engel, F., s.d, v. 3, p. 209).

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lógica humano-societária do trabalho.36 Sendo este o objetivo primordial da construção de uma Ontologia por Lukács em pleno século XX. Lembrando que a Ontologia de Lukács era o material preparatório do seu estudo sobre Ética que nunca chegou a ser escrito, cabe registrar que ao pôr a ética no centro da individualidade, Lukács faz com que “(...) o dever individual passe a ser reconhecido como uma exigência da própria personalidade em cada situação concreta; ser indivíduo e ser membro do gênero humano não formam mais dois pólos antinômicos, mas dois momentos de um mesmo ser: a individualidade enquanto partícipe de um gênero elevado ao seu ser-para-si” (Lessa, 2007:151). Assim, a ética para Lukács deve ocupar um lugar de destaque no processo de superação da antinomia indivíduo sociedade, e de realização da potencialidade inerente em cada indivíduo humano, o que exige ir para além da lógica humano-societária do capital.

2.2. A Historicidade do Ser e da Essência Para as Ontologias anteriores a Marx, a distinção entre fenômeno e essência no estatuto do ser era dada de forma muito clara. Lessa (2001:92)37 argumenta que para essas Ontologias a essência é entendida como “o verdadeiro ser” e o fenômeno “apenas pode existir tendo na essência o seu fundamento”. O fenômeno decorrer da essência, para elas é um fenômeno de segunda ordem. Daí Lessa conclui que: “Esta supremacia ontológica da essência é o fundamento último das concepções teleológicas da história, pois, novamente sendo extremamente sintético, o desenvolvimento histórico teria por direção e sentido necessários à realização desse ser essencial”. Lessa (1996, 2001, 2002b e 2007) argumenta que segundo Lukács, Marx realiza um giro nesta concepção. Pois para ele essência e fenômeno

possuem o mesmo estatuto ontológico, são igualmente existentes e igualmente necessárias ao desdobramento de todo e qualquer processo. Não há absolutamente nenhuma processualidade que não desdobre, no seu desenvolvimento, uma relação entre essência e fenômeno. Em sendo assim, o que distinguiria essência e fenômeno seriam as distintas funções que exercem no interior da processualidade da qual são determinações. (2001:92)

Para Lessa (2002b:50 e ss.), ao tratar da categoria substância, a Ontologia de Lukács defende que a concepção de Marx da substancialidade é absolutamente histórica. E defende que

36 “Em havendo um eixo que articula todas as linhas do volumoso texto da Ontologia, certamente será esse: ao contrário do que reza o pensamento burguês-conservador, a essência humana é absolutamente social (isto é, feita pelos homens) e histórica (isto é, resultante da processualidade histórica), podendo portanto ser radicalmente alterada por uma ruptura histórica significativa. A essência humana não é imposta aos homens por Deus, ou por qualquer outra instância mágica: ela nada mais é do que a substância social do conjunto das relações que os homens estabelecem entre si ao longo da História. Em poucas palavras: não há limites ao desenvolvimento histórico senão aqueles limites que os próprios homens construíram e que, portanto, potencialmente podem ser por eles alterados ou permanentemente removidos da História. Se pensarmos no que ocorreu com as relações escravistas da Idade Antiga, teremos plasticamente, um exemplo do que nos referimos aqui”. (Lessa, 2000:162) 37 Conforme lembra Netto (2002:90, nota 44) “É mérito de Sérgio Lessa (...) ter enfatizado a problemática pertinente a este aspecto crucial [a ancoragem da ontologia de Lukács na categoria de substância dada historicamente e redimensionadora das relações entre fenômeno e essência – PH] da ontologia...”.

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essência e fenômeno se distinguem “(...) pelo fato de a essência ser o lócus da continuidade” (ibid.). Aqui não há uma concepção de que a essência tem um grau de ser maior do que o fenômeno ou a noção de que essência articula-se com necessidade e fenômeno com casualidade. Para Lukács, segundo Lessa,

(...) o ser é histórico porque sua essência, em vez de ser dada a priori, se consubstancia ao longo do próprio processo de desenvolvimento ontológico. Em lugar de determinar o processo do exterior, a essência em Lukács é parte integrante e imprescindível de toda a processualidade. O mesmo ocorre com a esfera fenomênica. Por isso afirma ele que ‘o fenômeno é sempre algo que é e não algo contraposto ao ser’; é parte existente da realidade social (2002b:51).

A “essência é o lócus da continuidade”, conforme lembra Lessa, por que para Lukács “(...) a substancialidade não é uma relação estática-estacionária de auto-conservação, que se contraponha em termos rígidos e excludentes ao processo de devir; ao contrário, ela se conserva em essência, mas de modo processual, transformando-se no processo, renovando-se, participando do processo.” (Lukács, 1979a:161)38 Na parte sistemática do “Ontologia”, Lukács recoloca tais idéias:

Le moderne vedute intorno all’essere hanno distrutto la concezione statica, immutabile, della sostanza; e tuttavia non ne consegue per nulla la necessita di negarla nell’ambito dell’ontologia, ma semplicemente ocorre riconoscerne il carattere essenzialmente dinacimo. La sostanza è cio che nel perenne mutare delle cose, mutando esso medesimo, è in grado di conservarsi nella loro continuità. Questo dinâmico conservarsi non è però necessariamente connesso a uma ‘eternità’: le sostanze possono sorger e perire, senza per questo, purché dinamicamente si mantengano nel período de tempo della loro esistenza, smettere di esser sostanze. (1981, vol. II*, p. 95)

Lessa resume, de forma muito feliz, a posição de Lukács sobre a essência dizendo que ela “(...) é o complexo de determinações que permanece ao longo do desdobramento categorial do ser; a essência são os traços mais profundos que articulam em unidade os heterogêneos momentos que se sucedem ao longo do tempo. A essência é o lócus da continuidade” (ibid.). Acertadamente, Lessa (ibid., p. 52) prossegue argumentando que a relação entre essência e continuidade não é necessidade. E a relação com a necessidade é permeada “por um quantum

38 Ele continua argumentando: “Os valores autênticos que surgem no processo da socialidade só se podem manter e conservar dessa maneira. Naturalmente, é preciso renunciar radicalmente à validade ‘eterna’ dos valores, transcendente ao processo. Todos os valores, sem exceção, nasceram no curso do processo social, num estágio determinado, e precisamente enquanto valores: não que o processo tivesse simplesmente realizado um valor em si ‘eterno’; ao contrário, os próprios valores experimentam, no processo da sociedade, um surgimento real e, em parte, também um desaparecimento real. A continuidade da substância no ser social, porém, é a continuidade do homem, de seu crescimento, de seus problemas, de suas alternativas. E, na medida em que um valor, na sua realidade, nas suas realizações concretas, entra nesse processo, torna-se um componente ativo do mesmo; na medida em que encarna um momento essencial de sua existência social, conserva-se com isso e através disso a substancialidade do próprio valor, a sua essência e realidade. Isso resulta evidente na constância – não absoluta, mas histórico-social – dos valores autênticos. Ambos os lados da antinomia, até então aparentemente insolúvel, o relativismo e o dogmatismo, derivam do fato de que o processo histórico reproduz ininterruptamente, na mudança, tanto a mudança quanto a persistência. A constância de determinadas colocações éticas ou de possibilidades de objetivação no campo da arte é um fenômeno tão marcante quanto o surgimento ou o desaparecimento dessas colocações e dessas possibilidades. Por isso, tão-somente a nova formulação da substancialidade, que também nesse caso se objetiva enquanto continuidade, pode constituir a base metodológica para dissolver essa antinomia”. (ibid.)

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de acaso”, portanto, não sendo dada a priori. Lukács ao discutir a desigualdade no desenvolvimento do ser social39 aponta que tal desigualdade radica na contradição entre essência e fenômeno. Lessa defende que

(...) a contraposição entre essência e fenômeno tem um caráter fundamentalmente histórico e dinâmico, e a essência apenas pode se desdobrar concretamente através da mediação do ser-precisamente-assim das formas fenomênicas a cada momento existentes. Por isso, não apenas os atos individuais, mas também as formas fenomênicas historicamente determinadas jogam um papel decisivo no desdobramento posterior da essência. No caso concreto discutido por Lukács, a essência do desenvolvimento capitalista está presente no desenvolvimento das formas nacionais do capitalismo francês, inglês, etc. Nessa relação, as determinações nacionais comporiam a esfera fenomênica diante daquelas essenciais. Todavia, as formas nacionais que assume o capitalismo certamente são decisivas para o desenvolvimento global do modo de produção capitalista e, por isso, são igualmente decisivas para o desenvolvimento da essência dessa formação social. Novamente, entre essência e fenômeno não há nenhuma rígida contraposição que alinharia essência à necessidade e fenômeno ao acaso (ibid.).

Portanto, a contradição entre essência e fenômeno é dinâmica, histórica. E a essência necessita do fenômeno para se desdobrar concretamente. Logo, essência não é sinônimo de necessidade e fenômeno não é sinônimo de causalidade. No exemplo acima relatado, o fenômeno surge como necessidade. Ficando claro que a partir de tal negação da identidade entre essência e necessidade, Lukács se distancia das ontologias teleológicas das tradições religiosas e hegelianas. Estas tradições são portadoras “(...) de uma concepção do devir na qual no início já estaria contido, ainda que in nuce, o desenvolvimento posterior” (ibid., p. 53). Até aqui desvelamos que para Lukács essência diferencia-se de fenômeno devido à relação de continuidade e não por possuir maior ou menor necessidade em relação ao fenômeno. Segundo Lessa (ibid., p. 54) “Quando Lukács afirma que a substância ‘se conserva em sua essência [...] processualmente’, conecta de modo evidente essência e continuidade. Esta última unifica os distintos momentos de um processo e articula em uma totalidade a diversidade e a irreversibilidade da sucessão dos momentos”. Na relação entre essência e fenômeno, o fenômeno não é um resultado passivo do desdobramento da essência. Entre eles há “(...) uma determinação reflexiva na qual o fenômeno joga um papel ativo na determinação do ‘desenvolvimento social’

39 Vide, por exemplo, Lukács (1979:123-137). Ou o trecho de “Il momento ideale e l’ideologia’ em que diz: “Già questo singolo aspetto, che tuttavia è decisivo, ci dice che nell’ambito dell’essere sociale il mondo dei fenomeni non può in alcun modo venir considerato un semplice prodotto passivo del dispiegarsi dell’essenza, ma che invece proprio tale interrelazione fra essenza e fenomeno costituisce uno dei piú importanti fondamenti reali della ineguaglianza e della contraddittorietà nello sviluppo sociale. Sarebbe però una semplificazione erronea, nel riconescere tale contraddittorietà, intendere l’essenza como identica all’economia e il fenomeno come identico alla sovrastruttura. Al contrario, la separazione fra essenza e fenomeno passa anche attraverso la sfera economica. E ce lo attesta bene un fatto economico fondamentale, a noi già noto: abbiamo visto come la distinzione de plusvaloro dal lavoro che serve alla riproduzione della propria vita si presenti diversa nelle diverse formazioni. Rapporti fra essenza e fenomeno potrebbero con facilità essere rilevanti in tutti i settori dell’economia. Questo significa che la distinzione fra essenza e fenomeno non coincide affatto con quella che intercorre fra base economica e sovrastuttura ideologica, che anzi essa implica un separarsi en essenza e fenomeno anche della sfera economica. E ciò non tocca soltanto singole categorie dell’economia, ma la sua totalità. Quale che sia la formazione cui ci riferisce. (...)” (1981, vo.II**, p. 472-473)

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e, portanto, da essência humana. Como isto se dá deve ser desvendado caso a caso, momento a momento” (ibid.). Segundo Lessa, ao estudar a categoria de reprodução na “Ontologia”, Lukács aponta que as individualidades, enquanto formas fenomênicas, são também e não apenas “(...) portadoras das determinações mais genérico-essenciais do ser social a cada momento histórico. [Logo – PH] (...) não é indiferente à evolução da essência humana a maneira pela qual as individualidades se desenvolvem” (ibid.). Neste contexto Lukács discute a importância da divisão entre o homem burguês e o cidadão para a evolução da sociedade burguesa. Além de tratar da importância das escolhas realizadas pelos indivíduos “(...) entre as alternativas social e cotidianamente postas, no sentido de superar ou não os limites da individualidade burguesa” (ibid, p. 55). Ainda segundo Lessa, Lukács lembra que

(...) nos atos cotidianos, a realidade se apresenta como uma indissolúvel unidade entre essência e fenômeno, e que apenas post festum é possível a delimitação precisa dessas duas esferas. No imediatamente existente, a particularidade de cada instante se consubstancia em uma complexa totalidade que articula essência e fenômeno. Também por isso (e não apenas, já que o ser é, para Lukács, essencialmente histórico) a essência não é portadora de nenhum elemento de ‘implacabilidade’ no desenvolvimento ontológico. Não há, portanto, nenhuma necessidade essencial que possa a priori determiná-lo de forma absoluta (ibid.).

No capítulo da “Ontologia” referente ao problema da ideologia, Lukács em síntese adverte que a essência assegura o quadro dentro do qual as decisões humanas enquanto alternativas se desenvolvem e realizam. Ou seja, mais uma vez, essência para ele não é uma determinação inevitável e dada da atividade prática. Ao contrário ela abre o campo de possibilidades de resultados diferentes do que foi pré-idealizado pelo indivíduo.40 A essência do “(...) ser-

40 “Quando però guardiano al processo complessivo nella sua totalità, appare chiaro come il movimento dell’essenza indipendentemente dalla volontà umana sia, certo, la base di ogni essere sociale, ma base in tale contesto vuol dire: possibilità oggetiva. Riscontrando tale fatto, Marx ha dimostrato l’irrealtà di ogni idea utopica. Ma insieme ha mostrato che gli uomini – proprio ser questo – fanno da sé la propria storia, che lo sviluppo dell’essenza, pur indipendente dal loro pensiero e dalla loro volontà, non è una necesità fatale, che determini tutto in anticipo, che semplicemente accado loro. Questo sviluppo necessario, invece, fa di continuo sorgere nuove costellazioni reali da cui per la prassi deriva l’unico campo di manovra reale ogni volta esistente. La cerchia dei contenuti che gli uomini in questa prassi possono porsi come fini è determinata – in quanto orizzonte – da tale necessità dello sviluppo dell’essenza, ma appunto in quanto orizonte, in quanto campo de manovra per le posizioni teleologiche in esso possibili, non come determinismo generale, inelutabile di ogni contenuto pratico. All’interno di questo campo ogni posizione teleologica si presenta sempre nella forma di alternativa, che per essa è l’única possibile, cosicché risulta già esclusa ogni predeterminazione, la necessità dell’essenza assume obbligatoriamente per la prassi dei singoli uomini la forma della possibilità. Ma, al di là di questo, va ancora sottolineato che le posizioni, in tal senso determinate dallo sviluppo dell’essenza, non sono semplici mediazioni per il cui tramite ciò che necessariamente deve accadere accade appunto conformemente alla necessità; al contrário, esse incidono per via diretta e indiretta sulla decisione concernente l’essenza, in quanto contribuiscono a determinare il come di quel mondo fenomenico senza la cui incarnazione l’essenza non potrebbe mai giungere alla sua realtà piena, essente-per-sé. E poiché, come pure abbiamo visto, questa forma fenomenica è non solo realtà in generale, ma realtà storica estremamente concreta, le posizioni teleologiche cosí effetuate agiscono anche sul concreto camino evolutivo dell’essenza stessa. Ma non nel senso che possono fermalo, deviarlo, vanificarlo, ecc. per sempre, tanto meno poi dargli un altro contenuto. Esse invece, intervenendo sulla sua forma fenomenica concreta, dànno a questo cammino evolutivo un carattere di ineguaglianza. (Si pensi alle diversità fra capitalismo inglese e francese cui abbiamo fatto cenno piú sopra.) Lo svilupppo dell’essenza determina quindi i tratti fondamentali, ontologicamente decisivi, della storia dell’umanità. Per contro, la forma ontologicamente concreta essa deriva da queste modificazioni del mondo

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precisamente-assim existente é a base sobre a qual se desdobra a relação entre a subjetividade e o mundo objetivo” (Lessa, op. cit., p. 56).41 Essas questões têm um outro aspecto, que Lessa explora nas conclusões de seu livro, que é o da relação entre essência-universalidade e fenômeno-singularidade. Lessa (ibid., 276-278), corretamente argumenta que em Lukács a relação entre essência e fenômeno articula-se com a noção de que os homens fazem a história em circunstâncias que eles não escolheram. A objetivação do por teleológico dos indivíduos acarreta o desenvolvimento da essência sociogenérica do ser social e estes atos teleológicos fundam a esfera fenomênica. Lessa prossegue lembrando que de “modo análogo, os elementos genéricos-universais são síntese dos atos singulares” e à semelhança do que ocorre com a singularidade, a universalidade tem por base atos teleologicamente postos pelos indivíduos. Assim o que difere universalidade e singularidade na “Ontologia” de Lukács “são as mediações que, a partir dos atos singulares, se fazem presentes em cada uma delas”. Assim, perspectivando a partir da gênese de universalidade e singularidade não há diferenciação que pressuponha ser uma mais portadora de ser do que a outra. Além disso, defende Lessa que não há em Lukács uma rígida polarização entre universal-essência e singular-fenômeno. Mas os traços universais são “portadores de um quantum maior de permanência nos processos” até por que se assim não fosse não seriam universais. Logo expressam “os traços essenciais com maior intensidade que a singularidade”. Lessa nos lembra que no capítulo “A Reprodução” da “Ontologia”, Lukács demonstra que “as individualidades são também (e não apenas) portadoras das determinações mais genérico-essenciais do ser social”. E devido a este aspecto, as escolhas feitas pelas individualidades dentre alternativas concretas serão fundamentais para o desenvolvimento do gênero humano, pois tais escolhas levam a um desenvolvimento de suas substâncias específicas permitindo uma elevação ou um rebaixamento do seu para-si.42 Assim, Lessa (ibid. 277) conclui que “a essência genérico-social se apresenta tanto na totalidade das formações sociais como em cada uma das individualidades”. Logo gênero humano e indivíduo humano não se diferenciam a partir de um

fenomenico (economia e sovrastruttura), che però si realizzano soltanto come effetto delle posizioni teleologiche degli uomini, nelle quali come mezzo per dirimere i problemi e confliti, interviene anche l’ideologia”. (Lukács, 1981: 475-476) 41 Em suma, Lessa (2002b:57-58) argumenta que: “(...) para Lukács, ao contrário de um deus absconditus, a essência, num escopo mais restrito, é o fundamento da unitariedade última do processo; e, no plano mais genérico, o fundamento da unitariedade última do ser. Em Lukács, a essência se distingue dos fenômenos por essa peculiar conexão com a categoria da continuidade, antes que por uma rígida associação aos momentos de necessidade. (...) (...) O desdobramento categorial do ser dá origem a dois momentos distintos, porém intrinsecamente articulados. Um primeiro momento é composto por aqueles elementos que articulam em unidade o processo enquanto tal. Tais elementos marcam a continuidade do processo no interior de seu devir, são a sua essência. O segundo momento é dado por aqueles elementos que distinguem cada instante de todos os outros instantes. Essa esfera fenomênica, todavia, apenas pode vir a ser se articulada aos momentos de continuidade, que fazem dessas características fenomênicas partícipes de um dado processo mais geral. E isso, frisemos, é válido tanto para o ser social como para o ser em geral. Essência e fenômeno, portanto, para Lukács não se opõem enquanto níveis distintos do ser; a essência não é ‘portadora do ser’ nem mais nem menos que o fenômeno: ambos são igualmente reais. A concepção histórica da substancialidade inaugurada por Marx requer, com absoluta necessidade, que essência e fenômeno possuam o mesmo estatuto ontológico.” 42 Voltaremos a esta questão ao tratarmos, ainda que brevemente, da ética e possibilidade de constituição de uma sociedade auto-regulada a partir da lógica humano-societária do trabalho, no capítulo 5 da presente Tese.

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estatuto ontológico. Não é possível dizer que um é mais ser do que o outro, ou mesmo que há um ser de “segunda categoria”. O gênero não é o portador exclusivo da essencialidade e a individualidade não é portadora exclusiva da forma fenomênica. Essência e fenômeno “estão presentes no processo de individuação e de socialização”. Daqui Lessa conclui que:

A conseqüência dessa radical historicidade da essência e do fenômeno, do universal e do singular é que, na cotidianidade, o real se apresenta como uma síntese entre eles. Ou seja, não apenas a essência não é portadora de nenhuma determinação implacável para o desenvolvimento ontológico, como também, no ser-precisamente-assim, a essência se particulariza, a cada instante, em uma complexa totalidade que articula essência e fenômeno. Algo análogo ocorre com a singularidade e a universalidade. Estas duas esferas do real apenas existem em determinação reflexiva – o universal se reproduz pela mediação dos fenômenos singulares. (ibid., p. 277)

A concepção de Lukács da substância enquanto algo essencialmente histórico precisa de alguns comentários adicionais que nos ajudarão a evitar mal-entendido. Na tradição marxista as incursões de Engels sobre este tema, em particular em algumas passagens dos livros “Dialética da Natureza”, “Anti-Dühring” e no artigo “A ‘Contribuição à Crítica da Economia Política’ de Karl Marx”, permitiram uma apropriação e instrumentalização questionável por parte do marxismo vulgar. Engels, conforme assinalam Lukács (1979a) e Lessa (ibid.), não compreendeu que Marx já nos seus escritos da juventude critica Hegel por realizar uma “fundação lógica da história”, ou seja, por tentar “enxergar, na sucessão dos eventos históricos, uma sucessão lógica de categorias lógico-abstratas. Como as relações lógicas são, sempre, rigorosamente necessárias, a continuidade histórica adquire um rígido caráter de necessidade que se ajusta ao teleologismo hegeliano, mas é completamente estranho à concepção ontológica-histórica de Marx” (Lessa, 2002b:60). Em particular ao tratar do método histórico e lógico, Engels desnuda seus limites:

[O método lógico – PH] (...) não é na realidade, senão o método histórico, despojado apenas da sua forma histórica e das contingências perturbadoras. Ali onde começa a história deve começar também a cadeia do pensamento, e o desenvolvimento ulterior desta não será mais do que a imagem reflexa, em forma abstrata e teoricamente conseqüente, da trajetória histórica; uma imagem reflexa corrigida, mas corrigida de acordo com as leis que fornece a própria trajetória histórica; e, assim, cada fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento da sua plena maturidade, na sua forma clássica (Engels, s.d., p. 310)

A este respeito Lukács (1979b:115) observa que esta construção de Engels representa uma antítese em relação à concepção de Marx ao postular que o “modo lógico é idêntico ao histórico só que despojado da sua forma histórica e das contingências perturbadoras”. Lukács aponta que uma História despojada de história só era possível na filosofia hegeliana

já que a história, tal como toda a realidade, se apresentava nela apenas como a realização da lógica, o sistema podia despojar o acontecer histórico de sua forma histórica e conduzi-lo novamente à sua essência própria, ou seja, à sua lógica. Mas para Marx – e habitualmente também para Engels – a historicidade é uma característica ontológica não ulteriormente redutível do movimento da matéria, particularmente marcada quando, como é o caso aqui, trata-se exclusivamente do ser social. As leis mais gerais desse ser podem também ser formuladas em termos lógicos, mas não é possível referi-las ou reduzi-las à lógica. E que, no texto citado, Engels faça precisamente isso, é algo demonstrado já pela expressão “elementos ocasionais perturbadores”; no plano ontológico, algo ocasional pode

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muito bem ser portador de uma tendência essencial, embora em termos de lógica pura o acaso seja sempre entendido como elemento ‘perturbador’.

Lessa, ancorado em Lukács, aduz que Engels acaba por velar ao invés de desvelar conexões decisivas do ser social realmente existente. E ainda com Lukács (1979b), toma o “Anti-Dühring” como exemplo deste procedimento equivocado de Engels. Engels (1971), no capítulo XIII (Dialética: Negação da Negação) da Primeira Parte (Filosofia) polemiza com Dühring a respeito da negação da negação formulada primeiramente por Hegel e segundo Engels, mal compreendida por Dühring (este ataca Marx por utilizar-se das “cantilenas hegelianas” deste tipo43). Engels se esforça para expor de forma didática o princípio da negação da negação. Para isto lança mão de exemplos no âmbito do ser inorgânico, do ser orgânico e da lógica (matemática). No caso do ser orgânico, dentre outros exemplos ele cita o caso do grão de cevada44 para demonstrar como uma planta nega sua existência anterior como grão. A este respeito Lukács (1979b:46) observa que o grão de cevada, em inúmeros casos é destruído e “(...) essa é a expressão ontológica legítima e não o termo ‘negar’, logicamente determinado, mas insensato no plano ontológico”. Mais adiante Lukács acrescenta que

(...), embora as categorias ontológicas mais gerais, mais abstratas, sejam em última análise o fundamento de todo ser, seu modo de manifestação mais puro, mais genuíno, é constituído por fatos simples da natureza inorgânica (...). E todo aquele que considerar serenamente os problemas ontológicos que surgem nesse contexto deve chegar à seguinte conclusão: não há na natureza inorgânica nenhuma negação, mas tão-somente uma cadeia de transformações do ser-assim em ser-outro, tão somente uma cadeia de relações nas quais todo elemento tem ao mesmo tempo um ser-outro e um ser-para outro. (...) Quando o que temos diante de nós são objetos e processos cujo tornar-se outro não subverte o modo fundamental de ser, parece-nos inteiramente incorreto operar no plano ontológico com a categoria de negação. Enquanto reflexo ideal, a negação permanece fora da espécie de ser desses objetos ontológicos, que é privada de sujeito. Tão somente nos casos em que tornar-se outro significa objetivamente uma passagem que subverta radicalmente as formas de objetividade ou dos processos é que ele pode ser entendido como negação também no plano ontológico objetivo. Por exemplo: na morte dos seres vivos, onde cessa o processo reprodutivo biológico dos mesmos (um processo que contém as leis físicas e químicas enquanto dialeticamente

43 “’Um homem sensato dificilmente se deixará convencer pelas cantilenas hegelianas, como a negação da negação, da necessidade da propriedade comum da terra e do capital... A nebulosa confusão dos conceitos de Marx não surpreenderá, de resto, a quem saiba o que se pode imaginar tendo por base a dialéctica de Hegel, ou ainda mais as extravagâncias que daí resultam. Observemos expressamente, para quem desconheça tais pormenores, que para Hegel a primeira negação é a ideia do pecado original, tirada do catecismo e, a segunda, a ideia de uma unidade superior que conduz à redenção. Como poderia fundar-se a lógica dos factos numa farsa análoga à da religião? ... O senhor Marx fica-se tranqüilamente pelo nebuloso mundo da sua propriedade – simultaneamente individual e social – e deixa aos seus adeptos o cuidado de resolver, por si próprio, este profundo enigma dialético’. É assim que fala Dühring”. (Engels, 1971:164) 44 “Tomemos um grão de cevada. Milhares de grão semelhantes são triturados, fervidos, postos em fermentação e, finalmente, consumidos em forma de cerveja. Mas se um grão de cevada encontra as codições que lhe são normais, se cai em terreno favorável, sofre uma transformação específica sob a acção do calor e da humidade, quer dizer, germina, e o grão desaparece como tal, é negado; é substituído pela planta nascida dele, que é a negação do grão. Mas qual é o curso da vida normal nessa planta? Cresce, floresce, é fecundada e, por fim, produz novos grãos de cevada; e quando estes chegam a amadurecer, e caule morre, e também por sua vez, é negado. E como resultado de semelhante negação da negação, temos, de novo, o grão de cevada inicial, mas multiplicado por dez,vinte, trinta vezes.” (Engels, 1971:170-1)

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superadas, isto é, subordinadas às leis biológicas da reprodução), onde a matéria presente no organismo passado volta novamente ao âmbito das leis físico-químicas normais da sua materialidade. Nesse caso, embora a negação também se apresente sem sujeito, verifica-se uma negação em termos objetivo-ontológicos, a negação do processo auto-reprodutivo que constituía o objeto; e da negação não surge simplesmente algo diverso, mas algo ontologicamente novo em relação a esse processo. Essa situação se repete em nível superior ao ser social. Nesse caso, porém, a negação tem um sujeito, cujo caráter todavia não é apenas mimético, como no caso das relações com a natureza; sua atividade e a negação nela contida formam já um momento objetivo da ontologia do ser social. (ibid., p. 47-48)

Lukács, na longa citação acima, argumenta sobre a problematicidade ontológica da dedução lógica da negação da negação feita por Engels. Lessa (2002b:62) ressalta que nos casos apresentados por Engels e analisados por Lukács temos a transformação de um ser em outro, mas não a “(...) negação ontológica da legalidade operante em todo o processo”. Na natureza só verifica-se a negação ontológica no nascimento e na morte do ser orgânico, de resto temos a “(...) transformação do ser em ser-outro, não contendo ela nenhuma negação em sentido ontológico. Isso se evidencia no momento em que as mesmas leis encontradas no início do processo são reafirmadas em cada uma das fases posteriores”. Quanto as negações que ocorrem no âmbito do ser social, Lukács (1979b:49-50) diz que elas são

(...) não apenas ligadas ontologicamente a atos subjetivos, mas derivam seu caráter do fato de que toda atividade humano-social decorre necessariamente de alternativas, pressupõe uma escolha, uma decisão específica. Da alternativa nasce, por isso, uma bipartição do mundo objetivo, em função das reações provocadas pelas inter-relações com ele, bipartição posta pelo sujeito sobre a base das propriedades conhecidas do objeto. Partindo do contraste entre útil e o inútil, o benéfico e o nocivo, etc, a série prossegue, passando por muitas mediações sociais, até chegar aos ‘valores máximos’, como o bem e o mal. Para pôr, através da negação, esse pares ligados-separados de oposições, a práxis humana e o pensamento que a dirige devem homogeneizar o mundo circundante. As pedras dentre as quais o homem primitivo escolhe as que lhe são adequadas, deixando de lado as inadequadas, são certamente adequadas ou não por causa de sua forma natural casual; mas essa propriedade delas só pode se realizar no trabalho humano, só através desse trabalho; no ser-aí da pedra, tal propriedade permaneceria como virtualidade jamais realizada.

Assim, no ser social as transformações só podem ocorrer por meio do pôr teleológico que tem no trabalho sua proto-forma e que envolvem necessariamente a escolha dentre alternativas, ficando óbvia a diferença entre as processualidades presentes no ser social, no ser orgânico e inorgânico. A isto, Lessa (op.cit.) acrescenta que a intervenção dos homens na transformação do grão de cevada em cerveja ou do feudalismo em capitalismo envolvem negações ontológicas. No caso do grão de cevada, a legalidade biológica nele presente não se encontra mais na cerveja, cerveja já não se reproduz como a semente. E no caso da passagem do feudalismo para o capitalismo, a legalidade própria do feudalismo já não pode ser encontrada no capitalismo.45

45 “A semente e o feudalismo foram efetivamente destruídos por meio dos atos humanos; do estágio posterior do processo não há como se repor o estágio anterior. Tal destruição, em ambos os casos, deu origem a algo efetivamente novo, no plano do ser. Do processo não surgiu apenas uma nova forma de uma velha legalidade, mas ocorreu a gênese de uma nova legalidade portadora de novas formas. Tanto a cerveja como o capitalismo não podem vir a ser senão pela transformação teleologicamente orientada do real, pela mediação dos atos humanos. Que há

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Com isso, Lessa aponta acertadamente o núcleo da crítica de Lukács às tentativas de Engels de determinar uma dialética da natureza e do ser social:

Ao subsumir a esfera ontológica à abstração lógica, ao conceber a determinação das categorias ontológicas universais como um processo de abstração lógica que despoja a processualidade histórica de suas determinações particulares, Engels teria velado as diferenças ontológicas essenciais que distinguem o ser social da natureza (2002b:63).

Para Lukács a reprodução do ser social implica numa contínua transformação da natureza, o que exige uma articulação entre ser social e ser natural. Mas ele tem claras as distinções entre o ser social e o ser natural. Ele reconhece a historicidade da natureza a historicidade do ser social e identifica a diferença entre elas no fato de que a historicidade do ser social só vem a ser por meio do pôr teleológico das decisões humanas individuais que envolvem sempre alternativas. Já a historicidade natural é uma processualidade muda, condicionada, limitada pelas “necessidades das processualidades químicas, físicas ou biológicas” (Lessa, 2002b:63), e que somente pode levar a “incessante reprodução do mesmo” (Lessa, 2007:24). A “dialética da natureza” ocorre “(...) porque o ser em geral, assim como cada uma de suas esferas, tem na historicidade uma determinação ineliminável. Sem que isso diminua, ou mesmo atenue minimamente, a peculiaridade histórica do ir-sendo de cada uma delas” (Lessa, 2002b: 64). Lukács argumenta que “existem três esferas ontológicas distintas: a inorgânica, cuja essência é o incessante tornar-se outro mineral; a esfera biológica, cuja essência é o repor o mesmo da reprodução da vida; e o ser social, que se particulariza pela incessante produção do novo, por meio da transformação do mundo que o cerca de maneira conscientemente orientada, teleologicamente posta” (Lessa, 2007:25). Mas, ainda que distintas, essas esferas ontológicas são inexoravelmente articuladas. Sem a esfera inorgânica a esfera orgânica é uma impossibilidade e sem a esfera orgânica inexistiria o ser social. O que explica esta articulação é uma processualidade evolutiva “que é responsável pelos traços de continuidade que articulam as três esferas entre si” (ibid.). Logo, para Lukács, o ser social só pode existir e se reproduzir enquanto tal através desta inexorável articulação com a natureza46. Assim, para ele a unitariedade do ser diferenças significativas entre a fabricação da cerveja e o complexo processo de transformação do feudalismo em capitalismo é uma evidência que não desejamos velar. Para nosso argumento, todavia, o decisivo é que entre a negação teleologicamente posta da semente ou do feudalismo e a transformação biológica da semente ou a transformação geológica da montanha há uma radical diferença no plano do ser. E concluindo com Lukács, ao reduzir tudo a ‘negações’, Engels terminou por velar esse fato ontológico fundamental 46 “Sul piano ontológico oggetivo viene cosí alla luce la nuova costituzione, già da noi descritta sotto vari profili, della coscienza umana, la quale smette di essere un epifenomeno biologico e diviene un essenziale momento attivo dell’essere sociale che sta sorgendo. Quando abbiamo parlatto in casi diversi dell’arretramento della barriera naturale provocato dal lavoro, è stata sempre molto presente questa nuova funzione della coscienza come portatrice delle posizioni teleogiche della prassi. Se però rispetto a questo complesso di problemi vogliamo procedere con una visione critica ontologicamente rigorosa, dobbiamo osservare che si verifica bensí un arretramento continuo della barriera naturale, ma non si potrà mai arrivare alla soppressione completa di quest’ultima. L’uomo, membro attivo della società, motore delle sue trasformazioni e dei suoi movimenti in avanti, resta in senso biologico ineliminabilmente un ente natrurale: in senso biologico la sua coscienza – nonostante turri i cambiamenti di funzione pur decisivi sul piano ontologico – è indissociabilmente legata al processo di riproducione biologica del suo corpo; dato il fatto generale di tale legame, la base biologica della via resta intatta anche nella società. Per quante possibilità si abbiano di allungare, ecc. Tale processo, ad esempio usando la conoscenza, nulla muta quanto al legame ontologico ultimo della coscienza con il processo vitale del corpo” (Lukács, 1981:104) Sobre trabalho, consciência, teleologia do trabalho, etc, trataremos mais adiante.

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não desaparece com o desenvolvimento das três esferas ontológicas. O desenvolvimento do ser social garante a permanência da unidade, mas num outro patamar, com características mais ricas e maior articulação entre eles. “Essa unidade ontológica última se evidencia, por exemplo, tanto no fato de a reprodução social requerer uma permanente troca orgânica com o mundo natural, quanto pelo fato de que, sem natureza, não pode haver ser social” (Lessa, 2007:26). Mas esta distinção e articulação imanente entre as três esferas ontológicas só pode ser corretamente compreendida se considerarmos a categoria de momento predominante que foi trabalhada por Lukács e antes dele por Marx (Lessa, 2007:27). Lukács, na parte da sua “Ontologia” destinada ao estudo da reprodução, dedica um item (“O Problema da Prioridade Ontológica”) para tratar desta questão47. Ele inicia lembrando que Hegel destacava o caráter contraditório de todo processo e de sua reprodução, mas também assinalava que “si sia afferrata l’interazione, ci si trova solo ‘alla soglia del concetto’, che accontentarsi di conoscere l’azione recíproca significa avere ‘uma condotta assolutamente priva di concetto’” (Lukács, 1981:229). Ou seja, é preciso que um dos elementos da contradição presente no processo se torne a “determinação predominante do sentido e da direção do processo enquanto tal. A cada momento um dos elementos do complexo deve predominar, de modo a conferir dinamicamente uma direção ao processo” (Lessa, ibid.). Nas palavras de Lukács (1981:229-230):

(...) la semplice interazione conduce a un assetto stazionario, in definitiva statico; se vogliamo dare espressione concettuale alla dinamica vivente dell’essere, al suo sviluppo, dobbiamo mettere in luce quale sia nella interazione di cui si tratta il momento soverchiante. È questo infatti – ma non semplicemente la sua azione, anche le resistenze contro cui urta, che esso medesimo scatena, ecc. – che dà un indirizzo, una linea di sviluppo, alla interazione, la quale, nonostante tutto il suo parziale movimento, sarebbe altrimenti statica. Le sole interazioni non possono produrre in un complesso nulla piú che lo stabilizzarsi dell’equilibrio. Intendere bene questo nesso è partiolarmente importante quando si tratta del pasaggio da un sfera dell’essere all’altra. Giacché è evidente che nella genesi di questa cosa nuova si hanno fenomeni di carattere transitorio che non condurrebbero mai alla nascita, al consolidamento, all’autocostituirsi del nuovo grado dell’essere, se non vi fossero forze appartenenti al nuovo tipo di essere che nelle – insopprimibili – interazioni con quelle appartenenti al vecchio non svolgessero il ruolo di momento soverchiante.

A forma genérica do momento predominante é denominada por Lukács de “salto ontológico” 48. Tomando por referência a esfera orgânica, vimos que ela se distingue da esfera inorgânica por sempre repor o mesmo, de forma muda, de reproduzir o previamente existente. É o caso de uma espécie animal determinada que se reproduz de forma muda, repondo sempre a

47 Parte II (“I Complessi Problematici piú importanti”), capítulo II (“La Riproduzione”), item 3 (“Problemi di priorità ontologica”). 48 Ele trata do salto ontológico em sua “Ontologia”, na parte II (“I Complessi Problematici piú importanti”), capítulo I (“Il Lavoro”), item 1 (“Il Lavoro come posizione teleológica”). Inicia relembrando o mérito de Engels em colocar o trabalho no centro da humanização do homem, destacando o salto ocorrido dos primatas superiores para o homem. Lukács acertadamente sinaliza que: “Engels rivela poi il processo estremamente lento attraverso cui si compie questo trapasso, Che però non gli toglie il carattere di salto. Affrontare i problemi ontologici in maniera sobria e corretta significa tener sempre presente che ogni salto implica un mutamento qualitativo e strutturale dell’essere, dove la fase iniziale contiene in sé deterninate premesse e possibilità delle fasi successive e superiori, ma queste non possono svilupparsi da quella secondo una semplice e rettilinea continuità. L’essenza del salto è costituita da questa rottura con la normale continuità dello sviluppo e non dalla nascita nel tempo, improvvisa o graduale, della nuova forma d’essere”. (1981:17-18)

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mesma espécie, ainda que ao longo de longos períodos ocorram mutações que podem implicar em verdadeiros saltos ontológicos. Já a esfera inorgânica se caracteriza por ser um eterno tornar-se outro, vide o caso da transformação da montanha em vale devido à ação das forças da natureza ao longo de milhares de anos. Temos como óbvio que entre estas duas esferas há uma ruptura ontológica, pois são formas distintas de ser. E não é possível derivar uma esfera diretamente da outra. Firmemente ancorado em Lukács, Lessa (2007:28) nos diz que:

O ser vivo apenas pode se transformar em ser inorgânico pela morte, que é o momento de destruição da vida. Por sua vez, as substâncias inorgânicas que compõem a matéria orgânica se submetem às leis biológicas, isto é, se integram à reprodução biológica. O movimento objetivo das substâncias inorgânicas incorporadas aos processos biológicos resulta em que o mero tornar-se-outro da processualidade inorgânica passa a ser predominantemente determinado pelo repor-o-mesmo da reprodução biológica. O tornar-se-outro inorgânico é tão-somente uma parte – não predominante – do processo biológico global. Sublinhemos: entre a esfera inorgânica e a vida há uma ruptura das formas de ser, há uma ruptura ontológica.

Lessa (ibid., p.29) nos lembra que para Lukács (vide citação na nota 18), o salto ontológico constitui-se no momento negativo da ruptura, o momento da negação da esfera ontológica anterior . A essência do salto ontológico está neste momento negativo, mas “(...) a explicitação categorial do novo ser não se esgota no salto. Requer um longo e contraditório processo de construção das novas categorias, da nova legalidade e das novas relações que caracterizam a esfera nascente. Esse longo processo, cuja positividade (afirmação do novo ser) contrasta com a negatividade do salto, é o processo de desenvolvimento do novo ser”. O novo ser só pode vir a ser a partir do salto ontológico, entretanto, o salto em si não é capaz de garantir a constituição do novo ser. É preciso toda uma “processualidade evolutiva” para que haja a explicitação do novo ser. A relação entre a esfera ontológica inorgânica e a orgânica indica a riqueza do salto ontológico e do desenvolvimento da “processualidade evolutiva”. Ainda com Lessa (ibid., p. 30), podemos dizer que no plano ontológico mais geral “o repor-o-mesmo que caracteriza a esfera biológica tem de ser o momento predominante que determina a processualidade concreta mesmo da forma mais primitiva de vida. Se o momento predominante não for a reprodução do mesmo, não se operará o salto para além do ser inorgânico”. Por fim, entre essas esferas ontológicas não há intermediação possível, a passagem entre elas só pode se dar através do salto ontológico. “E, nele, a ação do momento predominante é imediatamente visível: se a forma de ser da esfera que está surgindo não for o momento predominante desde o primeiro instante, o salto jamais poderia ter lugar” (Lessa, ibid.). Na passagem da esfera ontológica do ser orgânico para a do ser social ocorre um salto ontológico análogo, mas distinto do verificado acima. No ser social o momento predominante do salto ontológico é a reprodução do novo através do pôr teleológico que envolve alternativas, e não como na esfera biológica na qual o momento predominante é a reprodução muda do mesmo. Assim, reafirmamos a historicidade do ser, a articulação ontológica do ser social com o ser orgânico e o “caráter puramente social do mundo dos homens” como pontos de partida da construção da ontologia de Lukács. Entender a articulação e distinção ontológica do ser social com a natureza exige que abordemos a categoria trabalho, sua processualidade interna, pois para Lukács e para Marx, o trabalho é a protoforma do agir humano.

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Como já argumentamos, para Lukács a substancialidade do mundo dos homens é dada pela ação dos indivíduos humanos (e do gênero humano). Os homens fazem sua história, e para Lukács (e Marx) não há limites naturais, apriorísticos ou a-históricos para o seu vir-a-ser. Os homens constroem sua história tomando decisões no cotidiano que é historicamente condicionado, e isto coloca necessidades e aponta possibilidades de desenvolvimento. Assim, em Lukács (e em Marx) não se verifica a contraposição absoluta entre necessidade e liberdade, tampouco o predomínio de uma categoria sobre a outra. Ambas categorias “(...) são construídas pela práxis humana. Ou seja, apenas podem surgir e se desdobrar pela mediação cotidiana de atos teleologicamente postos pelos indivíduos no processo de reprodução social” (Lessa, 2002b:65). Frisamos, com Lessa e Lukács, que a sociabilidade pura do ser social não elimina sua relação com a natureza. Pois tanto os atos individuais (singularidade) quanto a reprodução social global (generalidade, universalidade) só podem vir a ser através da troca orgânica com a natureza, por meio do trabalho. A troca orgânica com a natureza “(...) implica [n]a incessante transformação do mundo natural em mundo social. Com intensidade e escala crescentes, a natureza passa por processos de objetivação puramente sociais, que apenas enquanto objetivações de prévias-ideações poderiam surgir e se desenvolver” (Lessa, 2002b:66). Entretanto, o surgimento da esfera ontológica do ser social não implica no desaparecimento da esfera natural, isto não se coloca sequer como possibilidade. A presença do ser natural é, portanto, ineliminável. O ser enquanto complexo histórico é o que surge da articulação e distinção entre ser social e natureza. Lessa (ibid., p. 67) conclui que:

O desdobramento categorial do ser ao longo do tempo, pelo qual a esfera inorgânica se complexifica originando a vida e, posteriormente, o ser social, possui duas conseqüências imediatamente perceptíveis. Em primeiro lugar, aumenta a heterogeneidade, a complexidade interna do ser. Em segundo lugar, em nada diminui (apenas torna mais articulado) o caráter de complexo por último unitário do ser. Para Lukács, os momentos de heterogeneidade apenas podem existir em permanente articulação entre si; tão somente enquanto diferentes momentos de uma mesma totalidade podem surgir e se desenvolver os elementos de diferenciação. Em suma, a vida só pode existir tendo por base o ser inorgânico, e sem a natureza como um todo não pode haver ser social. A troca orgânica do ser social com a natureza é a mediação ontológica que possibilita que o ser social se constitua enquanto esfera ontológica particular no interior da totalidade do ser em geral. Na tradição marxiana, tal mediação é o trabalho.

Por isso, passaremos a tratar da categoria trabalho tal como é exposta na “Ontologia” de Lukács. 2.3. A Categoria Trabalho Como já afirmamos anteriormente, para Lukács a categoria trabalho é a protoforma do agir humano. Protoforma do agir humano, conforme lembra Lessa (2007:36; nota 1) “(...) não significa categoria primeira, mas a categoria originária, mais simples, primária (...) [pois – PH]

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não poderia haver trabalho antes do ser social”. Conforme Lukács49 isto não significa que seja possível ou correto reduzir todos os atos humanos ao trabalho, mas o trabalho, para ele, é o “fundamento ontológico das outras formas de práxis social”. A reprodução da formação social, seu metabolismo, exige e comporta outros tipos de ação que não o trabalho. Entretanto, “sem o trabalho, (...), as inúmeras e variadas formas de atividade humano-social não poderiam sequer existir” (Lessa, ibid.). O trabalho humano envolve necessariamente um momento de planejamento da ação, ele antecede e dirige a ação concreta. Tal momento é chamado por Lukács de prévia-ideação. Por ela as conseqüências do agir são ante-vistas pela consciência, isto antes do seu vir-a-ser concreto. Ainda que o momento da prévia-ideação seja abstrato, se passe na consciência do indivíduo, ele tem “força material na determinação dos atos sociais” (Lessa, 2007:37). A prévia-ideação é fundamental para a práxis social concreta, e apenas por ser abstrata é que ela possui tal importância. “Só por ser abstratividade pode ela constituir o momento em que os homens confrontam passado, presente e futuro e projetam, idealmente, os resultados de sua práxis” (ibid.). Mas a prévia-ideação só pode ser enquanto tal se ela se realiza na prática concreta, se ela se objetiva, se concretiza num dado objeto, o que leva necessariamente à transformação de um dado setor da realidade. Lukács50chama isto de objetivação. Conforme argumenta Lessa (2007:38), partindo de Lukács, entre a consciência que põe a prévia-ideação e o concreto modificado, objetivado, duas relações se colocam: (1) o objeto só pode existir a partir da prévia-ideação e (2) entre a consciência e o objeto que é o resultado da prévia-ideação “há uma efetiva distinção no plano do ser”. O construtor, o criador, não é o objeto, a criação, e suas histórias são distintas, não sendo incomum que a criação sobreviva ao criador. Lessa (ibid., p. 39) lembra que a distinção entre sujeito criador e coisa criada, objetivada, é a base, o fundamento ontológico da exteriorização51. E que o sujeito opera com a hipótese de

49 Lukács (1981:19) nos diz que: “Viene cosí enunciata la categoria ontologica centrale del lavoro: per suo tramite una posizione teleologica si realizza nell’ambito dell’essere materiale come nascita di nuova oggetività. Il lavoro risulta dunque il modello di ogni prassi sociale, dove infatti – anche se attraverso mediazioni che possono essere molto articolate – vengono sempre tradotte in realtà posizioni teleologiche, in termini che sono alla fin fine materiali. Naturalmente, como vendremo piú in là, non si deve essere schematici ed esagerare questo carattere paradigmatico del lavoro per l’agire degli uomoni nella società; ma per l’appunto se teniamo presenti le differenze, che sono assai importanti, vediamo l’essenziale affinità ontologica, in quanto risulta che il lavoro può servire da modello per comprendere le altre posizioni socio-teleologiche proprio perché, quanto all’essere ne è la forma originaria. Il semplice fatto che nel lavoro si realizza una posizione teleologica è un’esperienza elementare della vita quotidiana di tutti gli uomini, per questo ciò è divenuto un’inestirpabile componente di ogni pensiero, dai discorsi quotidiani all’economia e alla filosofia. Il problema che sorge a questo punto non è perciò quello di pronunciarsi pro o contro il carattere teleologico del lavoro, il vero problema è piuttosto di sottoporre a un esame ontologico autenticamente critico la generalizzazione quasi illimitata – di nuovo: dalla quotidianità a mito, alla religione e alla filosofia – di questo fatto elementare”. 50 Conforme a citação da nota 19 e Lessa (2007:38). 51 Segundo Lukács (1981:36-8): “Intorno ai modi concreti di manifestarsi ed esprimersi della coscienza, cosi come intorno al concreto modo d’essere della sua natura non piú epifenomenica, ci fermeremo piú volte in questo capitolo e nei successivi. Ora possiamo accenare – e per il momento in termini abstrati – solo al problema di fondo. Abbiamo qui l’indissociabile solidarietà di due atti in sé reciprocamente eterogenei, i quali però in questo loro nuovo vincolo ontologico compongono il vero complesso essente del lavoro e, come vedremo, costituiscono il fondamento ontologico della prassi sociale, anzi dell’essere sociale in genere. I due atti eterogenei di cui stiamo parlando sono: da una parte il rispecchiamento il piú possibile esatto della realtà presa in considrazione, dall’altra il correlativo porre quelle catene

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que tanto ele quanto a natureza irão se comportar “da forma prevista na prévia-ideação”. Sendo que ao término da objetivação, tanto a objetividade externa ao criador quanto a subjetividade dele se transformam. Novos conhecimentos e habilidades são agregados aos antigos pré-existentes, logo ele pode fazer coisas que não podia fazer originalmente. Assim, com novos conhecimentos e habilidades surgem novas necessidades. Resumindo, Lessa (2007:39) diz que para Lukács:

A exteriorização é esse momento do trabalho pelo qual a subjetividade, com seus conhecimentos e habilidades, é confrontada com a objetividade a ela externa, à causalidade e, por meio deste confronto, pode não apenas verificar a validade do que conhece e de suas habilidades, como também pode desenvolver novos conhecimentos e habilidades que não possuía anteriormente (...) A exteriorização é o momento de transformação da subjetividade sempre associada ao processo de transformação da causalidade, a objetivação.

Lessa acrescenta duas observações neste ponto: (1) é uma impossibilidade a identidade sujeito-objeto tal como defendida no universo hegeliano. Por mais que se refine a capacidade humana de transformar o mundo concreto “segundo finalidades postas socialmente (...) objeto e sujeito serão sempre entes ontologicamente distintos” (p. 40); (2) o sujeito se põe como sujeito pela objetivação/exteriorização, por ela ocorre a transformação teleológica do real. “Ser humano, para Lukács, significa uma crescente capacidade de objetivar/exteriorizar – isto é, transformar o mundo segundo finalidades socialmente postas” (ibid.).52 É pelo trabalho que a consciência do

causali che, come sappiamo, sono indispensabili per realizzare la posicione teleologica. Questa prima descrizione del fenomeno mostra come ambedue i modi fra loro eterogenei di considerare la realtà, ognuno per sé e tutt’e due nel loro ineluttabile collegamento, formano la base della specificità ontologica dell’essere sociale. Cominciando ora la nostra analisi dal rispecchiamento, riscontriamo subito la precisa separacione che intercorre fra oggetti, che esistono indipendentemente dal soggetto , e soggetti, che possono riprodurli in una approssimazione piú o meno corretta mediante atti di coscienza, che possono trasformali in proprio possesso spirituale. Questa separazione divenuta consapevole fra soggeto e oggetto è un prodotto necessario del processo lavorativo e insieme la base per il modo d’esitenza specificamente umano. Se il soggetto in quanto distaccato nella coscienza da mondo oggetivo, non fosse capace di osservare quest’ultimo, di riprodurlo nel suo essere-in-sé, quella posizione del fine che è a fondamento del lavoro, anche al livello piú primordiale, non potrebbe mai aver luogo. Naturalmente anche gli animali hanno un rapporto – che diviene sempre piú complesso, che alla fine è mediato da una sorta di coscienza – con il loro ambiente. Ma poiché esso rimane nella cerchia del biologico, per loro non può mai aversi, come invece per l’uomo, una tale separazione e un tale fronteggiarsi di soggetto e oggetto. (...) Sulle ulteriori conseguenze di questa linea di sviluppo dell’uomo tramite il lavoro dovremo aggiungere molto altro piú avanti. Qui, per chiarire bene tale nuova struttura di fondo sorta mediante il lavoro, dobbiamo limitarci a esaminare i fatto che nel rispecchiamento, della realtà come premessa della presenza di fine e mezzo nel lavoro, si compie uma separazione, um distacco dell’uomo dal suo ambiente, uma presa di distanza che si manifesta com chiarezza nel fronteggiarsi di soggetto e oggetto. Nel rispecchiamento della realtà la riproduzione si distacca dalla realtà riprodotta, si coagula in uma ‘realtà’ propria della coscienza. Abbiamo messo tra virgolette la parola realtà, perché questa nella conscienza viene appunto soltanto riprodotta; nasce uma nuova forma di oggettività, ma non uma realtà, e – proprio in senso ontologico – non è possibile che la riproduzione sia della stessa natura di quel che essa riproduce, tanto meno sarà identica ad esso. Al contrario, sul piano ontologico l’essere sociales si suddivide in due momenti eterogenei, che dal punto di vista dell’essere non soltanto si trovano uno di fronte all’altro come eterogenei, ma sono addirittura opposti: l’essere e il suo rispechiamento nella coscienza”. 52 Lessa (2007:40) prossegue argumentando que: “Para a compreensão da investigação ontológica do último Lukács é da máxima importância esse conjunto de questões de que estamos agora tratando. O filósofo húngaro afirma, após Marx, que o objeto socialmente posto é subjetividade objetivada [Essa expressão não é de Lukács, mas do professor José Chasin. Lukács utiliza causalidade

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criador se torna objetividade, se concretiza, é pelo trabalho que a prévia-ideação é objetivada, mas isto não implica numa igualdade entre sujeito e objeto e tão pouco numa separação absoluta e insuperável entre eles, como advogam as perspectivas do materialismo estruturalista. O ser natural, os objetos naturais, as forças da natureza e a legalidade natural, quando se tornam participantes de processualidades sociais, não sofrem “nenhuma transformação interna” 53. A natureza e suas leis permanecem em sua essência, mantêm seu caráter ontológico-natural, mesmo quando entram no fluxo da práxis social. Entretanto, a natureza, neste processo, se transmuta no contrário de si própria, agora está compreendida no ser social. O pôr teleológico do homem utiliza a atividade, a legalidade, as causalidades próprias da natureza, reorganizando-as em novas combinações adequadas à suas finalidades previamente elaboradas. Aqui temos um salto ontológico por meio do qual Natureza e trabalho chegam a um produto, uma síntese em si diferente da mera justaposição de ambos: o mundo dos homens, o ser social. Como no lembra Lessa (2002b:78):

Essa síntese é obra do trabalho – e no interior deste do processo de objetivação –, que, a partir do rearranjo teleologicamente posto da natureza, funda o ser social enquanto um totalidade unitariamente homogênea e contraditória (os elementos naturais não deixam de ser natureza, a teleologia e a causalidade são sempre ontologicamente distintas etc.).

Quando trata do mundo dos homens, do ser social, Lukács fala de uma “segunda natureza” 54. Entendemos, seguindo Lessa (2002b) que para Lukács não se trata de igualar ou

posta. (...)] (só poderia ser pela objetivação de uma prévia-ideação) e ontologicamente distinto do sujeito (recusando, portanto, toda identidade sujeito-objeto). Ou seja, ele postula um tertium datur, uma terceira alternativa, entre dois extremos clássicos da Filosofia. A identidade entre sujeito e objeto situaria Lukács no campo do idealismo hegeliano. Para Hegel, sabemos, o objeto nada mais seria que o próprio espírito exteriorizado. Por outro lado, a separação insuperável, absoluta, entre consciência e objeto, a ponto de a prévia-ideação perder toda e qualquer importância na constituição do objeto, é a postura típica daquilo que, no prefácio, denominamos materialismo estruturalista. Para este, a consciência é um mero epifenômeno, um mero resultado passivo do mundo material. Diferenciado-se destes dois extremos, Lukács argumenta que, via trabalho, a consciência se objetiva e se exterioriza em objetos que são ontologicamente distintos de si própria. Sem a atuação da consciência, da prévia-ideação, esses objetos não existiriam, o que não significa que haja identidade entre sujeito-objeto. Ou, o que dá no mesmo, sujeito e objeto são ontologicamente distintos, ainda que o mundo dos homens se constitua em um infindável movimento de objetivação de prévias-ideações”. 53 Lukács (1981:26-27): “(...) per um verso, la posizione teleológica ‘semplicemente’ utilizza l’attività propria della natura; per l’altro verso la trasformazione di tale attività fa di questa il contrario di se stessa.Cioè a dire, questa attività naturale si tramuta, senza che cambino in termini ontologico-naturali i suoi fondamentei, in una attività posta. Hegel ha cosí descritto un lato ontologicamente determinante del ruolo che la causalità naturale ha nel processo lavorativo: senza subire nessuna trasformazione interna, dagli oggetti, dalle forze della natura sorge qualcosa di totalmente nuovo; l’uomo che lavora può inserire le loro proprietà, le leggi del loro movimento, in combinazioni completamente nuove, attribuire loro funzioni, maniere di operare del tutto nuovo. Ma dato che ciò può avvenire solo entro l’ontologica insopprimibilità delle leggi della natura, l’único mutamento delle categorie naturali puó consistere nel fatto che esse – in senso ontologico – vengono poste; il loro esser-poste è la mediazione del loro subordinarsi alla determinante posizione teleologica, per cui al contempo dall’intrecciarsi, posto, di causalità e teleologica si ha un oggetto, processo, ecc. Unitariamente omogeneo”. 54 “Le diversità determinanti insorgono in quanto l’oggetto e il mezzo di realizzazione della posizione teleológica divengono sempre piú sociali. Ciò non significa, come sappiamo, che la base naturale scompaia, è solamente quell’esclusivo indirizzarsi alla natura, caratteristico del lavoro come l’abbiamo inteso qui, che viene sostituito da intenzioni sempre piú sociali e miranti contemporaneamente a piú oggeti. Sebbene, dunque in tali posizioni la natura decada a semplice momento, nondimeno nei suoi confronti occorre mantenere quell’atteggiamento divenuto obbigatorio nel lavoro. Vi si aggiunge però un secondo momento. I processi, le

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identificar a legalidade social à natural, de tornar as leis objetivas da natureza válidas para o ser social. O sentido dado por Lukács ao termo “segunda natureza” é o de que o objeto, enquanto objetivação da prévia-ideação, torna-se algo distinto do sujeito criador, com uma história própria, com autonomia em relação ao criador e com novas influências sobre o criador e a sociabilidade na qual este se insere. O desenvolvimento do objeto é determinado de forma primordial pela legalidade imanente a ele e pelas “relações que porventura termine por estabelecer com a totalidade do existente” (Lessa, 2002b:79). Destaque-se que dos desejos do criador pouco influenciam essas determinações do objeto. Assim, a objetificação da prévia-ideação surge aos olhos do criador como algo tão distinto dele quanto a “primeira” natureza. E para que a vontade do criador prevaleça é preciso transformar o real, quer seja este real natural ou posto pela vontade do criador. Mas, atenção, pois a totalidade social só pode sobrevir enquanto resultado de atos individuais singulares de personas concretas. E ao ser posta, surge como uma exterioridade objetiva que para ser transformada exige a ação dos homens que a criaram. Mas sua transformação exige a mudança da consciência dos indivíduos, e nisto difere do que ocorre com o ser natural. Para este basta a ação do homem diretamente sobre ele. O que torna clara as diferenças entre as processualidades do ser social e do ser natural. Como desdobramento desta questão, Lessa (ibid.) lembra que apesar das diferenças fundamentais entre ser natural e social, a causalidade posta (própria ao ser social) “mantém seu caráter causal puro”. Conforme Lukács (1981:25-6):

Non è poco, ma non è tutto. Infatti alla base del lavoro vi è che l’essere, il movimento, ecc. Della natura sono del tutto indifferenti rispetto alle nostre decisioni; è solo la loro conoscenza corretta che rende possibile dominarli praticamente. Ora, l’accadere sociale ha certo anch’esso una immanente legalità ‘naturale’ e in questo si muove indipendentemente dalle nostre alternative allo stesso modo della natura. Quando però l’uomo interviene attivamente in tale decorso, è inevitabile che egli prenda posizione, che approvi o respinga il processo; se ciò si verifica consapevolmente o no, con giusta o falsa coscienza, è questione che ancora non possiamo discutere a questo punto; ma non neppure decisiva per il discorso qui possibile. In ogni caso, con ciò entra nel complesso della prassi un momento assolutamente nuovo, che influisce fortemente proprio sul carattere della libertà quale si presenta qui”. 55

situazioni, ecc. sociali sono bensí in ultima analisi prodotti di decisioni alternative degli uomini, ma non va dimenticato che acquistano rilievo sociale solo quanto mettono in funzione serie causali che si muovono piú o meno indipendentemente dalle intenzioni di chi le ha poste, secondo legalità specifiche ad ese immanenti. L’uomo che agisce praticamente nella società si trova perciò di fronte una seconda natura, verso la quale egli, se vuole gestirla con successo, deve comportarsi come con la prima, cioè deve cercare di trasformare in un fatto posto da lui il corso delle cose che è indipendente dalla sua conscienza, deve, dopo averne conosciuto l’essenza, stamparci l’impronta di quel che egli vuole. Questo è quanto, al minimo, ogni prassi sociale ragionevole deve prendere dalla struttura originaria del lavoro”. (Lukács, 1981:125) 55 Lukács prossegue dizendo: “Parlando del lavoro abbiamo osservato come nella sua prima figura, a cui ci siamo riferiti in questa sede, l’atteggiamento interiore del soggetto ancora non intervenga quase per nulla. Adesso invece – anche se in modo diverso a seconda delle diverse sfere – diviene sempre piú importante. Fondamento non ultimo della liberà sono appunto queste prese di posizione nei confronti del processo complessivo della società o almeno nei confronti di suoi momenti parziali. Cosicché, sulla base del lavoro che va facendosi sociale, viene in essere un nuovo tipo di libertà, che né è piú derivabile per via diretta dal lavoro semplice, né è riconducibile soltanto al libero movimento nel materiale. Solo alcune delle sue determinazioni essenziali, come abbiamo visto, rimangono, ma con peso diverso nelle diverse sfere della prassi”.

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Em Lukács, segundo Lessa (2002b:80) temos, simultaneamente, a articulação e irredutibilidade entre causalidade e teleologia. Para este autor, Lukács explicita que toda processualidade ontológica possui um desenvolvimento causal no livro “Prolegômenos à Ontologia do Ser Social”. Um ato individual, para se objetificar, precisa “descobrir” (pela consciência) os nexos causais preexistentes a ele, tal descoberta leva a que estes nexos causais que entram no processo de trabalho “passem por algum tratamento social, se é que não são, em si próprios, puramente sociais”. O que significa uma complexificação do “quadro originário da troca orgânica direta com a natureza”. Os pores teleológicos, que levam à troca orgânica do ser social com a natureza, mobilizam legalidades naturais que são independentes deles. Eventualmente podem dar a estas legalidades naturais uma forma objetiva diferente da encontrada no ser natural. Mas o que o pôr teleológico põe em movimento são séries causais. Assim, Lukács (apud. Lessa, 2002b:80-1) esclarece que:

O ser social se constitui enquanto forma específica de ser exatamente pelo fato de, por um lado, todo momento de sua estrutura interna surgir imediata e insuprimivelmente de uma posição teleológica, por outro lado, toda posição realizada coloca em movimento somente séries causais, nunca algo que seja em si teleológico (de fato, este último pode existir apenas como posição teleológica, jamais como momento dinâmico objetivo de um ser qualquer). Tais séries são, certamente, por seu conteúdo, por sua direção etc., mais ou menos colocadas em movimento pela posição teleológica, todavia o seu decurso real como um todo não poderá jamais ser determinado por estas últimas em todo o seu conteúdo.

A partir da citação acima podemos voltar à questão da “segunda natureza”. Lukács, claramente se refere a que uma vez objetivado, a coisa (seja um objeto singular seja a totalidade das relações sociais) “adquire uma objetividade independente (em um grau maior ou menor, conforme o caso) da consciência que o pôs” (Lessa, ibid.). Daí que as objetificações, as coisas, passam a ter uma trajetória “puramente causal, não-teleológica e, por isso, na cotidianidade, se confrontam com os indivíduos como uma ‘segunda natureza’” (ibid.). E Lukács tem claro que a legalidade no ser social (“cuja reprodução tem por medium necessário a consciência dos indivíduos” (ibid.)) é diferente da causalidade no ser natural (na qual aquele medium é inexistente). A legalidade no ser social é uma causalidade socialmente posta, o que coloca diferenças ontológicas com relação ao ser natural cuja reprodução é meramente biológica (no caso do ser orgânico) ou um eterno devir-outro (no caso do ser inorgânico). A reprodução social, portanto, necessita da medição da “consciência dos indivíduos concretos”. Mas isto não retira nenhum grau de objetividade ou de materialidade da reprodução social global. Assim conclui Lessa (2002b:82): “É a esse complexo de questões que Lukács se refere ao utilizar o termo ‘segunda natureza’ – em nada, portanto, se aproximando do marxismo vulgar ou das teses da Dialética da Natureza de Engels”. Para Lukács, a distinção entre ser natural e ser social está no fato de que a essência da categoria trabalho é a relação entre teleologia e causalidade. E o ser social é uma síntese entre teleologia e causalidade. No dizer de Lessa (2002b:82):

(...) síntese pela qual, sem deixar de ser causalidade e se converter em idealidade, a materialidade recebe determinações ideais e se converte em causalidade posta. Uma vez produzido, uma vez objetivado, o novo ente (ou, no plano mais geral, a totalidade do mundo dos homens) exibe um desenvolvimento puramente causal (que não exclui, obviamente, momentos casuais). É agora um

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ente objetivo, portador de uma história própria. Diante dos indivíduos e da totalidade social, realizará seu desenvolvimento com base em sua legalidade imanente e nos nexos causais dos quais vier a participar no interior da totalidade da qual é partícipe. Sua objetividade, em que pese o fato de ser posta, não deixa de ser objetividade: seu desenvolvimento nada tem de teleológico.

As coisas objetificadas pelo agir humano têm o caráter de objetividade originária, primária. Por isto, o ser social pode apresentar, no cotidiano, o caráter de “segunda natureza”. E, assim, podem as coisas ter uma ação de retorno não prevista a priori sobre o criador. Apenas por ter uma história própria relativamente independente do sujeito criador, podem a criações humanas ter influência sobre a história humana de forma relativamente independente do criador. Daí, segundo Lessa e Lukács, Marx dizer que “os homens fazem a história, mas em circunstâncias que não escolheram”. Este ponto será tratado novamente quando discutirmos a categoria de exteriorização para Lukács. Lukács ao analisar o processo de trabalho, seguindo N. Hartmann, aponta para a máxima importância da distinção entre a posição de fim e a busca dos meios. O ato de trabalho singular é preso a uma imediaticidade que se orienta de forma predominante pela posição de fim. Como nos lembra Lessa (2002b:86), a objetivação neste ato de trabalho singular é guiada predominantemente pela posição de fim “(...) e nunca de forma absoluta, já que em toda objetivação operam determinações que emanam da esfera da causalidade, e tais determinações, normalmente, operam na forma de limites ao processo de objetivação enquanto tal”. Entretanto, se tomamos um período maior de análise, percebemos que a “busca dos meios” é “(...) a mediação que fixa e desenvolve os conhecimentos do real adquiridos ao longo da história”. Logo, a “busca dos meios” possibilita “o desenvolvimento dos conhecimentos acerca do ser-precisamente-assim existente”. 56 Para Lukács, uma posição teleológica, uma prévia-ideação, só pode se objetificar se for capaz de reconhecer os nexos causais não homogêneos da realidade dada. Aqui voltamos à articulação entre teleologia e causalidade. Tomando o momento da “busca dos meios”, temos que a busca por determinações do real por parte da teleologia enquanto condição para o ato de objetivação dela decorrente expressa o predomínio da causalidade “(...) no delineamento dos horizontes de possibilidades e necessidades que permeiam toda prévia-ideação” (Lessa, 2002b:91). O conhecimento do real existente por parte da posição teleológica só é uma necessidade absoluta para a parte do real diretamente envolvida no ato teleológico, pois sem o efetivo conhecimento do real a objetificação torna-se impossível. Por isto, é muito comum ocorrer que a objetificação, a transformação do real no sentido pré-pensado e que altera determinações causais naturais dadas, ocorrer com uma percepção falsa do ser em geral. Lessa nos lembra do caso da navegação exitosa em alto-mar orientada pelas estrelas, mas que tem uma percepção geocêntrica do universo. Ele conclui dizendo, com Lukács, que é isto “(...) que possibilita a reprodução social mesmo nos momentos históricos mais primitivos” (ibid., p. 92).

56 Um pouco adiante Lessa (2002b:87) assinala a conexão entre o trabalho e a origem e o desenvolvimento do pensamento científico: “Segundo Lukács, do ponto de vista da consciência, ‘a busca dos meios para tornar ato a finalidade não pode senão implicar um conhecimento objetivo do sistema causal dos objetos e daqueles processos cujo movimento é capaz de realizar o fim posto’ (25-6/19). Por sua própria essência, a ‘busca dos meios’ compreende um impulso imanente à captura da legalidade do em-si existente e, exatamente nessa medida e nesse sentido, é ‘o ponto pelo qual o trabalho se conecta com a origem do pensamento científico e com o seu desenvolvimento [...]’ (29/21-22).

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A posição defendida por Lukács (da necessidade do conhecimento do real e das suas causalidades para a objetificação da prévia-ideação e a conseqüente articulação e irredutibilidade entre teleologia e causalidade) o leva a um tertium datur que nós já tratamos ao falarmos do distanciamento do nosso autor em relação às posições que defendem uma mecânica submissão do sujeito em relação ao objeto e das posições que defendem uma identidade entre sujeito e objeto. Ao mesmo tempo em que o afasta do marxismo vulgar que defende a existência de variações de grau de ser, da própria realidade, entre o ser natural e o social. Lukács entende que o próprio processo gnosiológico opera com a distinção ontológica entre sujeito e objeto. E esta distinção

(...) apenas pode vir a ser no interior de uma insuperável articulação entre a consciência que conhece e o objeto conhecido. A mediação ontológica última dessa concomitante articulação/distinção é a categoria trabalho. É nela que subjetividade e objetividade se articulam para converter, de modo teleologicamente orientado, a causalidade em causalidade posta, sem que a causalidade se converta em teleologia e vice-versa. Segundo Lukács, do ponto de vista da subjetividade, a atividade de apreensão do real, imprescindível ao pôr teleológico, tem o caráter de reflexo (Lessa, 2002b:95).

O termo reflexo foi amplamente utilizado pelo marxismo vulgar e traz as marcas do determinismo mais grosseiro. Entretanto, Lukács claramente rejeita tal vertente e toma a categoria reflexo como central para a consciência e para o ser social. Para ele reflexo é uma categoria do ser social sendo ontologicamente impossível ser “mera cópia do real pela subjetividade. Antes de ser sinônimo de mecânica submissão da subjetividade ao real, o reflexo é, para Lukács, a forma especificamente social da ativa apropriação do real pela consciência, no contexto da busca dos meios” (ibid.). Lukács, em “Per l’ontologia dell’essere sociale”, ao tratar da categoria reflexo, demonstra que há uma real heterogeneidade entre a “busca dos meios” – que exige a captura adequada, pelo sujeito criador, das legalidades do ser existente, ou seja, exige a construção do espelhamento do real na consciência deste sujeito criador – e a apropriação de cadeias causais pelo pôr teleológico. Lessa aponta que “esses dois momentos, entre si heterogêneos, apenas podem existir enquanto partícipes de um complexo unitário, que Lukács denomina ‘o verdadeiro processo em-si do trabalho’” (ibid., p. 96). 57 Em Lukács a categoria reflexo apenas se apresenta como um momento da “busca dos meios”, logo está necessariamente associada ao trabalho humano. Ficando claro que para Lukács (e para Marx!), conforme afirma Lessa (ibid., p. 97) “o reflexo não funda o real e, por si só, não funda a subjetividade. Nem a consciência pode ser reduzida ao reflexo nem o objeto é pura e simplesmente refletido”.

57 Vide nota 21. Noutro trecho, Lukács (1981:51) nos diz: “(...). Tuttavia, come abbiamo già mostrato, uma delle premesse oggettive, ontologiche, del lavoro è che solo un rispecchiamento corretto della realtà com’è in-sé, indipendentemente dalla coscienza, può condurre alla realizzazione delle causalità naturali, che da eterogenee e indifferenti rispetto alla finalità vengono invece trasformate in causalità poste, al servizio della posizione teleologica. Le alternative concreta del lavoro implicano quindi in ultima analisi, sia nella determinazione del fine che nell’esecuzione, sempre una scelta fra giusto e sbagliato. In ciò sta la loro essenza ontologica, il loro potere di trasformare ogni volta in una attuazione concreta la dynamis aristotelica. Questo primario carattere conoscitivo delle alternative del lavoro è perciò un fatto insopprimibile, è appunto ontologico esser-proprio-cosi del lavoro: che dunque possimo riconoscere sul piano ontologico, del tutto indipendentemente dalle forme di coscienza in cui si è realizzatto in origine e forse anche per molto tempo dopo”.

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Lukács, na análise da categoria reflexo, ressalta a separação entre sujeito e objeto, pois teleologia e causalidade são necessariamente heterogêneas na perspectiva ontológica. O reflexo é o ato dos sujeitos que podem reproduzir os objetos “(...) in una approssimazione piú o meno corretta mediante atti di coscienza, che possono trasformarli in proprio possesso spirituale” (1981:36-7). Lessa (ibid., p. 97) arremata dizendo que “Esse ato eleva o real à ‘posse espiritual’ num processo de constante ‘aproximação’ que, justamente por isso, não pode jamais se converter em identidade”. O ato do reflexo enquanto fenômeno social reproduz de forma aproximativa, diz Lessa (ibid., p. 98), o real na consciência e

realiza sujeito e objeto enquanto pólos distintos da relação gnosiológica. O conhecimento, portanto, não é a superação da distância entre o subjetivo e o objetivo, mas justamente sua mais plena reprodução: apenas tendo por mediação essa distância pode o conhecimento se realizar enquanto movimento de constante aproximação da consciência ao ser. Em outros termos, a crescente aproximação do reflexo ao real implica, também, o desenvolvimento da consciência sobre a distinção entre sujeito e objeto e o desdobramento de formas crescentemente evoluídas do para-si dessa relação. Ainda que sempre de forma nova, à medida que evolui o conhecimento do real, o processo gnosiológico reproduz constantemente a exterioridade ontológica e o movimento de incessante aproximação do sujeito ao objeto.

Portanto, em Lukács o reflexo do real na consciência origina uma nova forma de objetividade, o que é típico e exclusivo do ser social. O concreto pensado constitui uma realidade própria da consciência, mas não constitui uma nova realidade. Pois

Nel rispecchiamento della realtà la riproduzione si distacca dalla realtà riprodotta, si coagula in una ‘realtà’ propria della coscienza. Abbiamo messo tra virgolette la parola realtà, perchè questa nella coscienza viene appunto soltanto riprodotta; nasce una nuova forma di oggettività, mas non una realtà, e – próprio in senso ontológico – non è possibile che la riproduzione sia della stessa natura di quel che essa riproduce, tanto meno sarà identica ad esso. Al contrario, sul piano ontologico l’essere sociale si suddivide in due momenti eterogenei, che dal punto di vista dell’essere non soltanto si trovano uno di fronte all’altro come eterogenei, ma sono addirittura opposti: l’essere e il suo rispechiamento nella coscienza (Lukács, 1981:38). 58

Para Lukács, a consciência tem um caráter ativo no ato do reflexo e se expressa, conforme Lessa (ibid., p. 99) na gênese da dualidade entre o concreto real e o concreto pensado. Sendo que esta dualidade é um dos traços ontológicos essenciais do ser social. Em resumo, conforme Lessa (ibid.), para Lukács:

(...) o reflexo é uma atividade da consciência que cria ‘uma nova forma de objetividade’, a qual, juntamente com outros fatores objetivos e subjetivos, será determinante do ser-precisamente-assim de cada pôr teleológico, de cada ato humano. Em nenhum momento, e de modo nenhum, portanto, o reflexo significa a mecânica submissão da subjetividade ao objeto, mas antes uma atividade da consciência que, no interior do trabalho, atende à necessidade de captura de determinações do ser-precisamente-assim existente.

58 Lessa (2002:98) optou por uma tradução diferente, a partir do alemão, para parte da citação acima: “(...) não é possível que a reprodução seja homogênea àquilo que ela reproduz, tanto menos idêntica a ela”. Evitando, assim, o uso da palavra natureza.

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Lukács, ao tratar do problema do reflexo do real pela subjetividade, aborda “(...) a relação entre o objeto e o conteúdo refletido e a relação entre teleologia e ato de reflexão” (Lessa, 2002b:99). Para ele, o reflexo é determinado por seu objeto (1991:38) e, ao mesmo tempo o ato de reflexão é uma atividade teleológica. “A teleologia operante nesse complexo, por isso, sempre influi, por vezes de forma decisiva, sobre a inserção do conteúdo imediatamente refletido na totalidade dos conhecimentos já adquiridos” (Lessa, 2002b:100). Mas disto, Lukács não deduz que a objetividade dos fatos do real seja de alguma maneira relativas, ou fruto de construções da subjetividade do sujeito. E esse processo de “distanciamento e conversão em objeto” impede que as reproduções do real sejam cópias mecânicas do real.59 Para Lukács, a categoria de reflexo possui um ato de subjetividade que “permeia todo ato de aproximação da consciência ao real” (Lessa, ibid.). Na conversão do real dado em real explicado, a consciência realiza uma apropriação ativa que reflete o real dado. Mas esta reflexão é historicamente determinada. E aqui, conforme lembra Lessa, abre-se o espaço para que se trate da influência de complexos como ideologia, política, estranhamento, etc, nos processo gnosiológicos. Em resumo, ainda com Lessa (2002b:101), podemos dizer que em Lukács a categoria de reflexo “é fundamental para a constituição do ser social enquanto esfera ontológica específica”. Apenas com esta categoria o pôr teleológico pode se concretizar, pois é ela que permite, à consciência do sujeito, a captura das causalidades presentes no concreto dado. Ao mesmo tempo, esta categoria permite à consciência realizar

o processo concreto do movimento aproximativo de captura do real como a distinção ontológica entre sujeito e objeto, entre subjetividade e objetividade. A reprodução dessa distinção se consubstancia na gênese e no desenvolvimento daquela ‘nova objetividade’ que é a esfera do pensado em contraposição ao ser-precisamente-assim existente.

A dualidade entre o pensado e o real permeia e define o ser social. Para Lukács, argumenta Lessa (ibid.), reflexo e concreto real dado são

59 Conforme Lukács (1981:39): “Questa dualità è un fatto fondamentale dell’essere sociale. I gradi dell’essere precedenti sono al confronto compatti e unitari. L’ininterrotto e inevitabile rapportasi de rispecchiamento all’essere, el suo agire su di esso già nel lavoro, ma ancor piú marcatamente in mediazioni piú ampie (di cui potremo parlare soltanto in seguito), il fatto che il rispecchiamento viene determinato dal suo oggetto, ecc., tutto questo non elimina mai tale dualità di fondo. È con questa dualità che l’uomo esce fuori dal mondo animale. Pavlov, quando descrive el secondo sistema di segnalazione, proprio solo dell’uomo, afferma giustamente che soltanto questo sistema può allontanarsi dalla realtà, può darne una riproduzione erronea. Ciò è possibile solo perché il rispechiamento s’indirizza all’intero oggetto indipendente dalla coscienza, sempre intensivamente infinito, cerca di coglierlo nel suo essere-in-sé, e, proprio a causa della distanza che è necessario porre per compiere questo tentativo, può sbagliare. Il che vale ovviamente non soltanto per gli stadi iniziali del rispecchiamento. Anche quando sono ormai nate complesse costruzioni in sé omogenee e conchiuse per aiutare a cogliere la realtà mediante il rispecchiamento, come la matematica, la geometria, la logica, ecc., tale possibilità di sbagliare a causa della distanza rimane intatta; certe possibilità primitive di errore risultano bensí – relativamente – escluse, ma ne subentrano altre piú complesse, portate proprio dalla maggiore distanza creata dai sistmi di mediazioni. Per converso, questo processo di oggettivazione e distanziamento fa sí che le riproduzioni non possano mai essere copie fotografiche meccanicamente fedeli della realtà. Esse vengono sempre determinate dalle finalità, cioè a dire, in termini genetici, dalla riproduzione sociale della vita, in origine dal lavoro”.

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pólos entre si irredutíveis de uma dualidade posta e inerente ao distanciamento entre sujeito e objeto fundado pela atividade de reflexão do real pela consciência. A irredutibilidade absoluta desses dois pólos (que, no entanto, apenas existem enquanto mútua determinação reflexiva no interior da práxis social) nada mais significa senão a recusa da identidade sujeito/objeto.

Assim, a categoria de reflexo, para Lukács, está longe de ser uma submissão mecânica do sujeito ao objeto. Além disto, ele reconhece “a prioridade do objeto na imediaticidade do ato reflexivo”, mas não descarta a influência do pôr teleológico sobre os atos reflexivos e sobre a totalidade da reprodução social. Após analisar a categoria de reflexo como atividade da consciência no interior do processo de trabalho, Lukács (1981:39) passa a tratar da ação do reflexo sobre o ser-precisamente-assim existente. Inicia assinalando que

Il rispecchiamento ha in questo senso uma peculiare collocazione contraddittoria: da un lato è l’esatto opposto di ogni essere, proprio perché è rispecchiamento non è essere; dall’altro lato e contemporaneamente è il veicolo attraverso cui sorgono nuove oggetività nell’essere sociale, attraverso cui ha luogo la riproduzione al medesimo o a un piú alto livello. Cosicché la coscienza che rispecchia la realtà acquista un certo carattere di possibilità.

Aqui Lukács introduz a categoria de possibilidade e passa a tratar da articulação entre esta categoria e a de reflexo. O reflexo, como corretamente lembra Lessa (ibid., p. 102) é tomado enquanto veículo da possibilidade. Para tanto, Lukács retoma a concepção aristotélica da potência (dynamis), afirma que para Aristóteles a potência é “‘la facoltà di condurre a buon fine uma data cosa e di compierla secondo la propria intenzione’” (1981:41). Em seguida, Lukács acrescenta que para Aristóteles “‘(...), relativamente alla sostanza, l’atto è anteriore alla potenza’” (ibid.). Daí Lessa (2002b:103) concluir que: “É a realização do ato que definirá a potência, gerando um paradoxo pelo qual o ato apenas pode ser a realização de uma potência, a qual, todavia, no plano ontológico, se realiza enquanto tal pelo ato em si”. Mas a Lukács é importante a afirmação de Aristóteles de que “‘(...) la medesima cosa è potenza di essere e di non essere’” (ibid.) 60, mas entendida agora no âmbito do trabalho

60 O trecho completo da argumentação de Lukács segue abaixo: “A questo problema la nostra impostazione ha risposto che il rispecchiamento, appunto considerato ontologicamente, in sé non è essere, e quindi neppure ‘esistenza spettrale’, molto semplicemente perché non è essere. Tuttavia esso è indubbiamente la premessa decisiva per la posizione di serie causali, e proprio in senso ontologico, non in quello gnoseologico. Ora, la concezione aristotelica della dynamis tenta illuminare nella sua razionalità dialettica proprio questo paradosso ontologico. Aristotele riconosce bene la strutura ontologica della posizione teleologica quando, collegando indissociabilmente l’essenza di questa con il concetto di dynamis, dice che la potenza (dynamis) è ‘la facoltà di condurre a buon fine una data cosa e di compierla secondo la propria intenzione’ e subito dopo concretiza questa determinazione cosí: ‘Infatti, proprio in virtú di questo principio, mediante il quale l’oggetto passivo subisce una qualche affezione, noi diciamo che ha la potenza di subirla, sia nel caso che esso possa subire una qualsivoglia affezione sia nel caso che possa non subirne una qualsivoglia, ma soltanto quella che tende verso il meglio; (potenza si dice inoltre) la facoltà di condurre a buon fine una data cosa e di compierla secondo la propria intenzione: talvolta, infatti, quando noi vediamo che certe persone camminano o parlano, ma non compiono queste azioni né bene né come vorrebbero, noi diciamo che esse non hanno la ‘potenza’ o la capacità di parlare o di camminare’. Aristotele vede con chiarezza tutte le paradossalità ontologiche di questo stato di cose; afferma ‘che, relativamente alla sostanza, l’atto è anteriore alla potenza’ e punta risolutamente sul problema modale che vi è contenuto: ‘Ogni potenza è nello stesso tempo potenza di due cose contrarie, giacché, se da una parte ciò che non ha la potenza di eistere non può essere porpietà di alcuna cosa, dall’altra parte tutto ciò che ha la potenza di esistere può

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enquanto categoria central, dinâmico-concreta, do ser social que se põe enquanto uma nova esfera do ser em geral. Neste âmbito, lembra Lessa (ibid.), Lukács assinala que a categoria alternativa é a categoria “mediadora no processo de objetivação”: “Il passaggio dal rispecchiamento come particolare forma di non-essere all’essere, attivo e produttivo, del porre nessi causali presenta una forma dispiegata della dynamis aristotelica, che noi possiamo indicare come carattere alternativo di ogni porre nel processo del lavoro. Tale carattere appare in primo luogo nella posizione del fine del lavoro” (ibid., p. 42). Portanto, a categoria alternativa é a “mediação entre o não-ser do reflexo e o ser teleologicamente posto” (Lessa, ibid., p. 104). Ela se manifesta pela escolha por parte do indivíduo ou do coletivo humano de uma alternativa dentre as várias possíveis “em cada situação concreta, transformando em ato a mera potencialidade” (ibid.). Assim Lessa pode concluir dizendo que a alternativa é “(...) o elo ontológico que articula o reflexo, que participa de uma prévia-ideação, com o produto resultante do processo de trabalho, no contexto da ontologia lukacsiana (...)” (ibid.). Sobre o papel de mediação da alternativa, Lukács (1981:47) nos diz que:

Se dunque esaminiamo in termini ontologici tale progetto, vediamo con chiarezza come esso possieda i tratti caratteristici della possibilità aristotelica, della potenzialità: ‘Ciò che ha la potenza di essere può essere ed anche non essere’. Marx, esattamente nel senso di Aristotele, dice che nel corso del processo lavorativo ‘lo instrumento di lavoro si è parimenti tradotto da mera possibilità a realtà’. Un progetto pur complesso e delineato in base a rispecchiamenti corretti, ma che venga respinto, rimane un non-essente, quantunque nasconda in sé la possibilità di divenire un essente. In sostanza, dunque, solo l’alternativa diquella persona (o di quel colletivo di persone) che è chiamata a mettere in moto il processo della realizzazione materiale mediante il lavoro può attuare questa trasformazione della potenzialità in essence.

Mais acima, ao tratarmos da categoria objetivação, vimos que Lukács a entendia sempre como uma transformação do real a partir de um pôr teleológico. Assim, a objetivação é a alternativa prática, pela qual um indivíduo ou um “colletivo di persone” escolhe uma alternativa dentre muitas possíveis. Conforme Lessa (2002b:107), para Lukács, a alternativa “(...) se apresenta como mediação indispensável na atualização da potencialidade de todo reflexo”. Lessa (ibid.) recupera o fato de que a passagem da causalidade dada à causalidade posta não é uma submissão unilateral ao reflexo (“já que as determinações causais dadas representam limites (certamente móveis, que podem e são alargados ao longo da história) que conformam o horizonte possível da transformação”). Sendo uma “passagem ativa e produtiva” pois incorpora num novo plano ontológico legalidades previamente existentes ao “converte[r] a cadeia causal em cadeia causal posta”. Entretanto, nem todas as possibilidades se realizarão aqui, a possibilidade é tanto de vir a ser objetivado quanto de não vir a ser objetivado. Portanto, em Lukács a potência é como em Aristóteles, potência de ser e de não ser. E o processo de trabalho possui um caráter ineliminável de alternativa, ele é sempre a escolha pela objetivação de uma possibilidade e a não objetivação de outras tantas possibilidades. Lessa (2002b:108) sintetiza esta argumentação da seguinte maneira:

anche non passare all’atto. Quindi,ciò che ha la potenza di essere può essere ed ache non essere; epperò la medesima cosa è potenza di essere e di non essere’” (1981:41)

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Em síntese, essa passagem da heterogeneidade entre meio e fim a uma homogeneidade posta, essa síntese peculiar entre teleologia e causalidade, apenas é possível através de um ato produtivo e ativo de transformação da causalidade dada em posta. Tal ato exibe sempre e necessariamente o caráter de alternativa.

Para Lukács, a alternativa é sempre um processo “(...) non si tratta di un unico atto decisionale, ma di un processo, di una ininterrotta catena temporale di alternative sempre nuove” (1981:43). Segundo nosso autor, mesmo no processo de trabalho mais primitivo percebe-se que não se trata “da execução mecânica de uma finalidade”. Caso a cadeia de decisões alternativas envolvidas no ato de objetificação, no ato que converte causalidade dada em causalidade posta , falhe, então a causalidade posta deixa de operar em cada instância da cadeia e a coisa da natureza que estava sendo transformada volta à sua condição “(...) di semplice essente naturale, soggetto a causalità naturali, che non ha piú nulla in comune con gli oggetti o i mezzi di lavoro.L’alternativa quindi si estende fino ad essere l’alternativa di un’attività giusta o sbagliata, per chiamare in vita categorie che solo nel processo lavorativo diventano forme della realtà” (ibid., p. 44). Quando o produto do trabalho encontra-se acabado e o processo de trabalho é dado como findo, todo um conjunto de novas decisões alternativas se apresenta, seja para as formas de utilização do objeto, seja para sua conservação. Isto se deve a que o desenvolvimento das formas de sociabilidade leva ao recuo sucessivo das barreiras naturais e ao fato de que o reflexo é o movimento de aproximação sucessiva da consciência ao concreto dado, sem jamais conseguir abarcá-lo por completo.61 Daí Lessa (2002b:108-9) dizer que “A atualização de uma possibilidade desencadeia, portanto, a necessidade de novas decisões alternativas que se apóiam sempre nas anteriores, numa crescente complexificação das mediações que constituem cada alternativa possível e das decisões requeridas para essas escolhas”. Lukács (ibid., p. 45) prossegue argumentando que

Lo sviluppo del lavoro, perciò, contribuisce a far sí che il carattere di alternativa della prassi umana, del comportamento dell’uomo verso il proprio ambiente e verso se stesso, sia sempre piú basato su decisioni alternative. Il superamento dell’animalità mediante il salto dell’umanizzazione nel lavoro e il superemento della coscienza epifenomenica, determinata solo biologicamente, acquistano quindi con sviluppo del lavoro una tendenza a rafforzarzi perennemente, a divenere universali.

61 Lukács (1981:45) diz que: “L’alternativa, anch’essa un atto della coscienza, è dunque la categoria mediatrice in virtú della quale il rispecchiamento della realtà diviene veicolo della posizione di un essente. Dove ocorre sottolineare che questo essente nel lavoro è sempre qualcosa di naturale e che tale sua costituzione naturale non può mai essere de tutto soppressa. La posizione teleologica di causalità nel processo lavorativo produce effetti trasformatori, ma per quanto rilevanti sianó questi ultimi, la barriera naturale può solo arretrare, mais scomparire completamente; e viò vale tanto per la scure di pietra quanto per il reatore atomico. Infatti, per accenare solo a una possibilità, le causalità naturali vengono bensí assoggettate a quelle poste nel lavoro, ma, giacché ogni oggetto naturale possiede in sé una infinita intensiva di proprietà in quanto sue possibilità, esse non smettono mai completamente di operare. Poiché il loro operare è del tutto eterogeneo rispetto alla posizione teleologica, in molti casi finiscono per avere conseguenze che vanno in senso opposto, che talvolta anzi la disturbano (corrosione del ferro, ecc.). Ne segue che l’alternativa continua a rimanere in funzione come sorveglianza, controllo, riparazione, ecc., anche dopo il completamento del concreto processo lavorativo e che tali attività di prevenzione moltiplicano necessariamente le alternative nella posizione del fine e nella sua realizzazione”.

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O desenvolvimento da sociabilidade na esfera do ser social, segundo Lukács, tem por base tanto decisões alternativas que se apóiam em outras tantas decisões alternativas quanto à causalidade posta. Com perda progressiva de importância da causalidade natural. Disto Lessa aponta dois limites para a processualidade do desenvolvimento da sociabilidade:

De um lado, um projeto, por maior que seja sua potencialidade para se atualizar, apenas pode superar seu caráter de ‘não-ser’ por meio de uma decisão alternativa. Por outro lado, a forma do novo ser, do ente objetivado, é determinada pela necessidade que deve satisfazer. Tal necessidade e ‘as idéias a seu propósito’ (...) são os componentes que determinam a estrutura do projeto, a seleção dos setores da realidade que interessam diretamente a sua execução etc (2002b:109).

Ainda segundo Lessa, dessa construção Lukács extrai duas conseqüências de grande importância para sua ontologia do ser social: (1) o devir da coisa objetivada, o resultado das decisões alternativas do sujeito, a partir do reflexo na consciência do sujeito do real dado, que captura da causalidade dada e a constitui enquanto causalidade posta, não é determinado a priori. O acaso não só não é excluído na interpretação de Lukács62 como “acaso, necessidade e teleologia se articulam no ir-sendo de cada ato e de cada produto final do trabalho” (ibid., p. 109). (2) “toda decisão alternativa é sempre concreta” (ibid.), ou conforme o próprio Lukács explica:

Per comprendere realmente le cose, non bisogna dimenticare che l’alternativa, da qualsiasi lato la si guardi, può essere solo una alternativa concreta: la decisione di una persona concreta (o di un gruppo di persone) circa le condizioni concretamente migliori per realizzare una finalità concreta. Questo vuol dire che ogni alternativa (e ogni catena di alternative) nel lavoro non può mai riferirsi alla realtà in generale, ma è una scelta concreta fra strade la cui meta (in ultima analisi il soddisfacimento del bisogno) è stata prodotta non dal soggetto che decide, ma dall’essere sociale in clui egli vive e opera. Il soggetto può solamente assumere come oggetto della propria finalità, della propria alternativa, le possibilità determinatesi sul terreno e ad opera di questo complesso d’essere, che esiste indipendentemente da lui. E altrettanto evidente è che anche il campo della decisione viene delimitato da questo complesso d’essere; va da sé che hanno importanza l’ampiezza, la portata, la profondità, ecc. Che caratterizzano la correttezza del rispecchiamento della realtà, ma ciò non toglie che anche il porre le serie causali entro la posizione teleologica è – immediatamente o mediatamente – determinato in ultima analisi dall’essere sociale (1981:48).

Lukács adverte que as determinações causais que se apresentam em cada pôr teleológico não retiram seu aspecto de alternativa. Cada alternativa encontra-se ligada às condições que a precedem, mas não é possível reduzi-las a estas condições. As decisões do sujeito são tomadas sempre em circunstâncias concretas, sempre uma alternativa dentre várias possíveis presentes em cada contexto em que o sujeito se insere. E é exatamente neste meio concreto que o caráter de alternativa do pôr teleológico se expressa, se objetiva. Diz Lukács (ibid, p. 49):

Nelle totalità le componenti determinative sono delineate con forza e concretezza ancora maggiori che nei singoli atti posizionali considerati isolatamente. Con ciò, tuttavia, abbiamo esposto un solo

62 Lessa no mesmo parágrafo reforça esta idéia dizendo que: “Novamente, teleologia e causalidade, articuladas pelo trabalho em uma processualidade em si causal, não excluem o acaso na efetivação de cada um de seus momentos” (ibid.).

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lato dell’alternativa. La definizione, per quanto precisa, di un campo concreto non toglie che nell’atto dell’alternativa sia presente il momento della decisione, della scelta, e che ‘luogo’ e organo di tale decisione sia la coscienza umana; (...).

Conforme a citação acima, a consciência não é um “epifenômeno da processualidade social” (Lessa, 2002b:110). A consciência é o órgão da categoria alternativa e a alternativa é “a mediação entre o ‘não ser’ do reflexo e a causalidade posta” (ibid.). Assim, a objetivação só pode ser devido à consciência, e sem consciência sequer haveria ser social.63 Como visto acima, toda escolha é inerentemente concreta para Lukács, daí que a categoria alternativa esteja, para nosso autor, inevitavelmente articulada com “os processos valorativos”. Lessa (2002b:111) lembra que “os processos valorativos” têm um papel ontológico fundamental “(...) na determinação das formas de prossecução e na direção do desenvolvimento das cadeias de alternativas a serem objetivadas. Por essa mediação, os valores desempenham, com o desenvolvimento da sociabilidade, uma influência nada desprezível e cada vez mais intensa”. Esta discussão seria abordada em toda sua complexidade e de forma exaustiva por Lukács no seu livro “Ética” (projetado, mas não concretizado devido ao falecimento do filósofo húngaro). No livro “Para uma Ontologia do Ser Social”, ele trata esta questão em algumas passagens. Voltaremos adiante a esta questão. Antes de passarmos à exposição do segundo momento presente na prévia-ideação, que é a “posição de fim” e que tem nos processo valorativos seu cerne, e lembrando que o primeiro momento foi a “busca de meios” que tinha na categoria reflexo sua categoria central. Sem deixar de assinalar que tal investigação teórica de Lukács o levará à fronteira entre a ontologia e a ética. Vamos tratar, ainda que rapidamente, do não-ser do reflexo. Entre teleologia e causalidade, já vimos, há uma “irredutibilidade ontológica”, e o mesmo ocorre entre “o reflexo e a realidade refletida” (Lessa, ibid., p. 113). Conforme vimos em citação anterior, Lukács nos diz que na consciência que reproduz o real dado “nasce una nuova forma di oggettività, ma non una realtà (...) – proprio in senso ontologico” (1981:38). Daí dizer Lessa (2002b:114) que “(...) o ser social seria a síntese de ‘objetividades’: uma material, que seria uma ‘realidade’, e uma outra não-material, que não seria uma ‘realidade’”. O reflexo é um momento integrante da teleologia e, portanto, “(...) é portador de seu peculiar caráter de objetividade não-material. Em suma, o ser social consubstancia uma nova esfera ontológica no interior da qual,

63 Lessa (nota 9, página 101) argumenta acertadamente que para Lukács ainda que sem a consciência não seja possível a existência do ser social, ela não é a categoria fundante do mesmo. Vejamos: “(...). Sem consciência, sem a constante confrontação entre passado, presente e futuro possibilitada pela consciência, sem o processo de generalização por ela possibilitado, nenhuma reprodução social seria possível. Todavia, ainda que sem a mediação da consciência o ser social não seja sequer imaginável, certamente ela não é a categoria fundante do ser social. Isto porque a consciência apenas pode existir enquanto órgão do processo reprodutivo global, enquanto momento (fundamental, é verdade, mas ainda assim apenas um momento) da processualidade unitário-global que Lukács denomina trabalho. Enquanto órgão da reprodução social, a consciência será sempre seu reflexo e sua expressão realizada. Reflexo do patamar de desenvolvimento efetivamente alcançado pelo gênero humano. Expressão realizada porque o desenvolvimento humano genérico apenas se efetiva por inteiro na medida em que, tendencialmente, alcança a um ser-para-si cada vez mais elevado. Portanto: 1) para Lukács, sem a mediação da consciência, não há continuidade social – e um ente sem continuidade é um ente não-objetivo, um não-ser (Unwesen); 2) apesar de essencial ao mundo dos homens, a consciência não é sua categoria fundante, por ser ela reflexo e expressão realizada do devir-humano dos homens”.

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diferentemente do que ocorre na natureza, há uma nova forma de objetividade que incorpora, enquanto objetivas, instância não materiais” (ibid.).64

2.4. Trabalho, Posição de Fim, Dever Ser, Valores e Exteriorização Para Lukács os valores têm sua gênese no “ser-precisamente-assim existente”, articulados com a causalidade. Os valores se assemelham ao reflexo neste aspecto, mas eles podem se transformar em relações sociais objetivas com o desenvolvimento das formas de sociabilidade, o que já não é possível para o reflexo. Os valores são categorias sociais e não se confundem com as qualidades materiais das relações sociais das quais eles surgem, mas “sem a objetividade natural das relações sociais os valores também não poderiam existir” (Lessa, 2002b:124). Ao tratar do ato teleologicamente orientado no âmbito do trabalho, Lukács argumenta que

Quando, dunque, osserviamo che l’altto decisivo del soggetto è la propria posizione teleologica e la realizzazione di questa, appare subito evidente como il momento categoriale determinante di questi atti implichi la comparsa di una prassi caratterizzata dal dover-essere. Il momento determinante immediato di ogni azione intenzionata come realizzazione non può non presentarsi come dover-essere, non fosse altro perché ogni passo avanti nella realizzazine viene deciso stabilendo se e come esso favorisca il raggiungimento del fine. Il senso della determinazione in tal modo si inverte: nella normale determinazione biologica, causale, cioè negli animali ma anche negli uomini, si ha un decorso causale in cui ineluttabilmente è sempre il passato che determina il presente (1982:71).

Lembremos que anteriormente, ao tratar do pôr teleológico em sua totalidade, Lukács apontava que “o momento determinante imediato” era o desenvolvimento social objetivo. Pois toda ação humana traz em si a categoria de alternativa e as escolhas possíveis ao agente são historicamente determinadas. Mas agora, ao tratar de um momento específico, particular, do pôr teleológico, Lukács aponta o dever-se como “o momento determinante imediato”.65 Dessa constatação do dever-se enquanto “momento determinante imediato”, Lukács afirma que se na causalidade posta é “il passato che determina il presente”, no agir teleológico ocorre que:

La posizione di un fine rovescia, come abbiamo visto, questo andamento: il fine è (nella coscienza) prima della sua realizzazione e nel processo che vi conduce ogni passo, ogni movimento viene guidato dalla posizione del fine (dal futuro). Sotto questo profilo il significato della causalità posta consiste nel fatto che gli anelli, le catene causali, ecc. vengono scelti, messi in movimento, lasciati al loro movimento, ecc. per favorire la realizzazione de fine stabilito all’inizio (ibid.).

64 Lessa aborda a polêmica levantada pelos ex-discípulos de Lukács da escola de Budapeste (Agnes Heller e Feher a frente) em torno da afirmação de Lukács do não-ser do reflexo. Esta questão foi utilizada por aqueles como argumento para defender a existência de duas ontologias contrapostas e incompatíveis entre si na construção teórica de Lukács. Sobre tal polêmica e resposta que Lessa articula vide “O reflexo como ‘não-ser’ na ontologia de Lukács: uma polêmica de décadas”, in. Crítica Marxista, no. 4, São Paulo, Xamã, 1997. E o item 2 (“O não-ser do reflexo”) do capítulo 4 (“ Teleologia, Causalidade e Conhecimento”) do livro “Mundo dos Homens: Trabalho e Ser Social”, São Paulo, Boitempo, 2002. 65 Lessa (2002b:125) argumenta da seguinte forma sobre o dever-ser enquanto “momento determinante imediato”: “Trata-se de analisar um momento específico do ato teleologicamente orientado, e não mais sua totalidade. Busca-se a precisa delimitação da escolha, da constituição e da realização da posição de fim. Lukács procura esclarecer, a partir da predominância mais geral do desenvolvimento do gênero humano na consubstanciação dos atos teleologicamente postos, quais seriam os nexos ontológicos que operam no interior da processualidade de escolha no contexto da posição de fim. Nesta articulação específica, o dever-ser surge como momento predominante”.

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Assim, no âmbito dos atos humanos singulares “non è il passato nella sua spontanea causalità a determinare il presente, ma dove invece il compito futuro teleologicamente posto è il principio determinante della prassi che tende ad esso” (ibid., p. 78). Tais afirmações de Lukács são válidas para a esfera do trabalho, e apenas nela é válida a idéia de que “(...) o futuro, o dever-ser, atua como uma categoria determinante na conformação dos processos de objetificação. Fora dela, a relação causal passado/presente se mantém intacta” (Lessa, 2001:125-126). Tais afirmações também são válidas somente se lembramos que para Lukács, conforme argumenta Lessa (2002b:126), não é o conteúdo gnosiológico, o reflexo produzido pela consciência do sujeito na apreensão das causalidades dadas, que garante que uma prévia-ideação seja transformada em teleologia. A maior ou menor correção do conteúdo gnosiológico garante uma maior ou menor potencialidade do processo de objetivação. Mas a objetivação é devida a uma escolha do sujeito, e esta escolha “na esfera da singularidade de cada ato, (...) é determinada predominantemente pela posição de fim. As ideações apenas serão elevadas a prévias-ideações se se atualizarem por meio da objetivação, se corresponderem de algum modo ao dever ser”.66 Por fim, para não falsificar a construção teórica de Lukács é preciso frisar que assim como o trabalho, que somente produz valores de uso, serve de modelo para a práxis social mais desenvolvida, o dever-se em sua forma mais primitiva serve de modelo para o dever-ser das relações sociais mais desenvolvidas. Mas assinalando, com Lukács (ibid., p. 76) que “il modelo e le sue varianti successive, molto piú complesse, vi è un rapporto di indentità fra identità e non-identità”. Logo, não é correto reduzir os valores e os processos valorativos (que têm por fundamento o dever-ser) “à forma simples do dever-ser que atua na troca orgânica homem/natureza” (Lessa, 2002b:127). Assim Lessa (ibid., 127-128) resume de forma muito acertada estas observações:

(...) o futuro determina o presente, para Lukács, tão somente naquela esfera processual em que o dever-ser determina a escolha – ou seja, apenas na esfera da prévia-ideação. Neste âmbito, muito mais que o conteúdo gnosiológico, necessariamente presente, são as finalidades que dirigirão a objetivação. Fora do ato singular, a determinação do presente pelo passado permanece intocada”. (...) fora do fluxo da práxis social não há, para ele [Lukács – PH], nenhum dever ser; é no ser-precisamente-assim da práxis cotidiana que ocorre a gênese do dever ser, o que significa que será nessa esfera que teremos a gênese e o desenvolvimento das principais determinações (‘qualidade particular’) desse complexo social. Nesse sentido preciso, o dever-ser apenas existe enquanto ‘forma e expressão de relações de realidade (...)’.

66 A este respeito nos diz Lukács (1981: 72): “Il rispecchiamento corretto della realtà è naturalmente la premessa inevitabile di un dover-essere che funzioni in maniera corretta; tale rispecchiamento corretto, tuttavia, diventa effettivo solo quando favorisca realmente la realizzazione di ciò che deve-essere. Qui non si tratta, dunque, semplicemente di un corretto rispecchiamento della reltà in generale, di reagire ad essa in generale in termini adeguati, ma invece la correnttezza o erroneità, cioè ogni decisione concernente una alternativa del processo lavorativo, può errere giudicata esclusivamente a partire dal fine, dalla sua realizzazione. Anche qui, perciò, abbiamo una insopprimibile interazione fra dover-essere e rispecchiamento della realtà (fra teleologia e causalità posta), dove la funzione di momento soverchiante spetta al dover-essere. Il distaccarsi dalle forme precedenti, il diventare autoctono dell’essere sociale, si esprime proprio in questo soverchiare di quelle categorie nele quali per l’appunto trova espressione il carattere nuovo, piú evoluto, di questo tipo d’essere rispetto a quelli che lo fondano”.

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O dever-ser faz a intermediação entre o homem e a natureza, entre a materialidade e o valor, esta função de intermediação é a base genética do dever-ser. O dever-ser é o momento predominante da escolha dentre alternativas que “só tem existência real no complexo do trabalho” (Lessa, ibid.). Assim a alternativa liga a práxis social aos valores, e põe a necessidade de distinção entre o que é útil e o que é inútil “(...) para uma dada objetivação, e tal distinção é o fundamento último da gênese e do desenvolvimento dos valores” (ibid., p. 128). Diz Lukács que

Quanto alla genesi ontológica del valore, dunque, noi dobbiamo partire dal fatto che nel lavoro come produzione di valori d’uso (beni) l’álternativa fra utilizzabile e inutilizzabile per l’appagamento del bisogno, cioè la questione dell’utilità, è posta come elemento attivo dell’essere sociale. Quando perciò affrontiamo il tema della oggettività del valore, possimao subito vedere come esso sia contenuta una approvazione della posizione teleologica corretta, o per meglio dire: la correttezza della posizione teleologica – presupposta una sua corretta attuazione – significa che il rispettivo valre è stato realizzato concretamente.

Fica claro que para Lukács a utilidade é fundamento dos valores e do processo valorativo, e que o sucesso da objetivação exige “(...) a realização objetiva dos valores” (Lessa, ibid.). É neste quadro que Lukács (ibid., p. 79) distingue as categorias de dever-ser e valor. Ele nos diz que o “(...) dover-essere in quanto categoria dell’essere sociale è indissolubilmente connesso quello del valore”. Ainda que tal “conexão indissolúvel” pareça uma identidade, não se trata disto segundo Lukács:

Queste due categorie sono collegate cosí intimamente fra loro peché sono ambedue momenti di un unico e medesimo complesso. Tuttavia, giacché il valore influisce soprattutto sulla posizione del fine ed è il principio secondo cui valutare il prodotto realizzatto, mentre il dover-essere funziona piú come regolatore del processo in quanto tale, queste due categorie dell’essere sociale non possono non esibire molti aspetti diversi, il che naturalmente non suprime la loro connessione, ma al contrario la rende concreta.

Ressaltemos que o valor “influi na posição de fim e é o princípio segundo o qual valoriza-se o produto realizado”. Já o dever-ser “funciona como regulador do processo enquanto tal”. Assim, conforme lembra Lessa (ibid., p. 128-129), não é o conteúdo gnosiológico que determina se uma ideação é valor ou dever ser, mas a função social que ocupa. Lukács após fazer a distinção entre dever-ser e valor, enfrenta a questão da objetividade do valor. Reconhece que o valor e a valoração são processualidades sociais, não sendo possível retirar o valor diretamente das propriedades naturais do objeto. Para tal argumentação retoma Marx e suas categorias de valor, em particular o valor de uso. Apontando que mesmo o valor de uso, cuja existência é ineliminavelmente ligada à sua existência natural, é fruto do trabalho, de relações sociais (com exceção do ar, da terra virgem, da madeira da floresta não cultivada, etc). O valor de uso não pode ser deduzido diretamente de qualidades ou propriedades da coisa em-si. Mas, ao mesmo tempo, ele só pode existir apoiado na coisa em-si existente. Por isto, Lessa (ibid., 129) defende que Lukács aponta para um tertium datur, de tal forma que o “(...) valor nem é exclusivamente produto da subjetividade, nem decorrência imediata da objetividade”. Mas o caráter objetivo do valor se revela no fato do valor de uso ser fruto do trabalho humano, sendo algo objetivo. Diz Lukács (ibid., p. 84) que:

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(...) nel caso del valore dobbiamo sottolinerne il carattere sócio-ontologico di ‘se...allora’: un coltello ha valore se taglia bene, ecc. La tesi generale secondo cui un oggetto prodotto ha valore solo quando sia in grado di servire correttamente, in modo il piú possibile ottimale, all’appagamento del bisogno, non solleva questa struttura del ‘se...allora’ in un sfera astratto-assoluta, semplicemente concepisce il rapporto ‘se...allora’ in una astrazione orientata sulla legalità. In questo senso il valore che appare nel lavoro, in quanto processo che riproduce valore d’uso è senza alcun dubbio oggetivo.67

O valor de uso tem por fundamento a relação entre homem e natureza. Para Lukács a objetividade dos valores se apresenta no cotidiano na relação do “se... então”, assim um cutelo tem valor se corta bem. E será apenas na relação com a causalidade objetiva, com o ser-precisamente-assim que o processo valorativo (“Cosicché non si può affermare che le valutazioni, in quanto singole posizioni, constituiscono come tali il valore”) pode “determinar se algo é ou não útil em dado contexto do processo de objetivação” (Lessa, ibid., p. 130). Daí Lukács dizer que: “Il valore che appare nel processo, e che attribuisce a questo una oggetività sociale, è ciò che fornisce il criterio per stabilire se le alternative presenti nella posizione teleologica e nella sua attuazione gli erano adequate, cioè se erano corrette, valide” (ibid). Em outro momento do mesmo texto, Lukács observa que tomar a utilidade como propriedade das coisas é algo paradoxal, pois a natureza só conhece o processo perene do devir-outro. “Infatti l’utilità solo in riferimento a una posizione teleológica può determinare il modo di essere di um qualsiasi oggetto, solo entro um tale rapporto fa parte dell’essenza di quest’ultimo di presentarsi come um essente che è utile o inutile” (ibid., p. 81). Lukács, assinala Lessa (ibid.), reafirma que apenas através do trabalho pode ocorrer a transmutação da causalidade dada em causalidade posta e sem isso a relação entre teleologia e causalidade, que possibilita o valor e os processos valorativos, não existiria. E conclui que “(...) isso não significa que a valoração seja uma processualidade meramente subjetiva. Ela só pode valorar o existente com base em finalidades projetadas no escopo do trabalho – portanto, apenas pode operar no interior da complexa articulação teleologia/causalidade que funda o ser social” (ibid., p. 131). Lukács argumenta que mesmo no trabalho mais primitivo o dever-ser presente na posição teleológica implica num processo valorativo. Tal processo

(...) é o da escolha de alternativas que favorecem o crescente desenvolvimento da capacidade humana em dominar as forças naturais e colocá-las a serviço de sua reprodução. O desenvolvimento das forças produtivas, a economia do tempo socialmente necessário à reprodução material, o dever-ser e o valor são processualidades ontologicamente articuladas. Fora desse complexo de relações, nem o dever-ser, nem os valores, nem sequer o desenvolvimento do gênero humano poderiam existir (Lessa, 2002b:131).68

67 O texto prossegue da seguinte maneira: “Non solo perché il prodotto può essere misurato sulla posizione teleologica, ma anche perché questa stessa posizione teleológica può essere dimostrata e comprovata come esistente oggetivamente, come valida, nel suo rapporto di ‘se... allora’ con l’appagamento del bisogno. Cosicché non si può affermare che le valutazioni, in quanto singole posizioni, constituiscono come tali il valore. Al contrario. Il valore che appare nel processo, e che attribuisce a questo una oggetività sociale, è ciò che fornisce il criterio per stabilire se le alternative presenti nella posizione teleologica e nella sua attuazione gli erano adequate, cioè se erano corrette, valide”. 68 Mais adiante Lessa (2002b:134) resume de forma brilhante a questão: “Em suma, segundo Lukács, no núcleo mais essencial do trabalho opera uma tendência à generalidade humana. Tanto a vida material das sociedades, as relações que articulam a totalidade social enquanto tal, como o processo de

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O tertium datur de Lukács é entre as posições que entendem a valoração como determinadas tão somente pela subjetividade humana e aquelas que a entendem como resultado direto das qualidades materiais dos objetos. Para ele, até mesmo o valor de uso, que é mais diretamente associado à materialidade em-si do objeto, não é originado nesta materialidade, ainda que só possa existir com ela.69 “Tal como no caso do reflexo, os processos valorativos apenas têm lugar enquanto partícipes do movimento sintético de teleologia e causalidade que funda o ser social. Dessa síntese resultam os valores enquanto ‘fator real’ da práxis social (...)” (ibid., p. 132). O tertium datur defendido por Lukács pode ser resumido a partir da lembrança de que desde o trabalho mais primitivo, da relação mais original do homem com a natureza, temos o desenvolvimento, nos homens singulares e em suas relações recíprocas, das faculdades humanas “(...) (in date circostanze solo la loro possibilita nel senso della dynamis aristotélica) le cui conseguenze vanno molto oltre la pura sfera economica, ma che nondimeno non possono abbandonare mai – come invece s’immagina l’idealismo – il terreno dell’essere sociale” (Lukács, 1981:92). Uma das conseqüências desse desenvolvimento “(...) é a explicitação categorial do

constituição de cada subjetividade, da personalidade peculiar a cada indivíduo, adquirem ao longo do tempo um conteúdo crescentemente genérico. Na esfera dos valores, essa tendência se manifesta pela gênese de valores crescentemente universais e crescentemente mediados. O desenvolvimento de tais valores e processos valorativos resulta em complexos sociais que, de forma cada vez mais intensa, articulam as decisões individuais com os destinos do gênero como um todo. Pensamos não apenas no mercado, mas também na moral, nos costumes, no direito, na ética e na estética”. Aqui ficam demarcadas as conseqüências desta tendência para a constituição de valores crescentemente genéricos, universais e cada vez mais mediados, a complexificação das formas de sociabilidade, a articulação das decisões individuais com o destino de todo o gênero humano e a ética enquanto superadora da dicotomia indivíduo-sociedade. 69 Diz Lukács (1981:89-90): “L’oggettività del valore econômico è fondata nell’essenza del lavoro in quanto ricambio organico fra società e [natura] e tuttavia la raltà oggettiva del suo carattere di valore rimanda oltre questo nesso elementare. Già la forma originaria del lavoro, che pone l’utilità come valore del suo prodotto, pur rapportandosi direttamente all’appagamento del bisogno, mette in moto nell’uomo mo che lo compie un processo la cui intenzione oggettiva – indipendentemente dal grado di consapevolezza – è diretta a promuovere nella lo sviluppo ulteriore dell’uomo. Nel valore economico si verifica cosí un elevamento qualitativo rispetto a quel valore che era già immanente nell’attività semplice, produttrice di valori d’uso. Si ha in tal modo un movimento duplice e contraddittorio: da un lato il carattere di utilità del valore subisce un innalzamento nell’universale, nel domínio sull’intera vita umana, e ciò avviene simultaneamente al farsi sempre piú astratta dell’utilità, man mano che il valore di scambio, sempre mediato, elevato all’universalità, in sé contraddittorio, assume la funzione di guida nei rapporti sociali fra gli uomini. Anche se non bisogna dimenticare mai che il presuposto affinché il valore di scambio possa aver corso è il suo fondarsi sul valore d’uso. L’elemento nuovo è dunque un dispiegamento contraddittorio, dialettico, delle determinazioni originarie, già presenti nella genesi, non la loro semplice negazione astratta. (...) noi abbiamo dovuto registrare che non vi possono essere atti economici – dal lavoro originario fino alla pura produzione sociale – privi di una intenzione, in loro ontologicamente immanente, alla umanizzazione dell’uomo nel senso piú lato, che riguarda cioè tanto la sua genesi quanto il suo sviluppo. Questa costituzione ontologica della sfera economica getta luce sul suo rapporto con gli altri domíni della prassi umana. All’economia, cioè, come abbiamo ripetutamente visto in altri contesti, spetta la funzione ontologicamente primaria, fondante. E sebbene anche questo l’abbiamo detto piú volte, non ci sembra superfluo sottolinearlo ancora qui: tale priorità ontologica non implica nessuna gerarchia di valore. Con essa noi rileviamo soltanto un semplice stato di cose ontologico: una determinata forma dell’essere è l’insopprimibile base ontologica di un’altra, e il rapporto non può essere né inverso né reciproco. Una tale cosntatazione è in sé del tutto avalutativa. Solo nella teologia e nell’idealismo dai colori teologici la priorità ontologica rappresenta anche una piú alta conformità al valore”.

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dever-ser e do valor enquanto complexos específicos e intrinsecamente relacionados” (Lessa, ibid., p. 134). Lembrando que o dever-ser age na escolha de meios e os valores agem na “delimitação da finalidade e na valoração dos resultados”. Nesta relação entre dever-ser e valor se manifesta a relação entre busca de meios e finalidades, que é inerente ao processo de trabalho. Além disto, vimos que o pôr teleológico exige a inversão da relação passado-presente tal como opera na causalidade dada. Aqui é o futuro, o dever-ser que pauta o presente, as decisões do sujeito. Por fim, em Lukács os valores são puramente sociais. “Os valores são qualidades objetivas potencialmente presentes no ser precisamente assim existente, potencialidade que apenas pode se atualizar no interior da relação teologia/causalidade” (Lessa, ibid., p. 135). Não são puramente subjetivos e tampouco decorrem diretamente da materialidade da coisa, do objeto. Na verdade são “(...) uma dimensão ontológica puramente social, inexistente na natureza, e que corresponde a um elemento essencial – certamente não o único – da nova objetividade que consubstancia o mundo dos homens” (ibid.). Sem os valores não há pôr teleológico e, assim, não há ser social. Mas isto não significa que possamos reduzir o ser social aos valores “(...) ou que neles possa[mos – PH] encontrar sua fundação enquanto esfera ontológica distinta da natureza” (ibid.). Passaremos agora a tratar da ação dos processos valorativos sobre as individualidades e sobre a totalidade da formação social. Para isto vamos recorrer à categoria de exteriorização.70 Conforme vimos na nota 39 e conforme nos lembra Lessa (2002b:136), para Lukács o trabalho (enquanto relação entre o homem e a natureza) funda o valor (econômico) “tuttavia la realtà oggettiva del suo carattere di valore rimanda oltre questo nesso elementare” (1981:89). E mesmo o trabalho mais primitivo “(...) che pone l’utilità come valore del suo prodotto, pur rapportandosi direttamente all’appagamento del bisogno, mette in moto nell’uomo mo che lo compie un processo la cui intenzione oggettiva – indipendentemente dal grado di consapevolezza – è diretta a promuovere nella lo sviluppo ulteriore dell’uomo” (ibid.). A partir disso, Lessa argumenta que estamos diante de uma Aufhebung entre os processos valorativos e o trabalho. A relação entre eles se dá por uma “processualidade que consubstancia uma esfera objetiva de determinações sociovalorativas, cuja explicitação categorial, ao longo do tempo, vai para muito além da esfera do trabalho enquanto tal” (ibid.). E conclui ele que “(...) a ação de retorno dos valores e complexos valorativos sobre seu criador (e por extensão, sobre a totalidade social) é um momento decisivo dessa Aufhebung” (ibid.). Antes de tratar da ação de retorno dos valores, Lessa argumenta que é preciso estudar a compreensão de Lukács das categorias de exteriorização (Entäusserung) e individuação.71 Para Lukács, segundo Lessa (2002b), as categorias de exteriorização (Entäusserung) e de estranhamento ou alienação (Entfremdung) têm pontos em comum e pontos que as distinguem. Exteriorização (Entäusserung) é a “(...) ação de retorno de todo ente objetivado sobre o seu

70 Acompanhamos aqui a tradução de Sérgio Lessa (2002b:11) para o binômio Entäusserung/Entfremdung como exteriorização/estranhamento ao invés de alienação/estranhamento. 71 Ele justifica esta necessidade com dois argumentos: “Em primeiro lugar, porque a ação de retorno dos processos valorativos é uma forma particular de um fenômeno mais global, a ação de retorno de todo ente objetivado sobre as individualidades e a totalidade social. Por isso é imprescindível que nos detenhamos sobre as características mais gerais e decisivas desse fenômeno para então, explicitar a especificidade da função social dos processos valorativos nessa esfera. Em segundo lugar, porque a ação de retorno dos valores sobre a totalidade social tem, em um dos momentos do processo de elevação da singularidade humana à autêntica individualidade, a mediação decisiva de sua conexão com a totalidade da práxis social. A elucidação dessa questão, por sua vez, requer um exame do processo de individuação em Lukács” (ibid.).

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criador (e por essa mediação, (...), sobre a totalidade social). (...) corresponde (...) aos momentos nos quais a ação de retorno da objetivação (e, claro, do objetivado) sobre o sujeito impulsiona a individuação (e, por meio dela, também a sociabilidade) a patamares crescentemente genéricos” (ibid., p. 137). Já estranhamento ou alienação (Entfremdung) “(...) são os obstáculos socialmente postos à plena explicitação da generalidade humana” (ibid.). Logo, fica claro que o que eles têm em comum é que ambos são “(...) ações de retorno das objetivações sobre a individuação (e sobre a totalidade social, com todas as mediações cabíveis). O que os distingue é ser o estranhamento uma ação que reproduz a desumanidade socialmente posta, enquanto a exteriorização é o momento de autoconstrução do gênero humano” (ibid.). Aqui Lessa acrescenta que objetivação, como já vimos neste nosso capítulo, é a conversão, via trabalho, da teleologia em causalidade posta, de modo a transformar o real e originar uma coisa ontologicamente distinta do seu criador. Essa distinção entre objetivação, exteriorização e estranhamento feita por Lukács, segundo ele próprio argumenta, o distingue de Marx.72 Lessa (ibid., p. 138) nos lembra que em Hegel o complexo exteriorização/objetivação é algo negativo, pois é “a perda do Espírito de si próprio”. Mas em Lukács há uma ruptura com tal apreensão, pois a exteriorização é essencialmente positiva. Sendo um efeito sobre o sujeito que realiza a objetivação “(...) é um momento ineliminável do processo de individuação e, por essa mediação, do desenvolvimento humano-genérico” (ibid.). No seu cotidiano, o homem realiza objetivações que levam a exteriorização dele enquanto sujeito. Ao se construir enquanto individualidade, por meio do trabalho, este homem atua para a reprodução da forma de sociabilidade na qual está inserido, e ao mesmo tempo “recebe as conseqüências de suas ações”. A distinção entre objetivação, exteriorização e estranhamento feita por Lukács, argumenta ainda Lessa (ibid., p. 139-140) permite descrever o estranhamento como o momento em que o objetivado atua sobre o sujeito e neste movimento bloqueia o “avanço do processo de sociabilidade” ao invés de “impulsionar o devir-humano dos homens”. Por fim, concluímos com Lessa que “A objetivação implica, sempre, momentos de exteriorização e, às vezes, estranhamentos”. Feita a distinção, ainda que ligeira, entre as categorias de objetivação, exteriorização e estranhamento, vamos enfatizar a análise da categoria de exteriorização em Lukács. O trabalho, para Marx e Lukács, como vimos anteriormente, implica na objetivação que é o resultado do pôr teleológico. A objetivação origina uma esfera relativamente independente e ontologicamente distinta da subjetividade, o que por sua vez não borra a distinção entre teleologia e causalidade. Lukács, conforme nota 42, diferentemente de Marx divide no plano

72 “Per rendere ontologicamente piú perspícuo questo stato di cose descritto com precisione da Marx, mi sono permesso nel precedente capitolo di differenziare un poco sul piano terminologico l’atto lavorativo. Il lettore ricorderà certamente che, mentre Marx lo ha descritto con una terminologia unitaria, anche se variata, io l’ho analiticamente scisso in oggettivazione e alienazione. Nell’atto reale, in verità, i due momenti sono inseparabili: ogni movimento e ogni riflessione nel corso (o prima) del lavoro sono diretti in primo luogo a una oggettivazione, ossia a una trasformzione teleologicamente adeguata dell’oggetto del lavoro. Il compimento di questo processo comporta che l’oggetto, prima, esistente solo in termini naturali, subisce una oggetivazione, cioè perviene a una usabilità sociale. Rammentiamo la novità ontologica che qui viene in luce: mentre gli oggetti della natura come tali hanno un essere-in-sé, e il loro divenire-per-noi deve essere acquisito dal soggetto umano per mezzo del lavoro conoscitivo, - anche quando ciò, attraverso molte ripetizioni, divenga poi routine, - l’oggettivazione imprime in modo diretto e materiale l’essere-per-sé nell’esistenza materiale delle oggettivazioni; esso fa parte ormai della sua costituzione materiale, anche se gli uomini che non hanno mai avuto contatti con quello specifico processo produttivo non sono in grado di percepirla”. (Lukács, 1981:564)

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terminológico o ato do trabalho em objetivação e exteriorização. E nos lembra que “nell’atto reale, in verità, i due momenti sono inseparabili”. E prosseguindo ele lembra que “Ogni atto di questo tipo è però contemporaneamente un atto di alienazione del soggetto umano”. E prossegue dizendo que

Marx ha descritto con precisione questa duplicità di lati del lavoro, e ciò conforta la legittimità della nostra operazione di fissare anche sul piano terminologico l’esistenza di questi due lati negli atti pur unitari. Egli dice nel celebre passo sul lavoro: ‘Alla fine del processo lavorativo emerge un risultato che era già presente al suo inizio nella idea del lavoratore, che quindi era già presente idealmente. Non che egli effettui soltanto un cambiamento di forma dell’elemento naturale; egli realizza nell’elemento naturale, allo stesso tempo, il proprio scopo, da lui ben conosciuto, che determina come legge il modo del suo operare, e al quale deve subordinare la sua volontà’. È evidente che qui non si tratta semplicemente di due aspetti del medesimo processo, ma di qualcosa di piú. I nostri esempi precedenti mostrano che gli stessi atti lavorativi possono, e anzi sotto il dominio di un determinato modo di lavore devono, provocare nello stesso soggetto divergenze socialmente assai rilevanti. Ed è qui che viene in luce la divergenza dei due momenti. Mentre l’oggettivazione è imperativamente e chiaramente prescritta dalla rispettiva divisione del lavoro e quindi sviluppa per forza di cose negli uomini le capacità a ciò necessarie (naturalmente ci riferiamo soltanto a una media richiesta dall’economia, dove le differenze individuali, anche sotto questo profilo, non vengono mai cancellate del tutto, ma questo non cambia la sostanza della cosa), l’effetto di ritorno della alienazione sui soggetti del lavoro è per principio diversificata (1981:564-565).

Parece-nos claro que para Lukács objetivação e exteriorização são dois momentos de um processo em si unitário que é o trabalho. A objetivação é o resultado do pôr teleológico, é a transformação pré-pensada e realizada do real pelo sujeito. A exteriorização é o “momento da ação de retorno da objetivação e do objetivado sobre o indivíduo agente” (Lessa, 2002b:141). Neste momento em que o sujeito criador é confrontado com o resultado de seu pôr teleológico que é ontologicamente distinto dele (criador), sendo este resultado um produto que tem uma história própria e relativamente autônoma em relação ao criador. Neste momento ocorre uma ação de retorno do objeto sobre o sujeito criador. Lessa desenvolve esta questão argumentando que

(...) ao constituir o objeto enquanto ontologicamente distinto do sujeito, a objetivação e o produto dela resultante exibem uma autonomia relativa diante do sujeito agente – e essa autonomia relativa é o fundamento ontológico último das diversificadas ações de retorno do objetivado sobre os indivíduos. Há diferenças importantes entre a relatividade da autonomia do processo de objetivação e a do objeto construído. O em si da objetivação, já vimos, é determinado em larga medida pela consciência do sujeito agente, enquanto o objeto criado é ontologicamente distinto da subjetividade que operou a objetivação que lhe deu origem” (ibid., p. 141-142).

Lukács, em trecho anterior de “Per l’Ontologia...” 73 trata com atenção a categoria de exteriorização. Nele explicita-se que a obtenção do resultado esperado do trabalho só pode

73 Vejamos: “(...) L’essenza ontologica del dover-essere nel lavoro agisce bensí sopra il soggetto che lavora e ne determina il comportamento lavorativo, ma non avviene solo questo, essa determina anche il suo comportamento verso se steso in quanto soggetto del processo del lavoro. Questo, tuttavia, come abbiamo espressamente rilevanto proprio facendo tali considerazioni, è un processo fra uomo e natura, è la base ontologica del ricambio organico fra uomo e natura. E la costituzione del fine, dell’oggetto, dei mezzi, determina anche l’essenza dell’atteggiamento soggettivo. In altri

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ocorrer quando ele é realizado com base numa “estrema oggettività, e perciò la soggettività in questo processo deve muoversi al servizio della produzione” (p. 77). Sem dúvida, como lembra Lessa (2002b:144), nos processos de trabalho mais simples, aspectos da qualidade do sujeito, do indivíduo (tais como “spirito d’osservazione, destrezza, solerzia, tenacia, ecc.”(ibid.)) são fundamentais para o sucesso do processo de trabalho. Ainda na época do predomínio dos artesanatos e das manufaturas, as habilidades e destrezas individuais apresentam-se como fundamentais. Somente na era da grande indústria, com o ápice da divisão do trabalho, do trabalho estranhado, é que as habilidades individuais perdem a centralidade para a boa conclusão do trabalho. Entretanto, para Lukács

Quando il dover-essere, come è inevitable, fa appello anche a determinati aspetti dell’interiorità del soggetto, le sue richieste tendono a far sí che i mutamenti all’interno dell’uomo forniscano un veicolo per meglio padroneggiare il ricambio organico con la natura. L’autodominio dell’uomo, che compare per la prima volta nel lavoro come effetto necessario del dover-essere, la crescente padronanza della sua intelligenza sulle propria spontanee inclinazioni biologiche, abitudini, ecc. vengono regolati e guidati dall’oggettività di questo processo; la quale però è per sua essenza fondatta sull’esserci naturale dell’oggetto, dei mezzi, ecc. del lavoro. Per intendere giustamente il lato del dover-essere che nel lavoro agisce sul soggetto modificandolo, ocorre muovere dalla funzione regolativa di questa oggetività. Ne consegue che per il lavoro è in primo luogo determinate il comportamento effettivo del lavoratore; quel che nel frattempo accade dentro il soggetto stesso, non è obbligatorio abbia sempre effetti pratici. Abbiamo visto, bensí, che il dover-essere del lavoro risveglia e promuove talune qualità dell’uomo che piú tardi, per forme di prassi piú evolute, sono di grande rilevanza; basta ricordare i dominio sugli affetti. Tuttavia questi mutamenti del soggetto qui non coinvolgono, almeno non immediatemente, la totalità della sua persona; possono funzionare benissimo, nel lavoro come tale, senza investire la restante vita del soggetto. Vi sono grandi possibilità che ciò avvenga, ma solo possibilità (1981:76-77).

Quando discute a questão da necessidade da correção do reflexo em relação ao ser-precisamente-assim, Lukács explicita a presença desta mesma interação entre o dever-ser e a individuação. Mostra que é preciso que o homem modifique-se interiormente para fazer a razão termini, anche nell’ottica del soggetto un lavoro può riuscite soltanto se compiuto sul fondamento di una estrema oggettività, e perciò la soggettività in questo processo deve muoversi al servizio della produzione. Naturalmente sul decorso del processo lavorativo influiscono in maniera determinante, in senso estensivo e intensivo, le qualità del soggetto (spirito d’osservazione, destrezza, solerzia, tenacia, ecc.). Nondimeno tutte le facoltà dell’uomo che vengono mobilitate sono sempre orientate, in sostanza, verso l’esterno, verso il padroneggiamento effetivo e la trasformazione materiale dell’oggetto naturale tramite il lavoro. Quando il dover-essere, come è inevitable, fa appello anche a determinati aspetti dell’interiorità del soggetto, le sue richieste tendono a far sí che i mutamenti all’interno dell’uomo forniscano un veicolo per meglio padroneggiare il ricambio organico con la natura. L’autodominio dell’uomo, che compare per la prima volta nel lavoro come effetto necessario del dover-essere, la crescente padronanza della sua intelligenza sulle propria spontanee inclinazioni biologiche, abitudini, ecc. vengono regolati e guidati dall’oggettività di questo processo; la quale però è per sua essenza fondatta sull’esserci naturale dell’oggetto, dei mezzi, ecc. del lavoro. Per intendere giustamente il lato del dover-essere che nel lavoro agisce sul soggetto modificandolo, ocorre muovere dalla funzione regolativa di questa oggetività. Ne consegue che per il lavoro è in primo luogo determinate il comportamento effettivo del lavoratore; quel che nel frattempo accade dentro il soggetto stesso, non è obbligatorio abbia sempre effetti pratici. Abbiamo visto, bensí, che il dover-essere del lavoro risveglia e promuove talune qualità dell’uomo che piú tardi, per forme di prassi piú evolute, sono di grande rilevanza; basta ricordare i dominio sugli affetti. Tuttavia questi mutamenti del soggetto qui non coinvolgono, almeno non immediatemente, la totalità della sua persona; possono funzionare benissimo, nel lavoro come tale, senza investire la restante vita del soggetto. Vi sono grandi possibilità che ciò avvenga, ma solo possibilità” (1981:76-77).

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dominar sobre a emoção, sobre o instinto.74 Logo, o trabalho modifica não só o real dado como o sujeito que labora. E ontologicamente, os “(...) tipi di comportamento che divengono per eccellenza decisivi rispetto all’esser-uomo dell’uomo” (p. 54) já estão presentes nas formas mais primitivas de trabalho, e se expressam no “dominio dell’uomo sui propi istinti, affetti, ecc. [e - PH] costituisce il problema capitale di ogni assetto morale, dalle consuetudini e tradizioni fino alle piú alte forme di etica” (ibid.). Com Lessa (2002b:145) podemos afirmar que para Lukács “a exteriorização é uma conseqüência espontânea e inevitável no processo de trabalho”. O processo de trabalho ao realizar a objetivação da prévia-ideação seleciona os comportamentos do indivíduo que sejam os mais adequados para a concretização da idéia. Daí ocorre a “(...) a gênese e o desenvolvimento de um complexo valorativo que tem por centro o comportamento do indivíduo, inicialmente para com a natureza que o cerca; mas, imediatamente, pela mediação daquele impulso de Aufhebung dos processos valorativos para além do trabalho, também de complexos valorativos que têm como nódulo o comportamento do indivíduo diante dos dilemas, alternativas, possibilidades etc. que a sociabilidade em que vive coloca a cada momento histórico”. Em Lukács a exteriorização leva o ser social a ser cada vez mais genérico, ela “(...) é um momento ineliminável e decisivo para o devir-humano dos homens”. Neste momento de nossa exposição é preciso alertar que se no trabalho mais simples já temos de forma decisiva o dever-ser e os valores, estes se apresentam por sua vez nas suas formas originárias, pouco desenvolvidas. Assim apesar de servirem de padrão inicial, de referência para a análise das formas mais evoluídas da sociabilidade humana, a análise das formas mais complexas de valores encontrados neste todo mais complexo, tais como moral, ética, direito, etc., exigem mediações que Lukács identifica na categoria de reprodução social e que estão além do que é posto pelo trabalho na sua forma primitiva original e que serve de modelo inicial. O exame de tal categoria será realizado, ainda que de forma rápida, mais adiante. Assim, e ainda com Lessa (2002b:146), vamos tratar da categoria de individuação que é “(...) um dos pólos centrais, ao lado da totalidade social, da reprodução social”. Lembrando que, além disso, a individuação articula a “(...) exteriorização mediada pelos valores e processos valorativos com o desenvolvimento humano genérico”.

A individuação só pode surgir no contexto da sociabilidade do ser social. E, para Lukács, conforme nos lembra Lessa (2002b, 146-147), “o ser social é a síntese dos atos singulares dos indivíduos em tendências, forças, etc. genéricas”. Aqui são as decisões alternativas adotadas pelos indivíduos que particularizam sua individualidade em relação às demais e em relação à totalidade social. Assim “É a qualidade das relações que estabelece com o mundo que caracteriza a substancialidade de cada indivíduo singular” 75. Como já vimos anteriormente, para Lukács, o

74 “Ancora piú chiara appare la cosa quando si considera che la mediazione viene a realizzarsi nel lavoro come catena di alternative. Colui che lavora necessariamente desidera il successo della sua attività. Ma egli può ottenerlo solo quando, sia nella posizione del fine che nella scelta dei suoi mezzi, costantemente è teso a cogliere l’oggettivo essere-in-sé di tutto quel che ha a che fare con 75 Lukács nos diz que: “Quando per contro noi poniamo il nostro tertium datur ontologico, ci si mostra da un lato nuovo il nostro concetto di sostanza, che è universale e insieme storico. Abbiamo visto infatti come “elemento” immediato dell’accadere storico-sociale – che, nonstante la sua complessità interna, in quanto parte costitutiva di complessi sociali, non è, appunto sul piano dell’essere, ulteriormente divisibile, ma va affrontato cosí com’è, come “elemento” nel suo esser-proprio-cosí – non possa essere altro che la decisone alternativa di un individuo concreto. Allo stesso modo in cui

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indivíduo humano, ao contrário do indivíduo singular do ser orgânico cuja substancialidade é dada pela herança genética de uma vez por todas, tem a sua substancialidade materializada como construção social. Ele a constrói ao longo de sua vida e através de suas escolhas dentre as alternativas concretas com as quais ele se defronta. Esta substancialidade é social e histórica, a personalidade do indivíduo não pode ser explicada somente por determinações genéticas. Sua evolução, sua dinâmica é notadamente social e historicamente determinada. Ou seja, a personalidade de cada indivíduo é construída a partir desta integração e correlação com e na formação social na qual está inserido.76 Este é o caminho pelo qual podemos apreender a explicitação da categoria de individuação. Este caminho, conforme nos lembra Lessa (2002b:150), passa por três momentos-chave77:

Para Lukács, em suma, são três os nexos ontológicos fundamentais da individuação: 1) o devir-humano dos homens é seu impulso fundante e seu movimento predominante; 2) a contraditoriedade entre os elementos genérico-universais e os particulares em todo ato singular, contraditoriedade potencializada pela explicitação categorial da bipolaridade indivíduo/totalidade social característica da reprodução do mundo dos homens, força os indivíduos a tomarem consciência da relação contraditória que permeia a relação indivíduo/sociedade; e 3) o desenvolvimento de uma malha de relações sociais crescentemente genérica é o fundamento ontológico da necessidade e, ao mesmo tempo, da possibilidade de, na individuação, atuarem valores e processos valorativos cada vez mais genéricos (Lukács pensa, acima de tudo, na ética).

Quanto ao primeiro nexo ontológico cabe lembrar que o desenvolvimento do ser social implica necessariamente no afastamento das barreiras naturais e este afastamento “possibilita e exige o desenvolvimento de personalidades cada vez mais ricas, mediadas e complexas. Por tal

l’essere sociale si costruisce con queste catene variamente incrociantisi di decisioni alternativa, cosí anche la vita singola dell’individuo è composta dal loro succedersi e derivare l’una dall’altra. Dal primo lavoro, come genesi dell’umanizzarsi dell’uomo, fino alle piú sottili decisioni psicologiche e spirituali l’uomo formail proprio mondo esterno, contribuisce a edificarlo e rifinirlo, e al medesimo tempo con queste stesse azioni forma se stesso, passando da mera singolarità naturale a individualità entro una società”. 76 A título de ilustração tomamos uma passagem em que Lukács trata das posições teóricas que operam com uma imagem fetichizada, deformada do ser social, retratando-o como tendo os complexos autornomia em si absoluta: “Molto spesso si verificano cosí deformazioni della personalità umana che sono molto vicine al fenomeno dell’estraniazione, che anzi qualche volta ce la presentano allo stato puro. Siccome la civiltà attuale produce queste deformazioni su scala di massa, è facile capire perché i movimenti che vi si oppongono in modo astratto, come l’esistenzialismo, vedano il proprio ideale nella personatità riposante solo su se stessa, liberatasi da ogni vincolo deformante di questo genere. Ci occuperemo di questo tema nel capitolo conclusivo dell’opera. Qui facciamo solo qualche osservazione su un aspetto di tale fenomeno, cioè a dire: anche qui è dal feticismo che scaturisce l’illusione esistenzialistica di poter immaginare una personalità pura, completa in se stessa, come possibile e persino come modelo universale. Tutte le determinazioni reali della personalità, invece, sorgono dalle sue relazioni pratiche (poi generalizzate a livello sentimentale e teorico) con l’ambiente sociale, con le altre persone, con il proprio ricambio organico con la natura, con i complessi nei quali la società globale concretamente si articola. Una ricchezza di contenuti non può venire per la coscienza dell’individuo altro che da tali relazioni. La sua prassi è naturalmente anche in questo caso, come sempre nella vita umana, alternativa: queste interazioni possono sviluppare e rinsaldare la sua personalità dandogli riccezza interiore oppure spezzarne l’unità in “parcelle”. In ogni caso l’estraniazione ha qui una delle sue scaturigini sociali, ma nel possibile male c’è anche la possibilità, anzi il veicolo, del suo superamento. Fuori da tale dialettica fra oggetivà dell’essere sociale e inevitabilità di decisioni alternative in ogni atto individuale, neppure ci si avvicina al fenomeno dell’estraniazione”. (1981:227) 77 Lessa resume de forma competente o conteúdo exposto por Lukács (1981) nas páginas 274 a 277.

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mediação, o impulso à generalidade humana inerente ao próprio trabalho se constitui no fundamento ontológico último do processo de individuação” (ibid., p. 147) Quanto ao segundo nexo ontológico frisamos, com Lessa (2002b:148), que o elemento que funda a individuação são as ações dos indivíduos, e estas ações só existem “enquanto síntese de elementos genéricos e particulares”. E isto explica o por que a individuação apenas pode ocorrer em sociedade.78 Segundo Lessa (ibid.), “(...) em Lukács, todo ato social é uma unidade sintética de elementos genéricos e singulares”. E apenas teoricamente é possível separá-los. Da tensão entre os elementos genéricos e particulares é que se desdobra “(...) o processo de particularização, que faz cada ato humano diferente de todos os outros, mas sempre partícipes da história (...)”. Esta tensão tem por função ontológica ser “(...) o medium que permite, no nível da práxis cotidiana, a percepção da contraditoriedade gênero humano/individualidade. Na escolha das inúmeras alternativas ofertadas pelo real, é essa tensão que faz com que o indivíduo tenha de escolher entre possibilidades mais ou menos genéricas ou mais ou menos particulares” (ibid., p. 149). Por fim, quanto ao terceiro e último nexo ontológico que é associado aos complexos valorativos, Lessa (ibid.) argumenta que o desenvolvimento da individualidade exige complexas mediações genéricas que viabilizem que o indivíduo refira a si próprio “as exigências postas pela evolução do gênero humano”. E esta é a base para a gênese de “complexos como os costumes, o direito, a ética, etc.”. Esses complexos valorativos influenciam na escolha pelos indivíduos dentre as alternativas postas pelo desenvolvimento da sociabilidade, assim influenciam no desenvolvimento interno e específico de cada individualidade. “E, nessa medida, adentram ao complexo de determinações que direcionam o devir-humano dos homens para realizações mais (ou menos) genéricas”. Aqui “(...) os valores têm um papel ontológico decisivo no desenvolvimento das individualidades”. A ação dos valores é universal, mas só atinge toda sua explicitação com o surgimento da primeira formação social pura, que é a sociabilidade burguesa. Na contradição entre o homem burguês (esfera econômica) e o homem cidadão (esfera político-jurídica) que é própria desta forma de sociabilidade, os valores passam por uma elevação qualitativa na determinação do processo de individuação. Pois ou os valores estimulam as individualidades para posições mais genéricas, voltando-as para o atendimento das exigências postas pelo desenvolvimento do gênero humano. Ou estimulam as individualidades para o rumo da particularidade, da mônada voltada para a acumulação privada de capital e que tem na totalidade social o espaço desta acumulação privada. No primeiro caso os valores podem “(...) elevar a substancialidade de cada individualidade à generalidade humana” (ibid., p. 150). No segundo caso podem levar ao amesquinhamento da individualidade limitando-a ao universo da acumulação “que se contrapõe/sobrepõe à humanidade” (ibid.). Lessa conclui esta argumentação dizendo que:

78 Segundo Lessa (2002b:148): “Os elementos genéricos são dados: 1) pela demanda específica, sempre socialmente determinada, que está na raiz de todo ato; 2) pela ação de retorno do produto criado sobre o seu criador; 3) e, finalmente, pelos avanços sociogenéricos incorporados às consciências individuais pelo fluxo espontâneo da práxis social. Os elementos particulares, por sua vez se originam: 1) na singularidade de cada situação; 2) na singularidade de cada individualidade; 3) e, por fim, na singularidade da resposta que corresponde à alternativa escolhida”.

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Em suma, é essencial à exteriorização o impulso para a constituição de um ser social crescentemente genérico. Com isto há um contraditório processo de evolução que leva, pela mediação da individuação, dos complexos valorativos mais simples aos mais complexos. Estes não mais se limitam, nem se confundem, com a imediaticidade dos atos de trabalho; todavia, apenas podem existir com base neles e, concomitantemente, exercem uma efetiva influência no desenvolvimento da reprodução material das sociedades (2002:150).

Assim, os valores (que para Lukács são “uma forma ‘objetiva de objetividade social’” (ibid., p. 151)) e os processos valorativos são fundamentais no processo de trabalho, pois é através deles que o indivíduo realiza a escolha dos meios, dos fins e dos próprios produtos finais objetivados pelo processo de trabalho. E tais como a teleologia e o reflexo, os valores e os processos valorativos só podem surgir a partir da complexa e contraditória relação entre causalidade e teleologia que é a relação distintiva e fundante do ser social. Nesta relação,

(...) os valores se apresentam enquanto potencialidades do ser-precisamente-assim existente, potencialidades, todavia, que apenas podem se atualizar tendo por mediação o pôr-teleológico” (ibid., p. 151). Valores e processo valorativos “dão origem a complexos e mediações sociais que, ainda que fundados pelo trabalho, não mais se identificam com ele. A ética, a estética, a moral, os costumes, o direito, etc. surgem e se desenvolvem tendo por fundamento o trabalho, mas por momento predominante em seu desenvolvimento o complexo processo de reprodução social como um todo (ibid.).

O processo de desenvolvimento do gênero humano explicita que a constituição “das potencialidades materiais-sociogenéricas e sua efetivação no interior de formações sociais dadas” (ibid.) é atravessado por uma contraditoriedade “(...) que compõe o solo genético dos fenômenos sociais que Lukács denominou estranhamentos”79 (ibid.). 2.5. Trabalho e Estranhamento Neste item seguiremos acompanhando a exposição de Lessa (2002b) e trataremos da categoria estranhamento em Lukács sem realizar uma abordagem que a esgote. Nossa pretensão é relacioná-la com a categoria que para Lukács é fundadora do ser social – o trabalho. Para Lukács, entre a categoria de estranhamento e o trabalho “(...) se interpõe uma densa malha de mediações sociais que desempenham um papel decisivo em sua consubstanciação a cada momento histórico” (Lessa, 2002b:154). Para ele, assim como para Marx, o estranhamento surge para além da esfera da troca orgânica homem-natureza, situa-se na esfera da sociabilidade humana, das relações entre dos homens entre si. Logo é uma categoria que só se explicita na esfera da reprodução social. Ao tratarmos da categoria trabalho, realizamos uma análise com um nível alto de abstração. Por isso ao buscarmos as relações entre estranhamento e trabalho, só teremos “(...) alguns momentos nos quais, a partir da reprodução social, os estranhamentos se conectarão com o trabalho” (ibid.). Além disso, teremos “(...) os fundamentos últimos que,

79 Lessa (2002:153, nota 1) explicita que “pode-se ler alienação onde emprego estranhamento”.

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embora não constituam os estranhamentos historicamente determinados, abrem a possibilidade ontológica de suas efetivações” (ibid.). Lessa (ibid.), explica que:

Do ponto de vista das categorias internas ao trabalho (teleologia, objetivação, exteriorização e causalidade, para ficar apenas nas mais gerais), o estranhamento encontra seu fundamento em dois momentos: 1) o insuperável caráter de contraditoriedade do devir-humano dos homens e 2) os valores e processos valorativos”. Lukács, em ‘O Trabalho’, inicia por estes últimos.

O próprio Lessa, acertadamente adverte que o fato de Lukács iniciar sua análise do estranhamento pelos valores, não significa que ele advogue em favor de uma perspectiva moralista ou eticista. Para Lukács80 o estranhamento não pode se limitar à esfera valorativa ou da individualidade. Lessa (ibid., p. 155) defende que para Lukács “(...) os processos de estranhamento são determinações objetivas do mundo dos homens. Tal como toda as determinações objetivas, também os estranhamentos mantêm uma relação muito mutável com a consciência”. Há casos limites nos quais os estranhamentos ocorrem sem que os homens tenham consciência deles, entretanto, isto não impede que estes mesmos estranhamentos ajam sobre as posições teleológicas que serão objetivadas. Daí, conclui Lessa (ibid.) que “A consciência do estranhamento não é conditio sine qua non para que ele interfira nos processos de individuação e na escolha dos valores a serem objetivados nos atos singulares”. Para Lukács os valores, como vimos, são momentos da posição teleológica do indivíduo criador. Os valores têm existência real no ser social e atuam concretamente ainda que o indivíduo não tenha consciência deste fato81. Entretanto, tal situação é o caso particular do caso mais

80 Há várias passagens em que esta posição é explicitada por Lukács, vejamos pelo menos uma: “Ciò vale per tutte le forme di estraniazione, sia per quelle che si presentano direttamente come economico-sociale, sia per quelle la cui forma di manifestazione immediata è ideologica (religione), quantunque anche queste e analoghe forme di estraniazione siano in ultima analisi, per quanto con ampie mediazioni, fondate nella società. Ma forse no è azzardato affermare che in queste ultime le decisioni personali hanno un peso maggiore. Non va tuttavia dimenticato che anche le decisioni che nell’immediato sono puramente personali si sviluppano entro rapporti sociali concreti, sono risposte a domande che salgono di qui. Ma nonostante questo indissolubile intreccio del sociale con il personale, il fatto che una decisione alternativa scaturisca direttamente da motivi personali oppure sia determinata, determinativamente intenzionata, dalla società già nell’immediato, ha un’importanza oggetiva anche per la sua valutazione sociale. Occorre dunque esaminare tali questioni nella loro complessità concreta. La contraddizione dialettica fra sviluppo delle capacità e sviluppo della personalità, cioè l’estraniazione, non abbraccia mai, nonostante la sua rilevanza, l’intera totalità dell’essere sociale dell’uomo, e d’altra parte essa non si riduce (salvo che nelle deformazioni soggettivistiche) a una antitesi astratta fra soffettività e oggettività, fra uomo singolo e società, fra individualità e socialità. Non vi è nessun tipo di soggettività che nelle radici e determinazioni piú profonde del suo essere non sia sociale. E lo dimostra in modo inconfutabile l’analisi piú elementare dell’essere dell’uomo, del lavoro e della prassi” (1981:568-569). 81 Nas palavras de Lukács (1981:95): “Ogni valore, autentico, è dunque un momento importante in quel complesso fondamentale dell’essere sociale che noi chiamiamo prassi. L’essere dell’essere sociale si conserva come sostanza nel processo di riproduzione; quest’ultimo però è un complesso e un sintesi di atti teleologici, i quali di fatto si collegano alla accettazione o al rifiuto di un valore. Cosicché in ogni porre pratico viene intenzionato – positivamente o negativamente – un valore, il che potrebbe fa ritenere che i valori non sinao altro che sintesi di tali atti. Dove l’unica cosa giusta è che i valori non potrebbero acquisire una rilevanza ontologica nella società se non diventassero oggetti di tali posizioni. Tuttavia questa condizione, che deve intervenire affinché il valore si realizzi, non è identica alla genesi ontologica di questo. La fonte vera di tale genesi è invece l’ininterrotto cambiamento della struttura dell’essere sociale, ed è da tale cambiamento che scaturiscono direttamente le posizioni che realizzano il valore. Come abbiamo visto, una verità fondamentale della concezione marxiana è che gli uomini fanno da sé la propria storia, ma non possono farlo in

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genérico em que “(...) a consciência (em última análise, sempre a consciência historicamente determinada de indivíduos concretos) é uma mediação ineliminável na reprodução de todo e qualquer complexo social” (ibid., p. 155-156). O estranhamento, assim como todas as categorias sociais “apenas pode surgir e se reproduzir tendo por mediação atos teleologicamente postos” (ibid., p. 156). É por este motivo que ao abordar a relação entre o estranhamento e a consciência, Lukács parte dos valores. Pois “(...) na análise ainda ‘abstrata’ do trabalho, é pela esfera valorativa que os estranhamentos atuam na conformação do pôr teleológico, e não porque conceba os estranhamentos com fenômeno essencialmente valorativo” (ibid.). No item 2 (“Il Lavoro come Modelo della Prassi Sociale) do capítulo “Il Lavoro” de “Per l’Ontologia dell’Essere Sociale”, Lukács associa os valores às escolhas dentre alternativas que o indivíduo é levado a realizar ao longo de sua vida e de seu vir a ser que se desdobra geneticamente a partir do pôr teleológico inerente ao ato de trabalho. Assinala, nosso autor que com a superação do comunismo primitivo e o advento da sociedade de classes,

(...) le decisioni di ogni membro della società relative allá propria vita vennero ad essere fortemente determinate dall’appartenenza a una classe e dalla partecipazione alla lotta fra le classi. Cosicché, non appena il contenuto delle alternative va oltre il ricambio organico della società con la natura, si apre uno spazio per fenomeni conflittuali. Allora le alternative il cui objettivo è la realizzazione di valori molto spesso assumono persino la forma di irrisolvibili conflitti fra doveri, in quanto il conflitto non si svolge semplicemente fra il riconoscimento di un valore come ‘che cosa’ e il ‘come?’ della decisione, ma si presenta nella prassi come conflitto fra valori concreti, concretamente in vigore; l’alternativa sta nella scelta fra valori che si contestano l’un l’altro. Sembra dunque che il nostro ragionamento ci conduca indietro alla concezione tragico-relativistica, qui già ricordata, di Max Weber, secondo la quale questo irrisolubile pluralismo conflittuale dei valori è la base della prassi umana entro la società (1981:94).

Conforme observa Lessa (2002b:156), mais do que criticar Weber, Lukács parece interessado em ressaltar “o fundamento socioontológico dos conflitos valorativos que expressam os conflitos de classe”. Por este motivo é que Lukács (ibid., p. 95) diz que o processo de reprodução82 “(...) è un complesso e una sintesi di atti teleologici, i quali di fatto si collegano alla accettazione o al rifuto di un valore”. E um pouco antes ele afirma que “Ogni valore autentico è dunque un momento importante in quel complesso fondamentale dell’essere sociale che noi chiamiamo prassi”. Adiante, ele acrescenta que “(...) in ogni porre pratico viene intenzionato – positivamente o negativamente – un valore, il che potrebbe fa ritenere che i valore non siano altro che sintesi sociali di tali atti”. Ou seja, ainda com Lessa (ibid., p. 157) a ação real dos valores no processo de reprodução social só é possível quando eles se apresentam nas posições teleológicas necessárias aos processos de objetivação. “Sem essa sua inserção na práxis os valores carecem de toda e qualquer existência social efetiva”.

circonstanze scelte da loro. Gli uomini rispondono da sé – piú o meno consapevolmente, piú o meno giustamente – alle alternative concrete che sono loro poste ogni volta dalle possibilità dello sviluppo sociale. E qui è già implicito il valore. Non v’è dubbio, per esempio, che il dominio dell’uomo sui propri affetti come portato del lavoro sia un valore, ma questo dominio è già contenuto nel lavoro stesso; può quindi diventare socialmente reale senza assumere per forza subito una forma consapevole e affermarsi come valore nell’uomo che lavora. È un momento dell’essere sociale e per questo esiste e agisce realmente anche quando non giunga affatto o giunga solo parzialmente alla coscienza”. 82 Vide nota 51.

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Com este movimento, lembra-nos Lessa (ibid.), Lukács faz da práxis o “solo dos valores” e afasta-se das concepções idealistas sobre os valores e os processos valorativos. Para ele, segundo Lessa (ibid.), os valores “(...) surgem e cumprem sua função social ao intervir no processo de escolha entre alternativas” que é um momento ineliminável da determinação da posição teleológica. Ou seja, não há valores fora da práxis social, eles são parte da relação entre teleologia e causalidade que é uma relação própria e específica do ser social. Assim, Lukács se afasta das posições que vêem o processo histórico como que teleologicamente orientado por valores, e das posições “que enxergam nos valores categorias que podem atuar sobre a história do exterior da práxis social concreta” (ibid.). Entretanto, a “relevância ontológica” do valor é distinta da sua “gênese ontológica”. A “relevância ontológica” é obtida na participação do valor no processo de objetivação, na conexão do valor com a posição teleológica. Já sua “gênese ontológica” é “(...) l’ininterrotto cambiamento della struttura dell’essere sociale, ed è da tale cambiamento che scaturiscono direttamente le posizioni che realizzano il valore” (Lukács, 1981:95). Ainda que a categoria trabalho seja a categoria fundante dos valores, a gênese destes não se encontra no trabalho, na relação entre práxis e valores. Mas na mudança ininterrupta do ser social. Para compreender esta afirmação é preciso retomar, com Lessa (ibid.), que para Lukács o trabalho é a categoria fundante do ser social. Que é graças a ele que é possível o salto ontológico que origina o ser social a partir do ser natural e o posterior desdobramento da sociabilização, da complexificação do ser social e o respectivo afastamento das barreiras naturais. Mas, como já tratamos anteriormente, disto Lukács não conclui que toda categoria social possa ser deduzida a partir do trabalho. Para Lukács, entre o trabalho e a totalidade social há a intermediação de um conjunto de categorias que constituem a categoria mais ampla de reprodução social, sendo esta categoria de reprodução social uma “complexa síntese (...) dos atos singulares dos indivíduos singulares em totalidade” e que é o locus da “ (...) determinação do concreto desdobramento do ser social em cada momento histórico” (ibid., p. 158). Assim Lessa nos diz que a particularidade específica de cada momento histórico é dada pela categoria de reprodução social e não pela categoria trabalho. Voltando à questão da gênese ontológica dos valores, temos que a categoria reprodução social esclarece que “na gênese de cada valor e processo valorativo, permeiam outras mediações que não são em si redutíveis ao trabalho enquanto tal” (ibid.). Os valores só podem existir a partir do trabalho, mas ao mesmo tempo o trabalho sozinho é insuficiente para garantir a concretização dos valores. Esta concretização particularizadora só pode vir a ser a partir do complexo processo de reprodução social. Lessa (ibid., p. 159) nos lembra que é exatamente isto o que “complexos sociais como a estética, a moral, o direito e a ética” requerem. Daí ele conclui que:

É essa situação que permite a Lukács assinalar que: 1) entre o fundamento ontológico dos valores e a gênese de cada um deles há uma diferença fundamental, que reflete as distinções e conexões que, no plano do ser, articulam trabalho e reprodução social; e 2) se valores surgem espontaneamente na práxis social, mesmo que não se tenha consciência desse fato, não menos verdadeiro é que a forma dessa atuação e o conteúdo dos valores dependem diretamente da consciência que os homens têm de sua própria história; para sermos breves, do grau de desenvolvimento do ser-para-si do gênero (ibid.).

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Daí Lessa dizer que o que vai distinguir os valores, para Lukács, não é o conteúdo formal dos mesmos. Mas “(...) a relação que eles desdobram com o processo reprodutivo como um todo” (ibid.). Não se pode desconsiderar que esta relação só pode ocorrer “(...) na presença dos conteúdos e das formas historicamente determinadas dos valores (...)”. Pois do contrário se buscarmos a particularidade da presença dos valores em cada situação histórica a partir da formulação ou do conteúdo dos valores, incorreríamos no “(...) equívoco idealista de converter os valores em verdadeiros sujeitos da história” (ibid.).83 Os valores e os processos valorativos para Lukács, conforme nos diz Lessa (ibid., p. 160) funcionam como mediação ao processo complexo “(...) de produção do novo a partir do patamar de desenvolvimento das capacidades humanas (forças produtivas etc.) já atingido. O valor em sua objetividade histórica é parte orgânica (...) desse complexo, contraditório e desigual processo de explicitação categorial do mundo dos homens”. Assim é que para Lukács (ibid., p. 97-98): I valori, dunque, sono oggettivi perché sono parti motrici e mosse del complessivo sviluppo sociale. La loro contraddittorietà, il fatto incontestabile che essi vengono a trovarsi molto spesso in opposizione dichiarata con la propria base economica e anche tra loro, non conduce perciò in definitiva a una concezione relativistica dei valore, come pensa Max Weber, e ancor meno va in tale direzione l’impossibilità di ordinare questi ultimi in un sistema gerarchico, in una tabella. La loro esistenza, che si manifesta nella forma di un dover-essere socialmente e fattualmente obbligante, alla quale è necessariamente intrinseca la loro pluralità, con un rapporto recíproco che va dalla eterogeneità alla opposizione, è bensí razionalizzabile solo post festum, ma proprio in ciò esprime l’unitarietà contraddittoria, l’ineguale univocità del complessivo processo storico-sociale. Nella sua determinatezza oggetivo-causale questo forma una mossa totalita; giacché però viene costruito dal sommarsi causale di posizioni alternativo-teleologiche, ogni momento che immediatamente o mediatamente lo fonda o l’ostacola deve sempre essere fatto di posizioni alternativo-teleologiche. Il valore di queste posizioni è decisivo dalla loro vera intenzione, divenuta oggettiva nella prassi, intenzione che può dirigersi all’essenziale o al contingente, a ciò che porta avanti o frena, ecc. Siccome nell’essere sociale tutte queste sono presenti e attive realmente, e siccome, perciò, esse producono nell’uomo che agisce alternative in diverse direzioni, diversi livelli, ecc., il fenomeno della relatività non è affatto causale. Esso contribuisce anche a far restare viva, almeno in parte, nelle domande e nelle risposte una tendenza alla autenticità. L’alternativa di una data prassi, infatti, non consiste sotanto nel dire ‘si’ o ‘no’ a un determinato valore, ma anche nella scelta del valore che forma la base dell’alternativa concreta e nei motivi per cui si prende quella posizione nei suoi confronti. Sappiamo: lo sviluppo economico dà la spina dorsale del progresso effetivo. I valori determinanti, che nel processo si conservano, sono perciò sempre – consapevolmente o no, immediatamente o con mediazioni, magari assai ampie – riferiti ad esso; tuttavia fa oggetivamente grande differenza quali momenti di questo processo complessivo sono oggetivo dell’intenzione e dell’azione di quella alternativa concreta. È per questa via che i valori si conservano nel complessivo processo sociale ininterrottamente rinnovantesi, per questa via essi, a loro modo, divengono parti integranti reali dell’essere sociale nel suo processo di riproduzione, elementi del complesso chiamato essere sociale.84 83 Lessa (2002b:159) prossegue argumentado que: “Para Lukács, o que particulariza os complexos valorativos é o fato de as alternativas, inerentes ao pôr teleológico, apenas poderem vir a ser objetivadas se determinadas, de forma mais ou menos consciente, pelos valores (...). Contudo, não menos verdadeiro é que a realização efetiva dos valores é determinada pelo ‘complexo concreto das possibilidades reais de reagir praticamente à problematicidade de um hic et nunc histórico-social’”. 84 Nosso autor prossegue este parágrafo dizendo que: “Nella sua determinatezza oggetivo-causale questo forma una mossa totalita; giacché però viene costruito dal sommarsi causale di posizioni alternativo-teleologiche, ogni momento che immediatamente o mediatamente lo fonda

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Lukács, novamente com Lessa (ibid., p. 160), nos diz que os valores constituem um complexo social específico e que como todo complexo social é uma totalidade que é movida ou obstaculizada pelos atos sociais teleológicos alternativos. Assim é a reprodução social (“síntese historicamente determinada, dos atos singulares em totalidade social”) que causa a realização dos valores. No processo de escolha das alternativas que apresentam potencial de objetificação 85, pelo indivíduo singular, ocorre a opção “(...) pela objetivação de valores mais (ou menos) genéricos, pela elevação (ou pelo rebaixamento) do patamar já alcançado de generalidade humana”. O valor, assim como toda categoria social, está diretamente correlacionado com a materialidade social da qual emana e na qual se insere. De tal forma que a concretização das potencialidades presentes nos valores em-si só pode ocorrer através do processo desigual e contraditório de avanço das formas de sociabilidade do homem. “Em outras palavras, o valor evolui de um primeiro momento meramente em-si para um momento para-si, no qual tanto os valores como os problemas neles expressos para o devir-humano dos homens se elevam à consciência em escala social” (Lessa, ibid., p. 161). A conclusão sobre o fundamento ontológico último e a gênese dos valores é que os valores só podem surgir e, portanto, atuar sobre a história, a partir da objetivação do pôr teleológico que é inerente ao ato de trabalho – este é o fundamento ontológico dos valores. Entretanto, a gênese dos valores ocorre apenas dentro “(...) do contexto da mutável reprodução do mundo dos homens, é a alteração do conteúdo histórico-concreto de cada situação que funda a gênese dos valores e processos valorativos específicos a cada momento. (...) Portanto, se o trabalho é o fundamento ontológico dos valores, a gênese historicamente concreta de cada um deles se situa na esfera da reprodução social, mais especificamente no caráter sempre mutável do devir-humano dos homens” (ibid.). Trataremos, agora, da relação entre os valores e o estranhamento. Tanto o valor como o estranhamento, radicam na reprodução social antes que na categoria trabalho. É na reprodução social que “(...) os valores podem ser portadores do estranhamento no processo de constituição da teleologia a ser objetivada” (ibid.). Pois o desenvolvimento social é necessariamente contraditório e isto se apresenta na “gênese dos valores” e tem por conseqüência que na práxis social surge a “(...) possibilidade de se desdobrar, (...), a contradição entre valores mais genéricos

o l’ostacola deve sempre essere fatto di posizioni alternativo-teleologiche. Il valore di queste posizioni è decisivo dalla loro vera intenzione, divenuta oggettiva nella prassi, intenzione che può dirigersi all’essenziale o al contingente, a ciò che porta avanti o frena, ecc. Siccome nell’essere sociale tutte queste sono presenti e attive realmente, e siccome, perciò, esse producono nell’uomo che agisce alternative in diverse direzioni, diversi livelli, ecc., il fenomeno della relatività non è affatto causale. Esso contribuisce anche a far restare viva, almeno in parte, nelle domande e nelle risposte una tendenza alla autenticità. L’alternativa di una data prassi, infatti, non consiste sotanto nel dire ‘si’ o ‘no’ a un determinato valore, ma anche nella scelta del valore che forma la base dell’alternativa concreta e nei motivi per cui si prende quella posizione nei suoi confronti. Sappiamo: lo sviluppo economico dà la spina dorsale del progresso effetivo. I valori determinanti, che nel processo si conservano, sono perciò sempre – consapevolmente o no, immediatamente o con mediazioni, magari assai ampie – riferiti ad esso; tuttavia fa oggetivamente grande differenza quali momenti di questo processo complessivo sono oggetivo dell’intenzione e dell’azione di quella alternativa concreta. È per questa via che i valori si conservano nel complessivo processo sociale ininterrottamente rinnovantesi, per questa via essi, a loro modo, divengono parti integranti reali dell’essere sociale nel suo processo di riproduzione, elementi del complesso chiamato essere sociale”. 85 Processo que é inerente ao “(...) processo sociorreprodutivo mais geral de determinação das possibilidades históricas” (Lessa, ibid.).

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ou mais particulares” (ibid., p. 162). Agora os atos individuais, singulares, podem interagir com o processo global de reprodução social, focando no que é essencial ou não, no que leva ao avanço ou obstaculizam (“Il valore di queste posizioni è decisivo dalla loro vera intenzione, divenuta oggettiva nella prassi, intenzione che può dirigersi all’essenziale o al contingente, a ciò che porta avanti o frena, ecc” (Lukács, ibid.)) o devir humano dos homens. Assim é que “as funções sociais dos atos singulares podem ser qualitativamente bastante diversas entre si” (ibid.). Nas formações sociais mais desenvolvidas realiza-se a concretização desta tendência que já aparecia como possibilidade nas formações menos desenvolvidas. Daí Lukács dizer que: “Esso contribuisce anche a far restare viva, almeno in parte, nelle domande e nelle risposte una tendenza alla autenticità. L’alternativa di una data prassi, infatti, non consiste sotanto nel dire ‘si’ o ‘no’ a un determinato valore, ma anche nella scelta del valore che forma la base dell’alternativa concreta e nei motivi per cui si prende quella posizione nei suoi confronti” (Lukács, ibid.). As escolhas são determinadas historicamente, são escolhas, portanto condicionadas pelo desenvolvimento econômico (“lo sviluppo economico dà la spina dorsale del progresso effettivo” (ibid.)), assim, os valores envolvidos na escolha estão presos nesta referência condicionante. Entretanto, “(...) a contraditoriedade do real faz com que as alternativas realmente presentes, as potencialidades do ser-precisamente-assim existente, se reflitam na esfera valorativa, pela diferença (ou pela oposição) entre valores” (Lessa, ibid.). Daí Lukács (ibid.) dizer que

(...) tuttavia fa oggetivamente grande differenza quali momenti di questo processo complessivo sono oggetivo dell’intenzione e dell’azione di quella alternativa concreta. È per questa via che i valori si conservano nel complessivo processo sociale ininterrottamente rinnovantesi, per questa via essi, a loro modo, divengono parti integranti reali dell’essere sociale nel suo processo di riproduzione, elementi del complesso chiamato essere sociale”.

Na objetivação do pôr teleológico, que já é em si fruto de uma escolha determinada, temos a possibilidade de efetivar “(...) potencialidades mais genéricas ou mais particulares ao desenvolvimento humano. E, nestas escolhas entre as alternativas concretas, os valores e processos valorativos compõem uma mediação ontológica ineliminável” (Lessa, ibid.). A escolha dos valores traz em si uma certa visão de mundo e impulsionam ou freiam o caminho para a generalidade humana, para a realização das potencialidades inerentes a cada indivíduo singular. Esta escolha dentre valores tem uma relação estreita com o processo de desenvolvimento econômico, “(...) com a potencialização das capacidades humanas em converter a causalidade meramente dada em causalidade posta” (Lessa, ibid.). Como os valores são parte constitutiva, “motrici e mosse del complessivo sviluppo sociale”, torna-se fundamental percebermos quais valores serão “objetivados a cada momento histórico”. Na categoria estranhamento torna-se fundamental percebermos “(...) se os valores objetivados são portadores daquela ‘tendência à autenticidade’ antes referida ou se, pelo contrário, se constituem em momentos da afirmação de obstáculos socialmente postos à explicitação posterior do gênero humano” (Lessa, ibid., p. 163). Ainda, conforme lembra Lessa, todo processo valorativo só pode operar com uma dada concepção de mundo. Daí Lukács (ibid., p. 99) apontar que a alternativa posta à humanidade se resuma ao seguinte dilema: “(...) l’uomo nel lavoro produce se stesso come uomo, oppure deve vedersi come prodotto al servizio di potenze trascendenti, per cui ogni azione autônoma, fondata nell’uomo stesso nella sua socialità, non può non celare in sé un sacrilegio contro le potenze superiori?”

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Novamente com Lessa (ibid.), defendemos que aqui aparece “(...) a ação de retorno dos fenômenos de estranhamento sobre a práxis social”. Pois quais valores serão objetivados através das escolhas dentre alternativas para a concretização do pôr teleológico? Os valores que são portadores da autenticidade, que viabilizam o processo de humanização do homem, de realização de suas múltiplas potencialidades? Ou os valores que alienam o homem e os subsumem a uma “potenze superiori” como Deus nas formações sociais menos desenvolvidas ou a mercadoria na formação humano-societária do capital? O fato é que para Lukács, na formação humano-societária do capital a contradição entre os interesses do indivíduo burguês (particular) – e que se apresentam como os interesses reais dos indivíduos singulares – e os interesses do indivíduo cidadão (genérico) – que se apresentam como obstáculo à realização dos “interesses reais” do indivíduo burguês – leva a uma tomada de consciência por parte do indivíduo real, obrigando-o a fazer uma escolha por um dos pólos da contradição. Daí Lessa (ibid., p. 164) dizer que: “Sobre essas opções, de maneira cada vez mais predominante, agem os laços genéricos, que articulam, de forma sempre mais intensa, as vidas dos indivíduos ao destino da humanidade. É este o fundamento último, segundo Lukács, para que o desenvolvimento de valores crescentemente genéricos tenha um peso cada vez maior na reprodução da sociedade com um todo”.86 Com Lessa (ibid., p. 165) apontamos que temos mais uma vez “(...) a identidade da identidade com a não-identidade como estrutura genérica do desenvolvimento da socialidade”. Pois o ato do trabalho que é em si uma totalidade, um ato unitário, tem no seu ser-em-si um impulso que vai para além de si próprio, o que “(...) dá origem a complexos sociais ontologicamente distintos do trabalho e que, contudo, apenas existem em indissociável relação com ele”. Já os complexos sociais valorativos, que se desdobram a partir desta pulsão do trabalho, têm uma participação fundamental no processo de reprodução social e “(...) exercem uma efetiva ação de retorno sobre o desdobramento concreto da relação homem/natureza, do

86 Lessa (ibid., p. 164-165) prossegue sua argumentação tratando do lugar da ética nesta questão: “No processo de elevação da humanidade à generalidade,pela superação da sociabilidade burguesa, argumenta Lukács que cabe à ética um papel decisivo. E, tal como em outros complexos de Para uma ontologia do ser social, ao tratar desse complexo social o texto se limita a apontar sua constituição ontológica fundamental. Em síntese, o que distingue a ética do costume, do direito, da moral, etc. é o fato de que, enquanto estes se movem no interior da contradição entre a particularidade da existência individual e a generalidade, na ética esta contraditoriedade é superada por uma nova síntese: o ser para-si do ser social, que agora se realiza tanto em seu pólo individual como no genérico. Nesse contexto, a ética seria expressão da superação do patamar, possibilitado apenas pelo advento da formação social capitalista, da contradição indivíduo/sociedade; seria a mediação social específica à esfera valorativa que permitiria a superação da forma burguesa de individualidade, que se entende meramente particular, elevando-se à generalidade humana, fundando a individualidade conscientemente partícipe de um gênero que se reconhece enquanto tal. Para evitar qualquer equívoco, frisemos que, segundo Lukács, essa nova síntese representada pelo ser-para-si do gênero não significa a eliminação da esfera da particularidade. A rigor, para ele, a eliminação da particularidade das individualidades é uma impossibilidade ontológica: o ser social é necessariamente composto de indivíduos que se desenvolvem em individualidades, e por isso a esfera da particularidade é indestrutível. Superação da particularidade a que nos referimos no parágrafo acima, portanto, deve ser entendida num sentido muito preciso. É a superação da forma estranhada de como a particularidade emergiu na consciência dos homens em escala social durante o período de ascenção da burguesia ao poder. É a superação da individualidade que se compreende – e, portanto, se comporta – como contraposta e superior ao gênero, que valoriza sua esfera específica de interesses e vontades como superior às necessidades postas pelo gênero em seu desenvolvimento, da individualidade estreita e mesquinha que caracteriza o bourgeois. Após tudo o que afirmamos até aqui, é uma obviedade dizer que tal superação só pode ser prática, que sua mera postulação teórica requer uma objetivação – a revolução – para se atualizar enquanto prévia-ideação”.

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trabalho, da esfera econômica, enfim”. Lukács nos lembra, por exemplo, que a esfera jurídica apresenta uma grande determinação sobre a esfera econômica, “(...) ainda que tenha sido o desenvolvimento das forças produtivas e das sociedades de classe o impulso fundante e predominante no desenvolvimento do complexo do direito”. A pulsão do trabalho para além de si próprio sempre se apresenta na reprodução social e isto independe da consciência que os indivíduos diretamente envolvidos tenham deste fato. Entretanto as formas históricas concretas que tal pulsão assume dependem do grau de consciência dos homens envolvidos quanto à existência de tal pulsão. Repare que a pulsão do trabalho para além de si próprio nos coloca o próprio devir-humano dos homens. A consciência individual enquanto mediação necessária “(...) e ineliminável de toda processualidade social, faz com que a reprodução do mundo dos homens seja marcada por uma polaridade: de um lado, uma totalidade social crescentemente complexa; de outro, indivíduos com personalidades cada vez mais desenvolvidas. Esses dois pólos, (...), pertencem a uma mesma processualidade, a reprodução social como um todo, marcada por uma crescente generalidade”. (Lessa, ibid., p. 166) O processo reprodutivo impulsiona os indivíduos e o conjunto das relações sociais “(...) para situações nas quais adquire um papel social cada vez mais relevante a contraditoriedade entre, por um lado, o desenvolvimento sociogenérico, a realização prática da generalidade humana e, por outro, as potencialidades abertas por esse mesmo desenvolvimento” (ibid.). Lessa, retomando Lukács, nos lembra que a opção individual ou coletiva por valores genéricos que viabilizam o vir-a-ser humano do homem ou por valores mesquinhos ligados aos interesses do indivíduo burguês é algo de grande peso no processo de reprodução social. Daí diz Lessa (ibid.) que a contradição entre a finalidade posta pelo indivíduo e as conseqüências da ação deste indivíduo é um dos aspectos da relação entre teleologia e causalidade “(...) que ganha importância à medida que avança o processo de socialização. E como vimos, esta esfera de contradição entre finalidades e conseqüências, essencial ao processo de exteriorização, tem uma importância decisiva na complexa relação entre valor e esfera econômica”. O desenvolvimento das relações sociais e econômicas ao longo do processo de humanização do homem entra em contradição com as “efetivas necessidades de desenvolvimento das individualidades que se reproduzem no interior dessas mesmas relações genéricas, e que são elementos fundamentais a sua reprodução” (Lessa, ibid., p. 167). No dizer de Lukács (ibid., p. 92): “La contraddittorietà qui è solo un importante momento del recíproco integrarsi. (...) i risultati piú splendidi dello sviluppo umano spesso – e niente affatto per acaso – vengono in essere in queste forme oppositive e cosí diventano, sul piano sociale oggettivo, fonte di ineludibili conflitti di valore”. A diferença qualitativa entre a esfera do econômico e os complexos sociais valorativos que se explicitam com o avanço das formas de sociabilidade, tem sua base explicativa na contradição acima apontada. Na esfera econômica a causalidade opera com maior efeito, reduz o âmbito de alternativas que se apresentam ao indivíduo, o processo econômico opera “come ‘seconda natura’”, opera como “una univocità” (ibid., p. 93)87para estes indivíduos singulares. Já

87 Neste trecho Lukács (ibid.) nos diz que: “Questa univocità nella distinzione fra alternative economiche e alternative non piú economiche, umano-morali, non è però sempre netta come nel caso del lavoro che sai semplice ricambio orgânico con la natura. Una univocità come quella descritta può aversi solo quando il processo economico nella sua oggettività opera, per cosi dire, come ‘seconda natura’ e quando al contempo il contenuto dell’alternativa cui l’individuo in questione si trova di fronte è

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nas esferas em que verificamos formas mais intensas e numerosas de intermediação social, ocorre o inverso do descrito acima. Pois estas intermediações sociais mais numerosas colocam uma “(...) maior quantidade de alternativas igualmente possíveis” (Lessa, ibid., p. 168). Entretanto, Lessa (ibid.) com base em Lukács, nos adverte que não é correto imaginar que “exista um abismo ontológico” entre os complexos sociais econômico e não-econômico. Assim ele nos diz que:

O caráter de complexo de complexos do ser social, aliado ao fato de o processo de socialização tornar a própria relação homem/natureza cada vez mais mediada, social, faz com que, nas sociedades mais desenvolvidas, essa diferença qualitativa entre as ‘alternativas humano-morais’ e as ‘alternativas econômicas’ não sejam mais ‘tão nítidas como no caso do trabalho’ em sociedades primitivas (...). Um ser social mais complexo e mediado significa, também uma articulação mais mediada entre os complexos sociais mais ‘elevados’ e os pertencentes à economia”.

A contradição entre “il processo economico i suoi modi di manifestazione umano-sociale” (Lukács, ibid., p. 93) vêm em primeiro plano e estão “fundados no desenvolvimento econômico objetivo” (Lessa, ibid.). Por isso Lukács (ibid., p. 94) nos diz que: “La legalità immanente all’economia non solo produce questi antagonismi fra l’essenza oggettiva del proprio processo e le concrete forme che questo prende nella vita dell’uomo, ma fa dell’antagonismo uno dei fondamenti ontologici dello stesso sviluppo complessivo (...)”. O processo de humanização do homem origina uma esfera de contradição que é puramente social, ainda que fundada no trabalho, contradição esta que coloca de um lado as possibilidades de desenvolvimento das potencialidades humanas e, de outro, os travamentos produzidos pela própria sociabilidade, para a realização das potencialidades humanas. Tal contradição, para Lukács, “(...) é a base ontológica última do estranhamento” (Lessa, ibid., p. 169)88. Antes de tratarmos da relação entre trabalho e estranhamento é preciso frisar que Lukács considera que o tratamento adequado da relação entre estranhamento e valor só pode ser feito através da mediação “di un apparato istituzionale che può assumere le forme piú varie (diritto, Stato, religione, ecc.)” (1981:99)89. E Lessa (ibid., p. 170) acrescenta que estas são formas del tutto o in prevalenza concentrato nel campo economico vero e proprio. Altrimenti la conflitualità – spesso dirttamente antogonistica – fra il processo economico e i suoi modi di manifestazione umano-sociali viene in primo piano”. 88 Lessa (ibid., p. 169) resume o caminho percorrido sobre a relação entre os valores e o estranhamento da forma que segue: “Em resumo, o caráter insuperavelmente contraditório do desenvolvimento humano está intrinsecamente articulado à esfera dos valores. Acima de tudo porque essa contraditoriedade opõe, no plano objetivo, a generalidade e a particularidade do conteúdo social de cada alternativa possível, o que funda uma ‘tendência à autenticidade’. Cada vez mais claramente os indivíduos devem, cotidianamente, optar entre valores mais ou menos genéricos, mais ou menos particulares. No caso da esfera dos valores – (...) –, é essa conexão mais geral que a conecta aos fenômenos de estranhamento. E, na ‘análise abstrata’ do trabalho enquanto tal, será a ação dos valores na escolha entre as alternativas mais ou menos ‘autênticas’ o solo de ação dos estranhamentos sobre a efetivação de cada ato de trabalho. (...)”. 89 Lukács prossegue argumentando que: “(...) (diritto, Stato, religione, ecc.) e vi sono casi in cui le oggettivazioni del rispecchiamento della realtà divengono portatrici di valori, fattori che inducono a porre valori, ecc. Le differenze, le strutture eterogenee che portano anche a nette contrapposizioni, in questa sede non è possibile neppure semplicemente enumerarle, perché tutte senza eccezione si esplicitano in termini adeguati solo nelle concrete interrelazioni e interazioni sociali di ogni valore con

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fundadas pelo trabalho e que “(...) apenas podem se explicitar categorialmente pela síntese dos atos singulares em processos históricos, em suma, pela reprodução social”. Tratar das categorias de trabalho e estranhamento em Lukács é lembrar que a relação entre estas categorias é um caso particular da relação mais geral entre trabalho e reprodução social. Pois se o trabalho é o fundamento ontológico do estranhamento, a concretização do estranhamento, sua manifestação particular-concreta, só pode se dar para além do trabalho, no âmbito do processo de reprodução social.90 Lessa (ibid., p. 170) aponta que em “Per l’ontologia dell’essere sociale”, Lukács após o capítulo intitulado “Il Lavoro”, apresenta o capítulo intitulado “La Riproduzione”. E neste capítulo ele “(...) assinala três articulações ontológicas decisivas na consubstanciação da totalidade social”. A primeira articulação é o momento da generalização que eleva à totalidade social o ato singular do indivíduo que realiza o pôr teleológico, isto transforma o ato singular em um ato socialmente genérico91. A segunda articulação é a inexorável tensão contraditória entre elementos genéricos e particulares (que, como já vimos, se apresenta de forma articulada no cerne da categoria trabalho) que vem a ser a base para a humanização do homem, pois permite que o caráter social do homem seja apreendido, em escala social, pela consciência. Esta tensão contraditória leva cotidianamente o indivíduo, e todo o gênero humano, a escolher entre valores genéricos, humanos (valores do cidadão) ou valores particulares individuais (do homem burguês)92. A terceira articulação passa pelos valores e processos valorativos e daí para o estranhamento. O desenvolvimento das formas de sociabilidade associa-se, segundo Lessa (ibid., p. 172) ao aprofundamento objetivo e subjetivo dos conflitos entre os elementos genéricos e os particulares constitutivos do ser social. Por isso, surgem as mediações sociais (valores como: justiça, igualdade, liberdade; e complexos como: tradição, moral, costumes, direito e ética) que vão explicitar as exigências genéricas que vão se desenvolvendo com o próprio desenvolvimento da sociabilidade humana. O conteúdo desses valores se altera ao longo do tempo, novos problemas são introduzidos nos complexos. Mas isto não altera “(...) o fato de tais valores influenciarem decisivamente na identificação das necessidades genéricas e, desse modo,

tutti gli altri, e quindi se ne può parlare solo in una esposizione davvero sintetica, che guardi alla totalità della prassi sociale, cioè alla totalità dell’essere sociale”. 90 Lessa (ibid., p. 170) nos diz que: “Segundo Lukács, a totalidade social é sempre o complexo mediador entre o impulso fundante do trabalho (e, com as devidas mediações, do complexo que dele se desenvolveu diretamente, a economia) e cada um dos complexos sociais parciais, entre eles os estranhamentos. Dito de outro modo, o momento predominante exercido pela reprodução social como um todo diante dos estranhamentos é uma conseqüência, dialeticamente mediada, do caráter fundante do trabalho para o mundo dos homens”. 91 Diz Lessa (ibid., p. 170-171) que a primeira das “(...) três articulações ontológicas decisivas na consubstanciação da totalidade social (...) é o processo sintético que eleva à totalidade os atos singulares dos indivíduos concretos. (Analogamente, a individualidade é a síntese em personalidade dos atos singulares do indivíduo ao longo de sua história). Este primeiro momento de síntese dos atos singulares em totalidade social lança suas raízes no nódulo mais essencial do mundo dos homens, o processo de generalização inerente ao trabalho. Tal generalização, ao articular, pelo fluxo da práxis social, cada ato singular com a processualidade social global, eleva o ato singular a elemento primário da totalidade concreta”. 92 Segundo Lessa (ibid., p. 171): “Ao tratar da individuação, vimos o papel central que essa tensão joga no processo de elevação da singularidade à individualidade. Na reprodução social, essa tensão é a base para que todo o conflito social, por mais simples, exiba em sua essência essa contraditoriedade entre o gênero e o particular – ela é o fundamento ontológico para que a humanidade, ao longo da história, se eleve a patamares superiores de consciência da contraditoriedade entre os momentos sociogenéricos e aqueles apenas particulares”.

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exercerem um papel central na elevação à consciência, em escala social, da contradição singular/universal, gênero/indivíduo” (ibid.). Assim,

(...) a necessidade social é o fundamento ontológico da gênese e do desenvolvimento de complexos como a tradição, a moral, os costumes, o direito e a ética. Cada um, apesar das enormes diferenças entre eles, tem como função social atuar no espaço aberto pela contraditoriedade entre o gênero e o particular, de modo que torne reconhecível pelos homens (sempre em escala social) a forma e o conteúdo que, a cada momento, assume essa contraditoriedade. E ao fazê-lo, permitem aos homens optarem, de modo cada vez mais consciente, entre valores que expressam as necessidades humano-genéricas e valores que exprimem os interesses apenas particulares de indivíduos ou grupos sociais” (ibid., p. 172-173)

Retomando Lukács, é preciso fixar que o momento genético-fundante do estranhamento é o complexo objetivação/exteriorização. Por este complexo, o indivíduo produtor ao transformar a natureza constrói o ser social e ao mesmo tempo “(...) eleva sua singularidade a uma individualidade crescentemente complexa” (Lessa, ibid., p. 173). E, conforme já vimos anteriormente, individuação e reprodução da totalidade social apenas podem vir-a-ser em determinações reflexivas. Pois, apesar de serem processualidades distintas, elas “(...) são dois pólos de um mesmo processo global” (ibid.). Mas não podemos omitir que Lukács destaca que não é correto esquecermos as formas históricas concretas que o estranhamento assume ao longo do processo de desenvolvimento das formas de sociabilidade humana. Assim ele nos diz que:

(...) l’oggettivazione dell’oggetto e l’alienazione (Entäusserung) del soggetto, che formano come processo unitário la base della prassi e della teoria umana. Questo complesso di problemi ha assunto un posto centrale in una parte della filosofia contemporanea, in quanto è stato considerato fondamento della estraniazione (Entfremdung). Un collegamento e assai intimo vi è senza dubbio: l’estraniazione può scaturire soltanto dall’alienazione; se la struttura dell’essere non mette quest’ultima al centro, determinati tipi di estraniazione non possono manifestarsi in nessun caso. Ma, quando si affronta questo problema, non si deve mai dimenticare che ontologicamente l’origene dell’estraniazione dall’alienazione non significa per nulla che questi due complessi facciano univocamente e incondizionatamente tutt’uno: è bensí vero che determinate forme di estraniazione possono nascere dall’alienazione, ma quest’ultima può benissimo esistere ed operare senza produrre estraniazioni (Lukács, ibid., p. 397-398).

Como aponta Lessa (ibid.), para entender a relação entre trabalho e estranhamento o importante é lembrar que os estranhamentos sofrem modificações ao longo do desenvolvimento histórico do ser social. Entretanto, isto não anula o fato de que os estranhamentos têm sua gênese na relação contraditória entre o desenvolvimento objetivo das formas de sociabilidade e os obstáculos que são construídos, por este mesmo desenvolvimento das formas de sociabilidade humana, para a plena explicitação das potencialidades humanas. Assim é que Lukács nos “Prolegomini...” (apud. Lessa, ibid., p. 173-174) diz que

O estranhamento nasce objetivamente [da contradição] entre a generalidade da sociedade enquanto tal e [...] [a generalidade] de quem dela participa. Por isso é inevitável que ela se manifeste também, no imediato, como estranhamento do homem de si próprio (estranhamento do singular de sua própria generalidade).

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Aqui Lessa (ibid., p. 174) comenta que a influência do estranhamento sobre o processo de individuação não é reduzida pelo reconhecimento de que o estranhamento é um fenômeno que possui “uma base social objetiva”.93 Acrescenta que o estranhamento é um fenômeno social que só pode ser superado coletivamente, e em seguida citando um trecho dos “Prolegomini...” de Lukács, aponta que o estranhamento ocupa um lugar central na realização plena do potencial de desenvolvimento de cada personalidade individual94. Por fim retoma a citação dos “Prolegomini...” que reproduzimos abaixo:

A superação social definitiva do estranhamento, por isso, pode se realizar apenas no interior dos atos de vida dos homens singulares em sua cotidianidade. O que não se opõe, todavia, ao caráter primário da sociabilidade, apenas demonstra com qual complexidade também aqui, acima de tudo aqui, os momentos de estranhamento que operam no plano da pessoa singular e os que operam no plano social geral estão articulados entre si.

Lessa (ibid.), reforça, mais uma vez, a advertência quanto a uma interpretação equivocada do texto lukacsiano que contrapõe de forma rígida as categorias de estranhamento e exteriorização. Entendendo a exteriorização como muito próxima à categoria de individuação e estranhamento como muito próxima da categoria de reprodução da totalidade social. Lembra-nos que o momento fundante da exteriorização tem na individuação seu momento decisivo, mas isto não interdita o fato de que a exteriorização tem “uma ação efetiva sobre a reprodução social global. Antes de tudo porque, ao contribuir na determinação das individualidades, termina também por contribuir para a evolução da substância social como um todo”. No caso da categoria de estranhamento, Lessa (ibid., p. 175) diz que ocorre algo parecido. O solo genético desta categoria é a “insuperável contraditoriedade do ser social”, mas isto não interdita o fato de que os estranhamentos têm “ação efetiva sobre a consubstanciação de cada individualidade”. E, como vimos, esta ação sobre cada individualidade é mediada pela totalidade social, pela “reprodução social global, o que introduz distinções fundamentais nas atuações específicas da exteriorização e do estranhamento sobre as individualidades”. Ainda com Lessa (ibid.), podemos dizer que a exteriorização e o estranhamento têm no trabalho seu solo genético. Pois o trabalho, como já vimos, tem o impulso essencial e próprio a ele, de ir para além da sua própria imediaticidade. E este impulso sofre influências dos estranhamentos, influências que são

(...) decisivas para a reprodução social e, por conseqüência, para o desenvolvimento das formas historicamente concretas sob as quais se apresentará o trabalho. É essa interferência o momento pelo qual o próprio desenvolvimento da generalidade humana termina por dar origem a relações sociais que consubstanciam obstáculos a seu próprio desenvolvimento. As formas pelas quais tal contradição se explicitará ao longo da história, dando origens a formações sociais estranhadas é algo a que não podemos sequer nos referir nesta análise ‘abstrata’ do trabalho.

93 Lukács nos “Prolegomini...” (apud. Lessa, ibid.) diz que: “A nota pessoal não apenas é uma característica ineliminável do estranhamento, mas com as diferenças que daqui derivam remete a importantes determinações objetivas do próprio fenômeno social [do estranhamento]”. 94 Lukács (apud. Lessa, ibid.): “[o estranhamento] na conduta de vida das pessoas singulares [,] assume sempre o lugar de problema central, no que se refere ao êxito ou à bancarrota do pleno-desenvolvimento da personalidade, quanto à superação ou à persistência do estranhamento na própria existência individual”.

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Até aqui temos indicações de como o trabalho, através de um conjunto de mediações, é a categoria fundante dos fenômenos de estranhamento. Essas mediações é que permitem

(...) às contradições que brotam do desenvolvimento da sociabilidade não apenas fundarem uma distinção qualitativa entre as alternativas econômicas e as alternativas ‘humano-morais’, mas ainda serem o solo genético tanto dos fenômenos do estranhamento como de um ‘espaço para fenômenos conflituais’ (...) que ultrapassa a esfera econômica em-si. As alternativas, neste contexto, se colocam como ‘escolha de valores que se contestam mutuamente’(...).

2.6. Comentários Sobre a Categoria Reprodução Lukács dedica o último capítulo da parte II (“I Complessi Problematici piú importanti”) de “Per l’Ontologia...” para o tratamento da categoria reprodução. Iremos apresentar breves comentários sobre esta sistematização realizada por nosso autor. Ele aponta que a análise da categoria trabalho realizada no capítulo anterior da mesma obra, implica numa abstração muito grande ainda que tenha sido necessária pelo seu caráter fundante do que é específico ao ser social. Mas o trabalho é uma categoria que só pode explicitar toda sua potencialidade na processualidade do complexo social automovente. Assim, vimos com Lukács que os atos do trabalho necessariamente e de forma contínua remetem para além de si mesmos de tal forma que a reprodução do ser social envolve sempre mudanças internas e externas a este ser. O desenvolvimento da divisão do trabalho é, conforme Lukács (1981:136), uma das mais importantes transformações do ser social. Apresentando-se já nos estágios mais primitivos deste ser na forma de cooperação. O que coloca a necessidade de uma “(...) comunicazione precisa fra gli uomini riuniti in vista di un lavoro: il linguaggio”. A fala surge ao mesmo tempo em que o trabalho, a cooperação e a divisão do trabalho, sendo que o trabalho tem a prioridade ontológica em relação à fala. Mas um é impensável sem o outro. A fala é fundamental para as posições teleológicas “(...) che non mirano a trasformare, sfruttare, ecc. un oggetto naturale, ma intendono invece indurre altri uomini a compiere la posizione teleologica desiderata dal soggetto che parla” (ibid., p. 137). Ao prosseguir tratando da categoria fala Lukács aponta que todos os atos, relações, etc, desde os mais simples a primeira vista, são sempre correlações entre complexos. De tal maneira que os elementos destes complexos somente têm operatividade real enquanto parte constitutiva do complexo ao qual pertencem. Assim ele nos diz que:

Cosicché l’essere sociale, persino nel suo stadio piú primitivo, rappresenta un complesso di complessi, dove si hanno interazioni perenni sai fra i complessi parziali che fra il complesso totale e le sue parti. Di qui si dispiega il processo riproduttivo del complesso totale in questione, dove anche i complessi parziali si riproducono come fatti autonomi – quantuque solo relativamente, – ma in ognuno di tali processi è la riproduzione dell’intero che in questo molteplice sistema di interazioni costituisce il momento soverchiante (ibid., p. 138)

O entendimento ontológico da reprodução do ser social para Lukács, exige considerar que o fundamento ineliminável deste ser é o homem enquanto ser biológico vivente. E exige não esquecer que a reprodução ocorre no interior da natureza (ser orgânico e inorgânico) a qual é

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sempre e mais modificada pelo trabalho ao mesmo tempo em que o ser social afasta paulatinamente as barreiras postas pela natureza à sua própria reprodução. Adiante ele adverte (ibid., p. 150) que a legalidade no ser social tem um duplo aspecto: por um lado a lei geral tende incoercivelmente a transformar as categorias deste ser em categorias sociais, que resultam de atos dos homens visando a vida de outros homens. Por outro lado, não há um caráter teleológico nas tendências do ser social, ainda que “estas tendências se constituam de tendências objetivo-universais que tem por origem posições teleológicas singulares”. Assim ele arremata dizendo que:

Esse vanno perciò nel senso indicato loro daí bisogni, che fanno nascere le posizioni teleologiche, ma poiché nella stragrande maggioranza dei casi questi bisogni non sono chiari a se stessi, e poiché ogni posizione teleologica mette in moto catene causali che sono piú numerose e diverse rispetto a quanto si voleva con quella posizione, la sintesi sociale va al di là di tutte le singole posizioni, realizza – in termini generali e oggettivi – piú di quanto era contenuto in esse, ma lo fa nella massima parte dei casi in modo tale che le possibilità di realizzazione per i singoli individui, quali risultano dalle sue consequenze, a volte sembrano divergenti, anzi opposte rispetto al corso generale dello sviluppo.

Adiante Lukács (ibid., p. 154 e ss.), ao tratar dos momentos decisivos da divisão do trabalho95, focando não a divisão técnica mas a social, e ressaltando que no complexo em que se verifica a divisão entre trabalho intelectual e manual (a trajetória que conduz a esta divisão já se encontra presente em germe na divisão do trabalho inicial e primitiva), diz que as posições teleológicas necessárias se apresentam de duas formas: as que visam transformar objetos naturais (orgânicos e inorgânicos) para atender a finalidades humanas e as que visam as consciências de outros homens de forma a fazê-los executar movimentos previamente desejados. O desenvolvimento do trabalho e da divisão do trabalho tornam cada vez mais autônomas estas formas de posição teleológica, de tal forma que elas cada vez mais podem se desenvolver enquanto “(...) un complesso a sé della divisione del lavoro” (ibid., p. 155). Nosso autor frisa que esta tendência evolutiva da divisão do trabalho caminha junto com o nascimento das classes, de tal forma que posições teleológicas como estas que tentam influenciar as consciências de outros homens podem ser postas (por mecanismos espontâneos ou não) a serviço do domínio de uma classe. Disso ele conclui (p. 156) que se a reprodução social se realiza em última análise nas ações dos indivíduos (“nell’imediato la realtà sociale si manifesta nell’individuo”), elas para se realizarem “(...) si inseriscono per forza di cose in complessi relazionali fra uomini che, una volta sorti, posseggono una determinata dinamina propria, cioè non solo esistono, si riproducono, operano nella società indipendentemente dalla coscienza degli individui, ma danno anche impulsi piú o meno, direttamente o indirettamente, determinanti alle decisioni alternative” (ibid.). Nosso autor prossegue dizendo que o contato e a influência recíproca desses complexos deve ter uma

95 “La divisione del lavoro appare dunque un effetto dello sviluppo delle forze produttive, ma un efetto che a sua volta costituisce il punto di partenza di uno sviluppo ulteriore. Essa deriva bensí nell’immediato dalle singole posizioni teleologiche degli individui, e tuttavia, una volta che esista, sta di fronte agli individui come potenza sociale, come importante fattore essere sociale, che essa influenza, anzi determina. È un effetto che nei loro confronti assume un carattere autonomo d’essere, benché sia derivato dai loro propri atti lavorativi. Stiamo pensando anzitutto a due complessi che differenziano fortemente la società in origine unitaria: la divisione fra lavoro intellettuale e fisico, e la divisione fra città e campagna, che però s’incrociano di continuo con il generarsi di classi e di antagonismi di classe” (ibid., p. 155).

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certa polivalência, “giacché le loro tendenze principali dipendono anche legalità generali della riproduzione complessiva della formazione di cui se tratta, dalla sua struttura, dalla sua linea evolutiva, dal suo grado di sviluppo, ecc.” (ibid.). E lembra que disso deriva uma diferenciação entre os homens na reprodução do ser social. Pois “le circostanze che determinano il contenuto, la forma e l’indirizzo delle decisioni alternativi degli uomini sono in definitiva risultato di attività umane, entro il genere umano vengono in essere differenziazioni qualitative molto ampie e profonde, cosicché talvolta sembra che ne sia messa in causa l’unità. Ma è naturalmente solo un’apparenza, che lo sviluppo storico-sociale s’incarica prima o poi di dissovere” (ibid.). Para Lukács (ibid., p. 163), está claro que o desenvolvimento das classes sociais e suas relações recíprocas expressam a tendência ao progressivo caráter social do ser social e de suas relações. Algo que já se verificava em outros complexos sociais. Logo abordar em termos ontológicos gerais o problema da liberdade ao nível da sociedade implica em reconhecer que o afastamento das barreiras naturais, com o conseqüente predomínio das leis econômicas de forma clara e unívoca torna evidente a causalidade do lugar que o indivíduo singular ocupa na sociedade. Lukács lembra que a relação entre o singular e a lei geral “è un fatto ontológico universale” para o qual pouca atenção é dada por que o destino casual do singular não desperta grandes interesses, enquanto que “il modo in cui si afferma la legge generale” é o que desperta o interesse cognitivo. Mas a relação entre o singular e a lei geral não só vale em toda parte como na sociedade tem lugar de destaque. Ele lembra que nas crises econômicas (conforme Marx demonstrara) a unidade da produção capitalista é afirmada com violência, ou seja, concretamente há uma perda de valor em geral representado no valor de troca do patrimônio do indivíduo X ou Y, estes indivíduos vão à ruína. A questão que ele levanta é se algum dia a causalidade que leva à ruína um indivíduo X será eliminada. A resposta é que ele não só não acredita na eliminação da causalidade como acredita que a causalidade se apresentará tanto mais claramente quanto “dispiegata e pura diviene la socialità del processo de riproduzione”. De tal modo que temos aqui “una parvenza di liberta, che tuttavia è mera parvenza perché con la crescente socializzazione dell’essere sociale l’individuo risulta assoggettato a connessioni, relazioni, ecc. oggetive sempre piú numerose”. Abordando com mais atenção a categoria causalidade, nosso autor lembra que anteriormente havia feito referência a dois tipos de causalidade que são objetivamente heterogêneos entre si. O primeiro tipo é da relação entre o nascimento biológico do indivíduo e a situação social na qual tal nascimento ocorre. O segundo tipo é o da

causalità del rapporto fra legge generale e suoi oggetti singoli ha, come abbiamo già mostrato, tutt’altro carattere nell’essere sociale, dove il semplice singolo della natura inorganica si sviluppa in un soggetto individuale che è capace e costretto a operare posizioni teleologiche. Queste naturalmente non sono in grado di trasformare la universalità della legge e i suoi effetti universamente casuali – dal punto di vista del singolo individuo che subisce la legge, – ma pure creano per i singoli un margine di manovra che può in un certo grado modificare gli effetti della legge generale su di lui. Infatti è ovvio che, a proposito degli effetti della crisi descritta, non sarà indifferente per i singoli stessi il loro comportamento economico; le loro azioni possono condurli a evitare le conseguenze catastrodiche oppure al contrario spingerli dentro la catastrofe. Nel valutare questo margine occorre naturalmente mettere nel conto che per nessun soggetto possono essere totalmente visibili tutte le consegueze delle posizioni teleologiche; ciò restringe certo questo margine ma non lo annulla in assoluto ” (p. 164).

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Para Lukács as causalidades são dados inelimináveis da vida do indivíduo, porque isto esclarece “quanto poco le leggi generali dell’economia, che determinano contenuto, forma, indirizzo, ritmo, ecc. della riproduzione, nel loro realizzarsi concreto abbiano carattere meccanicistico. Altrettanto importante è, però, tener presente che il gran numero di margini di manovra casuali costituisce, nei suoi effetti reali, una parte notevole della vita sociale degli uomini” (ibid.). Ele conclui que para compreender a estrutura dinâmica derivada destas relações é preciso a correta compreensão do lugar, do significado e das relações recíprocas entre as categorias causalidade e necessidade. Na aparência surge a noção, que pode levar o pesquisador ao desvio de um exagerado polarismo racionalista, de que o complexo que constitui a sociedade tem o predomínio da lei, da necessidade. E, por outro lado, na vida do indivíduo há o predomínio da causalidade. Na verdade “L’intreccio fra legge e casualità attraversa tanto l’intero quanto le sue parti”. E assinala que mais adiante na sua exposição ele tratará das “complicate interrelazioni, insiemi legali e casuali, fra complessi all’interno del complesso totale dell’essere sociale in ambedue i poli, sia nell’individuo singolo che nella totalità della società, il loro esser-proprio-cosí emerga come categoria ontologica in ultimo determinante” (p. 164/165) No item 2 (“Complesso di complessi”) do capítulo II (“La Riproduzione”), Lukács principia diferenciando o ser orgânico do ser social e afirmando que ao contrário do ser orgânico, o ser social tem “come sua struttura di fondo la polarizzazine di due complessi dinamici, que si pongono e tolgono di continuo nel processo riprodutivo: l’individuo e la società stessa” (ibid., p. 178). Relembra que o homem é, antes de tudo, um ser biológico, algo pertencente à natureza orgânica sendo que isto já faz dele um complexo. O homem individualmente é um ser vivo determinado pela biologia e por isso tem o ciclo biológico do nascimento, crescimento e morte. Mas com o pôr teleológico do trabalho modifica radicalmente as características de sua inter-relação com o ambiente no qual está inserido. O pôr teleológico, como já vimos, transforma de forma consciente e desejada o ambiente no qual o indivíduo se insere. Já nos estágios iniciais, mais primitivos, da sociabilidade humana, quando ainda não é possível ao homem influir de forma decisiva sobre a natureza, que é uma parte constitutiva importante do ambiente no qual ele se insere. Já aí se introduz “un complesso di determinazioni che operano socialmente, il quale nela reazione degli uomini ai mutamenti della natura svolge in ultima analisi un ruolo decisivo” (ibid., p. 179). Tomando por referência a última era glacial na Europa e o seu fim, Lukács constata que a resposta social dos homens às mudanças radicais no meio-ambiente leva à superação das atividades de coleta, da caça e da pesca e ao desenvolvimento das atividades agrícolas e à criação de gado, com tudo o mais associado a estas atividades e com um claro florescimento cultural. Ainda que os produtos singulares deste novo início sejam inferiores em relação aos do período precedente, eles contêm a possibilidade de progresso que por razões sócio-estruturais eram negadas aos do período anterior à era glacial. Assim, conclui Lukács que já nesta primeira crise evolutiva “si esprimono le legalità piú generali dello sviluppo sociale: la priorità del modo di produzione rispetto alle oggettivazioni superiori che da esso derivano, l’ineguaglianza dello sviluppo nel rapporto fra produzione e sue forme fenominche sociali” (ibid.). Com essa exposição, reforçamos algo que já havíamos dito e que é um fato ontologicamente fundamental para o ser social: as relações do homem, enquanto trabalhador pertencente a um grupo social e não meramente enquanto ser vivo, biológico, não estão em relação direta com o ser orgânico e inorgânico e tão pouco com ele mesmo enquanto ser biológico. Todas essas relações são intermediadas pela sociabilidade. E a sociabilidade do

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homem é o seu comportamento prático, ativo, interagindo com seu ambiente como um todo. Por esta sociabilidade, o homem reage ativamente às transformações do mundo. Não é uma adaptação ativa, mas é o desencadear de uma práxis que reage às mudanças do mundo no qual o homem está inserido, “nella quale l’adattamento allá insopprimibile realtà oggettiva e le nuove posizioni teleologiche che vi corrispondono formano una indissolubile unità. Va da sé che, trasformandosi le sue relazioni con la natura circostante, anche l’uomo si trasforma” (ibid., p. 180). Lukács reforça que enquanto o “divenir-altro” como processo biológico é algo espontâneo, de involuntária adaptação às mudanças do meio, na práxis social ocorre o oposto. Ainda que apenas nos atos singulares imediatos as adaptações sejam intencionais, desejadas, a transformação social que resulta de tais atos surge como “necessità socialmente spontanea. Infatti in questo caso tutto avviene in modo regolato socialmente enon per via diretta” (ibid.). Aqui surgem novas formas de trabalho e de divisão de trabalho, o que leva a novas formas de relações práticas entre os homens o que por fim “retroagiscono sulla stessa costituzione degli uomini” (ibid.). As mudanças que ocorrem com os homens têm um caráter predominantemente social, pois ainda que tenham efeitos biológicos e mesmo psicológicos, “implicano um adattamento dell’essere psichico dell’uomo alla sua nuova condizione sociale. Assim, prossegue Lukács, mesmo quando as mudanças se iniciam no ser inorgânico, como no caso do fim da era glacial, os efeitos sobre os homens não são diretos como ocorre aos indivíduos não humanos pertencentes ao ser biológico, mas são socialmente mediados. “L’arretramento della barriera naturale, tanto spesso citato, prendendo ora in cosniderazione il processo riproduttivo dell’uomo divenuto sociale ci appare in tutta chiarezza: la società è divenuta l’ineludibile medium della mediazione fra uomo e natura” (ibid.). Lukács acrescenta duas observações para melhor explicitar o significado deste fato ontológico decisivo. A primeira é de que já na mais primitiva e inábil posição teleológica do trabalho temos um processo que apresenta uma dinâmica evolutiva ilimitada. De tal forma que a tomada de uma posição teleológica provoca o surgimento de outras posições teleológicas, e este movimento faz surgir totalidades complexas. Estas totalidades complexas levam a uma intermediação entre o homem e a natureza que é cada vez mais extensa, complexa, e intermediada de forma exclusivamente social. De tal forma que em muitos casos singulares já não é evidente que certas mudanças que ocorrem com o próprio homem, com sua atividade, com suas relações, etc, “hanno la loro origine ontológica nel ricambio organico della società con la natura” (ibid., p. 181). A segunda observação é de que é preciso observar a transformação do próprio homem ao longo desses processos, “perché qui risulta visibile la dialettica fra volontà consapevole e quanto negli uomini viene spontaneamente prodotto dallo sviluppo” (ibid.). Lukács assinala que esta questão, em geral, recebe duas interpretações opostas e igualmente falsas: uma isola o papel ativo do homem neste processo, de tal modo que “la struttura alternativa della prassi viene distaccatta daí fatti della realtà che realmente la mettono in moto e dai loro effetti e contro-effetti oggettivi sopra i soggetti di queste attività, per cui viene costruita come base del suo essere e divenire una indefinibile, infondata, autonomia” (ibid.). A outra interpretação atribui ao meio, ao ambiente, uma poder mecânico e inexorável que explicaria as transformações do próprio homem. A interpretação correta da questão, para Lukács, exige que se aceite que

In realtà è il ricambio organico della società con la natura che pone alternative concrete. L’uomo, pena la rovina, deve reagire ad esse con decisioni alternative attive, con nuove posizioni

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teleologiche. Poi, nel corso della loro esecuzione pratica, in lui vengono liberate e attualizzate talune possibilità (nel senso della dynamis aristotelica di cui abbiamo già parlato). Siccome poi le alternative poste e risolte correttamente – correttamente nel senso che corrispondono alle ‘esigenze del giorno’ – vengono fissate socialmente, vengono incastonate nella riproduzione sociale degli uomini, esse in questo modo diventano parti integranti del continuum della riproduzione degli individui e della società, e vi si consolidano come, da un lato, accrescimento della capacità vitale della società nel suo intero e, dall’altro, diffusione e approfondimento delle facoltà individuali dei singoli (ibid., p. 181-182).

Em seguida, nosso autor passa a tratar da categoria de continuidade, e afirma que no interior do ser social a continuidade não pode surgir sem a categoria de consciência. O ser social só pode alcançar o ser-para-si se eleva à consciência a nova forma de ser que ele representa frente ao ser biológico. Para que a processualidade inerente ao vir a ser do ser social e a sua própria continuidade, segundo Lukács, não sofram uma interpretação deformante é preciso entender a consciência como algo gradual, processual e continuativo e não como algo presente e completo desde o princípio. Isto é necessário porque a consciência é ao mesmo tempo produto e expressão realizada do processo objetivo que é o objeto da consciência; “un processo la cui continuità guida e dirige forme e contenuti della coscienza, i quali però senza questa trasposizione nella coscienza non avrebbero potuto realizzarsi pel quel che essi sono nella loro essenza” (ibid., p. 184). Lukács prossegue argumentando que na continuidade do processo, a consciência deve se desenvolver com continuidade, deve conservar em si o que já foi alcançado e tê-lo como base para o aquilo que virá, “come piattaforma del livello superiore” (ibid.). Assim, “il grado ogni volta raggiunto deve sempre essere elevato alla coscienza, ma in termini tali che al contempo resti aperta la possibilità di non bloccare la continuità della vie verso il futuro” (ibid.). A consciência, enquanto órgão da continuidade, sempre representa um determinado estágio de desenvolvimento do ser e por isso “ne recepisce in sé i limiti come propri limiti, in ultima analisi può concretarsi – data la sua essenza – solo in conformità a tale stadio. Giacché però questa attualità, questo legame della coscienza con l’attualità mette in collegamento il passato con il futuro, anche i suoi limiti, le sue incompletezze, la sua ristrettezza, ecc. sono immancabili momenti trainanti di quella nuova continuità che sorge nell’essere sociale” (ibid.). Lukács acredita que esta argumentação esclarece a relação correta existente entre o processo geral e sua continuidade objetiva na consciência que consolida definitivamente a realidade. Esclarece que a consciência deve ser compreendida como fato ontológico, como momento real do desenvolvimento social e não ser interpretada por uma ótica teórico-cognitiva ou mesmo psicológica. Os aspectos cognitivo e psicológico da consciência, ainda segundo Lukács, só adquirem relevo quando o papel da consciência na continuidade do processo social é definido com clareza. “Per poter, rispecchiando il presente, prendendo posizione pratica di fronte alle sue alternative concrete, collegare il passato e le sue esperienze con il futuro e i compiti ancora ignoti che esso porrà, la coscienza deve possedere l’intenzione spontanea che avvenga al meglio la riproduzione di quella vita individuale cui essa appartiene e il cui incremento è suo compito vitale diretto” (ibid., p. 185). Por isso, a consciência que neste momento interessa a Lukács é a do homem cotidiano, aquela da vida e da práxis diária. Quando tratamos da categoria trabalho, vimos que, para Lukács, no âmbito da práxis cotidiana o aspecto central é a ligação direta entre teoria e práxis. Pois a continuidade imediata das condições de reprodução de cada vida individual é o momento em que se manifesta indubitavelmente o interesse pela realidade na qual selecionam-se as coisas a serem fixadas, etc. Lukács (ibid, p. 185-186) conclui dizendo:

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Non va tuttavia dimenticato che, se dal punto di vista della coscienza soggetiva viene in primo piano la riproduzione dell’individuo particolare, oggetivamente gli atti pratici dell’uomo – anche se questo nesso non venga portato alla coscienza dell’individuo – nella loro stragrande maggioranza rientrano nella sfera della genericità. (Si pensi a quanto abbiamo detto circa il lavoro.) Ne deriva, e non solo nel processo totale oggettivo che è a fondamento della vita quotidiana, ma anche nelle espressioni della coscienza di tutti i giorni, una inscindibile e non delimitabile associazione del particolare-individuale con il sociale-generico. Se ciò si verifica per forza di cose negli atti singoli, tanto piú accadrà in quelle interazioni che di per sé scaturiscono dal cooperare degli uomini (divisione del lavoro, ecc.). Solo c’è da notare che nel sommarsi, sintetizzarsi di questi atti singoli in tendenze, correnti, ecc. sociali, è inevitabile che prendano il sopravvento i momenti sociali, spingendo in secondo piano gli aspetti solo particolari, anzi spesso facendoli scomparire, cosicché anche per l’individuo, quando egli s’incontra nella vita quotidiana con tali tendenze, il che succede com’è ovvio di continuo, esse si presentano già come forze sociali e in lui – quale che sia la sua reazione, di accoglimento o di negazione – rafforzano il momento sociale-generico. Ed è in queste somme e sintesi che si esprime con pregnanza ed efficacia la continuità del sociale. Esse costituiscono una sorta di memoria della società, che conserva gli acquisti del passato e del presente facendone i veicoli, le premesse, i punti di aggancio per lo sviluppo futuro [Grifos meus – PH].

Na citação acima, Lukács apresenta de forma concentrada a articulação entre os atos singulares, as interações decorrentes deles, o surgimento de tendências a partir das interações dos atos singulares até o ponto em que os momentos sociais adquirem superioridade, deslocando ou fazendo desaparecer os aspectos apenas particulares. Assim na vida cotidiana, quando o indivíduo se encontra com tais tendências elas surgem aos seus olhos como forças sociais que reforçam o momento social-genérico. E é nestas “somas e sínteses que se apresenta a continuidade do social, sendo que esta continuidade constitui um tipo de memória da sociedade que conserva o adquirido do passado e do presente e, fazendo-os veículos, premissas e pontos de apoio para o desenvolvimento futuro”. Para Lukács o movimento continuativo encontra na consciência dos homens seu intermediário (“medium”). E quando a consciência se põe como portadora e depositária da continuidade, o ser social vem a ser um ser-para-si que não existe no âmbito do ser biológico e do ser inorgânico. No ser orgânico o nascimento e a morte são formas peculiares existentes por si, mas “il ruolo attivo della coscienza nella continuità dell’essere sociale è qualitativamente piú rilevante, è assai piú un mero registrare quel che oggettivamente, a prescindere dalla pecezione che ne possano avere gli individui coinvolti, compare e scompare in tali processi” (ibid., p. 186). Ao conservar em si os fatos passados, a memória social influi sobre os eventos sucessivos. Isto, conforme nosso autor, não significa que a legalidade objetiva do processo desapareça, mas tal legalidade é certamente modificada. Ficando claro que a continuidade fixada na consciência é mais matizada, rica em determinações do que seria sem este aspecto. O caráter de alternativa da práxis humana, que já tratamos na parte referente à categoria trabalho, tem um lugar de destaque. Pois não é porque o passado é conservado na consciência que ele necessariamente será utilizado, mesmo estando diante de uma situação adequada para tanto. Daí Lukács dizer que:

È per questi motivi che in tale contesto l’operare della coscienza non può essere giudicato con criteri gnoseologici: la correttezza o falsità dei suoi contenuti si presentano qui entro una specifica dialettica storico-sociale. Da una parte, per potersi realizzare come fattore storico la coscienza socialmente attiva deve rispecchiare con correttezza quei momenti reali che sono importanti in quel dato periodo e tradurli nella prassi umana. Dall’altra parte, però, questi contenuti della coscienza,

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poiché hanno in concreto una origine storico-sociale e poiché divengono oggetti di decisioni alternative in una situazione storico-sociale concreta, non possono né necessariamente devono essere liberi dagli errori, dai limiti, ecc. della loro genesi, della loro conservazione nella memoria della società, delle possibilità di utilizzazione. In questo senso anche rispecchiamenti in parte o del tutto errati della realtà possono diventare fattori assai importanti degli sviluppi storici. Anzi, molto spesso è proprio la loro azione, con i problemi che ne derivano, a condurre verso un superiore livello della conoscenza, verso una sua maggiore adeguatezza alla realtà (ibid., p. 187).

Prosseguindo com sua exposição, Lukács trata de dois complexos que representam dois extremos na tipologia geral dos complexos constitutivos do ser social. Ele trata do complexo da fala e do complexo do direito. O complexo da fala é, para nosso autor, “una struttura dinamica sorta spontaneamente, la cui riproduzione viene effettuata da tutti gli uomini, nella loro prassi quotidiana, in massima parte senza volerlo né saperlo, e che è presente come inevitabile medium della comunicazione in tutte le attività interiori ed esteriori degli uomini” (ibid., p. 225). O complexo do direito é “un settore speciale delle attività umana che può esistere, funzionare, riprodursi solo se la divisione sociale del lavoro delega un gruppo umano specializzato a eseguire il lavoro necessario, a pensare e agire entro tale specializzazione con una certa consapevolezza (Non rientra in questo discorso la questione che tale coscieza, in un senso determinato, non può non essere falsa)” (ibid.). Por fugir por demais do escopo de nosso trabalho não iremos explorar a contribuição de Lukács sobre estes complexos. Entretanto, vamos assinalar as conclusões gerais a que ele chega, pois elas trazem um bom resumo de sua visão sobre o funcionamento dinâmico do complexo de complexos que é o ser social. Tratando do complexo do direito, Lukács (ibid., p. 223) diz que a evolução quantitativa e qualitativa da divisão do trabalho cria obrigações especiais e formas de mediação específicas entre complexos sociais singulares. Estes complexos sociais singulares por terem uma função particular na reprodução do complexo social total apresentam uma estrutura interna peculiar. Já o complexo social total é uma processualidade reprodutiva que conserva a prioridade ontológica e, assim, determina o tipo, a direção, a qualidade, etc, das funções dos complexos sociais particulares e mediadores. “Ma proprio perché il funzionamento corretto a un livello superiore del complesso totale assegna al complesso parziale mediatore specifiche funzioni paziali, questo assume una certa autonomia, – che viene in essere per necessità oggetiva, – un certo modo autonomo e specifico di reagire e agire, di cui, proprio per questa sua specificità, la totalità non può fare a meno nella sua riproduzione”. Adiante, Lukács (ibid., p. 224) aborda o funcionamento e a reprodução de complexos sociais parciais e argumenta que a necessidade ontológica de uma autonomia relativa e de uma especificidade desenvolvida ainda que não previsíveis e compreensíveis em termos lógicos, são racionais na perspectiva ontológica da sociedade. Por isso é que os complexos parciais podem cumprir suas funções no interior do processo reprodutivo global de forma tanto melhor, mais eficaz, quanto mais autonomamente possuem e refinam uma peculiaridade específica. E não só na esfera do direito verifica-se este fato (ainda que para ela isto seja imediato e evidente), mas ele apresenta-se em todos os complexos que o desenvolvimento da sociabilidade humana produz. E o próprio desenvolvimento da sociabilidade impede uma autonomização absoluta dos complexos particulares. E isto se dá não de maneira automática, “ma sotto forma di compiti da assovere, di reazioni, attività, ecc. umane che derivano da tali compiti, a prescindere dal fatto che

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in queste questioni [tale dipendenza] divenga piú o meno consapevole e si affermi in modo assai mediato e ineguale”.96 No balanço da tipologia geral dos complexos particulares que constituem o complexo total, social, Lukács (ibid., p. 225) assinala que a especialização delegada a um grupo humano pela divisão social do trabalho (como no caso do complexo do direito) possui sempre um caráter de universalidade social, “quantunque il movimento complessivo della società, pur dando in ultima analisi fondamento a questa pretesa di universalità, vada modificandola e, mediante l’attività di altri complessi, delimitandola di continuo”. Assim, as inter-relações entre espontaneidade e participação desejada, consciente, estão presentes na vida de cada complexo particular. E as inter-relações entre universalidade e sua delimitação por parte de outros complexos ou diretamente pela totalidade, “sono riscontrabili in ogni complesso sociale, solo che queste correlazioni (cosí come molte altre) sono ogni volta, in ogni interazione concreta, qualitativamente diverse”. Daqui, Lukács identifica uma propriedade comum quanto a ontologia dos complexos sociais:

essi [i complessi sociali – PH], nell’analisi concreta della loro essenza e funzione, della loro genesi e, nel caso, della prospettiva della loro estinzione oppure della loro pemanente presenza nella società, sono determinabili con esattezza e sul piano concettuale-metodologico è possibile definirli con precisione rispetto a tutti gli altri complessi. Nel medesimo tempo, proprio in senso ontologico, non hanno confini esattamente determinabili; senza perdere per questo la propria autonomia e autolegalità. Il linguaggio per esempio può figurate come medium, come portatore della comunicazione, in tutti i complessi dell’essere sociale, e anche se ciò in altri complessi non si presenta con la stessa netteza, tuttavia accade spesso che si sovrappongano, si compenetrino reciprocamente l’uno con l’altro, ecc., ma senza che vengano mai meno l’autonomia e l’autolegalità, – pur relative, – e l’esatta determinabilità dei singoli complessi” (ibid., p. 226).

Desconsiderar a dialética acima resumida, segundo Lukács, leva à formação de uma imagem deformada do ser social. Tal deformação, por exemplo, pode radicar numa autonomia dos complexos parciais ou na dependência mecânica deles em relação às próprias bases do ser social. Mas, para nosso autor, o principal a reter é que a inter-relação entre os complexos parciais é sempre intermediada pela consciência dos indivíduos humanos singulares, a consciência é o médium, o intermediário. Na prática não há um único indivíduo que ao longo de sua existência não entre em contato de forma variada com vários complexos particulares. Repare que aqui não importa que a consciência em questão seja falsa ou verdadeira, além disso, quanto mais desenvolvida for a sociedade, menor será o número de indivíduos que não realiza tais contatos. Lukács (ibid., p. 226) nos diz que “ogni complesso richiede una particolare, specializzata, reazione operativa da parte delle persone che esplicano le loro posizioni teleologiche nel suo ambito”. E lembrando que toda relação humano-social possui caráter alternativo, reforça que esta também tem tal caráter. Logo, é possível que a consciência de um indivíduo seja modelada de formas inteiramente diferentes em complexos sociais particulares diferentes. Portanto, “che la sua personalità subisca una certa ‘parcellizzazione’. (L’impiegato ossequioso che è al contempo un capofamiglia tirannico) Molto spesso si verificano cosí deformazioni della personalità umana

96 Lukács prossegue dizendo que neste aspecto o marxismo vulgar não vai além da afirmação de uma dependência mecânica, niveladora, da base econômica e no período de Stálin tal concepção mecanicista foi levada ao paroxismo e foi traduzida à força em práxis social, com os resultados conhecidos por todos.

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che sono molto vicine al fenomeno dell’estraniazione, che anzi qualche volta ce la presentano allo stato puro” (ibid., p. 227). E como a formação humano-societária do capital no seu período atual produz tal deformação em escala ampliada, torna-se fácil a compreensão do por que movimentos de idéias que se opõem a ela em termos abstratos, acabem por buscar na personalidade abstrata e idealizada, livre de todo vínculo com os complexos sociais particulares que levam à sua deformação, personalidade que repousa sobre si mesma, o seu ideal. Este é justamente o caso do existencialismo, segundo Lukács. Sem abordarmos a polêmica de Lukács com as posições existencialistas é adequado sintetizar algumas observações que ele faz sobre tal fenômeno: (1) a ilusão existencialista, de imaginar uma personalidade pura e completa em si mesma, como base para um modelo universal, é fruto do fetichismo; (2) todas as determinações reais da personalidade humana são dadas a partir das relações práticas, empíricas “(poi generalizzate a livello sentimentale e teorico) con l’ambiente sociale, con le altre persone, con il proprio ricambio organico con la natura, con i complessi nei quali la società globale concretamente si articola. Una riccheza di contenuti non può venire per la coscienza dell’individuo altro che da tali relazioni” (ibid., p. 227); (3) a práxis humana neste caso também envolve alternativas, todas as inter-relações com o ambiente social, com outras pessoas, com a natureza orgânica trazem a possibilidade de um desenvolvimento e consolidação da personalidade humana, podem levá-la a uma elevação de sua riqueza interior. Mas também trazem a possibilidade de uma fragmentação desta personalidade, levando a um “spezzarne l’unità in ‘parcelle’” (ibid.); (4) o estranhamento tem aqui sua origem social. Mas ao mesmo tempo temos aqui a possibilidade e o veículo de sua superação: “Fuori da tale dialettica fra oggettività dell’essere sociale e inevitabilità di décisioni alternative in ogni atto individuale, neppure ci si avvicina al fenômeno dell’estraniazione” (ibid.). Do item 3, intitulado “Problemi di priorità ontologica”, do capítulo II (“La Riproduzione”), já tratamos de algumas questões das quais a mais relevante é a própria prioridade ontológica. Não voltaremos a isto, entretanto, temos aqui novos desenvolvimentos sobre as inter-relações entre os complexos parciais e o complexo social total e o papel do indivíduo nestas inter-relações. Todo o desenvolvimento teórico de Lukács aponta para o fato ontológico de que o ser econômico, a atividade econômica é o momento predominante em relação a todos os outros complexos sociais parciais. Mas esta prioridade ontológica não faz com que desapareça a autonomia e especificidade dos vários complexos sociais parciais constitutivos da totalidade da formação social. Segundo nosso autor (ibid., p. 245), estes complexos parciais só encontram a sua verdadeira especificidade, a sua autonomia autêntica, quando reagem concretamente à dinâmica concreta do desenvolvimento econômico, quando executam o que tal desenvolvimento econômico requer da sociedade e opõem-se a ele em dadas condições objetivas e subjetivas. Para Lukács a representação idealístico-fetichizante, que é bastante comum nas ciências sociais e históricas, dos complexos sociais particulares, os torna independentes de forma absoluta. E assim o fazem por que representam o ser econômico de forma restrita e reificada. Esquecem as rigorosas legalidades presentes no ser econômico, não percebem que ele constitui uma realidade objetiva independente da nossa existência individual e ao mesmo tempo é a “síntese legal do conjunto de atos teleológicos que cada indivíduo realiza continuamente e continuamente deve realizar ao longo da vida sob pena de ruína física”. Para Lukács não há uma contraposição entre um mundo objetivo e um mundo da subjetividade individual pura. Pelo contrário, para ele, os complexos sociais particulares dinâmicos são constituídos por posições teleológicas individuais,

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e isto, inclusive para o ser econômico que tem a prioridade ontológica. E mais uma vez ele lembra que tal prioridade de uma esfera do ser em relação à outra não envolve problemas de valor. Por tudo isto, nosso autor recusa e se distancia das posições que fazem uma recusa abstrata da reificação capitalista e para as quais uma individualidade rica e forte poderia ser obtida através de uma independência imaginária, de um crescente isolamento mental do indivíduo em relação ao seu ambiente social. Para ele uma personalidade de um dado indivíduo será tanto mais rica e portadora de potencialidades quanto “piú folto è l’intreccio fra le sue risposte alla vita e l’esser-proprio-cosí della società in cui egli vive, tanto piú genuinamente – anche quando si muovano in senso negativo rispetto alle tendenze dell’epoca – tali risposte nascono dalle domande dell’epoca” (ibid., p. 245-246). E Lukács lembra que o que vale para o indivíduo, com maior razão vale para a “sintesi delle posizioni individuali entro un complesso sociale, per l’autentica autonomia di questo complesso. In tutti i campi si verificano feconde ed efficanti rivoluzioni di metodo che precorrono o portanto a compimento le finalità economico-sociali che muovono verso il futuro” (ibid., p. 246).97 A argumentação de Lukács nos mostra que no plano ontológico, a própria autonomia dos complexos sociais particulares varia muito em termos de eficácia exercida por complexos que interagem entre si. Além disso, ele mostra que o peso concreto do momento predominante não é o mesmo sempre e em toda a parte. Como exemplo ele lembra que a luta de classes modifica o curso do desenvolvimento econômico de forma muito mais incisiva do que qualquer interação que o ser econômico venha a ter com outro complexo parcial. Sem esquecer que é o desenvolvimento econômico que determina em última instância as relações de força e o êxito na luta entre as classes sociais. A determinação é em última instância porque quanto maior é o desenvolvimento social da formação humana, quanto maior é o afastamento das barreiras naturais, tanto maior é o papel do fator subjetivo nas lutas de classe, na transformação da classe em-si em classe para-si. Tal constatação aplica-se não só ao desenvolvimento mais geral, mas também aos aspectos singulares, aos aspectos das personalidades dirigentes, que segundo Lukács, Marx (em carta a Kugelmann) diz que depende de cada acontecimento. O ser econômico, que conforme a argumentação de Lukács (ibid., p. 249-250), tem a prioridade ontológica, é o complexo social parcial no qual mais claramente surge a legalidade daquilo que acontece. É o complexo no qual a inter-relação entre a auto-reprodução da vida humana e o ser orgânico e inorgânico ocorre. O indivíduo humano experimenta e passa a conhecer as legalidades da natureza (orgânica e inorgânica), toma-as como seu objeto e torna-as elemento, veículo, para sua existência e contínua reprodução. Quanto mais se aperfeiçoa as formas de movimento deste elemento, “tanto piú si presenta come un sistema di legalità” (ibid., p. 250).98

97 Lukács finda este parágrafo exemplificando: “Perciò,quando il giovane Marx nell’Ideologia tedesca nega ai fenomeni ideologici una storicità autonoma, non vuol dire che egli ne proclami la dipendenza meccanica e la deducibilità schematica dallo sviluppo economico, ma solo che registra l’unita, da noi variamente riscontrata, del processo storico come continuità ontologica, nonostante la sua contraddittorietà e necessaria ineguaglianza” (ibid.). 98 Lukács conclui este parágrafo explicando a inversão produzida pelo idealismo ao considerar o edifício destas leis a partir de uma ótica gnosiológica. Vejamos: “E altrettanto comprensibile è che l’edificio di queste leggi, quando sia riguardato in un’ottica gnoseologica o logicista, possa venir trasformato in un sistema in sé concluso della cui ratio sono portatrici queste legalità tra loro coordinate. Si verifica cosí una inversione ontologica che è tipica nella storia del dominio del mondo ad opera del pensiero degli uomini e che si ripresenta di continuo nella storia. In termini del tutto generali tale rovesciamento può essere descritto come segue: in sé, nel preciso senso ontologico, la legalità, la necessità e, come effetto di questa nel

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Como visto anteriormente neste capítulo, no item dedicado à categoria trabalho, o trabalho é o fenômeno fundante, que dá origem, à esfera do econômico. No plano ontológico é no trabalho (ibid., p. 250-251) que temos a intersecção das inter-relações entre as legalidades do ser social e do ser orgânico e inorgânico. O trabalho seja ele de que tipo for, exige o conhecimento das leis naturais que dominam os objetos e os processos. Objetos e processos estes que o pôr teleológico do trabalho precisa se apropriar para atender às necessidades da auto-reprodução do indivíduo e do próprio complexo social total. A troca orgânica entre o ser social e o ser natural, que ocorre através do trabalho, transmuta tudo o que entra neste processo em algo cuja forma é especificamente social, “in forme di legalità che – in sé – non hanno alcun rapporto con le leggi naturali, che sono totalmente eterogenee rispetto ad esse” (ibid., p. 251). Para Lukács pode-se tomar o tempo de trabalho como medida de produtividade do trabalho para perceber esta heterogeneidade “all’interno di una inscidibile connessione” (ibid.). Com o recuo das barreiras naturais e o aumento da sociabilidade do ser social, naturalmente surgem novas e cada vez mais articuladas interações. O avanço da força produtiva do trabalho exige e leva à descoberta de novas legalidades naturais, a novos usos para as legalidades já conhecidas, etc. Tudo isto, entretanto, não turva o fato dos componentes técnicos e econômicos serem necessariamente heterogêneos. Mas apenas quando estes componentes “operano in comune e si influenzano a vicenda, costituiscono la reale unità ontologica sia del processo lavorativo che del suo prodotto” (ibid.). Ainda que todo processo de trabalho seja sempre determinado pelas leis da natureza e da economia, este processo, assim como o produto dele, o produto do trabalho, não podem ser entendidos como uma simples soma desta dupla determinação, que após concluída homogeneizaria o processo do trabalho. Para Lukács é preciso vê-lo “come quell’esser-proprio-cosí che da tali specifiche interzioni viene ad assumere appunto quelle particolari relazioni, proporzioni, ecc. Sul piano ontologico questo esser-proprio-cosí è il dato primario,le leggi che vi operano divengono concretamente operanti, socialmente essenti, solo in quanto portatrici di tale sintesi specifica” (ibid.). Isto que vale para o ato de trabalho torna-se mais válido ainda, segundo Lukács, quando se explicita em sentido social. Neste caso há um reforço dos dois componentes: aumenta o número de leis naturais que são mobilizadas pela produção e há um desenvolvimento extensivo e intensivo das forças sociais e de suas leis no interior das quais o processo de trabalho se realiza. Assim, quanto maior é o desenvolvimento dos dois componentes, “tanto piú complessa finisce per diventare la struttura di un’entità o processo sociale, tanto piú esplicita appare la priorità ontológica del suo esser-proprio-cosí rispetto alle singole legalità che contribuiscono a renderne possibile l’esistenza” (ibid.). Por fim, Lukács lembra, mais uma vez, que quando consideramos

pensiero, la razionalità di un evento vengono a dire che, ove ritornino le loro condizioni, noi siamo capaci di prevederne lo svolgimento regolare. Il dominio di eventi di questo genere spinge l’uomo a elaborare nel suo pensiero forme ideali generali di possibilità che possono divenire eccellenti strumenti per rispecchiare e comprendere i nessi di fatto. È ovvio perciò che il loro carattere ha determinato il concetto di razionale: razionale (in tale senso, uguale a necessario) appare quell’evento che sia possibile cogliere adeguatamente con l’ausilio di queste forme di pensiero. Si pensi alla storia delle scienze naturali: per quanto tempo si è considerato ‘necessario’ che i corpi celesti dovessero muoversi in forma circolare, - la forma ‘perfetta’, ‘piú razionale’, - per quanto tempo è sembrato che la geometria fornisse la chiave pe le leggi della fisica, ecc. Oggi queste tendenze sembrano di gran lunga sorpassate. Ma se si riflette a quanto spesso l’analisi reale di fenomeni reali resta coperta sotto formule matematiche, anzi viene da queste assirittura sotituita, ci si accorgerà subito che l’orientamento errato di considerare la forma ‘razionale’ come l’essenza ultima dell’essere, di ordinare i fenomeni secondo il criterio della ‘ratio’, è tuttora prevalente rispetto allo sforzo di comprenderli nel loro concreto esser-proprio-cosí”.

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em si processos e relações que guardam grandes semelhanças podem ocorrer, em contextos diversos, resultados deles derivados que são opostos. Ou seja, ele nos diz que o “decorso necessario, legale, dipenda meno dalle necessarie qualità loro proprie che non dalla funzione che essi possono e debbono svolgere nel rispettivo complesso con il suo esser-proprio-cosí. (...) Marx riassume cosí la lezione: si hanno ‘avvenimenti ... nettamente analoghi, che però si svolgono in ambiente storico diverso e perciò conducono a risultati del tutto diversi’. E utilizza questo esempio per mettere in guardia contro l’uso della ‘chiave universale di una teoria storico-filosofica generale’, contro la sua ‘sovrastoricità’” (ibid., p. 252). O item 4 (“La riproduzione dell’uomo nella società”) do capítulo II (“La riproduzione”) de “Per l’ontologia dell’essere sociale”, Lukács (p. 255) relembra que a reprodução social total é um processo que exige a inter-relação entre complexos sociais parciais relativamente autônomos, mas a reprodução social total tem a influência soberana sobre estas inter-relações. E o processo de reprodução social total tem, necessariamente, uma natureza bipolar. Tem dois pólos que delimitam seus movimentos reprodutivos, que o determinam em sentido positivo e negativo. Estes dois pólos são de um lado o processo reprodutivo em sua totalidade extensiva e intensiva, e de outro, o indivíduo singular cuja reprodução constitui “la base d’essere della riproduzione totale”. E é deste último pólo que Lukács trata neste item. Lukács (ibid., p. 256) entende que é preciso buscar um tertim datur para ter uma imagem ontologicamente correta da transformação do homem, no curso de desenvolvimento social, de mero exemplar da espécie humana, de homem singular, em homem real, enquanto portador de uma personalidade própria, de uma individualidade. Este terceiro caminho por ele proposto deve evitar duas falsas abstrações extremas: a que entende o homem como simples objeto da legalidade econômica e a que entende que a determinação essencial do seu ser-homem é ontologicamente independente da sua existência. O homem enquanto ser ativo reproduz-se no interior da sociedade. Lukács (ibid., p. 260) nos diz que ele é um ente complexo-unitário que reage concretamente à realidade concreta. Sua complexidade concreta é ao mesmo tempo premissa e resultado da reprodução, da sua concreta interação com o próprio ambiente concreto. A influência do ser social sobre o “piú intime, piú personali, forme di pensiero,di sensibilità, di azione e di reazione di ogni individuo humano” (ibid.), é irresitível e ativa. Segundo Lukács (ibid.), em sua época (e ainda hoje, diríamos sem vacilar) imperava uma falsa antinomia que levava o pensamento a um beco sem saída. Tal antinomia era constituída por um lado pelo raciocínio que defendia a existência de uma substância da individualidade humana fora do espaço e do tempo, de tal forma que as circunstâncias da vida só poderiam modificá-la superficialmente. Por outro lado, há o raciocínio que entende o indivíduo como um simples produto do ambiente no qual está inserido. Para Lukács (ibid.) temos aqui uma deformação do problema ontológico. Pois, por um lado, há um fetiche da substância humana “in una entità astrattamente fissa, meccanicamente separata dal mondo e dalla propria attività (come in vario modo accade nell’esistenzialismo)”. Por outro lado, transformam a substância humana num objeto “quasi privo di resitenza a qualsivoglia manipolazione (che è il risultato ultimo del neopositivismo)”. O terceiro caminho ontológico proposto por Lukács mostra um novo lado do seu conceito de substância, conceito que é universal e ao mesmo tempo histórico. Ele vem argumentando desde sempre que o elemento

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imediato do quadro histórico social é a decisão alternativa99 dos homens concretos. Assim conclui que: “Allo stesso modo in cui l’essere sociale si costruisce con queste catene variamente incrociantisi di decisioni alternative, cosí anche la vita singola dell’individuo è composta dal loro succedersi e derivare l’una dall’altra. Dal primo lavoro, come genesi dell’uomo, fino alle piú sottili decisioni psicologiche e spirituali l’uomo forma il proprio mondo esterno, contribuisce a edificarlo e rifinirlo, e al medesimo tempo con queste stesse azioni forma se stesso, passando da mera singolarità naturale a individualità entro una società” (ibid., p. 261). Tomando esses atos em termos ontológicos, temos que são atos concretos de indivíduos concretos no interior de uma parte concreta de sociedades concretas. Lukács (ibid.) prossegue explicando que todos estes atos individuais concretos devem ser generalizados para se tornarem parte ativa e concreta da totalidade social, o que “non mette in causa la concretezza della loro datità originaria” (ibid.). E que é possível generalizar em termos ontológicos, desde o fluxo da práxis social, pois “il loro concreto esser-posti possiede come sua costituzione originaria e ontologicamente insopprimibile questo concreto esser-proprio-cosí” (ibid.). Cada alternativa real é concreta, “ache quando conoscenze, princípi e altre generalizzazioni abbiano un peso decisivo nella decisione concreta questa conserva soggetivamente e oggetivamente il suo concreto esser-proprio-cosí, agisce come tale sulla realtà oggetiva e soprattutto è da questa base che esercita il suo influsso sullo sviluppo del soggetto. Quel che noi chiamiamo personalità di un individuo, è questo esser-proprio-cosí delle sue decisione alternative [grifos nossos – PH]” (ibid., p. 261-262). Para nosso autor cada indivíduo traz em si um grande número de possibilidades (no sentido aristotélico da palavra, conforme vimos anteriormente), mas seu verdadeiro caráter realiza-se “nel suo esser-proprio-cosí, appunto quando e o perché si traduce in atto una certa possibilita e non un’altra. A potencialidade faz parte do ser-precisamente-assim do indivíduo, sua realização envolve uma decisão alternativa, e a questão importante é saber se tal decisão irá confirmar ou negar a realização da possibilidade existente no indivíduo. A essência do indivíduo é “quel che nel corso della sua vita viene a comporsi come continuità, indirizzo, qualità della catena ininterrotta di queste decisioni. Infatti, per l’appunto se si vuole comprendere correttamente in termini ontologici l’individuo, non bisogna mai dimenticare che queste decisioni ne determinano ininterrottamente l’essenza, la guidano verso l’alto o verso il basso. (...) E ciò vale in senso ontologico generale, per ogni attività umana e per ogni relazione fra individui” (ibid., p. 262). Lembrando que para Marx os homens fazem a sua própria história, mas em circunstâncias que eles herdaram, que não são fruto de suas escolhas individuais. Lukács retoma um argumento já apresentado quando ele discutiu a categoria trabalho: “l’uomo è il risultato della sua propria prassi” (ibid.). Ele volta a tratar desta questão por que há posições teóricas que a deformam. Para algumas, a circunstância é um simples estímulo à atividade, “che viene intesa in senso puramente interiore”. Para outras é o “determinanti causali-legali totalmente decisive” (ibid., p. 263). Segundo Lukács, em termos ontológicos corretos, as circunstâncias são dadas aos indivíduos e, portanto, trazem uma ineliminável objetividade e sendo objetividade social, se sujeita a uma causalidade objetiva. E para os indivíduos que estão imersos em tais circunstâncias herdadas, elas são o material a partir do qual tomarão decisões alternativas concretas. Assim, por um lado, 99 A decisão alternativa de homens concretos “nonostante la sua complessità interna in quanto parte costitutiva di complessi di complessi sociali, non è, appunto sul piano dell’essere, ulteriormente divisibile, ma va affrontato cosí com’è, come ‘elemento’ nel suo esser-proprio-cosí” (ibid., p. 261).

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a qualidade das circunstâncias determina necessariamente “il tipo, la qualità, ecc. di quelle domande che la vita pone e cui le decisoni alternative di ogni individuo reagiscono con risposte pratiche (e con generalizzazioni che si sviluppano da tali risposte)” (ibid.). Ao avaliar esta situação, cabe não esquecer que o homem “dà sempre risposte pratiche a dilemmi pratici della vita che ogni volta una società determinata (...) pone a lui in quanto individuo che vive in essa. Dal momento della nascita fino alla tomba quest’opera determinativa – il campo per la risposta definito dalla domanda – non cessa mai” (ibid.). Por outro lado, é preciso não esquecer que todas a reações dos indivíduos (materiais e imateriais) ao seu ambiente social (incluindo a troca orgânica da sociedade com a natureza) “ha sempre un carattere alternativo, comprende sempre in sé inevitabilmente un sí o no (o una ‘astensione dal voto’) nei confronti della domanda posta dalla società” (ibid.). Não é uma descoberta do marxismo o fato de que o homem realiza sua própria essência, “la propria identità con se stesso, nei suoi atti, che i suoi pensieri, sentimenti, fatti interiori, ecc. esprimano davvero la sua essenza, il suo sé, solamente quando siano in grado di esplicitarsi in qualche forma nelle sue azioni” (ibid., p. 265). Para Lukács o que é característico do pensamento marxiano é que a prioridade ontológica da práxis na vida humana o leva ao seu verdadeiro fundamento ontológico, “all’essere sociale, che la fonda su di esso, in esso” (ibid.). Para ele, o princípio último da personalidade humana (o que garante a sua constituição, conservação e reprodução) é “radicalmente terreno” (ibid.). Mas isto só é possível quando “le sue forze motrici decisive risultano inscindibilmente connesse con la realtà in cui l’uomo si realizza, si forma come personalità, quando esse possono realmente tradursi in atto in perenne interazione con la realtà” (ibid., p. 265-266). Já vimos anteriormente que o ato do trabalho está na gênese da humanização do homem, está na essência do homem, na perene e permanente inter-relação entre o ser natural e o ser social. Que ele exige a pôr teleológico que de fato movimenta o indivíduo e o gênero. Este pôr tem na consciência do homem o “fattore-guida” que por sua vez tem uma incidência determinante sobre o ser do homem. Repare que no processo de trabalho a relação sujeito-objeto é sempre de mão-dupla. O sujeito (indivíduo trabalhador) (“organo esecutivo immediato del ricambio organico della società con la natura” (ibid., p. 266)) agindo sobre o objeto de trabalho e ao mesmo tempo sofrendo modificações no seu ser-em-si ao longo deste processo. Aqui nos interessa neste momento as modificações sofridas pela consciência humana (note, portanto, que não há separação entre o “material” e o “espiritual” no homem para Lukács). Há uma dupla ligação (indissolúvel) da consciência humana com o ser orgânico e com o ser social. Esta dupla ligação não é estática, “e il momento della dinamica, della possibilita di uno sviluppo, vi è rappresentato proprio dall’essere sociale” (ibid., p. 267). No ser orgânico, a consciência limita-se a reagir ao mundo externo e assim garantir a reprodução do ser. “Per questo abbiamo potuto dire che la coscienza animale è in senso ontológico un epifenomeno” (ibid.). Já a consciência humana

viene messa in movimento da posizioni teleologiche che oltrepassano l’esistenza biologica di un essere vivente, quantunque poi esse finiscano per servire direttamente anzitutto alla riproduzione della vita, in quanto a tal fine producono sistemi di mediazioni che in misura crescente retroagiscono, dal punto di vista tanto della forma quanto del contenuto, sulle posizioni stesse, per ritrovarsi però, dopo questo giro fatto di mediazioni sempre piu ampie, di nuovo al servizio della riproduzione della vita organica” (ibid.).

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Para Lukács (ibid.), a questão agora é saber como este desenvolvimento influi sobre o homem que age em sociedade. Se trata-se de uma dupla influência cujos efeitos convergem para o sujeito. Nosso autor assinala que em primeiro lugar, o trabalho e cada atividade humana que por ele é movimentada e que nele desemboca, coloca cada indivíduo em frente a novas tarefas cujo cumprimento engendra no indivíduo novas capacidades. Em segundo lugar, os produtos do trabalho satisfazem as necessidades humanas de um modo novo, modo este cada vez mais afastado da mera satisfação biológica. Entretanto, tal afastamento não provoca uma ruptura total com a necessidade da satisfação biológica. Assim, Lukács (ibid., p. 267-268) nos lembra que o trabalho e os produtos do trabalho introduzem na vida dos homens, de forma contínua, novas necessidades que até então eram desconhecidas. Mas ao mesmo tempo introduzem novas formas de satisfazê-las. Em resumo:

mentre rendono la riproduzione della vita sempre piú varia e complessa, portandola sempre piú lontano da quella biologica, al medesimo tempo transformano anche l’uomo autore della prassi, lo allontanano sempre piú dalla riproduzione biologica della propria vita. (...) la base biologica non viene soppressa, ma solo socializzata, cosicché nell’uomo sorgono caratteristiche e capacità qualitativamente, strutturalmente, nuove del suo esser-uomo” (ibid., p. 268).

O elemento mais importante neste momento assinala Lukács (ibid.), é o crescente predomínio da posição teleológica na reação do homem ao mundo externo. Mesmo o fato de que o reflexo condicionado (que nada mais é do que a estabilização das posições teleológicas) ganhe destaque nas reações dos homens ao mundo externo em nada muda o predomínio da posição teleológica. Pois “il fissarsi e lo scomparire dei riflessi condizionati si fonda, allo stesso modo dell’agire non cristallizzatosi in questa forma, su posizioni teleologiche” (ibid.). A posição teleológica implica não somente uma consciência que põe finalidades, mas também (“giacché contribuiscono a creare un ambiente sociale in cui vecchio e nuovo, atteso e inatteso, ecc. sono in continuo cambiamento” (ibid.)) uma continuidade da consciência, “un immagazzinamento critico di esperienze, e anche un potenziale orientarsi verso l’assenso e il diniego, l’apertura davanti a determinati fenomeni nuovi, il rifuto aprioristico di altri, ecc.” (ibid.). Lukács prossegue argumentando que a posição teleológica, que necessariamente envolve decisões alternativas “può essere presa soltanto dal soggetto umano, – anche nella esecuzione di un comando vi è sul piano ontológico la possibilità almeno astratta di non osservarlo e di assumersene le conseguenze, – la continuità della coscienza che viene in essere in questo modo è necessariamente centrata sull’io di ciascun individuo. Ma ciò implica per l’uomo una svolta qualitativa nel rapporto tra vita e coscienza” (ibid.). Nosso autor lembra que cada ser vivente é ao mesmo tempo exemplar de uma espécie e, também, um exemplar singular concreto de uma espécie concreta. “Questo rapporto però, come rivela Marx nella sua critica a Feuerbach, è necessariamente muto, esistente solo in-sè” (ibid.). Para Lukács aqui está indicado que a consciência humana na práxis social e mediante esta práxis “non solo sviluppa in sé una continuità superiore, consapevolmente mantenuta, ma inoltre per forza di cose la centra sul portatore materiale, psicofísico, di questa coscienza, ha come effetto ontológico che l’essere-in-sé, naturale, della singolarità negli esemplari della specie si svilluppa in direzione dell’essere-per-sé, che l’uomo si trasforma, tendenzialmente, in una individualità” (ibid., p. 269-269). O processo genético do ser-para-si, conclui Lukács, nos mostra que ele deriva da sociedade e não da “natureza” do homem. Neste processo genético do ser-para-si a educação pode legar a um homem características novas. Mas as características não são determinadas de uma vez por todas, não são

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permanentemente estáveis, elas são possibilidades que se concretizarão ou não de acordo com o processo de desenvolvimento, “dal farsi-uomo dell’uomo singolo nella società” (ibid., p. 271). Este processo de desenvolvimento é puramente social, não se trata de um crescimento biológico. Isto fica patente quando percebemos que tal processo de desenvolvimento apresenta-se sob a forma de uma cadeia, “in una continuità dinâmica di decisioni alternative” (ibid.). E apresenta-se sob um duplo aspecto: por um lado a educação do homem “è diretta a formare in lui una disponibilità verso decisioni alternative di un genere determinato; dove l’educazione non è intensa in senso stretto, come attività consapevole, ma come totalità degli influssi esercitati sul nuovo uomo in formazione” (ibid.). Por outro lado, a criança já na primeira infância reage à sua educação, “in questo senso molto ampio, anch’egli con decisioni alternative, per cui la sua educazione, la formazione del suo carattere, è un processo di azioni reciproche che si svolge come continuità fra questi due complessi” (ibid., p. 271-272). Diante disto, Lukács conclui que o processo de desenvolvimento acima referido é o resultado de um complicado processo de interação, “nel quale e attraverso il quale sorge nel singolo individuo quella indissolubile, anche se spesso contraddittoria, unità fra determinazioni psicofisiche e sociali che sarà la caratteristica profonda del suo esser-uomo” (ibid., p. 272). Para Lukács (ibid.) o problema é compreender como através deste novo “medium” do ser ocorre uma nova síntese, que ele chamou de “ser-para-si da singularidade”. “Tale medium non sopprime l’esser-proprio-cosí in senso ontológico, gli dà però altri contenuti, altre forme strutturali, e se è vero che per questa via nell’esser-proprio-cosi sorge un nuovo tipo di multistratificazione contraddittoria, essa però non ha piú nulla da fare con le vechie, immaginarie forme dualistiche”. O ser-precisamente-assim biológico, como já foi dito tantas vezes, permanece fundamento inalienável da formação social superior como possui uma grande importância prática. Já vimos que para Lukács o ser-precisamente-assim do homem atravessa todo o seu desenvolvimento,

(...), e ora vediamo che sai all’inizio biologico sai al termine socializzato vi è un esser-proprio-cosí dell’uomo, cioè che, come per la specie umana in senso filogenetico, cosí anche per l’individuo in senso ontogenetico si va dall’esser-proprio-cosí dato immediatamente all’esser-proprio-cosí dell’essere-per-sé della singolarità umana: uno sviluppo continuativo, pur se ricco di ineguaglianze e contraddizioni, il cui risultato per un verso prosegue e perfeziona l’inizio e per l’altro al contempo può trovarsi in netta contrapposizione con esso. Di nuovo una connessione reale che presenta la struttura dell’identità di identità e non-identità” (ibid., p. 274).

Em seguida Lukács passa a circunscrever o conteúdo da determinação formal acima relatada. Inicia lembrando que a não-identidade “di cui si tratta qui non abbia nulla a che fare con una opposizione fra materiale e ideale comunque intensa” (ibid.). E esta, ao contrário, é a base ontológica do crescimento ininterrupto do componente social “nel complesso uomo; e per l’appunto questo fattore determinante dei momenti di identità, nella continuità dello sviluppo, è il veicolo della non-identità all’interno dell’identità” (ibid.). Lukács, para demonstrar com clareza do que ele trata neste momento, retoma seus argumentos anteriores nos quais indicava como a “generidade” (genericità) do homem é conexa à sua existência enquanto membro de uma sociedade e como de modo desigual e contraditório, por este caminho, ocorre uma superação “storico-sociale del genere muto, come nel corso di questo lungo e finora per nulla concluso sviluppo il genere umano cominci a presentarsi nella sua forma autentica e adeguata” (ibid.). Em

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seguida, nosso autor faz três observações sobre a ligação entre o ser-para-si da singularidade do homem e a “generidade” (genericità) do homem: (1º.) Afirma que esse é um processo espontâneo-elementar socialmente determinado. Pois a intenção originária da posição teleológica do trabalho é diretamente associada à satisfação das necessidades postas ao indivíduo. “Soltanto nel contesto sociale oggettivo il processo e prodotto del lavoro subiscono una generalizzazione che oltrepassa il singolo individuo e che purtuttavia è legata alla prassi e, mediante questa, all’essere dell’uomo: appunto la genericità” (ibid.). Pois o mutismo natural do gênero começa a ser reduzido quando numa comunidade humana ocorre ao mesmo tempo o trabalho em comum, a divisão do trabalho e todas as conseqüências que daí decorrem. Neste contexto, o indivíduo singular, por meio de sua consciência vem a ser membro (“non piú mero esemplare” (ibid., p. 275)) do gênero, “che però agli inizi viene posto immediatamente con la comunità ogni volta data e come del tutto idêntico ad essa” (ibid.). O elemento novo e decisivo é atribuído ao gênero, “sebbene di regola venga in essere per via naturale, – mediante la nascita, – tuttavia viene formata e resa consapevole attraverso una prassi consapevolmente sociale, già attraverso l’educazione (nel suo senso piú lato), che inoltre tale appartenza produce, con la lingua comune, un proprio organo creato socialmente, ecc.” (ibid.). (2°.) O desenvolvimento da sociabilidade na cooperação dos homens se faz através dos impulsos e contra-impulsos relativos a determinados tipos de práxis, a posições teleológicas, com suas inelimináveis alternativas que apresentam-se à consciência do indivíduo que deve agir. Para Lukács, quanto mais desenvolvida, social é uma sociedade, quanto mais ela viabiliza o afastamento das barreiras naturais, “tanto piú esplicito, molteplice, deciso questo centrarsi della decisioni sull’io che ogni volta deve compiere l’atto” (ibid.). Lukács prossegue dizendo que quanto mais numerosas as decisões que o indivíduo deve tomar, quanto mais variadas são, quanto mais se encontram longe do seu fim direto, quanto mais “il legame con questo è fornito da nessi complicati di mediazioni, tanto piú l’individuo deve formare in sé una sorta di sistema di disponibilità a queste svariate e spesso fra loro eterogenee possibilita di reazione, se vuole conservarsi in tale complesso di obblighi sempre piú numerosi e vari” (ibid., p. 276). Para nosso autor, portanto, o campo deste desenvolvimento é socialmente determinado, “anche se al suo interno i diversi individui che si trovano in situazioni ‘analoghe’ possono prendere decisioni alternative assai diverse. Poiché tuttavia le conseguenze di queste non dipendono da loro, diventa sempre piú intensa per essi la necessità di accordare i diversi tipi di comportamento l’uno con l’altro, con i propri bisogni, con le conseguenze sociali prevedibili, ecc.” (ibid.). Ele finda este argumento lembrando que isto vale tanto para o ato quotidiano que retorna continuamente, quanto para aquela mediação mais complexa. (3º.) Para Lukács, cada decisão prática singular contém em si e ao mesmo tempo elementos e tendência da mera particularidade, da simples singularidade do ser-em-si, e os da “generidade” (genericità). Por exemplo, o homem trabalha para satisfazer as necessidades particulares imediatas do comer, do vestir, etc. E este trabalho, como já foi visto, possui tanto na sua execução, quanto no seu resultado, elementos e tendências da “generidade”. A separação entre as duas coisas é objetivamente sempre presente, “a prescindere da come in concreto si rispecchi nella coscienza del singolo, giacché in ambedue i casi le decisioni vengono suscitate dall’ambiente sociale e simultaneamente relazionate all’io che prende la decisione” (ibid.). A consciência do indivíduo pode apreender esta separação, e até mesmo esta antítese, pois ao entrar em conflito o indivíduo é constrangido a escolher. Este conflito é produzido continuamente pelo desenvolvimento social, em forma sempre nova e a partir de novos conteúdos. O movimento da

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singularidade existente só-em-si do homem que conduz ao seu ser-para-si é legado pelo desenvolvimento. “È un fatto storico che la genericità dell’uomo acquista una figura plastica molto prima del dispiegarsi della sua individualità, ma non se ne devono trarre conclusioni affrettate e semplicistiche circa il rapporto fra genere e individuo” (ibid., p. 276-277). Aqui Lukács adverte que apenas na Ética pode discutir de forma adequada os complexos problemas que acima estão colocados, e se não for por outros motivos é por que a questão dos valores e da sua dialética concreta emerge com força daqui. E o seu estudo ultrapassa o tratamento dos nexos ontológicos internos do ser social que é, para nosso autor, o foco neste trabalho. Assim Lukács conclui este parágrafo afirmando:

Dal punto di vista ontologico osserviamo soltanto che i due movimenti, quello dall’essere-in-sé dalla singolarità alla individualità essente-per-sé e quello dalla particolarità alla genericità dell’uomo, sono profondamente intrecciati l’uno con l’altro, pur essendo processi ineguali e contraddittori, di cui si falsificherebbe del tutto l’essenza se ai momenti in definitiva soverchianti, all’essere-per-sé e alla genericitá, venisse attribuita meccanicisticamente una superiorità (o inferiorità) generale, oppure se ci si immaginasse di poterli intendere come potenze dello sviluppo assolutamente autonome; a maggior ragione quando, isolato in termini astratti il loro carattere di valore, gli si attribuisca un essere (o una validità) indipendente dallo sviluppo storico-sociale, feticizzando in tal modo la sfera del valore e della sua realizzazione in una sfera autonoma (ibid., p. 277).

Lukács em seguida afirma que nenhuma história dos conflitos da humanidade seria possível sem o aparecimento contínuo dos conflitos entre o ser-para-si e a “generidade” (genericità) do homem. Conflitos estes que no momento de cada atualidade histórica são de fato irresolutos. A conexão essencial entre o ser-para-si e a “generidade” (genericità) do homem, torna-se compreensível somente quando nenhum dos dois aspectos é assumido como entidade soberana, mas são vistos como produto e co-produto da história. Para Lukács o mutismo humano cessa já no início primevo da sociedade. “Questo però articola la propria voce solo con molta gradualità, con molte diseguaglianze e contraddizioni, giacché per l’appunto, come abbiamo visto in precedenza, può dispiegare oggettivamente e soggettivamente le proprie vere determinazioni solo man mano che la società na integrandosi in forme di unità sempre piú ampie e sviluppate (piu sociale)” (ibid.). Nosso autor lembra que no percurso deste caminho ocorrem simultaneamente na sociedade diversos graus de generidade (genericità), sendo que o dominante representa no seu ser o estádio “cui appunto si è arrivati, ma insieme sono presenti in esso trace di quelli sorpassati, su cui è variamente orientata la prassi di molti individui, e non sono pochi i casi nei quali si hanno forme future che indicano addirittura come prospettiva la realizzazione totale della genericità. (Si pensi alla filosofia della tarda antichità) È chiaro che in tali casi anche queste possibilità diventano parti del campo entro cui operano le decisioni alternative degli uomini” (ibid., p. 278). Em resumo, segundo nosso autor, em muitos casos a intencionalidade direta para a generidade (genericità) pode derivar seja do lado da particularidade seja daquele do ser-para-si do homem. A particularidade pode ter um certo peso especialmente na nostalgia de um estádio já superado. “In termini generali possiamo dire súbito che il superamento della particolarità nell’uomo singolo e la spinta verso una forma superiore di genericità nella dinamica della sotanza sociale dell’uomo mostra una convergenza sul piano storico-universale” (ibid.). Entretanto, nosso autor adverte que não corresponde à essência real, ontológica, deste processo

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querer transformar esta tendência histórico-universal numa regra abstrata válida para todos os casos singulares. E que esta necessária reserva não anula a tendência histórico-universal indicada: “il movimento che la società suscita negli individui e che li conduce dalla singolarità essente solo in-sé all essere-per-sé, consapevole e consapevolmente regolante la loro prassi, e il superamento oggettivo e soggettivo, nell’essere e poi consapevole, del mutismo del genere umano, sono movimenti convergenti, che si sostengono a vicenda” (ibid.). Por mais relevante que sejam as desigualdades e profundas as contradições que contribuem para determinar o caminho, a fase do processo

complessivo, è certo che il genere umano non potrebbe mai realizzarsi completamente, non potrebbe mai staccarsi dal mutismo ereditato dalla natura, se negli individui non si avesse in modo socialmente necessario una tendenza verso il proprio essere-per-sé: solo esseri umani consapevoli di se stessi come individui (non piú singoli che si diversificano solo nella loro particolarità in-sé) sono in grado mediante la loro coscienza, mediante le loro azioni guidate dalla coscienza, di convertire in prassi umano-sociale, cioè in essere sociale, la genericità autentica. Nonostante tutte le ineguaglianze e contraddizioni, lo sviluppo della società su scala storico-universale spinge parallelamente verso la nascita della individualità essente-per-sé nell’uomo singolo e verso il costituirsi di una umanità che nella sua prassi è consapevole di sé come genere umano (ibid., p. 278-279).

Do que vimos até aqui podemos dizer que Lukács joga luzes sobre um pólo do desenvolvimento social: o homem em si, no seu crescimento para o próprio ser-para-si e para a generidade consciente. Este crescimento, a partir da análise da força ontologicamente dominante, é sempre resultado da interação entre a respectiva formação social e a possibilidade e necessidade de agir do homem, “i quali entro il campo offerto dalla formazione realizzano concretamente le possibilita e i compiti che essa pone loro” (ibid., p. 281). Para nosso autor, a compreensão deste desenvolvimento não pode se dar através da hipótese de uma essência apriorística da natureza humana. Para Lukács, a própria história ressalta uma situação ontologicamente fundamental: o trabalho origina novas capacidades e novos desejos, suas conseqüências se colocam para além do que é conscientemente e imediatamente posto, engendra novas necessidades e novas formas de atendê-las. Considerando-se o meio no qual cada possibilidade objetiva surge, em cada formação social específica, determinada, este crescimento da chamada “natureza humana” “non trova confini segnati a priori” (ibid.). Ressaltamos a importância que adquire na ontologia do homem como ser social o afastamento das barreiras naturais. E mais, Lukács reforça que o homem é um ser que responde como todo ser vivente. Responde aos desafios, condições e tarefas que o meio-ambiente põe para a sua existência, reproduzindo-se e garantindo a perenidade da espécie. Mas a resposta do homem é diferente da que é dada pelos outros seres orgânicos, pois é a práxis humana que articula tal resposta. E esta práxis exige o pôr teleológico, exige a consciência, e sempre opera dentre alternativas. De tal forma que o jogo dialético entre demandas postas pelo meio-ambiente e as respostas dos homens pode se desenvolver infinitamente. Ressaltamos, entretanto, que as respostas são cada vez mais indiretas, mediadas socialmente. Pois tal dinâmica leva à constituição das formas de sociabilidade puras do ser social, com o respectivo afastamento das barreiras naturais. Lukács explica que a compreensão da dialética entre fenômeno e essência exige a perspectiva de um ser social no qual a causalidade do ser biológico e social exista apenas como tarefa, como problema da vida do indivíduo singular. Este indivíduo deve transformar a própria

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singularidade numa personalidade autêntica, o próprio dado particular num representante, “in un organo, della genericità non piú muta” (ibid., p. 330). Mas esta perspectiva não depende do singular: “solo nella misura in cui lo sviluppo economico oggettivo abbia prodotto ontologicamente la possibilità di un genere umano essente-per-sé queste tendenze di sviluppo che toccano la persona possono tradursi in realtà su scala sociale” (ibid.). Para nosso autor, tal perspectiva exige, ainda, um duplo esclarecimento: por um lado, se trata do conhecimento da real linha do desenvolvimento no movimento objetivo da economia. Assim, a perspectiva não é algo subjetivo como uma esperança, mas o espelhamento “e la prosecuzione integrativa, nella coscienza, dello sviluppo economico oggettivo stesso” (ibid.). Por outro lado, este desenvolvimento econômico objetivo que revela uma tendência que se expressa tanto no plano econômico quanto no social, e do qual a perspectiva da qual nos fala Lukács é o espelhamento e a expressão, não é um evento fatal, não é algo teleológico. Pelo contrário, depende da ação de cada homem singular, das decisões alternativas por eles tomadas, do pôr teleológico de cada um deles. Logo, não há um fim pré-determinado. Nas palavras de Lukács:

Scopo posto questa prospettiva può esserlo solo per posizioni teleologiche di uomini singoli o di loro gruppi, dove le serie causali messe in movimento in esse possono diventare fattori oggettivi del suo realizzarsi. Tale prospettiva è per Marx il comunismo come secondo stadio del socialismo. Nell’ottica ontologica in cui ci siamo posti, dunque, possiamo riguardarla solo come prospettiva. Anche se è concreta, in quanto soltanto questa struttura della società rende possibile il sorgere reale del genere umano come genere non piú muto in tutt’e due i poli dell’essere sociale (ibid., p. 331).

CAPÍTULO III: A ONTOLOGIA DE MARX SEGUNDO LUKÁCS: ALGUMAS NOTAS100 3.1. Algumas Questões Iniciais Sobre a Ontologia de Marx Lukács observa que Marx já nos seus "Manuscritos Econômicos e Filosóficos" trata das categorias econômicas enquanto "categorias da produção e reprodução da vida humana", o que vai viabilizar a "descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas". E esse momento do jovem Marx é o ponto de inflexão na sua trajetória de repúdio ao método hegeliano de expor as conexões do ser social "sobre a base de esquemas lógicos". Assim ele vai buscar a concretização das formações, das conexões, etc do ser social. (Lukács, 1979b:14-15) "Em nome do concreto caráter de

100 Este capítulo (com algumas modificações) corresponde ao capítulo 1 de nossa Dissertação de Mestrado “A Categoria Marxiana de Crise Econômica: Uma Abordagem Ontológica”, FEA/UFF, 1994.

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ser que têm as entidades sociais [ele] exige a sua investigação concreto-ôntica (ontológica) (...)." (ibid., p. 14). Mas o fato da economia estar no centro da ontologia marxiana "não significa que sua imagem de mundo seja fundada sobre o economicismo" (ibid., p. 15). Lukács enfatiza que Marx não trabalha com a separação tradicional entre sociedade e natureza, mas considera "sempre os problemas da natureza predominantemente do ponto de vista de sua interrelação com a sociedade" (ibid.). Assim ele reconhece somente a ciência unitária da história, que engloba tanto o ser social, quanto o inorgânico e o orgânico. Marx ao colocar a esfera do trabalho, da produção e da reprodução da vida humana, como problema central, como cerne do ser social traz o fato de que o ser social tem por base o ser inorgânico e o ser orgânico, e constantemente a transforma, sem nunca poder separar-se dessa base. Marx ressalta que: "Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana" (Marx, 1985a., p. 50). Pelo trabalho processa-se uma dupla transformação, tanto do homem que trabalha e é ao mesmo tempo transformado pelo seu trabalho, quanto da natureza exterior, que é transformada em meios de trabalho, matérias-primas, etc. Mas para que ocorra tal processo é decisivo e necessário o pôr teleológico, que só o homem é capaz de instaurar.101 Como já afirmamos o ser social pressupõe o ser inorgânico e o ser orgânico, ele não é e não pode ser considerado independente destes. Mas essa afirmação não pode nos levar a uma transposição mecânica, simplista, das leis da natureza para a sociedade (Lukács, op.cit., p. 17). O ser social desenvolve-se, com o surgimento e a explicitação da práxis social, com o fato das necessidades naturais, biológicas e espirituais passarem a ser satisfeitas por uma cada vez maior intermediação social.

101 Senão vejamos o que Marx nos diz: "Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia,regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar,por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais de trabalho. O estado em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos o estado em que o trabalho humano não se desfez ainda de sua primeira forma instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais." (ibid., p.149-150)). Essa citação explicita a importância do pôr teleológico, da teleologia inerente ao trabalho humano, para a visão marxiana desse trabalho, e para a explicação da criação dos valores de uso, de troca e do próprio valor. Essa citação revela sua importância, em particular, no trecho em que afirma que o trabalho é suposto como algo que pertence exclusivamente ao homem.

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(...) Esse desenvolvimento, porém, é um processo dialético, que começa com um salto, com o por teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza. O fato de que esse processo, na realidade, seja bastante longo, com inúmeras formas intermediárias, não anula a existência do salto ontológico. Com o ato da posição teleológica, temos em si o ser social. O processo histórico da sua explicitação, contudo, implica a importantíssima transformação desse ser em si num ser para-si; e, portanto, implica a superação tendêncial das formas e dos conteúdos de ser meramente naturais em formas e conteúdos sociais mais puros, mais específicos. (ibid.)

Para Lukács, na relação ontológica entre natureza e sociedade, as categorias sociais têm nas categorias e leis da natureza tanto orgânica quanto inorgânica uma base última e ineliminável. Para que a posição teleológica do trabalho realize sua tarefa transformadora é necessário o conhecimento das propriedades e dos processos das coisas, do ser natural (ibid., 18). Assim as objetividades puramente sociais exigem, para se constituir, objetividades naturais socialmente transformadas, "(...) com mediações mais ou menos aproximadas" (ibid., p. 19). Ele entende que o conjunto de categorias sociais puras constitui a especificidade do ser social, o ser social que tem por base o ser da natureza e se desenvolve no processo concreto-material de afastamento desse ser da natureza, e ainda se reproduz neste quadro, mas "não pode jamais se separar de modo completo - precisamente em sentido ontológico - dessa base (ibid.).102 Antes de expor a economia marxiana de forma adequada ao seu caráter ontológico é preciso demarcar uma questão. É incorreta a contraposição entre um Marx jovem, que seria eminentemente filósofo e o velho Marx, que seria somente um economista. O fato é que não se tornou menos filósofo com o passar do tempo, mas aprofundou sua visão filosófica e a utilizou em todos os campos por ele explorados. Os textos do Marx maduro são centrados sobre a cientificidade da economia. Mas ao contrário da

(...) concepção burguesa, segundo a qual a economia é uma mera ciência particular, na qual os chamados fenômenos econômicos puros são isolados das interrelações complexivas do ser social como totalidade e, posteriormente, analisados nesse isolamento artificial, com o objetivo - eventual - de relacionar abstratamente o setor assim formado com outros setores isolados de modo igualmente artificial (o direito, a sociologia, etc). (ibid., p. 22).

A economia marxiana parte (e retorna) da (para a) totalidade do ser social. A centralidade dos fenômenos econômicos, em Marx, como já falamos, deve-se ao fato "(...) de que aqui deve ser buscada e encontrada a força motriz, decisiva, em última análise, do desenvolvimento social em seu conjunto" (ibid.).

102 Segundo Lukács: "É preciso sublinhar, em particular, a expressão ‘jamais de modo completo’, já que a orientação de fundo no aperfeiçoamento do ser social consiste precisamente em substituir determinações puras por formas ontológicas mistas, pertencentes à naturalidade e à socialidade (...), explicitando ulteriormente - a partir dessa base - as determinações puramente sociais. A tendência principal do processo que assim tem lugar é o constante crescimento, quantitativo e qualitativo, das componentes pura ou predominantemente sociais, aquilo que Marx costumava chamar de "recuo dos limites naturais". (...) [Em suma] a virada materialista na ontologia do ser social, provocada pela descoberta da prioridade ontológica da economia no seu âmbito, pressupõe uma ontologia materialista da natureza." (ibid., pg. 18-19).

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Em seguida Lukács passa a tratar a economia marxiana de forma ontológica, daí afirmar que é obra de ciência e não de filosofia. Mas a filosofia está sempre presente, (e conforme nos fala Lukács),

(...) de modo que toda verificação de um fato, toda apreensão de um nexo, não são simplesmente fruto de uma elaboração crítica na perspectiva de uma correção factual imediata; ao contrário, partem daqui para ir mais além, para investigar ininterruptamente todo o âmbito do factual na perspectiva do seu autêntico conteúdo de ser, de sua constituição ontológica. A ciência se desenvolve a partir da vida; e na vida, quer saibamos e queiramos ou não, somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico. A passagem à cientificidade pode tornar consciente e crítica essa inevitável tendência da vida, mas pode também atenuá-la ou mesmo fazê-la desaparecer. A economia marxiana está penetrada por um espírito científico que jamais renuncia a essa consciência e visão crítica em sentido ontológico; ao contrário, na verificação de todo fato, de toda conexão, emprega-as como metro crítico permanentemente operante. Falando em termos ultragerais, trata-se aqui, portanto, de uma cientificidade que não pode perder jamais a ligação com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana; ao contrário, o que faz é depurá-la e desenvolvê-la continuamente a nível crítico, elaborando conscientemente as determinações ontológicas que estão necessariamente na base de qualquer ciência (ibid., p. 24).

Adiante discutiremos em detalhes o método marxiano da economia política, agora trataremos da relação fenômeno (aparência) e essência, enquanto um problema ontológico. E discutiremos o papel do "agir interessado" no âmbito do ser social. E ao final desta breve exposição tentaremos apontar que Marx instaura, a partir dos seus escritos econômicos, uma nova forma de cientificidade em geral e de ontologia. Já no dia a dia, a relação entre fenômeno e essência é algo presente. Pois é freqüente que os fenômenos, as aparências ocultem a essência, ao invés de trazê-las à luz. O fato é que em determinadas situações históricas a ciência pode ir além dos fenômenos e esclarecer a essência do ser, isso é o que aconteceu no renascimento e no iluminismo. Mas em outras situações a ciência pode obscurecer a essência, pode borrar indicações ou pressentimentos surgidos no dia-a-dia. E é no campo do ser social, e devido ao agir interessado, que encontramos com maior freqüência e intensidade estas deformações (ibid., p.25). É óbvio que o "agir interessado" também está presente no estudo do ser da natureza (inorgânico e orgânico), presente no estudo dos problemas ligados a ele, principalmente devido às "(...) conseqüências no âmbito da visão de mundo; basta recordar as discussões suscitadas por Copérnico ou Darwin" (ibid.). Mas, como o agir interessado é algo ineliminável do ser social, a sua capacidade de deformar o caráter ontológico dos fatos no ser social pode se tornar um “momento dinâmico e ativo da totalidade existente em-si” (ibid., p. 26). Sobre a relação contraditória, de oposição e conexão, entre fenômeno e essência, Marx já falava que "(...) toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente (...)" (Marx, 1986b., 271). Essa afirmação tem validade ontológica geral, pois diz respeito tanto ao ser natural quanto ao ser social. Mas ao nivel do ser social, a relação entre fenômeno e essência apresenta características novas e próprias, devido ao locus ocupado aí pela práxis. O fato é que na relação fenômeno-essência,

(...) em todo processo (relativamente) acabado, o resultado faz desaparecer, a nível imediato o processo de sua própria gênese. Em inúmeros casos, a colocação científica nasce quando o pensamento abandona a idéia do acabamento imediato, aparentemente definido, do produto, e o torna visível apenas em sua processualidade, não perceptível a nível imediato, a nível fenomênico (ciências inteiras, como a

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geologia, nasceram de colocações desse tipo). No âmbito do ser social, porém, o processo genético é um processo teleológico. Disso resulta que seu produto assume a forma fenomênica de produto acabado e definido, fazendo desaparecer a própria gênese a nível imediato, tão-somente quando o resultado corresponde à finalidade; em outras palavras, é precisamente o seu inacabamento que impôe uma referência direta ao processo genético. (...) A especificidade da relação entre essência e fenômeno no ser social chega até o agir interessado, e quando esse como é habitual, se apóia sobre interesses de grupos sociais, é fácil que a ciência abandone seu papel de controle e torne-se, ao contrário, instrumento com o qual se encobre, se faz desaparecer a essência.(ibid., p. 26)

Para Lukács, Marx ao afirmar que "toda ciência seria supérflua(...)", está fazendo a crítica ontológica às falsas representações de economistas vulgares que tomavam a forma fenomênica e desprezavam as conexões reais, chegando assim à concepções absurdas do ponto de vista do ser.103 Ou seja, conforme Lukács ressalta, na análise marxiana do real está sempre presente a questão da totalidade, onde cada fenômeno singular só se mostra com toda sua riqueza a partir do metro da totalidade. Assim:

(...) Marx parte,(...), da totalidade do ser e busca apreendê-la em todas as suas intrincadas e múltiplas relações, no grau de máxima aproximação possível. Onde a totalidade não é um fato formal do pensamento, mas constitui a reprodução mental do realmente existente, as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica e sistemática; ao contrário, são na realidade "formas de ser, determinações da existência", elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas interrelações dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto intensivo. Diante do conhecimento adequado de tais complexos, a lógica perde seu papel filosófico de guia; torna-se, enquanto instrumento para captar a legalidade de entidades ideais puras e portanto homogêneas, uma ciência particular como qualquer outra. Mas, com isso, o papel da filosofia é superado apenas no duplo sentido hegeliano da palavra. Enquanto crítica ontológica de todos os tipos de ser, a filosofia continua sendo - mesmo sem a pretensão de dominar e submeter os fenômenos e suas conexões - o princípio diretivo dessa nova cientificidade. (ibid., p. 28-29).

Nesse sentido podemos entender porque o texto econômico mais importante de Marx (O Capital) têm por subtítulo "Crítica da Economia Política" e não "Economia", pois se por um lado refere-se à crítica às formulações burguesas sobre a esfera do econômico, por outro está implícito que se trata de uma "(...) ininterrupta crítica ontológica imanente de todo fato, de toda relação, de toda conexão submetida a leis." (ibid.)

103 Logo tal afirmação visa "(...) despertar a consciência científica no sentido de restaurar no pensamento a realidade autêntica, existente em-si. Esse tipo de apresentação é característico da estrutura interna das obras do Marx da maturidade. É uma estrutura de caráter completamente novo: uma cientificidade que, no processo de generalização, nunca abandona esse nível, mas que, apesar disso, em toda verificação de fatos singulares, em toda reprodução ideal de uma conexão concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e utiliza essa como metro para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontológica-filosófica da realidade em-si, que não se põe acima dos fenômenos considerados, coagulando-os em abstrações, mas se coloca ao contrário - crítica e autocriticamente -, no máximo nível de consciência, como o único objetivo de poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe é própria, que é específica precisamente dele. Acreditamos que, agindo assim, Marx criou uma nova forma tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia; uma forma destinada a superar no futuro a constituição profundamente problemática, apesar de toda a riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna." (ibid., p. 27)

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Feita a introdução destas questões gerais, que nos permitem entender a ontologia marxiana do ser social, é preciso esclarecer que esta concepção geral, aqui exposta, não foi (e não é) compreendida enquanto método, nem pelos seguidores de Marx, nem por seus adversários. Posto que ela era (e se encontra) totalmente distante das modas de época. Após o colapso da filosofia hegeliana "(...) e sobretudo a partir da marcha triunfal do neokantismo e do positivismo, os problemas ontológicos deixaram de ser compreendidos. Os neokantistas eliminam da filosofia a incognoscível coisa em-si, enquanto para o positivismo a percepção subjetiva do mundo coincide com a realidade." (ibid., p. 30). É neste contexto que a "opinião pública científica" considera a economia de Marx como mais uma ciência particular. Mas inferior à ciência burguesa, com seu método neutro e asséptico de abordar as coisas. Logo após a morte de Marx, a maioria dos seus seguidores capitulam a estas tendências. E a ortodoxia marxista passa a ser feita "(...) de afirmações e conseqüências singulares extraídas de Marx, freqüentemente mal-compreendidas e sempre coaguladas em slogans extremistas. É assim, por exemplo, que foi desenvolvida - com ajuda de Kautsky - a suposta lei da pauperização absoluta." (ibid.). Lukács lembra que frente a estas tendências, Engels tenta chamar, os que se reivindicam seguidores de Marx, de volta para a verdadeira dialética materialista. Isso via cartas, conselhos, críticas, apelava para que se evitasse a vulgarização coagulante e defendia uma maior flexibilidade. Não é por acaso que tais observações de Engels só foram tornadas públicas por Bernstein, que assim tentava dar respaldo às suas posições revisionistas (ibid.). Estes fatos mostram

(...) que nenhuma das duas orientações em disputa havia compreendido a essência metodológica da doutrina de Marx. Inclusive teóricos que se revelaram marxistas em muitas questões singulares, como Rosa Luxembug ou Franz Mehring, possuíam escassa sensibilidade para as tendências filosóficas essênciais presentes na obra de Marx. Enquanto Bernstein, Max Adler e muitos outros supõem encontrar na filosofia de Kant uma integração ao marxismo, e enquanto Friedrich Adler (entre outros) busca tal integração em Mach, Mehring - que em política é um radical - nega que o marxismo tenha alguma coisa a ver com filosofia (ibid., p. 30-31)

Para Lukács, apenas com Lênin teremos a retomada do verdadeiro Marx, onde não está excluído ou em segundo plano, o pensamento marxiano enquanto ontologia. É nos seus estudos sobre a dialética hegeliana, concretizados nos seus "Cadernos Filosóficos", que Lênin chega à

(...) recusa de todo marxismo tal como se apresentara até então. [Diz ele] "Não se pode compreender plenamente O CAPITAL de Marx e, em particular, seu primeiro capítulo se não se estuda atentamente e se não se compreende TODA a lógica de Hegel. Por conseguinte, após meio século, nenhum marxista compreendeu Marx! (ibid., p.31).

Lukács finaliza com a observação de que se é correto que Lênin tem esse grande mérito, não é menos correto que há objeções possíveis e necessárias de serem feitas em alguns aspectos da forma como Lênin "supera a dialética hegeliana e leva adiante o marxismo" (ibid., p. 33). Por fim cabe reforçar que Lênin foi o único marxista, após a morte de Engels, que fez a tentativa "(...) de restaurar o marxismo em sua totalidade, de aplicá-lo aos problemas do presente e, portanto, de desenvolvê-lo. As circunstâncias históricas desfavoráveis impediram que a obra teórica e metodológica de Lênin agisse em extensão e profundidade" (ibid.).

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Concluímos este primeiro item aprovando e repetindo Lukács:

(...) Mas se o marxismo quer voltar a ser uma força viva do desenvolvimento filosófico, deve em todas as questões retornar ao próprio Marx. Em tal operação, muitas contribuições podem vir da obra de Engels e de Lênin; mas em nossas considerações no modo de tratamento que pretendemos adotar, podemos tranqüilamente deixar de lado tanto o período da Segunda Internacional quanto o período de Stálin, embora a mais áspera crítica a ambos seja da maior importância, se se quer restaurar o prestígio da doutrina marxiana (ibid., p. 34)

3.2. O Método da Economia Política Marx não nos deixou um trabalho aonde sistematize longa e detalhadamente a essência e o método de sua doutrina. Somente na Introdução [à Crítica da Economia Política] é que tal discussão é esboçada. Essa Introdução foi publicada primeiramente por Kautsky em 1903 na Revista Die Neue Zeit. "O título ‘Introdução à Economia Política’ não é do seu próprio autor, mas refere-se ao nome com que foi publicada pela primeira vez e que se tornou tradicional. O texto não foi preparado para a discussão e Marx se refere a ele como um esboço (...). O caráter inacabado é mais visível na parte final, onde Marx alinha os temas que pretendia desenvolver futuramente." (Marx, 1986c., p. 3). Mas conforme ressalta Lukács:"(...), esse esboço resume os problemas mais essênciais da ontologia do ser social e os métodos resultantes para o conhecimento econômico, enquanto campo central para esse nível de existência da matéria" (ibid., p. 35). O fato é que esse escrito não foi capaz de exercer grande influência sobre a concepção corrente do método marxiano, e isso porque seus epígonos em sua maioria (conforme apontamos anteriormente) substituíram a crítica da economia política, pela concepção da economia tida pela burguesia. A princípio é preciso frisar que Marx em termos de método opera a separação de dois complexos. Ele põe de um lado o ser social enquanto objetividade, independente de ser conhecido ou não, e por outro lado o método através do qual o pensamento, age para entender da forma mais adequada, essa objetividade. Isso reforça a importância da prioridade ontológica sobre a mera gnosiologia. Assim "(...) a prioridade do ontológico com relação ao mero conhecimento, portanto, não se refere ao ser em geral; toda objetividade é, em sua estrutura e dinâmica concreta, em seu ser-precisamente-assim, da maior importância do ponto de vista ontológico." (ibid., p. 36) A objetividade é inerente a todo ente, ela é uma objetividade primário-ontológica, por isso podemos afirmar que "(...) o ente originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade." (ibid.). No âmbito do ser social a categoria totalidade enquanto colocação ontológica é tomada de forma mais imediata que no âmbito do ser natural. "Pode-se chegar à totalidade na natureza por muitos caminhos, mas apenas por meio do raciocínio, ainda que rigoroso; no campo social, ao contrário, a totalidade é sempre dada já de modo imediato. (Não entra em contradição com isso o fato de que Marx considere a economia mundial e, com ela, a história mundial como resultado do processo histórico)" (ibid.). A mera afirmação de que toda sociedade é "uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade", não revela ainda a essência mesma, a forma como se constitui essa objetividade, nem as formas adequadas para o seu conhecimento. Marx responderá essas

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questões na "Introdução ...". No seu 3o. ítem - "O Método da Economia Política" - ele principia afirmando que o correto é começar a análise de um país pelo concreto dado, por exemplo a sua população, que é a base e o sujeito da produção. Mas a população enquanto concreto dado é algo abstrato, que carece de maiores determinações. Marx ressalta que não basta tomar a realidade imediatamente dada, pois partir dela significa chegarmos a meras representações. Como contrapartida ele defende a idéia de utilizar abstrações isoladoras de aspectos da totalidade imediatamente dada, do concreto caótico. Daí Marx proceder a abstrações sucessivas, mas tomando a essência da totalidade econômica como guia para o caminho do seu entendimento (vide Lukács, op. cit., p. 37). Após isolarmos vários aspectos, elementos da realidade, é preciso fazer o caminho de volta, a síntese. Dessa forma com o processo de síntese voltamos ao concreto, mas não o concreto dado, idealizado, caótico, mas agora um concreto explicado, um concreto pensado. De tal forma que voltamos à população, mas agora “com uma rica totalidade de determinações e relações diversas” (Marx, 1986c:14). Assim o ponto de partida da pesquisa é também o ponto de chegada, e Marx afirma que “o concreto é a síntese de muitas determinações, isto é unidade do diverso” (ibid.). O procedimento das abstrações sucessivas foi o seguido pela economia política inglesa, mas ela não procedia a volta, a síntese, tomava categorias estanques e tentava explicar a totalidade do ser social como a simples soma das partes. Neste texto Marx explicita uma dupla ruptura com a visão idealista de mundo. Primeiro, ao desnudar que o segundo caminho, que vai das abstrações obtidas no primeiro caminho, até a totalidade concreta, ao concreto pensado, é o caminho do pensamento e não da realidade. A realidade

(...) é feita de interações reais e concretas entre esses ‘elementos’ [obtidos pela abstração], dentro do contexto da atuação ativa ou passiva da totalidade complexa. Disso resulta que uma mudança da totalidade (inclusive das totalidades parciais que a formam) só é possível trazendo à tona a gênese do real. Fazer uma tal modificação derivar de deduções categoriais realizadas pelo pensamento pode facilmente - como mostra o exemplo de Hegel - levar a concepções especulativas infundadas (ibid., p. 38).

Hegel ao tratar do segundo caminho, o da síntese operada pelo pensamento, caiu na ilusão de entender o real “como resultado do pensamento que se sintetiza a si mesmo” (Marx, op. cit., p. 14). Mas o movimento de síntese é apenas o movimento que o pensamento faz para reproduzir o concreto dado como concreto pensado, e portanto explicado. É bom reforçar que o entendimento de Lukács sobre a conexão racional dos "elementos", não o leva a dizer que sejam indiferentes para o conhecimento do real. Pelo contrário, ele afirma que:

Do ponto de vista ontológico, também eles são complexos processuais do ser, porém de constituição mais simples e, portanto, mais fácil de apreender conceptualmente, em comparação com a dos complexos totais dos quais são "elementos". Portanto, é da máxima importância iluminar, com a maior exatidão possível, em parte com observações empíricas, em parte com experimentos ideais abstrativos, o seu modo de funcionamento regulado por determinadas leis; ou seja, compreender bem como eles são em si, como entram em ação - em sua pureza - as forças internas dos mesmos, quais as inter-relações que surgem entre eles e outros "elementos" quando são afastadas as interferências externas. (ibid., p. 38-39).

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Daí que o segundo caminho, a viagem de retorno, que Marx aponta como o método cientificamente exato,

(...) pressupõe uma cooperação permanente entre o procedimento histórico (genético) e o procedimento abstrativo-sistematizante (que evidência as leis e as tendências). A inter-relação orgânica, e por isso fecunda, dessas duas vias do conhecimento, todavia, só é possível sobre a base de uma crítica ontológica permanente de todo passo à frente; e, com efeito, ambos os métodos têm como finalidade compreender, de ângulos diversos, os mesmos complexos da realidade. A elaboração puramente ideal, por conseguinte, pode facilmente separar o que forma um todo no plano do ser, e atribuir às suas partes uma falsa autonomia; e isso pode ocorrer tanto em termos empíricos-historicistas quanto em termos abstrativo-teórico. Tão-só uma ininterrupta e vigilante crítica ontológica de tudo o que é reconhecido como fato ou conexão, como processo ou lei, é que pode reconstituir no pensamento, quando chegamos a esse ponto, a verdadeira inteligibilidade dos fenômenos. A economia política burguesa sempre sofreu do dualismo produzido pela rígida separação desses dois procedimentos. Em um pólo, surgiu uma história econômica puramente empírica, na qual desaparece a verdadeira conexão histórica do processo global; no outro pólo, desde a teoria da utilidade marginal até as pesquisas manipulatórias singulares de hoje, surgiu uma ciência que - de modo pseudoteórico - faz desaparecer as conexões autênticas, decisivas, mesmo quando acidentalmente, em casos singulares, é capaz de apreender relações reais ou seus resultados (ibid., p. 39).

A segunda ruptura operada por Marx com o idealismo liga-se ao fato de ser equivocado reduzir a contradição entre "elementos" e a totalidade à simples antítese entre o que em-si é simples e o que em-si é composto.

As categorias gerais do todo e de suas partes sofre aqui uma ulterior complexificação, sem porém serem suprimidas enquanto relação fundamental: todo "elemento", toda parte, é também aqui um todo; o "elemento" é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto. Essa complexidade, porém, não elimina o caráter de "elemento": as autênticas categorias econômicas são, precisamente em sua complexidade e em sua processualidade, cada uma a seu modo e cada uma em seu posto, algo de efetivamente "último", algo que pode certamente ser ulteriormente analisável, mas não ulteriormente decomposto na realidade (ibid., p. 39-40).

As relações entre os "elementos" e a totalidade são de coordenação e subordinação. Subordinação não no sentido hierárquico dos sistemas idealistas, mas no sentido de prioridade ontológica. E a prioridade ontológica não é um juízo de valor moral, gnosiológico, juízos esses próprios de toda hierarquia sistemática do materialismo vulgar ou idealista. Dizer que dada categoria tem prioridade ontológica em face de outra implica dizer que a primeira pode existir sem a segunda, mas a segunda existir sem a primeira é impossível da perspectiva ontológica (ibid., p. 40). Isso se assemelha à tese do materialismo que diz que o ser é anterior à consciência. O que significa, do ponto de vista ontológico, que pode existir ser sem consciência, mas a consciência deve ter por base algo que é."Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser e consciência. Ao contrário, toda investigação ontológica concreta sobre a relação entre ambos mostra que a consciência só se torna possível num grau relativamente elevado do desenvolvimento da matéria." (ibid., p. 40-41). Marx nos apresenta um exemplo claro de uma relação de prioridade ontológica ao dizer no “Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política” que:

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(...) na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua própria vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida sócio, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas é o seu ser social que determina sua consciência (...)" (Marx, 1986c, p. 25).

No trecho citado fica claro que Marx entende que as formas e os conteúdos de consciência não são produto direto da esfera do econômico, mas da totalidade do ser social. Assim entende-se em termos mais genéricos a determinação da consciência pelo ser social. (Lukács, op.cit., p. 41). Portanto, só uma apreensão mecânica, mutiladora de Marx, pode conceber que há uma relação direta e causal entre economia e ideologia. Tal postura é mais falsa ainda quando vemos que Marx fala que:"(...) [à uma superestrutura política e jurídica] correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção material condiciona o processo em geral de vida sócio, político e espiritual" (ibid.). Voltando à questão do método, cabe reafirmar que somente por abstração é que a investigação teórica sobre determinadas relações e forças de caráter econômico pode apontar como elas atuariam em condições "ideais", condições aonde os fatores e circunstância que contradizem a manifestação dessas forças na realidade econômica não estão atuando. No âmbito do ser social, ao contrário do ser natural, é impossível, do ponto de vista ontológico, isolar processos singulares por meio de experiências concretas, efetivas. O procedimento das abstrações foi o adotado por David Ricardo, precursor de Marx. Mas em relação a Ricardo, Marx se distingue

(...) sobretudo por seu senso de realidade - ampliado pelo conhecimento filosófico - tanto na compreensão da totalidade dinâmica quanto na justa avaliação do quê e do como de cada categoria singular. Mas o seu senso de realidade vai além dos limites da pura economia; por mais audaciosas que sejam as abstrações que ele desenvolve nesse campo, com coerência lógica, permanece sempre presente e ativa - nos problemas teóricos abstratos - a vivificante interação entre economia propriamente dita e realidade extra-econômica no quadro da totalidade do ser social, o que esclarece questões teóricas que, de outro modo, permaneceriam insolúveis.(Lukács, op. cit., p. 43).

Essa postura de Marx, buscando a interação entre a economia e a realidade extra-econômica, é o que Lukács chama de "permanente crítica e auto-crítica ontológica". Daí a abstração, executada no processo de entendimento do ser social, ter um caráter novo e peculiar do ponto de vista epistemológico. A abstração nunca é parcial, ou seja, não se isola um único "elemento", mas

(...) todo o setor da economia que se apresenta numa projeção abstrata, projeção na qual - dada a provisória exclusão ideal de determinadas conexões categoriais mais amplas - pode se dar a explicitação plena e sem interferências das categorias que são assim postas no centro, as quais exibem sob forma pura as sua legalidades imanentes. Todavia, por outro lado, a abstração do experimento ideal permanece em constante contato com a totalidade do ser social, inclusive com as relações, tendências, etc, que não entram na esfera da economia. Esse método dialético - peculiar, paradoxal e raramente compreendido - baseia-se na já referida convicção de Marx, segundo a qual - no ser social - o

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econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro, estão numa ineliminável relação recíproca, da qual porém não deriva, como mostramos, nem um desenvolvimento histórico, privado de leis e irreptível, nem uma dominação mecânica "imposta por lei" do econômico abstrato e puro. Deriva, ao contrário, aquela orgânica unidade do ser social, na qual cabe às leis rígidas da economia precisamente e apenas a função de momento predominante. (ibid., p. 43-44)

Lukács frisa a diferença entre o método marxiano e as visões de mundo irracionalista e mecanicista. No método marxiano, o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro, estão numa ineliminável relação recíproca, e às leis econômicas cabe apenas a função de momento predominante 104. A estrutura de "O Capital" só se torna compreensível quando se percebe essas interações entre o econômico e o extra-econômico. Conforme Lukács, na estrutura de "O Capital"

(...) são colocadas experimentalmente conexões legais puras, homogêneas em sua abstratividade [esfera do econômico], mas também a ação exercida sobre elas (que por vezes leva até sua superação) por componentes mais amplos, mais próximos da realidade [esfera do extra-econômico], inseridos subseqüentemente, para se chegar finalmente à totalidade concreta do ser social. (ibid., p. 45)

Mas para chegar à totalidade concreta do ser social deve-se iniciar a investigação com "elementos" de importância central. E essa importância central refere-se a uma determinada categoria no plano ontológico - a categoria de valor. Por isso Marx inicia "O Capital" com a categoria central e inicial do valor. Analisando o valor tal como se apresenta a sua gênese:

(...) por um lado, essa gênese nos revela a história de toda a realidade econômica num resumo generalíssimo, em abstrato, reduzida a um só momento decisivo; por outro, a escolha mostra imediata fecundidade, já que essa categoria - juntamente com as relações e conexões que derivam necessariamente da sua existência - ilumina plenamente o que de mais importante existe na estrutura do ser social, ou seja, o caráter social da produção. A gênese do valor descrita por Marx esclarece, de imediato, o duplo caráter do seu método: essa gênese não é nem uma dedução lógica do conceito de valor, nem uma descrição indutiva das fases históricas singulares do desenvolvimento que o leva a adquirir a forma social pura; ao contrário, é uma síntese peculiar de novo tipo, que associa de modo teórico-orgânico a ontologia histórica do ser social com a descoberta teórica das suas leis concretas e reais. (ibid., p. 46)

Mas, conforme ressalta o próprio Lukács, é incorreto afirmar que "(...) existe um paralelismo absoluto, sem exceções, entre desenvolvimento histórico (ontológico) e desenvolvimento teórico, entre sucessão e derivação das categorias econômicas em geral. (...) Tão-somente porque no valor,

104 Um exemplo importante da validade da idéia de que o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro, da interrelação entre ambos no âmbito do ser social, nos é dado pelo próprio Marx, ao desvendar a peculiaridade da mercadoria força-de-trabalho, que durante sua utilização real cria valor. E dessa característica decorre "(...) a presença contínua de momentos extra-econômicos na realidade da lei do valor, inclusive na compra-e-venda normal dessa mercadoria" (Lukács, 1979b, p. 44). Vide o fato de que a determinação do valor da força de trabalho tem um componente extra-econômico, o dito elemento histórico-moral, a luta pela regulamentação da jornada de trabalho. Outro exemplo dado por Marx é a acumulação primitiva, que são atos de violência extra-econômicos, que permitiram a criação de condições históricas que tornaram a força-de-trabalho a mercadoria específica que se encontra na base concreta (e teórica) da economia capitalista.

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enquanto categoria central da produção social, confluem as determinações mais essenciais do processo global, tão somente por isso é que a exposição abreviada, reduzida, dos fatos decisivos, das etapas ontológicas da gênese [do valor], possui ao mesmo tempo o significado de fundamento teórico também das etapas econômicas concretas." (ibid., p. 47) A categoria valor é central no âmbito do ser social, tal afirmativa não é um axioma apriorístico, mas um fato ontológico. Mas o próprio reconhecimento desta faticidade ontológica nos leva a perceber que a categoria valor traz em si as principais tendências do ser social. Acompanhando Lukács, procuraremos indicar algumas destas tendências mais importantes. No valor aparece a base fundamental do ser social que é o trabalho.

A ligação deste [o trabalho] com as funções sociais do valor revela os princípios estruturadores do ser social, que derivam do ser natural do homem e, ao mesmo tempo, do seu intercâmbio orgânico com a natureza, um processo no qual cada momento - a conexão ontológica ineliminável entre a insuperabilidade última dessa base material e sua constante e crescente superação (tanto extensiva quanto intensiva), ou seja, sua transformação no sentido da sociabilidade pura - revela tratar-se de um processo que culmina em categorias que, como é o caso do próprio valor, já se separam inteiramente da materialidade natural.. (...) (ibid., p. 47-48).

Marx ao tratar da questão do valor traz à luz um aspecto inovador que é o modo de tratar a abstração. Diz Lukács que:

A metamorfose do trabalho, em ligação com a relação cada vez mais explicitada entre valor-de-uso e valor-de-troca, transforma o trabalho concreto sobre um objeto determinado em trabalho abstrato que cria valor, o qual culmina na realidade do trabalho socialmente necessário. Examinando-se a questão de um ângulo alheio a toda metafísica idealista, é impossível não ver como esse processo de abstração é um processo real no âmbito da realidade social. Já indicamos, em outro contexto, que o caráter médio do trabalho surge de modo espontâneo, objetivo, desde os graus mais primitivos de sua socialidade: que esse caráter não é uma mera representação ideal da constituição ontológica do seu objeto, mas significa o surgimento de uma nova categoria ontológica do próprio trabalho, no curso de sua crescente socialização, categoria que só bem mais tarde ganha representação na consciência. Também o trabalho socialmente necessário (e ipso facto abstrato) é uma realidade, um momento da ontologia do ser social, uma abstração real de objetos reais, que se dá de modo inteiramente independente da circunstância de que seja ou não realizada também pela consciência. No século XIX, milhões de artesãos autonômos experimentaram os efeitos dessa abstração do trabalho socialmente necessário, quando se arruinavam, isto é, quando experimentavam na prática as suas conseqüências concretas, sem terem a mínima idéia de encontrar-se diante de uma abstração realizada pelo processo social. Essa abstração tem a mesma dureza ontológica da faticidade, digamos, de um automóvel que atropela uma pessoa (ibid., p. 48-49).105

105 Lukács prossegue este parágrafo argumentando que: “Por conseguinte, uma ontologia do ser social deve sempre levar em conta dois pontos de vista: em primeiro lugar, que ambos os pólos - tanto os objetos que imediatamente parecem pertencer apenas ao mundo da natureza (árvores frutíferas, animais domesticados, etc.) mas que são, em última instância, produtos do trabalho social dos homens, quanto as categorias sociais (sobretudo o próprio valor), das quais já desapareceu toda materialidade natural - devem permanecer, na dialética do valor, indissoluvelmente ligados entre si. Precisamente a inseparabilidade (que se expressa como contradição do valor-de-uso e do valor-de-troca) revela em sua ligação - que se apresenta como antitética mas que é também indissolúvel - essa propriedade do ser social. (...)

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Aqui Lukács ressalta que a abstração procedida por Marx não é algo apriorístico, "produto de uma atividade autônoma da consciência", mas "é um processo real no âmbito da realidade social", "uma realidade, um momento da ontologia do ser social uma abstração real de objetos reais, que se dá de modo inteiramente independente da circunstância de que seja ou não realizada também pela consciência” (ibid., p. 49). Lukács prossegue e aborda "as relações e as conexões" a partir do plano ontológico. Observa que Marx

(...) não se limita a indicar como as relações e as conexões são partes integrantes ontológicas do ser social, mas demonstra também que a inelutabilidade de experimentá-los como reais, de enfrentar seu caráter factual na vida prática, termina necessariamente e com freqüência por transformá-los em coisalidades no nível do pensamento. (...) o modo primitivo de manifestação da intentio recta ontológica pode levar - e freqüentemente leva - a consciência dos homens à ‘reificação’ de todo ente; e que essa depois se prolonga e se coagula também na ciência e na filosofia. Ora no célebre V capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, Marx expõe amplamente esse processo de ‘reificação’ das relações e das conexões sociais; e demonstra que ele não se limita às categorias econômicas em sentido estrito, mas constitui a base de uma deformação ontológica que atinge os objetivos espirituais mais refinados e importantes da vida humana (que vai se tornando cada vez mais social) (ibid., p. 49-50).

O conjunto de contradições inerentes e intrínsecas ao valor leva a um desdobramento e explicitação das categorias econômicas decisivas. (ibid., p. 50). E, em particular na explicitação do dinheiro a partir da forma geral do valor, o dinheiro surge como conseqüência lógica. Mas é preciso ter cuidados com o entendimento dessa "logicidade", pois não é correto, conforme ressalta Lukács, compreendê-la como restrita ao pensamento.

Ao contrário, deve ser claro que se trata, em primeiro lugar, de uma necessidade do ser e, portanto, que a "dedução" de Marx só se apresenta como dedução lógica por causa da forma abstrativa, abreviada e reduzida aos aspectos mais gerais com a qual é exposta. Na realidade, essa análise investiga o conteúdo teórico de conexões de fato (...) (ibid.).

Lukács lembra que a forma de exposição do real ao espelhar idealmente a vida da matéria pode sugerir que seja uma construção a priori (que é o equívoco no qual incorre Hegel). Mas, o próprio Marx ao reforçar a separação entre o método de investigação e o método de exposição 106 acaba por sublinhar

Em segundo lugar, essa dialética é incompreensível para quem não é capaz de colocar-se acima daquela visão primitiva da realidade, segundo a qual só se reconhece como materialidade, aliás como objetividade em-si, a coisalidade, enquanto se atribui todas as demais formas de objetividade (relações, conexões, etc), assim como todos os reflexos da realidade que se apresentam imediatamente como produtos do pensamento (abstrações, etc) a uma suposta atividade autônoma da consciência” (ibid.). 106 Marx no "Posfácio da Segunda Edição de "O Capital", faz a diferenciação clara entre o método de pesquisa e o método de exposição, vejamos: "É sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento do real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construção a priori.

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(...) a prioridade do ontológico: e de um princípio ontológico que se torna o fundamento de uma metodologia rigorosamente científica. [Assim] Cabe à filosofia ‘tão-somente’ operar um controle e uma crítica contínuos, a partir de um ponto de vista ontológico, bem como - aqui e ali - fazer generalizações no sentido de uma ampliação e um aprofundamento. Essa função da generalização filosófica não diminui a exatidão científica das análises teórico-econômicas singulares, mas "simplesmente" as insere nas concatenações que são indispensáveis para compreender adequadamente o ser social em sua totalidade. (ibid., p. 50-51)107

Lukács na continuidade de sua argumentação sobre a prioridade do ontológico enquanto fundamento de uma metodologia científica faz algumas observações que jogam luz sobre as questões ligadas ao papel do indivíduo, onde seus atos práticos individuais realizados de modo consciente, "ultrapassam as capacidades de compreensão teórica e as possibilidades de decisão prática" desses indivíduos. Ou sejam iniciam a discussão sobre leis de tendência, tomada de decisão dos indivíduos e o acaso. E tais observações de Lukács surgem dentro da discussão de que o marxismo só pode ser corretamente apreendido enquanto ontologia. Continuemos com Lukács na discussão sobre a relação entre teoria e práxis social. Para ele Marx trouxe

(...) à tona a prioridade da práxis, sua função de guia e de controle em relação à consciência. Marx, porém, não se contentou em esclarecer essa conexão fundamental de modo geral, mas mostrou o método para determinar o caminho através do qual essa relação adequada entre teoria e práxis emerge no ser social. Disso resulta que toda práxis, mesmo a mais imediata e a mais cotidiana, contém em si essa referência ao ato de julgar, à consciência, etc, visto que é sempre um ato teleológico, no qual a posição de finalidade precede, objetiva e cronologicamente, a realização. Isso não quer dizer, porém, que seja sempre possível saber quais serão as conseqüências sociais de cada ação singular, sobretudo quando ela é causa parcial de uma modificação do ser social em sua totalidade (ou totalidade parcial). O agir social, o agir econômico dos homens abre livre curso para forças, tendências, objetividades, estruturas, etc, que nascem decerto exclusivamente da práxis humana, mas cujo caráter resta no todo ou

Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do hegeliano mas é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de idéia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem."(Marx, 1986a., p. 20) 107 Lukács prossegue argumentando: “De fato, a exposição científica rigorosa da gênese ontológica do valor, do dinheiro, etc, poderia - mas apenas do ponto de vista da ciência especializada - dar lugar à falsa aparência de uma racionalidade pura do decurso histórico real, com o que resultaria falsificada sua essência ontológica. Uma racionalidade legal pura desse tipo é certamente a essência dos processos econômicos singulares; e não apenas desse, mas também - ainda que aqui em forma de tendência - do processo econômico como um todo. Todavia, não se deve jamais esquecer que essas legalidades são decerto síntese que a própria realidade elabora a partir dos atos práticos econômicos singulares, realizados de modo consciente enquanto tais, mas cujos resultados últimos - que são os fixados pela teoria - ultrapassam de muito as capacidades de compreensão teórica e as possibilidades de decisão prática dos indivíduos que realizam efetivamente esses atos práticos. Há portanto, uma lei segundo a qual o resultado dos atos econômicos singulares praticamente (e com consciência prática) pelos homens assumem, para os seus próprios agentes, a forma fenomênica de um "destino" transcendente. É o que ocorre no referido caso da "reificação"; e é o que ocorre também, com particular evidência no caso do dinheiro. Marx "deduziu" a gênese do dinheiro da dialética do valor em termos de racionalidade e legalidade; poder-se-ia mesmo dizer, em termos de lógica rigorosa. O dinheiro, surgido como produto necessário da atividade humana, irrompe porém na sociedade como fato incompreendido, inimigo, que destrói todos os vínculos consagrados e conserva por milênios esse poder ameaçadoramente circundado de mistério. Nos ‘Manuscritos Econômicos-Filosóficos’, Marx cita alguns trechos artísticos de particular impacto, nos quais esse sentido vital encontrou expressão” (ibid.).

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em grande parte incompreensível para quem o produz. Referindo-se a um fato tão elementar e cotidiano, como o nascimento da troca simples entre produtos do trabalho segundo a relação de valor, Marx diz: os homens "não sabem que o fazem, mas o fazem". As coisas ocorrem assim não apenas no nível da práxis imediata, mas também nos casos em que a teoria se esforça para apreender a essência dessa práxis. Falando das tentativas de Franklin de descobrir o valor-trabalho, observa Marx: "Porém o diz, mesmo sem sabê-lo". Essas observações têm uma importância fundamental para a economia e sua história, para a teoria econômica e sua história, mas - elevando-se gradualmente da ciência até a filosofia - vão além do âmbito da economia e abrangem todos os processos semelhantes no terreno do ser social e da consciência. A gênese ontológica revela novamente, nesse contexto, o seu poder universal: uma vez estabelecida essa relação entre práxis e consciência nos fatos elementares da vida cotidiana, os fenômenos da reificação, do fetichismo, da alienação - enquanto cópias feitas pelo homem de uma realidade incompreendida - apresentam-se não mais como expressões arcanas de forças desconhecidas e inconscientes no interior e no exterior do homem, mas antes como mediações, por vezes bastantes amplas, que surgem na própria práxis elementar (...)". (ibid., p. 52-53)

Essa citação reforça a concepção de que são os atos individuais que põem as legalidades, as causalidades, pois os homens fazem mesmo sem sabê-lo. A decisão individual, singular, que é tomada dentre várias alternativas, implicará em conseqüências sociais, implicará em modificações da totalidade do ser social ou de uma totalidade parcial. As tendências, objetividades, etc, do ser social, nascem da práxis humana, mas seu caráter é, no todo ou em grande parte, incompreensível para quem produz. Pois, como já vimos, essência e aparência não coincidem diretamente. Uma questão que se têm demonstrado polêmica em torno de Marx, é a da categoria progresso, pois uma das críticas em moda é imputar a Marx a pecha de evolucionista. E a abordagem ontológica proposta por Lukács, esclarece e responde corretamente a esta questão. Diz ele que Marx ao estudar a explicitação de uma categoria ou complexo de fatos qualquer, no sentido da socialidade pura, põe as bases de uma teoria ontológica do desenvolvimento do ser social (ibid., p. 53). A concepção de progresso de Marx, explicitada por Lukács, é a que aponta-o como o desenvolvimento de um grau ontologicamente inferior para um grau ontologicamente superior, sendo que tal constatação é desprovida de juízo de valor subjetivo, pois trata-se do que é. E esse progresso implica no recuo das barreiras naturais, no avanço das formas de intermediação, das formas de socialidade. As categorias e relações do ser social só “adquirem o caráter de socialidade predominante” (ibid., p. 53) após terem passado por muitas etapas, e o caráter é predominante pois o ser social nunca rompe por completo a sua base natural. Assim como o ser orgânico tem na natureza inorgânica sua pré-condição, o ser social tem no ser orgânico a sua. Por isso Lukács afirma que: “O ser social, todavia, tem um desenvolvimento no qual essas categorias naturais, mesmo sem jamais desaparecerem recuam de modo cada vez mais nítido, deixando o lugar de destaque para categorias que não têm na natureza sequer um correspondente analógico” (ibid.).108 Ele prossegue argumentando que o recuo

108 Vejamos na íntegra a argumentação do nosso autor: "(...) o estudo ontológico do ser social mostra que só de modo bastante gradual, passando por muitíssimas etapas, é que suas categorias e relações adquirem o caráter de socialidade predominante. Repetimos: predominante, já que o ser social - por sua própria essência - jamais pode se separar completamente de seus fundamentos naturais (o homem resta ineliminávelmente um ser biológico), do mesmo modo como a natureza orgânica tem de incorporar, em forma dialética superada, a natureza inorgânica. O ser social, todavia, tem um desenvolvimento no qual essas categorias naturais, mesmo sem jamais desaparecerem recuam de modo cada vez mais nítido, deixando o lugar de destaque para categorias que não têm na natureza sequer um correspondente analógico. É o que ocorre no caso do intercâmbio das mercadorias, onde determinadas formas próximas à natureza (o gado como meio geral de trocas) são substituídas pelo dinheiro, que é puramente social; do mesmo modo, na mais-valia absoluta existem ainda determinados componentes ‘naturais’, enquanto

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das barreiras naturais é algo inerente ao ser social, ao seu desenvolvimento, e aponta na seqüência, como exemplos, o caso da evolução da troca de mercadorias que inicialmente vale-se de “coisas” próximas à natureza como o sal, o gado, e que são “substituídas pelo dinheiro que é algo puramente social” (ibid.). Fala ainda como exemplos, na diferença entre a mais-valia absoluta e a relativa. Na primeira há componente “naturais”, na segunda devido ao aumento da produtividade que reduz o valor da força de trabalho, pode aumentar o salário e a mais-valia. Aponta, ainda, que a própria categoria de valor tem um “caráter social puro” (ibid., p. 54), mas está inseparavelmente ligada à sua base natural (valor de uso) mas de forma transformada. E isso é indício de um desenvolvimento, de um progresso, que no plano ontológico pode ser visto enquanto capacidade “(...) dessa nova forma do ser social realizar-se cada vez mais a si mesma, ou seja explicitar-se em categorias cada vez mais independentes e conservar as formas naturais apenas de um modo que as supera cada vez mais” (ibid.). Essa constatação ontológica de progresso, não traz uma avaliação de caráter subjetivo, trata do que é. Portanto, Lukács ao passar a tratar a categoria marxiana de progresso na perspectiva ontológica, onde não está contido nenhum juízo de valor, interdita afirmações de que uma perspectiva evolucionista estaria presente no pensamento de Marx. Marx, na verdade não se limitava a isso, como bem fala Lukács, pois seria cair no "objetivismo econômico", ele tem a capacidade de não enveredar pelo rumo subjetivo-axiológico, mas aprofundar e dar continuidade à sua abordagem objetivo-ontológica. E isso fica claro

(...) na medida em que apresenta as categorias econômicas em inter-relação dinâmica com o complexo de objetos e forças do ser social, onde essas interrelações encontram naturalmente seu centro no ponto axial desse ser social, ou seja, no homem. Mas também essa colocação central do homem na totalidade do ser social é objetivo-ontológica, nada tendo a ver com tomadas de posição subjetivo-axiológicas em face dos problemas decisivos que emergem em tais processos. Na base dessa perspectiva ontológica, está a profunda concepção marxiana do fenômeno e da essência na processualidade do ser social como um todo. (...) a referência [feita por Marx] remissiva do desenvolvimento das forças produtivas ao desenvolvimento do gênero humano jamais abandona o critério da objetividade ontológica. Marx simplesmente integra o quadro do desenvolvimento das forças produtivas, que na economia é apresentado de modo apenas factual, no quadro igualmente objetivo (em sua substância) dos efeitos

na mais-valia relativa - obtida pelo aumento da produtividade que diminui o valor da força de trabalho - surge já uma forma de exploração na qual a mais-valia (e portanto, a própria exploração) podem crescer mesmo se o salário aumenta; assim acontece na revolução industrial, onde a introdução das máquinas faz com que o homem e sua capacidade de trabalho não sejam mais os fatores determinantes do trabalho, que o próprio trabalho humano seja desantropomorfizado,etc. Todas as linhas de desenvolvimento desse tipo possuem um caráter ontológico, ou seja, mostram em que direção, com que alterações de objetividades, de relações, etc, as categorias decisivas da economia vão superando cada vez mais sua originária ligação predominante com a natureza, assumindo de modo cada vez mais nítido um caráter predominantemente social. Naturalmente, nesse contexto, surgem também categorias de caráter social puro. É já o caso do valor; mas, por causa de sua inseparabilidade do valor de uso, o valor se liga de certo modo a sua base natural, ainda que socialmente transformada. Não há dúvida de que temos aqui um processo de desenvolvimento; e também se pode dizer que, no plano puramente ontológico é um progresso o fato de que essa nova forma do ser social consiga, no curso do seu desenvolvimento, realizar-se cada vez mais a si mesma, ou seja, explicitar-se em categorias cada vez mais independentes e conservar as formas naturais apenas de um modo que as supera cada vez mais. Nessa constatação ontológica do progresso, não está contido nenhum juízo de valor subjetivo. Trata-se da constatação de um estado de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado posteriormente. (Pode-se aprovar, deplorar, etc, o "recuo das barreiras naturais")." (ibid., p. 53-54))

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exercidos por esse desenvolvimento econômico sobre os homens nele envolvidos (os quais o produziram praticamente). E, quando destaca a contradição (também ela objetivamente existente) expressa no fato de que esse crescimento cultural do gênero humano só se pode realizar em detrimento de inteiras classes de homens, continua sempre no terreno de uma ontologia do ser social; descobre nesse âmbito um processo ontológico, ainda que contraditório, no qual resulta claro que a essência do desenvolvimento ontológico reside no progresso econômico (que envolve, em última instância o destino do gênero humano) e que as contradições são formas fenomênicas - ontologicamente necessárias e objetivas - desse progresso. (ibid., p.54-55-56)

Neste trecho, Lukács tenta, "quase desesperadamente", apontar o fundamento ontológico de Marx, sua abordagem "objetivo-ontológica", que o afasta de determinismos e do economicismo. E tem por centro o homem, com seu agir teleológico, que tem na categoria trabalho a forma pura de expressão desse agir teleológico. Sendo o trabalho, ao mesmo tempo meio de transformação da natureza no sentido da satisfação das necessidades dos homens – ao mesmo tempo em que cria novas necessidades –, meio de transformação do próprio homem. Ou seja, Lukács aponta para a compreensão do marxismo enquanto "filosofia da práxis", aproximando-se da abordagem do marxista italiano A. Gramsci. Voltemos, com Lukács, a análise de "O Capital", pois é fundamental apreendermos a forma com que Marx aborda e explicita o desenvolvimento do ser social mais desenvolvido (o capitalismo) a partir de sua ótica "objetivo-ontológica". Percebendo, é claro, a diferença entre o método de pesquisa e o método de exposição. Vejamos:

(...) [No Livro I de "O Capital"] As análises econômicas, mantidas num plano científico rigoroso e exato, abrem continuamente perspectivas fundadas, de tipo ontológico, sobre a totalidade do ser social. Nessa unidade, manifestando-se a tendência básica de Marx: desenvolver as generalizações filosóficas a partir dos fatos verificados pela investigação e pelo método científicos, ou seja a constante fundação ontológica das formulações tanto científicas quanto filosóficas. É essa união entre faticidade solidamente fundada e corajosa generalização filosófica que cria (...) [no Volume I de "O Capital"], sua atmosfera específica de proximidade à vida. (ibid., p. 56).

E Lukács ressalta que a abstração econômica é o momento fundamental da estrutura de conjunto do Livro I. A abstração ontologicamente fundada tenta apreender aspectos essenciais dos momentos econômicos e extra-econômicos, o que permite a apresentação das categorias decisivas sem qualquer deformação. Portanto, no método marxiano da economia política: “ (...) o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou metodológicos (e menos ainda lógicos), mas a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada." (ibid., p. 57)109

109 Vejamos o parágrafo completo: "(...) a abstração segundo a qual todas as mercadorias seriam compradas e vendidas pelo seu valor. É certo que se trata de uma abstração sui generis: em sua base, temos a efetiva lei fundamental da circulação social das mercadorias, uma lei que em última instância se afirma sempre na realidade econômica, apesar de todas as oscilações de preços, numa totalidade que funcione normalmente. Por isso, ela não opera como uma abstração quando se trata de revelar tanto as conexões econômicas puras quanto suas inter-relações com os fatos e tendências extra-econômicas do ser social; e, por isso, todo o Livro I se apresenta como uma reprodução da realidade e não como um experimento ideal abstrativo. A razão reside, mais uma vez, no caráter ontológico dessa abstração: ela significa, pura e simplesmente, que se pôs em evidência - ao isolá-la - a lei fundamental da circulação de mercadorias; ela foi deixada operar sem interferências ou obstáculos, sem que fosse desviada ou modificada por outras relações estruturais e outros processos que, numa tal sociedade, operam de

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Aqui fica clara a posição defendida por Lukács, ou seja, a busca da explicitação da contribuição de Marx enquanto ontologia. E desarma-se, a partir de tal perspectiva – que rompe com os pontos de vista meramente gnosiológicos ou metodológicos –, com as posturas que vêem o valor como algo metafísico, onde valor representa simplesmente uma palavra (vide Joan Robinson no livro "Filosofia Econômica" 110). Outro ponto de mal-entendidos sobre Marx, que Lukács esclarece aqui, é o que gira em torno da afirmação de que o Livro I de "O Capital" representa uma economia mercantil simples, que ainda não é do capitalismo que ele está tratando. Lukács, ao apontar o caráter da abstração presente no Livro I, onde todas as mercadorias seriam compradas e vendidas pelo seu valor, mostra que tal abstração tem por base a lei fundamental da circulação social de mercadorias, que é uma lei que se afirma sempre na realidade econômica que funcione normalmente. Mas "o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais são determinados a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada. Por isso ela não opera como uma abstração quando

modo igualmente necessário. Por isso, nessa redução abstrativa ao dado mais essencial, todos os momentos - econômicos e extra-econômicos - aparecem sem deformações; ao contrário, uma abstração, não fundada ontologicamente, ou dirigida para aspectos periféricos, leva sempre a uma deformação das categorias decisivas. Com isso, novamente se revela o ponto essencial do novo método: o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou metodológicos (e menos ainda lógicos), mas a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada." (ibid., p. 56-57) 110 As citações abaixo ilustram a ótica gnosiológica-epistemológica de Robinson, que tem grande proximidade com as posições de Karl Popper e por conseqüência em muito dista da abordagem ontológica luckasiana de Marx, conforme estamos explicitando. Vamos às citações: "Vimos anteriormente como as proposições metafísicas não só exprimem sentimentos morais, mas também fornecem hipóteses" (Robinson, 1979b, p. 23). "Uma das grandes idéias metafísicas em economia é expressa pela palavra ‘valor’" (ibid., p. 27). "Marx aprendeu com Ricardo o truque de estabelecer o que hoje em dia chamamos de modelo – afirmando os pressupostos e retirando as conclusões. Sustentou seu dogma sobre o valor da força de trabalho com um argumento analítico" (ibid. p. 35). "Aqui a teoria metafísica foi transformada em uma hipótese científica - a hipótese de que sob o capitalismo a taxa de salário real não cresce. Parecia bastante plausível naqueles tempos, mas mostrou estar errada. Isso, aliás, é a prova de seu status científico. Uma crença metafísica, como na lei do valor, não pode estar errada e este é o sinal de que não há nada a aprender com ela" (ibid., p. 36). "O empresário inovador de Schumpeter, o bem feitor da humanidade, tem o mesmo caráter que o ricaço de Marx. Apenas os adjetivos são diferentes. Marx, evidentemente os odiava. Cada palavra que escreveu estava saturada de indignação moral e o marxismo, em sua forma original (como o cristianismo), foi um apelo à causa dos mais desprotegidos. Assim como com o Cristianismo, a roda do tempo transformou-o num credo dos mais protegidos e a partir daí seu apelo perdeu muito de sua força" (ibid., p. 38). "[Para calcular o que deve ser considerado uma renda equivalente para indivíduos que leva vidas diferentes em ambientes diferentes]. O valor não ajudaria. Não tem nenhum conteúdo operacional. É apenas uma palavra." (ibid., p. 42)

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se trata de revelar tanto as conexões econômicas puras quanto suas inter-relações com os fatos e tendências extra-econômicas do ser social, e, por isso, todo Livro I se apresenta como uma reprodução da realidade e não como um elemento ideal abstrativo" (ibid.). Lukács prossegue essa discussão apontando que na construção de O Capital, Marx trabalha com abstrações extraídas do mundo real e que a forma de estruturação

(...) do livro consiste, precisamente, em introduzir continuamente novos elementos e tendências ontológicas no mundo reproduzido inicialmente sobre a base dessa abstração; consiste em revelar cientificamente as novas categorias, tendências e conexões surgidas desse modo, até o momento em que temos diante de nós, e compreendemos, a totalidade da economia enquanto centro primário do ser social. O passo imediatamente sucessivo conduz ao próprio processo de conjunto, visto inicialmente em sua generalidade” (ibid., p. 57).111

Lukács prossegue dizendo que a abordagem formal torna-se insuficiente quando o processo global é visto ontologicamente, quando ele “(...) é investigado em suas leis, relativas à totalidade da economia (...)”, e essa perspectiva é adotada por Marx a partir do livro II de O Capital. Ao abordar o livro II Lukács nos remete às diferenças entre o método de Marx e os “hábitos mentais modernos”. Apontando que dos processos singulares ao processo de conjunto, Marx não opera uma abstração mais ampla, mas ao contrário supera determinados limites da abstração visando uma aproximação à concreticidade da totalidade pensada. É assim, desta perspectiva, que Lukács acompanha o desenrolar do Livro II, procurando apontar, no sentido ontológico, os problemas principais presentes nesse nível da caminhada rumo à concreticidade da totalidade pensada. Segundo Lukács, o Livro II de "O Capital" explicita que:

O processo global da reprodução econômica é a unidade de três processos, cada qual com três níveis: os ciclos do capital-dinheiro, do capital produtivo e do capital-mercadoria formam as sua partes. Mais uma vez, é preciso sublinhar desde logo: também aqui não se trata de uma decomposição simplesmente metodológica de um processo, mas do fato de que três processos econômicos reais se articulam conjuntamente num processo unitário; a decomposição conceptual não é nada mais que um reflexo no

111 O parágrafo prossegue da seguinte forma: De fato, no Livro I, embora o passo de fundo seja sempre a totalidade social, as exposições centrais captam apenas os atos individuais, mesmo quando se trata de uma fábrica inteira com muitos operários, com uma complexa divisão do trabalho, etc. Agora, ao contrário, o interesse se volta para a consideração dos processos - até aqui conhecidos singularmente - em sua sociabilidade de conjunto. Marx observa, mais uma vez, que o Livro I é uma exposição abstrata (e portanto formal) dos fenômenos. Ele diz, por exemplo, que, naquele nível, "a forma natural do produto mercadoria era inteiramente indiferente para a análise", já que as leis abstratizantes valem igualmente para qualquer espécie de mercadoria. Mas, da venda de uma mercadoria (M-D), não se segue necessariamente a compra de outra mercadoria (D-M); e basta essa ineliminável casualidade para indicar como o processo global é diverso dos atos individuais. Tão-somente quando o processo global é investigado em suas leis, relativas à totalidade da economia, é que esse ângulo formal deixa de ser suficiente: "A retransformação de uma parte do valor dos produtos em capital, a passagem de outra parte para o consumo dos capitalistas e dos operários, constitui um movimento no interior do próprio valor dos produtos, no qual se expressa o resultado do capital global; e esse movimento não é apenas substituição de valor, mas também substituição de matéria; por isso, é determinado tanto pela relação recíproca das partes constitutivas de valor do produto social, quanto pelo seu valor-de-uso, por sua figura material". Já esse problema singular, embora central, mostra como o caminho que leva dos processos singulares ao processo de conjunto pressupõe não uma abstração mais ampla, como seria óbvio supor segundo os hábitos mentais modernos, mas ao contrário a superação de determinados limites da abstração, uma aproximação inicial à concreticidade da totalidade pensada" (ibid., p. 57-58).

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pensamento dos três processos da reprodução: o capital industrial, o capital comercial e o capital monetário (ibid., p. 58).

Nos três processos os elementos, níveis, conteúdo e seqüência são os mesmos, a diferença é o ponto em que iniciam e em que findam. “Todo fim é ao mesmo tempo o início de um novo movimento cíclico” (ibid.), e os três processos estão articulados entre si formando o processo de reprodução global de reprodução, de tal forma que o ciclo total é a unidade dessas três formas. Para Lukács, essa representação dos ciclos de Marx inviabiliza a expressão do capital enquanto objetividade "cósica" e apresenta-o como uma processualidade, como uma relação na qual o modo de ser específico é um processo ininterrupto. (ibid., p. 59). Essa análise nos dá as proporções da sociedade capitalista, e para frisar essas proporcionalidades, Marx recorre a mais uma abstração ao mesmo tempo em que dissolve as abstrações do Livro I. Ele trabalha com a reprodução simples, sem a acumulação, da economia capitalista, e após se apropriar dos conhecimentos disponíveis nesse nível da análise, é que ele parte para a acumulação ampliada, que é a que realmente ocorre nas economias capitalistas. A seguir Lukács observa que em "O Capital", Marx dissolve a abstração da reprodução simples e passa à reprodução ampliada. Mas no que se refere ao processo real continua a persistir a abstração, pois Marx não leva em conta o aumento da produtividade.

(...) [Este problema] nos mostra o modo pelo qual a economia de Marx pode ser utilizada para conhecer o ser social da época posterior à sua atividade. Ou seja: é claro que introduzir na análise do processo global o aumento da produtividade não é diferente, em linha de princípio e no plano ontológico, de realizar a passagem da reprodução simples à ampliada qualquer que seja o significado das novas determinações surgidas. A observação de Marx acima citada refere-se também a essa nova questão, mesmo no pressuposto de que a inserção do aumento da produtividade significasse introduzir uma nova dimensão no quadro das conexões. Precisamente o fato de que o método abstrativo de Marx seja fundado na ontologia possibilita essas sucessivas concretizações, sem necessidade de alterar uma vírgula nas bases metodológicas. (Naturalmente, isso se refere apenas ao método do próprio Marx. As falsas abstrações de seus discípulos, feitas no espírito das modernas ciências particulares, têm um caráter radicalmente diverso, como é o caso da teoria da chamada ‘pauperização absoluta’ na versão que nos foi legada por Kautsky) (ibid., p. 60)

Sobre os esquemas de reprodução, presentes no Livro II de "O Capital", Lukács ressalta que não vai fazer uma análise econômica concreta deles, acaba por realizar observações pertinentes. Ressalta que as proporções que aparecem nos esquemas de reprodução “são complexos concretos qualitativamente determinados” (ibid., p. 60), que por sua natureza podem ser expressos em termos quantitativos, o que facilita seu entendimento. A divisão da economia entre um departamento produtor de meios de produção e um departamento produtor de meios de consumo e as relações de produção entre eles para que ocorram reprodução simples e ampliada, Mas realiza observações pertinentes, vejamos: "(...) demonstra que as proporções quantitativas do valor devem obrigatoriamente conter os valores de uso qualitativamente diversos, aos quais estão ligadas do ponto de vista ontológico. Essa é uma das conseqüências inevitáveis da concretização que o Livro II representa em relação ao Livro I (...)" (ibid., p. 61). Nessa citação Lukács aborda os esquemas de reprodução do Livro II de "O Capital" e fala da necessidade do acordo entre valor de uso e valor de troca para a reprodução simples e ampliada do modo de produção capitalista.

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Antes de tratarmos das concretizações realizadas no Livro III por Marx, vejamos como Lukács aborda a passagem do nível mais abstrato do Livro II para a aproximação do concreto pensado no Livro III. Diz ele:

Tão-somente a aproximação da concreta constituição do ser social, possibilitada pela compreensão do processo de reprodução em seu conjunto, é que permite a Marx dissolver - em nível ainda mais concreto - as abstrações do início. Isso acontece na teoria da taxa de lucro. Valor e mais-valia continuam a ser as categorias ontológicas fundamentais da economia do capitalismo. No nível de abstração do Livro I, basta afirmar que apenas a qualidade específica da mercadoria força-de-trabalho é capaz de criar valor novo, enquanto os meios de produção, matérias-primas, etc, simplesmente conservam o seu valor no processo de trabalho. A concretização do Livro II fornece uma análise do processo global que, em muitos aspectos, ainda se mantém sobre essa base; isso ocorre na medida em que, como elementos do ciclo, figuram o capital constante e o capital variável, assim como a mais-valia. Aqui resulta verdadeiro que, no processo de conjunto (considerado em sua generalidade pura, ou seja, prescindindo com consciência metodológica dos atos singulares que o formam na realidade), a lei do valor continua em vigor sem alterações. E trata-se novamente de uma constatação justa e importante no plano ontológico, já que os desvios da lei do valor - na totalidade do processo - compensam-se de modo necessário. Com uma formulação simples, pode-se dizer: o consumo (inclusive o consumo produtivo da sociedade) não pode ser maior do que a produção. Naturalmente, aqui se abstrai do comércio exterior; mas se trata de uma posição correta, já que - precisamente nesse caso - é sempre possível suprimir pura e simplesmente essa abstração e estudar as variações que essa supressão introduz no conjunto das leis. Deve-se notar, de passagem, que toda questão perde seu sentido se o objeto imediato da teoria for a economia mundial. (ibid., p. 61-62) 112

Passemos agora a discutir as concretizações presentes no Livro III, e assim concluirmos, com Lukács, essa instigante síntese da construção ontológica de "O Capital". Para Lukács o problema do Livro III é investigar a atuação dos atos econômicos individuais sobre o conjunto do ser social, entender as leis que regulam esses atos individuais e como esses atos determinam essas leis mais gerais e podem modificar ontologicamente as categorias (que para Marx são formas do ser, determinações da existência) econômicas do ser social. Mas essa modificação das categorias tem como premissa o crescimento das forças produtivas, o que leva a uma redução do valor e a possibilidade da migração de capitais entre os setores e ramos da economia. Essas premissas nada mais expressam do que um grande desenvolvimento histórico-social, do que a necessidade do funcionamento evoluído do ser social para que as “categorias econômicas se apresentem em sua forma pura e explicitada” (ibid., p. 62).113

112 Essa passagem serve de contraponto às posições de Rosa Luxemburgo, que construiu sua teoria defendendo a necessidade das "terceiras pessoas" para que o capitalismo realizasse sua reprodução ampliada. Assim como ajuda a resolver todo o imbroglio que foi a discussão entre os epígonos marxistas nas primeiras décadas do século em torno dos esquemas de reprodução do Livro II de "O Capital" de Marx. Como eles (Rosa inclusive) desprezavam a metodologia de Marx, ou mais precisamente a parte hegeliana de Marx, enredaram-se por caminhos diversos que os levou sempre mais longe das posições do velho Marx. Isso fica claro (conforme mostra Rosdolsky em seu livro "Genesis y Estructura de el Capital de Marx) em particular diante da tentativa de alguns (Otto Bauer, Grossmann, Hilferding, etc) de introduzirem o progresso técnico nos esquemas e ainda assim manterem as relações de equilíbrio! Ou seja, nada entenderam da reconstrução do real pelo pensamento, que leva a dissoluções sucessivas das abstrações, concretizando cada vez mais o objeto. 113 Vejamos o parágrafo completo:

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Percebemos que Lukács, de acordo com o nível de concreticidade do Livro III, passa a tratar dos "atos singulares que realizam a produção, o consumo, etc", atos esses tomados, realizados por "produtores singulares". Ou seja, dá início à discussão sobre a articulação entre as leis gerais do modo de produção capitalista, (leis tendenciais de movimento), e as leis que regulam os atos econômicos singulares. Que será retomada e aprofundada no próximo item deste capítulo, onde discutiremos em detalhes o lugar do acaso, a intervenção do indivíduo, etc, na perspectiva ontológica da obra marxiana. Por ora, vejamos como Lukács faz a discussão sobre as leis de tendência, a tendência à queda da taxa de lucro, etc. Ele de antemão adverte que não discutirá o modo pelo qual Marx expõe o caráter tendencial da lei à queda da taxa de lucro, pois se trata de um problema econômico. Entretanto ele enfatiza que no livro III de “O Capital” surge, se explicita, a categoria taxa de lucro. A transformação da mais-valia e da taxa de mais-valia em lucro e taxa de lucro é expressão da dissolução das abstrações formuladas no Livro I no Livro III. Mas apesar das abstrações e posteriores concretizações, a mais-valia continua na base do processo. A taxa de lucro é uma categoria econômica determinante e não é uma “lei mecânica, independente da atividade econômica dos homens, nem produto direto dessa atividade” (ibid., p. 63). A ligação da categoria taxa de lucro com a atividade singular, individual, pode ser entendida quando lembramos que os atos individuais que realizam a produção, o consumo, sob o domínio das formas de organização fundadas na lógica humano-societárias do capital, buscam o aumento do lucro. O desenvolvimento das forças produtivas que se manifestam em pontos particulares, permitindo aí a extração do lucro extra, faz

"(...) no interior do ciclo total, agora compreendido, investigar as leis que regulam os atos econômicos singulares, e não apenas para-si, mas precisamente no quadro da compreensão do processo de conjunto. Esse influxo dos atos singulares sobre o processo global, capaz de modificar ontologicamente as categorias tem porém duas premissas histórico-reais: em primeiro lugar, o crescimento das forças produtivas, com a conseqüente diminuição do valor; em segundo, a ampla possibilidade que tem o capital de migrar de um ramo para outro. Ambos os processos pressupõem, por seu turno, um grau relativamente elevado de desenvolvimento da produção social, o que mostra novamente como as categorias econômicas, em sua forma pura e explicitada, requerem um funcionamento evoluído do ser social; em outras palavras, a sua explicitação enquanto categorias, a superação categorial das barreiras naturais, são um resultado do desenvolvimento histórico-social. Mas, mesmo nesses termos, o surgimento da taxa de lucro como categoria econômica determinante não é nem uma lei mecânica, independente da atividade econômica dos homens, nem um produto direto dessa atividade. A transformação da mais-valia em lucro, da taxa de mais-valia em taxa de lucro, é na realidade uma conseqüência metodológica da dissolução, no Livro III, das abstrações formuladas no Livro I. Mas, como vimos que acontece sempre em Marx, quaisquer que sejam as abstrações e as posteriores concretizações, a mais-valia continua sendo a base, só que agora entra numa outra relação, igualmente real, sempre dependente da relação originária. Enquanto a mais-valia é relacionada apenas ao valor da força-de-trabalho e, conseqüentemente, ao capital variável que a põe em movimento em sentido capitalista, o lucro - que imediatamente, mas só imediatamente, é idêntico à mais-valia em termos quantitativos - é relacionado também com o capital constante. Os atos singulares que realizam a produção, o consumo, etc, orientam-se assim, em primeiro lugar, no sentido de aumentar o lucro. Ora, o desenvolvimento das forças produtivas, que necessariamente se manifesta inicialmente em pontos singulares, provoca em tais pontos a emergência de um superlucro, que naturalmente se torna a finalidade dos atos teleológicos dos produtores singulares; com efeito, dada a diminuição assim obtida do valor dos produtos, a mercadoria pode ser vendida acima do seu valor e, ao mesmo tempo, a um preço mais baixo que aquela dos demais produtores. Tão-somente num estágio de desenvolvimento que permita a migração (relativamente) ilimitada do capital de um ramo para outro é que uma tal situação pode não conduzir a um monopólio duradouro; nesse estágio, ao contrário, ocorre um rebaixamento do preço ao nível da máxima diminuição de valor provocada pelo aumento da produtividade. Assim, por um lado, essa possibilidade de deslocamento do capital faz surgir uma taxa média de lucro e, por outro, no movimento desse último, verifica-se uma tendência à queda contínua, precisamente por causa do crescimento das forças produtivas" (ibid., p. 62-63).

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com que o objetivo de todos os produtores individuais, a finalidade de seus atos teleológicos, passe a ser a obtenção desse lucro extra. O lucro extra permite que a mercadoria possa ser vendida acima do seu valor e abaixo do preço de mercado das mercadorias dos outros produtores. Essa situação poderia levar ao surgimento de monopólios permanentes, mas isso só não acontece porque há a possibilidade relativa da migração de capital entre os setores e ramos da produção. De tal forma que pode ocorrer um rebaixamento do nível de preços das mercadorias ao nível da redução do valor das mercadorias possibilitados pelo aumento da produtividade. “(...) [A] possibilidade de deslocamento do capital faz surgir uma taxa média de lucro e, por outro, no movimento desse último, verifica-se uma tendência à queda contínua, precisamente por causa do crescimento das forças produtivas” (ibid.). Assim, podemos dizer que os atos singulares que objetivavam a elevação da taxa de lucro, resultaram em seu exato oposto.114 Essa observação nos coloca frente à discussão sobre as leis de tendência, a tendência à queda da taxa de lucro, etc. Sobre essas questões, Lukács (ibid.) tenta explicitar a síntese da relação entre lei de tendência e o papel do ato individual singular. Ele entende que a lei de tendência é definida enquanto lei da totalidade concreta do ser social, e decorre da interação de complexos reais que interagem de modo complexo, passando por amplas mediações com outros complexos reais; a lei é tendencial porque é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre complexos. A tendência à queda da taxa de lucro é o resultado final de atos teleológicos individuais, resultado de posições conscientes, mas cujos resultados podem ser justo o oposto do que visavam esses atos objetiva e subjetivamente. Compreendendo as relações econômicas em sua totalidade dinâmica e concreta evidencia-se que os homens fazem a sua própria história, mas os resultados em geral podem ser o oposto do que tencionavam os atos individuais originais. Portanto, a queda da taxa de lucro reflete, ainda, a redução do valor das mercadorias produzidas devido a redução do tempo de trabalho socialmente necessário contido nelas, o que por sua vez reflete que cresceu o domínio do homem sobre a natureza, houve mais um recuo das barreiras naturais, e que há um maior desenvolvimento das formas de socialidade. Na citação reproduzida na nota 114, temos a síntese da relação entre lei de tendência e o papel do ato individual singular. Assim a lei de tendência é definida enquanto lei da totalidade concreta do ser social, e decorre da interação de complexos reais que interagem de modo complexo, passando por amplas mediações com outros complexos reais, a lei é tendencial porque é resultado desse

114 Vejamos o trecho em que Lukács trata destas questões: "(...) primeiro, que a tendencialidade, enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na totalidade concreta do ser social, é conseqüência inevitável do fato de que nos encontramos aqui diante de complexos reais que interagem de modo complexo, freqüentemente passando por amplas mediações, com outros complexos reais; a lei tem caráter tendencial porque, por sua própria essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre complexos. Segundo: que a taxa de lucro, em sua queda tendencial, é certamente o resultado final de atos teleológicos individuais, ou seja de posições conscientes, mas seu conteúdo, sua direção, etc, produzem o exato oposto do que era visado objetiva e subjetivamente por esses atos individuais. Esse fato fundamental, elementar e necessário, da existência e das atividades histórico-sociais dos homens se apresenta, também nesse caso, sob uma forma factual que pode ser verificada de modo exato: quando as relações econômicas são compreendidas em sua totalidade dinâmica e concreta, torna-se evidente, a cada passo, que os homens fazem certamente sua própria história, mas os resultados do decurso histórico são diversos e freqüentemente opostos aos objetivos visados pelos inelimináveis atos de vontade dos homens individuais. É preciso acrescentar, além disso, que - no âmbito do movimento total - verifica-se um processo objetivo. A queda da taxa de lucro pressupõe a modificação do valor dos produtos por causa da diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário para produzí-los. Isso significa, mais uma vez que se acresceu o domínio do homem sobre as forças da natureza, que aumentou sua capacidade de fazer, que diminuiu o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir" (ibid., p. 63).

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movimento dinâmico-contraditório entre complexos. A tendência à queda da taxa de lucro é o resultado final de atos teleológicos individuais, isto é resultado de posições conscientes, mas cujos resultados é justo o oposto do que visavam esses atos objetiva e subjetivamente. Compreendendo as relações econômicas em sua totalidade dinâmica e concreta evidencia-se que os homens fazem a sua própria história, mas os resultados em geral são o oposto do que tencionavam os atos individuais originais. A queda da taxa de lucro reflete, ainda, a redução do valor das mercadorias produzidas devido a redução do tempo de trabalho socialmente necessário contido nelas, o que por sua vez reflete que cresceu o domínio do homem sobre a natureza, houve mais um recuo das barreiras naturais, e que há um maior desenvolvimento das formas de socialidade. Por fim, Lukács aborda o outro grande complexo presente no Livro III, que é a repartição social da mais-valia em lucro. Aí Marx dissolve e põe as coisas em sua complexidade concreta. E essa concretização dos fatores ativos da vida econômica permite que se passe sem rupturas da esfera estritamente econômica para a "articulação social da sociedade, para a estratificação de classe". Vejamos o que diz Lukács a respeito:

Nos Livros I e II, determinados pela abstração, existem face a face apenas capitalistas industriais e operários. Mesmo quando, no Livro II, o capital comercial e o monetário aparecem como participantes do ciclo, eles tem apenas um lugar no movimento global, o qual é regulado porém pelas categorias ainda indiferenciadas de valor e mais-valia. Somente no Livro III é que o capital comercial e monetário (assim como a renda da terra) adquirem um papel concreto na repartição do lucro. A prioridade ontológica da mais-valia , que domina absolutamente, como vimos, revela-se também aqui ineliminável, em última instância, na medida em que se trata do único ponto onde surge valor novo; agora, porém, a mais-valia transformada em lucro é dividida entre todos os representantes economicamente necessários, mesmo que não criem valor novo, à divisão social do trabalho; e a análise desse processo, que não podemos examinar aqui em seus detalhes, constitui o aspecto essencial do Livro III. De qualquer modo, gostaríamos de observar que tão-somente essa concretização de todos os fatores ativos da vida econômica é que permite passar, sem rupturas, da economia em sentido estrito à articulação social da sociedade, à estratificação de classe. (Infelizmente, sobre isso, chegaram a nós apenas as primeiras linhas introdutórias de Marx. Do ponto de vista metodológico, todavia, o caminho está perfeitamente indicado). É essa a razão pela qual o Livro III contém as mais amplas e detalhadas digressões sobre a história dos complexos econômicos que surgem novamente em seu contexto. Sem isso, seria de todo impossível integrar o capital comercial e monetário, assim como a renda da terra, no quadro concreto do conjunto da economia. A gênese histórica deles é a premissa para compreender teoricamente sua atual função no sistema de uma produção radicalmente social, ainda que - ou precisamente porque - essa dedução histórica não seja capaz de explicar diretamente o papel que eles assumiram finalmente nesse sistema. Com efeito, esse papel depende da subordinação deles à produção industrial; antes do surgimento dessa última, capital comercial e monetário e renda fundiária haviam conhecido por longo tempo uma essência autônoma; e, nessa autonomia, apesar de certa conservação de suas peculiaridades, haviam desempenhado funções econômico-sociais inteiramente diversas. É evidente que as deduções da gênese do valor aqui apresentadas exibem, no mais das vezes, características bastante diversificadas. Porém, o fato de que sua síntese seja capaz de produzir um quadro unitário do desenvolvimento histórico nos remete aos problemas da teoria geral da história que é própria do marxismo; esses problemas foram aflorados continuamente em nossa exposição. (...) (ibid., p. 64-65).

Com isso Lukács termina o esboço, generalíssimo, de "O Capital". Abordando-o a partir da perspectiva ontológica, desvendando e clareando questões fundamentais como: a abstração realizada por Marx para melhor estudar a categoria valor; a forma como Marx para chegar ao concreto

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pensado não realiza novas e maiores abstrações, como seria comum aos hábitos mentais modernos, mas supera determinados limites das abstrações já realizadas. Sobre os atos individuais singulares, as leis de tendência, etc. Ou seja, para Lukács está colocada a necessidade de assimilar

(...) a concepção marxiana da realidade: ponto de partida de todo pensamento são as manifestações factuais do ser social. Isso não implica, porém, nenhum empirismo, embora - como vimos - também o empirismo possa conter uma intentio recta ontológica, ainda que incompleta e fragmentária. Ao contrário, todo fato deve ser visto como parte de um complexo dinâmico em interação com outros complexos, como algo que é determinado - interna e externamente - por múltiplas leis. A ontologia marxiana do ser social funda-se nessa unicidade materialista-dialética (contraditória) de lei e fato (incluídas naturalmente as relações e conexões). A lei se realiza no fato; o fato recebe sua determinação e especificidade concreta do tipo de lei que se afirma na intersecção das interações. Se não se compreende tais articulações, nas quais a produção e a reprodução sociais reais da vida humana constituem sempre o momento predominante, não se compreende sequer a economia de Marx. (ibid., p. 74-75)

Podemos concluir, seguindo Lukács, que as manifestações factuais do ser social devem ser o ponto de partida da pesquisa. Ele nos diz que todo fato é parte de um complexo dinâmico em interação com outros complexos dinâmicos, é determinado (interna e externamente) por várias leis. A ontologia marxiana do ser social funda-se na unicidade contraditória de lei e fato (ibid., p. 75). “A lei se realiza no fato, o fato recebe sua determinação e especificidade concreta do tipo de lei que se afirma na intersecção das interações” (ibid.). Para Lukács, se estes aspectos não são compreendidos, não é possível o entendimento da economia de Marx 3.3. A Tomada de Decisão do Indivíduo Dentre Múltiplas Alternativas, o Acaso e a Ontologia Marxiana do Ser Social Agora abordaremos, com mais detalhes, o lugar do indivíduo na história, a tomada de decisão individual e como ela interage com as leis tendenciais gerais do ser social, tratando também, da casualidade na ontologia marxiana. Voltaremos ainda abordar e aprofundar a discussão sobre o valor, o trabalho e sobre a "Introdução de 1857". Para compreender as questões acima descritas, é preciso entender a categoria de historicidade como determinação conforme ao ser, e ressaltar a conexão ontológica autêntica, que é o fato da história ser irreversível no tempo. Para Lukács, em termos gerais, "(...) a historicidade implica não o simples movimento, mas também e sempre uma determinada direção na mudança, uma direção que se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em-si quanto em relação a outros complexos" (ibid., p. 79).115

115 Fica registrada, mais uma vez, a percepção de Lukács sobre a categoria substância, que "(...) é indício de tendências ontológicas à historicidade como princípio do próprio ser": "A substância, enquanto princípio ontológico da permanência na mudança, perdeu certamente seu velho sentido de antítese excludente em face do devir, mas obteve também uma validade nova e mais profunda, já que o persistente é entendido como aquilo que continua a se manter, a se explicitar, a se renovar nos complexos reais da realidade, na medida em que a continuidade como forma interna do movimento do complexo transforma a persistência estática e abstrata numa persistência concreta no interior da devir. Isso já é válido para os complexos do ser inorgânico, mas se eleva a princípio da reprodução no organismo e na sociedade. Com a transformação do conceito tradicional estático de substância num conceito dinâmico, esse conceito (...)

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A noção de desenvolvimento ontológico (conforme já abordamos), não contêm juízo de valor, mas a constatação sobre o que é, sobre o ser em si. Como vimos no capítulo anterior, tanto Lukács como Marx negam a idéia de uma atuação generalizada da teleologia, tanto no ser natural como no social, para eles o pôr teleológico só tem validade, limita-se, aos atos singulares do agir humano, que tem o trabalho como modelo. Com isso distancia a ontologia marxiana da velha ontologia metafísica (vide a ontologia de Hegel). Lukács frisa que os produtos do pôr teleológico surgem e operam de modo causal, de tal forma que sua gênese teleológica parece desaparecer no ato de sua efetivação, mas eles têm a peculiaridade social de se apresentar com o caráter de alternativa, pois contêm em si a possibilidade de retroagirem sobre o sujeito e transformá-lo. Seus efeitos sobre o homem abrem alternativas. O ato da alternativa possui a tendência de fazer o recuo social das barreiras naturais. Lukács defende que é preciso evitar uma interpretação voluntarista ou subjetivista da inevitabilidade da alternativa na esfera da práxis social. (ibid., p. 82). Neste sentido a análise da categoria valor que é central para o pensamento marxiano e para o marxismo, pode nos indicar o rumo a ser tomado aqui. É sabido que o valor é a unidade do valor-de-uso e do valor-de-troca, e compreende em si; a nível econômico o trabalho socialmente necessário. Sabe-se que o desenvolvimento econômico da humanidade registra a explicitação da socialidade, o recuo das barreiras naturais, e um aumento rápido e incessante , (particularmente sob o capitalismo) da quantidade dos valores produzidos por um lado, e por outro, também de modo incessante, a redução do tempo de trabalho socialmente necessário exigido à produção dos valores. O que em termos econômicos significa que ao mesmo tempo que aumenta a quantidade, a soma de valor, diminui constantemente o valor dos produtos individuais.

(...). Tem-se assim uma direção do desenvolvimento, segundo a qual a crescente socialidade da produção se manifesta não simplesmente como aumento dos produtos, mas também como diminuição do trabalho socialmente necessário para fabricá-los. Não há dúvida que temos aqui um desenvolvimento objetivo e necessário no interior do ser social, cuja objetividade ontológica se mantém independentemente tanto das intenções dos atos singulares que efetivamente permitiram a sua emergência, quanto de todas as avaliações humanas acerca do ocorrido, avaliações feitas dos mais variados pontos de vista e sob as mais variadas motivações. Portanto, encontramo-nos diante de um traço objetivamente ontológico da tendência evolutiva interna do ser social (ibid., p. 82).

O fato de ser possível tratar o desenvolvimento acima descrito de forma objetiva, com independência frente a avaliações individuais, confirma o caráter ontológico do valor econômico e das tendências que resultam da sua explicitação. Daí a objetividade postulada para a análise. Ao dar continuidade à sua exposição sobre a objetividade do valor, Lukács observa que o termo “valor” é usado por praticamente todas as línguas para representar a relação real, objetiva, que existe independentemente da consciência, e isso não é (para ele) algo acidental. Mas expressa que essa relação real constitui em última instância “o fundamento ontológico de todas as relações sociais que chamamos de valores” (ibid., p. 83). Lukács nos fala que a “unidade dialética entre ser socialmente objetivo e relação de valor objetivamente fundada” (ibid.) baseia-se no fato de que essas relações, que são objetivas, que atuam e continuam existindo independentemente das intenções dos atos humanos particulares que as realizam, só surgem

torna-se capaz de explicar filosoficamente todas as novas aquisições da ciência e, ao mesmo tempo, de rechaçar todo simples relativismo, subjetivismo, etc (...) a continuidade na persistência, enquanto princípio do ser dos complexos em movimento, é indício de tendências ontológicas à historicidade como princípio do próprio ser" (Lukács, op. cit., p.78-79).

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(...) à condição de ser enquanto realizações desses atos e só podem explicitar-se ulteriormente retroagindo sobre novos atos humanos individuais. Para compreender a especificidade do ser social, é preciso compreender e ter presente essa duplicidade: a simultânea dependência e independência dos seus produtos e processos específicos em relação aos atos individuais que, imediatamente, os fazem surgir e prosseguir (ibid., p. 83).

Para Lukács, várias incompreensões sobre o ser social surgem porque um desses dois componentes, “que só são reais em sua interação recíproca” (ibid.) é tomado como único existente ou como o que tem “predomínio absoluto” (ibid.). Recordando a conhecida passagem de “O 18 Brumário de Louis Bonaparte”116 em que Marx trata do papel da tradição e das circunstâncias encontradas pelos indivíduos no momento da tomada de decisões, Lukács aponta que todas as alternativas são concretas, jamais podem ser separadas do seu “aqui e agora”. E é devido a essa concreticidade que ocorre a

(...) ineliminável concomitância entre o homem singular e as circunstâncias sociais em que atua, todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, tem efeitos ulteriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem outras alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas. Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos (ibid., p. 84)

Lukács prossegue e afirma que essa independência é relativa, e se explica na interação dialética entre fenômeno e essência. Fenômeno entendido como “algo que é e não como algo contraposto ao ser” (ibid.). Assim:

A interrelação dialética entre o indivíduo (o sujeito da alternativa) e o universal (o socialmente submetido a leis) cria uma série fenomênica mais variada e multifacética, precisamente porque o tornar-se fenômeno da essência social pode se verificar apenas no medium representado pelos homens, que são por princípio individualizados. (ibid., p.84)

Lukács está continuamente frisando a relação entre objetividade social (no sentido de desenvolvimento ontológico), e os atos singulares que permitiriam a emergência desse desenvolvimento, mas em relação aos quais tal desenvolvimento mantêm-se independente. Está trabalhando a questão de que para se compreender a especificidade do ser social é preciso perceber a duplicidade posta pela "simultânea dependência e independência dos produtos e processos específicos em relação aos atos individuais que, imediatamente os fazem seguir e prosseguir". Aponta que todas as alternativas são concretas e estão ligadas ao seu "aqui e agora". E tal concreticidade "nasce de uma ineliminável concomitância operativa entre o homem singular e as circunstâncias sociais em que atua" e que "todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, tem efeitos ulteriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem outras alternativas de estrutura

116 “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não o fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Marx, 1985, p. 329).

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análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas. Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos." Com isso Lukács responde a questão (formulada pelos críticos de Marx) de que as legalidades objetivas do ser social, as leis de tendência eliminariam a possibilidade de intervenção do indivíduo na história. De que, portanto. Marx teria formulado um "sistema" mecanicista e determinista de explicação do real E não haveria em tal "sistema" lugar para incertezas, para o acaso 117. Fica claro que Lukács torna inteligível a articulação entre as legalidades do ser social, os atos individuais de caráter alternativo, que geram tais legalidades, mas depois da ação que delas decorre, aparecem efeitos ulteriores independentes das intenções conscientes. Com isso fazem surgir novas séries causais cuja legalidade vai além das intenções contidas na alternativa. Ou seja, as legalidades objetivas do ser social possuem uma coercitividade social que é independente dos atos individuais alternativos, ao mesmo tempo que estão ligadas a ele. Lukács reforça a explicitação do valor enquanto desenvolvimento das faculdades humanas. Retirando-o da área de crítica, que afirma ser ele algo metafísico, uma mera palavra. Em seguida passa a apontar a base ontológica última do valor, tem por objeto de investigação a explicitação de algumas faculdades humanas, enquanto resultado da atividade humana. Aí a categoria trabalho e as suas conseqüências (mediatas e imediatas) têm prioridade com relação a outras formas de atividade (em sentido ontológico). O trabalho, em termos genéricos e na perspectiva ontológica, é "o ponto de partida da humanização do homem, do refinamento das suas faculdades, processo pelo qual não se deve esquecer o domínio sobre si mesmo. Além do mais, o trabalho se apresenta, por um longo tempo, como o único âmbito desse desenvolvimento; todas as demais formas de atividade do homem, ligadas aos diversos valores, só se podem apresentar como autônomas depois que o trabalho atinge um nível relativamente elevado". A partir daí Lukács aborda a questão da relação fenômeno X essência no ser social, relacionando-os com o valor e a riqueza por um lado, e por outro com o desenvolvimento das faculdades humanas. Assim afirma que na lei do valor vigora "aquela formação de vitalidade, síntese de atos individuais, que determina o tipo, a direção, o ritmo, etc, do desenvolvimento real. O homem singular por isso não pode rebelar-se contra ela, sob pena de sua própria ruína; sua revolta, melhor dizendo converte-se com grande facilidade numa grotesca caricatura quixotesca". Ressalta que isso não significa a interdição da possibilidade de subversões revolucionárias, e lembra que há casos onde a resistência de massa pode provocar modificações de estrutura e de movimento nessa esfera. Por fim observa que a esfera dos fenômenos por exercer uma ação menos intensa e coercitiva que a esfera da essência, oferece uma margem objetiva bem maior ao agir individual (do que a esfera da essência). Lukács defende que todo ato individual traz conseqüências ulteriores, fazendo surgir outras séries causais cuja legalidade termina indo além das intenções contidas na alternativa inicial. É através de tal interação que surgem as leis de tendência que

(...) enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na totalidade concreta do ser social, é conseqüência inevitável do fato de que nos encontramos aqui diante de complexos reais que interagem de modo complexo, freqüentemente passando por amplas mediações, com outros complexos reais; a lei tem caráter tendencial porque, por sua própria essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre complexos. (...) é certamente o resultado final de atos teleológicos individuais, ou

117 Quanto ao lugar do acaso na ontologia marxiana do ser social, discutiremos em detalhes a seguir.

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seja, de posições conscientes, mas seu conteúdo, sua direção, etc, produzem o exato oposto do que era visado objetiva e subjetivamente por esses atos individuais. (ibid., p. 64)

Lukács ao tratar da estrutura fundamental dos processos sociais, explica que tais processos partem de posições teleológicas, determinadas em sentido alternativo, e tomadas por homens singulares. Mas dado o decurso causal das posições teleológicas, essas desembocam num processo causal, contraditoriamente unitário, dos complexos reais e de sua totalidade, e produzem conexões legais universais. Assim as tendências econômico-gerais que daí surgem são sempre síntese de atos individuais, realizadas pelo próprio movimento social. É importante sabermos como são ontologicamente as leis descobertas. Sobre isso Lukács fala que para Marx “a lei é o movimento interno imanente e legal do próprio ser social” (p. 99). Ele prossegue dizendo que:

Todas as demais leis da economia, sem prejuízo de sua legalidade, - que todavia tem caráter tendencial, já que são leis de complexos em movimento, - são de natureza histórica, já que sua entrada e sua conservação em vigor dependem de circunstâncias histórico-sociais determinadas, cuja presença ou ausência não é produzida, ou pelo menos não diretamente, pela própria lei. Faz parte da essência ontológica das leis dos complexos que sua ação traga à tona a heterogeneidade das relações, das forças, das tendências, etc que edificam os próprios complexos, e que, além do mais, interagem com aquele complexo que tem uma constituição interna análoga e que exercita externamente uma ação análoga. Por isso, a maioria das leis econômicas não pode deixar de ter uma validade concretamente delimitada em sentido histórico-social, uma validade historicamente determinada (ibid., p. 100).

A abordagem ontológica da legalidade no ser social, conforme empreendida por Lukács acima, coloca no vazio toda crítica que defende a existência de uma legalidade mecânico-fatalista, de um racionalismo extremado da imagem marxiana do mundo. A continuidade de sua argumentação derruba, ainda a idéia de incompatibilidade entre legalidade e historicidade, pois tomadas na perspectiva ontológica elas “(...) não são coisas opostas; ao contrário, são formas de expressão – estritamente ligadas entre si – de uma realidade que, por sua essência, é constituída de diversos complexos heterogêneos e heterogeneamente movidos, os quais são unificados por aquela realidade em leis próprias do mesmo gênero” (ibid.). Lukács passa, em seguida, a tratar do lugar do acaso. Vai diferenciar o papel do acaso no interior da necessidade das leis, entre uma ótica lógico-gnosiológica (onde o acaso é algo unitário, antítese ideal, até integrativa da necessidade) e a visão ontológica (onde o acaso, de acordo com a heterogeneidade da realidade se apresenta “(...) sob formas extremamente variadas: como desvio da média, ou seja, como dispersão nas leis estatísticas; como relação heterogênea-causal entre dois complexos e suas legalidade, etc” (ibid., p. 101)). Ressaltando, mais uma vez que as posições teleológicas individuais, que estão na base do ser social, tem em si a presença ineliminável do acaso. Explorando a presença do acaso nas posições teleológicas individuais, Lukács toma novamente o trabalho por objeto de análise. Pois o trabalho tem sua base constituída pelo intercâmbio entre o homem e a natureza, o que traz em si o acaso. Por exemplo, a relação entre a pedra e a escultura ou entre madeira e mesa é de causalidade. A pedra ou madeira não tem em si a propensão de serem utilizáveis por finalidades humanas enquanto meios de trabalho, o fato de serem utilizadas como meios de trabalho as coloca em relações que não existem nem poderiam existir no seu ser natural. Logo essas relações “do ponto de vista de sua faticidade natural” (ibid.) são causais.

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Sem esquecer que o trabalho humano só os pode tomar como matérias-prima se conhece as propriedades e leis desses objetos, sendo isso uma condição preliminar. Em sociedades mais desenvolvidas as mediações que ligam a posição teleológica do trabalho com sua execução efetiva, também são mais desenvolvidas. Decorrendo daí um aumento da importância da intervenção do acaso nas alternativas singulares. Pois sendo maiores as ramificações dessas alternativas, sendo maiores a distância dessas alternativas em relação ao próprio trabalho, a função dessas alternativas singulares cada vez mais passa a ser o de “induzir os homens, através de um ato de mediação ulterior” (ibid., p. 102). As instituições, ideologias e outras formas mediadoras que surgem da sociedade, conforme se desenvolvem adquirem maior autonomia interna, “(...) e essa autonomia – sem alterar sua dependência última das legalidades econômicas – opera ininterruptamente na prática, aumentando assim a quantidade e a qualidade das conexões carregadas de casualidade” (ibid., p. 103). Para Lukács, a intervenção da causalidade influi sobre o modo como são resolvidos alternativas e conflitos singulares, e penetram profundamente

(...) no decurso global, na medida em que as leis econômicas podem se afirmar - sem alterarem seu caráter fundamental - por caminhos bastante diferenciados, até mesmo opostos, cuja natureza retroage depois sobre a luta de classes, o que por sua vez não deixa de influir no modo pelo qual se realizam as leis econômicas gerais e assim por diante (ibid., p.104)

Ele observa que tal explicação pode parecer paradoxal para aqueles que se coloquem sob a ótica da lógica e da gnosiologia, pois sob tal ótica a investigação dessa situação leva-nos a antinomias insolúveis. Mas se a tomamos pela lógica ontológica, diz que compreendemos com clareza as formas dadas de interação e inter-relação do ser social. A dificuldade se liga à interpretação das questões da legalidade e da racionalidade pela ótica lógico-gnosiológica. Assim: “Do ponto de vista ontológico, legalidade significa simplesmente que no interior de um complexo ou na relação recíproca de dois ou mais complexos, a presença factual de determinadas condições implica necessariamente, ainda que apenas como tendência, determinadas conseqüências” (ibid., p. 104-105) Para Lukács o importante é a avaliação da racionalidade geral das leis e do modo pelo qual se pode extrair elas conseqüências fundadas e concretas para os casos singulares. E perceber “(...) se o ser social pode ser elevado a uma conexão racional acabada, tanto em sua totalidade quanto nos seus detalhes” (ibid., p. 107). Feitas essas observações, podemos voltar com Lukács ao ponto de partida. Percebendo agora que a apreensão do real pelo pensamento em sua totalidade é algo impossível. Pois a realidade está em constante e permanente movimento, só nos restando a possibilidade do conhecimento aproximativo. “Por isso, a aproximação do conhecimento tem um caráter só secundariamente gnosiológico, embora refira-se também obviamente à gnosiologia” (p. 109). Lukács prossegue dizendo que

Trata-se prioritariamente do reflexo cognoscitivo da determinação ontológica do próprio ser: ou seja, da infinitude e da heterogeneidade dos fatores objetivamente ativos e das importantes conseqüências dessa situação, segundo as quais as leis só podem se afirmar na realidade através de uma rede intrincada de forças antitéticas, num processo de mediação, em meio de infinitas acidentalidades (ibid.).

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Mas essa estrutura do ser social não impossibilita o seu conhecimento. Como vimos ao longo deste capítulo, a partir das posições de Lukács, é possível descobrir as leis gerais do movimento da economia e a linha do desenvolvimento histórico, “não só como é de fato, mas também elevado a conceito” (ibid.). Só agora podemos fechar as observações sobre o método marxiano da economia política. Isso porque o caminho seguido pelo pensamento (para apreensão do real) de cima para baixo, leva-nos ao risco de

(...) superestimar mecanicamente a validade das leis gerais e, aplicando-as muito diretamente, de violentar os fatos; no caminho de baixo para cima, por sua vez, corre-se o perigo de cair num praticismo privado de conceito, de não ver quanto a própria vida cotidiana dos homens singulares deriva da ação direta e indireta de leis gerais (ibid., p. 110).

Entretanto, como já vimos, Marx busca empreender - haja vista o subtítulo de "O Capital" se chamar "Crítica da Economia Política" - uma crítica ontológica ininterrupta dos fatos, das conexões e das legalidades do ser social. E tal postura vale para a discussão suscitada quanto aos perigos dos caminhos de "cima para baixo" e vice-versa. Pois para Marx não basta ter uma perspectiva genérica do ser social, da sua estrutura, (estrutura que determina os caminhos, as direções, ramificações, etc). Pois para ele é indispensável - no processo do conhecimento - tanto as abstrações e generalizações, como as concretizações, via especificação dos complexos e das conexões concretas. Assim especificar, em termos ontológicos, é perceber a ocorrência das leis do ser social, suas concretizações, modificações, tendencialidades. Para conhecer é preciso investigar os traços particulares de cada complexo objetivo, dessa forma sob a categoria de "desenvolvimento desigual" estão combinados dois pontos de vista que formam uma unidade, a unidade entre tendências de desenvolvimento legais-gerais e tendências particulares. Sendo essa unidade dissociável no plano ideal-analítico e indissolúvel no plano ontológico. Conclui-se que na perspectiva ontológica, "trata-se de compreender o ser-propriamente-assim de um complexo fenomênico em conexão com as legalidades gerais que o condicionam e das quais, ao mesmo tempo, ele parece se desviar" (ibid., p. 111).118 Para Lukács o método marxiano até aqui descrito, significa uma ruptura com a velha antinomia (na história da filosofia) entre empirismo e racionalismo. Ao dirigir-se para o ser-precisamente-assim enquanto síntese de momentos heterogêneos, Marx inviabiliza as fetichizações (de sentido gnosiológicos) do racionalismo e do empirismo. Nessas fetichizações, as relações ontológicas fundamentais de "(...) fenômeno-essência e singularidade-particularidade-universalidade são ignorados, pelo que a imagem da realidade sofre uma excessiva homogeneização privada de tensões, simplificadora e, portanto deformante" (ibid., p. 112) Para terminar a exposição a respeito da inseparabilidade entre historicidade e legalidade racional autêntica, voltemos com Lukács à "Introdução ..." de 1857, aonde Marx discute a colocação

118 O trecho em questão diz: “(...) dois pontos de vista que formam porém uma unidade: a unidade - dissociável no plano ideal-analítico, mas indissolúvel no plano ontológico - entre tendências de desenvolvimento gerais-legais e tendências particulares. A solidariedade ontológica dos processos heterogêneos no interior de um complexo, ou nas relações entre complexos, forma a base do seu isolamento (sempre sob reservas) no pensamento. Do ponto de vista ontológico, portanto, trata-se de compreender o ser-propriamente-assim de um complexo fenomênico em conexão com as legalidades gerais que o condicionam e das quais, ao mesmo tempo, ele parece se desviar" (ibid., p. 111).

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histórica das categorias singulares, e diz que só na especificidade histórica elas podem ser entendidas, na concretização dada pela formação histórica correspondente. E que a mera utilização da lógica não basta para defini-las como simples ou desenvolvidas. Neste texto Marx traça a articulação entre categorias simples e complexas, e entre o concreto menos desenvolvido e o mais desenvolvido. De forma que, conforme diz Lukács: “a colocação histórica das categorias singulares só pode ser compreendida em sua concretização histórica e não por sua concretização lógica, por serem definidas como simples ou simples ou desenvolvidas” (ibid., p. 116). E por fim, Marx nos dá sua conclusão metodológica ao dizer que “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. Ou seja, só se pode conhecer o passado se conhecemos o presente, o que no passado surge como simples tendências, no presente está plenamente desenvolvido, e só quando entendemos o real mais desenvolvido é que se pode desvendar o passado menos desenvolvido. O que confirma que “o conhecimento da necessidade ontológica das tendências principais do desenvolvimento conjunto tem lugar post festum” (p. 117). Com isso, Lukács volta, por um breve instante, à polêmica com a exasperação racionalista, que vê essa necessidade como algo somente lógico. O correto, diz ele, é entendermos que a Antiguidade surge e é sucedida pelo feudalismo, e assim sucessivamente, com uma necessidade ontológica e não como uma mera derivação lógico-racional. Portanto:

(...), a partir dessas análises e constatações post festum, pode-se também extrair conclusões concernentes a outros desenvolvimentos análogos, assim como certas tendências gerais do futuro podem ser indicadas a partir das tendências universalmente conhecidas operantes até o momento atual. E essa necessidade ontológica, porém, traduz-se em algo falso tão logo se queira transformá-lo numa ‘filosofia da história’ de base lógica (ibid., p. 117).

Em outras palavras, e tratando da possibilidade do socialismo, é correto que o atual estágio de desenvolvimento do ser social traz em si a possibilidade do socialismo, enquanto tendência. Sua realização dependerá da intervenção consciente de indivíduos. E tal afirmação contrapõe-se às perspectivas de ser a caminhada para o comunismo, ou para o próprio socialismo (fase inferior do comunismo) algo inexorável. Outra conseqüência da conclusão metodológica de Marx, é que

(...), essa estrutura do ser só é ontologicamente possível em complexos concretos dinâmicos, que constituem totalidades relativas. Os ‘elementos’ (as categorias singulares), se considerados fora das totalidades nas quais figuram realmente, se tomados em si, não tem historicidade própria. Só quando constituem totalidades parciais, complexos que se movem de modo (relativamente) autônomo, segundo leis próprias, é que o processo de explicação do ser é também histórico. É esse o caso da vida de todo homem; ou também o da existência daquelas formações, daqueles complexos que, no interior de uma sociedade, surgem enquanto formas de ser relativamente autônomas, como por exemplo o desenvolvimento de uma classe, etc. Mas, dado que o automovimento aqui operante só se pode explicitar realmente em interação com o complexo ao qual pertence, essa autonomia é relativa e de tipo extremamente diverso nos diversos casos estruturais e históricos. Ocupar-nos-emos ulteriormente dessa dialética, quando falarmos do desenvolvimento desigual 119. Aqui é suficiente indicar o problema. (ibid., p. 117-118)

119 O desenvolvimento desigual é uma categoria relevante para o entendimento das posições marxianas, vejamos uma passagem onde Lukács diz o que significa desenvolvimento desigual:

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Para Lukács um exemplo que torna clara a relação entre as "legalidades gerais da economia e o processo global do curso histórico-social" (p. 118) é o que Marx chama de classicidade de uma fase do desenvolvimento. E tal exemplo é interessante, pois acrescenta argumentos à nossa posição que contrapõe-se aos que afirmam ser o "esquema" teórico de Marx somente válido para a época clássica do capitalismo concorrêncial, tal como o desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra como um caso clássico. Mas qual o sentido metodológico dessa determinação? É óbvio que Marx percebia que na esfera do ser social, devido sua própria essência, era uma impossibilidade requerer critérios e formas de abordar as manifestações do ser tal qual o fazem as ciências naturais. Assim, a classicidade de uma fase do desenvolvimento histórico, é um exemplo correto da relação entre as legalidades gerais da economia e o desenvolvimento do curso histórico-social. A fase de classicidade nada mais é do que o período que permite a explicitação das leis gerais da economia sem a interferência de muitos outros fatores. Assim é também uma caracterização histórica onde os componentes heterogêneos do edifício social produzem casualmente as condições da classicidade. E, assim como levam a essa situação, também a retiram dela. Por fim, e reforçando a nossa posição, não é porque Marx indicou a Inglaterra como o caso clássico, que isso se torna uma verdade imutável. Além de ser frágil, como vimos ao longo deste capítulo, o argumento de que Marx teria um "modelo ou paradigma" teórico que só daria conta de explicar o capitalismo concorrêncial tal como se desenvolveu na Inglaterra, no século XIX. Cabe acrescentar que a discussão feita por Lukács sobre classicidade é mais profunda, mas para os nossos objetivos, ficaremos por aqui. CAPÍTULO IV: A Nova Sociologia Econômica à luz da Ontologia de Lukács 4.5. Apresentação No presente capítulo faremos uma leitura crítica da Nova Sociologia Econômica a partir da proposta de uma ontologia do ser social feita por Lukács. Enfatizaremos, em particular, as posições de Weber, Polanyi e do próprio Granovetter. Ao final do capítulo deixaremos claro os limites e as possibilidades de aproximação destas abordagens.

"(...) significa, "simplesmente", que a grande linha de evolução do ser social - a crescente socialidade de todas as categorias, vínculos e relações - não pode se explicitar em linha reta, segundo uma "lógica" racional qualquer, mas se move em parte por vias travessas (deixando mesmo atrás de si alguns becos sem saída) e, em parte, fazendo com que os complexos singulares, cujos momentos reunidos formam o desenvolvimento global, encontrem-se individualmente numa relação de não-correspondência. Mas esses desvios da grande linha do desenvolvimento global (sujeito a leis) dependem todos, sem exceção, de circunstâncias ontologicamente necessárias. Por isso, quando são estudados e esclarecidos adequadamente, têm de vir a tona a legalidade, a necessidade de cada um desses desvios; só que sua análise deve abordar os fatos e as relações ontológicas reais. Mais acima, já indicamos a decisiva advertência de Marx com relação a essas análises: "A dificuldade reside apenas na maneira geral de formular essas contradições. Uma vez especificadas, só por isso estão explicadas". (Lukács, op. cit., p. 134)

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O tratamento adequado de uma construção teórica, em particular situada no âmbito das ciências sociais, exige que a questão da ideologia seja enfrentada de forma preliminar. Assim sendo, iniciamos o presente capítulo tratando da questão do pensar e de sua relação com o real para Marx, Em seguida passamos a tratar da questão da ideologia tendo por referência a “Ontologia” de Lukács. Este movimento nos permitirá diferenciar as perspectivas abertas pela NSE e pelo pensamento marxista e marxiano. Feito este primeiro movimento, abordaremos a lógica interna da construção teórica da NSE, numa tentativa de mostrar seus limites e potencialidades para uma aproximação com a abordagem marxiana e marxista, mais precisamente com a ontologia do ser social tal como proposta por Lukács. 4.6. Algumas Observações sobre a Categoria Ideologia Anteriormente vimos, ao tratarmos da centralidade do trabalho no processo de produção econômica e de reprodução social, que o ato do trabalho exige por parte do indivíduo que age, a prévia ideação, a construção no intelecto das etapas necessárias para a execução da tarefa do trabalho. Neste processo de prévia ideação, fazia-se presente o pôr teleológico próprio ao ato de trabalho. E o sucesso do trabalho ligava-se a obtenção dos resultados esperados e previamente construídos no intelecto. Vimos que para Lukács e para Marx120, este é o processo genético explicativo para o fato de que o homem constrói ativamente os aspectos objetivos e subjetivos de sua existência, ou seja, é o que funda o mundo dos homens, o ser social. Vaisman (1999:253) diz que “(...) na instauração ontológica marxiana o mundo humano é reconhecido na unidade de sua atividade objetiva, que funde objetividade e subjetividade e a prática emerge como o momento que confere unidade às referidas dimensões”. A atividade prática, humana sensível, é a que entrelaça objetividade e subjetividade. Como exposto na primeira Tese sobre Feuerbach “o objeto, a realidade, o ato sensorial” deve ser concebido como “atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo” [Grifos de Marx] (ibid., p. 208). Daí o arremate de Chasin (1995:396-397):

A solução marxiana desse problema crucial articula ‘atividade humana sensível’, prática, com ‘forma subjetiva’, dação de forma pelo efetivador. Tal como encadeadas na I Tese, as duas expressões são sinônimas, o que reflete sua simultaneidade em determinação geral – prática é dação de forma: a primeira contém a segunda, da mesma forma que esta implica na anterior, uma vez que efetivação humana de alguma coisa é dação de forma humana à coisa, bem como só pode haver forma subjetiva, sensivelmente efetivada, em alguma coisa. O que instiga a novo passo analítico, fazendo emergir, em determinação mais detalhada ou concreta, uma distinção decisiva: para que possa haver dação sensível de forma, o efetivador tem primeiro que dispor dela em si mesmo, o que só pode ocorrer sob configuração ideal, o que evidencia momentos distintos de um ato unitário, no qual pela mediação da prática, objetividade e subjetividade são resgatadas de suas mútuas exterioridades, ou seja, uma transpassa ou transmigra para a esfera da outra, de tal modo que interioridade subjetiva e exterioridade objetiva são enlaçadas e fundidas, plasmando o universo da realidade humano-societária – decantação de subjetividade objetivada ou, o que é o mesmo, de objetividade subjetivada. É, por conseguinte, a plena afirmação conjunta, enriquecida pela especificação do atributo dinâmico de cada uma delas, da subjetividade como atividade ideal e da

120 Vide as “Teses sobre Feuerbach” de Marx (s.d.; p. 208-210), em particular a primeira, a quinta, a sexta, a oitava, a nona, a décima e a décima primeira.

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objetividade com atividade real, enquanto momentos típicos e necessários do ser social, cuja potência se expressa pela síntese delas, enquanto construtor de si e de seu mundo.

A construção do mundo dos homens, que parte necessariamente da atividade prática, que por sua vez envolve e entrelaça subjetividade e objetividade, idéia e realidade, coloca para o pensamento marxiano e marxista o fato ontológico de que a sociabilidade é a “condição de possibilidade do pensamento” (Vaisman, op. cit., p. 255). Isto assim é por que, como vimos com Lukács no capítulo 2 da presente Tese (e assim também o é para Marx) o indivíduo é ser social, a exteriorização da vida do indivíduo é ao mesmo tempo confirmação, manifestação da vida genérica, social. A atividade do indivíduo implica e exige a mediação social, da sociabilidade, ela se dá necessariamente em sociedade, e a sociedade “(...) se evidencia como órgão de exteriorização de vida, na medida em que todo modo de efetivação individual – prático/teórico – se dá na trama da interatividade humano-social. Enquanto tal, essa efetivação é apropriação da vida humana” (Vaisman, op. cit., p. 256). A mediação social ocorre em todas as formas de exteriorização humanas, inclusive na que temos em tela no momento: constituição do pensamento humano.121 Comentando um curto parágrafo do Terceiro Manuscrito de 1844 de Marx, no qual esta questão é colocada, Chasin (1995:405) nos diz que:

(...) atividade ideal é atividade social. O pensamento tem caráter social porque sua atualização é a atualização de um predicado do homem, cujo ser é, igualmente, atividade social. Na universalidade ou na individualidade de cada modo de existência teórica – cientista, pensador etc. – o pensamento é atividade social, inclusive pelos materiais e instrumentos empregados. Em síntese, consciência, saber, pensamento etc., sob qualquer tipo de formação ideal, das mais gerais às mais específicas, da mais individualizada à mais genérica, dependem do ser da atividade sensível, socialmente configurado, ao qual confirmam por sua atividade abstrata, igualmente social.

Tomando ainda os Manuscritos de 1844, lembramos que Marx aí defende que existem várias formas de apropriação pelo indivíduo humano do objeto dado (que estão para além da forma egoísta, mesquinha, de entendimento do homem burguês, para o qual a apropriação implica em propriedade física, jurídica, do objeto), através das relações humanas com o mundo, o ver, o ouvir, o cheirar, o saborear, o sentir, o observar, o pensar, perceber, querer, atuar, amar. Assim, nos diz Marx que o “seu comportamento [humano] para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as determinações essenciais e atividades humanas), eficiência humana e sofrimento humano, pois o sofrimento, humanamente apreendido, é uma autofruição do ser humano” (2004:108). Para Marx a atividade humana torna sociais os sentidos (que se apropriam dos objetos) e os próprios

121 Marx (2004:107): “VI. A atividade social e a fruição social de modo algum existem unicamente na forma de uma atividade imediatamente comunitária e de uma fruição imediatamente comunitária, ainda que a atividade comunitária e a fruição comunitária, isto é, a atividade e a fruição que imediatamente, em sociedade efetiva com outros homens, se externam e confirmam, efetuar-se-ão em toda parte onde aquela expressão imediata da sociabilidade (Gesellschaftlichkeit) se fundamente na essência do seu conteúdo e esteja conforme à sua natureza. Posto que também sou cientificamente ativo etc., uma atividade que raramente posso realizar em comunidade imediata com outros, então sou ativo socialmente porque [o sou] enquanto homem. Não apenas o material da minha atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é dado como produto social, a minha própria existência é atividade social; por isso, o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a consciência de mim como um ser social”.

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objetos (resultantes de relação humana objetiva para si e para o homem), quando torna ambos adequados à própria atividade humana. É um processo de humanização dos sentidos e dos objetos. Daí Vaisman (op. cit.; p. 257) dizer que:

É na atividade prática – que é e só pode ser social – que os sentidos se transfiguram em racionalidade, se tornam conceituação ou abstração. Isto é, ao mesmo tempo em que se tem, na atividade prática, a afirmação central da reciprocidade entre o objeto e a atividade humana, ocorre também que ‘os sentidos se fizeram teóricos em sua prática’, porque em cada relação sujeito-objeto os sentidos se apropriam da coisa humanamente, ou seja, através da ação de seu ser, que compreende e produz saber, ou seja, configurações teóricas. Desse modo, a própria capacidade humana de abstração se desenvolve no interior da atividade apropriadora dos objetos, constituindo um dos resultados no devir humano da própria subjetividade.

O pensamento, portanto, é uma forma de expressão e apropriação humana, ao lado de outras formas. Mas esta forma tem uma especificidade que lhe é distintiva, pois somente através desta especificidade é que o homem pode existir enquanto ser social. Pelo pensar o indivíduo pode se apropriar dos objetos reproduzindo-os idealmente. Vaisman (ibid., p. 259) conclui que:

(...) tanto objetividade quanto a subjetividade em todas as suas possíveis figurações, inclusive o pensar, são socialmente constituídas, no interior do complexo e contraditório processo de superação de sua naturalidade, isto é, no processo de humanização do homem nas suas dimensões constitutivas: objetiva e subjetiva.

Neste ponto torna-se clara a argumentação de Marx e Engels em “A Ideologia Alemã” e que depois é retomada por Marx no “Prefácio de 1859” de “Para a Crítica da Econômica Política”, e que dizia que a consciência é um produto social, da sociedade. De tal forma que as idéias, as representações que os homens fazem do real no pensamento resultam das atividades reais que os homens reais desenvolvem. E transformações destas atividades reais levam a transformações no pensar dos homens assim como no produto do seu pensar. Pois, mais uma vez, é a vida real que determina a consciência e não o contrário. Daí a afirmação do “Prefácio de 1859”:

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 1986:25).

Depois do que vimos e argumentamos nos capítulos 2 e 3 da presente Tese, temos tranqüilidade para afastarmos quaisquer imputações de economicismo ao constructo marxiano acima exposto. De tal modo que recorremos a outro autor, que não Lukács ainda que claramente um discípulo dele, para reforçar a depleção de tal crítica ao pensamento marxiano. Assim, Chasin (ibid., p. 408-409) pergunta onde está o escândalo em constatar que tal como os indivíduos

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manifestam sua vida, assim eles pensam. “A extravagância não está, exatamente, em sustentar o oposto?”. E prossegue, agora fazendo referência ao “Prefácio de 1859”, dizendo que:

(...) focalizar condicionamentos é tratar de discernir condições, possibilidades ou impedimentos de atualização, é deslindar processos genéticos, o que só é passível de elisão em face do incondicionado, do absoluto, cuja figura, aliás, ao inverso de consagrar uma presença de validade infinita, remete ao vazio, pois basta desconhecer ou abstrair a origem e o desenvolvimento de algo, real ou ideal, para o mesmo assuma a máscara de eterno.

Do exposto até aqui podemos afirmar que as diferentes formas de pensamento dos homens estão totalmente enraizadas na atividade prático-material dos homens. E estas formas de pensamento podem ser falsas ou verdadeiras, corretas ou fantasiosas, mas “brotam sempre do terreno comum do intercâmbio social (...) [além disso – PH] as ideações não são auto-engendradas, variando de um pólo a outro em função do potencial societário em que se manifestam” (Chasin, 1995:406). Percebe-se que a falsidade ou correção das representações ideais do real não se explica somente pela subjetividade. Mas pelas possibilidades e limites postos pela própria trama constitutiva do real, das formas de sociabilidade nas quais o indivíduo está inserido e as quais ele tem por desafio reconstruir no pensamento enquanto concreto pensado. É a sociabilidade que põe os limites e possibilidades do pensamento. Daí Chasin (ibid., p. 407) aduzir:

Condição de possibilidade da atividade ideal, a vida social responde como fonte primária ou raiz polivalente pelas grandezas e falácias do pensamento. De suas formas emanam carências e constrangimentos que impulsionam ao esclarecimento ou, pelo contrário, conduzem ao obscurecimento da consciência, em todos os graus e mesclas possíveis. De sua formações, que demarcam épocas, tempos predominantes de luz e afirmação do homem, ou de sombra e negação do mesmo, se impõem e realizam, abrangendo todo o gênero em suas tendências peculiares e contraditórias.

Mais uma vez, a sociabilidade põe as possibilidades do pensamento, a consciência só pode se realizar enquanto atributo do ser social, ela é consciência do ser social.

Conclusivamente, determinação social do pensamento em Marx não significa restrição ou cangas opostas ao pensar. Do mesmo modo não significa condicionamento unilateral de verdade ou falsidade; é pois ambivalente, se especificando de acordo com óticas ou angulações sociais possíveis, dentro dos limites históricos sempre mutáveis e de acordo com os graus de maturação das entificações (Vaisman, op. cit., p. 286).

Neste ponto de nossa argumentação é preciso tratar da categoria ideologia enquanto momento ideal da atividade prática-sensível e que faz-se sempre presente na teoria social. Para tanto vamos recorrer à secção III (“Il Momento ideale e l’Ideologia”) da “Ontologia” de Lukács. Assinalamos de imediato, que a abordagem que Lukács dá à categoria de ideologia não é exaustiva. Na verdade ele limita-se a estudar a categoria ideologia nos aspectos necessários para a explicitação de sua “Ontologia”. E na presente Tese, utilizaremos a contribuição de Vaisman (1989) como roteiro expositivo da concepção de ideologia presente na “Ontologia” de Lukács. A concepção de Lukács da categoria ideologia não tem por base, obviamente, uma perspectiva gnosiológica ou epistemológica. Para nosso autor, a ideologia só pode ser entendida a

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partir do homem ativo no mundo real, do homem que responde122 e para o qual, como já argumentamos anteriormente na presente Tese, tem no trabalho a protoforma do seu agir, protoforma de toda atividade social. Lukács (1978:6) nos diz que

Toda praxis social, se considerarmos o trabalho como seu modelo, contém em si esse caráter contraditório. Por outro lado, a praxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras. A necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão que exerce sobre os indivíduos (freqüentemente de maneira anônima), a fim de que as decisões deles tenham uma determinada orientação. Marx delineia corretamente essa condição, dizendo que os homens são impelidos pelas circunstâncias a agir de determinado modo ‘sob pena de se arruinarem’. Eles devem, em última análise, realizar por si as próprias ações, ainda que freqüentemente atuem contra sua própria convicção.

Lembrando, ainda, que no processo de trabalho as categorias de causalidade e teleologia encontram-se em determinação reflexiva, pois em termos ontológicos elas não são contraditórias entre si, pois são componentes de um mesmo processo. A teleologia, enquanto momento ideal, de formulação na consciência do indivíduo do futuro ato concreto de trabalho, só se realiza na efetividade a partir da ação de uma dada causalidade. Mas, como também já tratamos anteriormente na presente Tese, para que estas posições teleológicas próprias da esfera econômica se efetivem é preciso a presença das chamadas posições teleológicas secundárias que tem por objetivo influenciar os comportamentos de outros homens. Essas posições teleológicas secundárias de fato não pertencem à esfera econômica, mas são imprescindíveis para a permanência e reprodução desta esfera. Lukács (1981:465) adverte que já

le primissime operazioni lavorative, le piú primordiali conseguenze dell’incipiente divisione del lavoro, pongono agli uomini compiti la cui esecuzione esige e mobilita forze psichiche nuove, diverse da quelle richieste pe il processo lavorativo vero e proprio (si pensi al coraggio personale, all’astuzia e inventiva, all’altruismo in certi lavori eseguiti in collettivo). Le posizioni teleologiche che vi intervengono, perciò, sono – tanto piú esplicitamente quanto piú sviluppata è la divisione sociale del lavoro – dirette nell’immediato a risvegliare, corroborare e consolidare negli uomini questi affetti divenuti indispensabili.

Assim as posições teleológicas secundárias se apresentam nos momentos incipientes da divisão do trabalho e se tornam tanto mais importantes para o processo de existência e de reprodução do ser social quanto mais desenvolvida e complexificada for a própria divisão do trabalho. De tal forma que

il processo di riproduzione economica a partire da uno stadio determinato non potrebbe funzionare, neanche sul piano economico, se non si formassero campi di attività non economica che rendono

122 Vaisman (1989:411) resume de forma muito clara este ponto: “Assim, um ser que dá respostas é um ser que reage a alternativas que lhe são colocadas pela realidade objetiva, retendo certos elementos que nesta existem e transformando-os em perguntas, para as quais procura a melhor resposta possível. Em outras palavras, o homem é um ser que responde ao seu ambiente e, ao fazê-lo, ele próprio elabora os problemas a serem respondidos e lhes dá as respostas possíveis naquele momento. Essas respostas podem, no momento subseqüente, se transformar em novas perguntas, e assim sucessivamente, de tal modo que, tanto o conjunto de perguntas, quanto o conjunto de respostas vão formando gradativamente os vários níveis de mediações que aprimoram e complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e transformam a sua existência”.

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possibile sul piano dell’essere lo svolgersi di questo processo. Non accenneremo neppure, ora, ai problemi concreti ed essenziali che ne derivano, ma è chiaro che siamo cosí giunti a parlare della sfera della sovrastuttura, dell’ideologia (ibid., p. 376-377).

Aqui incluem-se outras atividades não econômicas que também são “organizzatrici della società”, e que constituem a “sovrastruttura”, em particular as esferas jurídica e política. A este respeito Vaisman (1989:414) observa que “(...) o conteúdo [destas esferas] pode estar voltado tanto para a manutenção quanto para o desenvolvimento ou destruição do status quo, mas cuja existência é determinada, através de múltiplas mediações, pelas necessidades postas pelo desenvolvimento material da sociedade”.123 Como afirmamos mais acima, as posições teleológicas secundárias já eram identificáveis nas formações sociais mais primitivas, e vão desenvolver toda sua potencialidade nas formações sociais mais desenvolvidas e que apresentam a mais avançada divisão do trabalho. Daí Lukács (1978:9) dizer que

Com a diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de ideologia. Ou seja: nos conflitos suscitados pelas contradições das modalidades de produção mais desenvolvidas, a ideologia produz as formas através das quais os homens tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta.

Até este momento de nossa exposição ressaltamos a identidade abstrata entre as posições teleológicas primárias e as secundárias (base estruturante da ideologia). Por serem teleologias, ambas só podem ser mediante tomadas de decisões alternativas. Mas é óbvio que há diferenças entre elas. Lukács (1981:492) argumenta que “il mondo degli oggetti delle posizioni teleologiche primarie, nel ricambio organico fra società e natura, è piú determinato e ha durata oggettiva magiore di quello delle posizioni il cui oggetto è l’agire futuro, desiderato, di altri uomini”. O cerne da diferença entre as posições radica no fato de que no processo de trabalho existe um certo grau de incerteza associado, mas a realização dos objetivos pré-pensados do trabalho depende do conhecimento adequado dos meios concretos-reais necessários para a efetivação do pôr teleológico. Já nas posições teleológicas secundárias o grau de incerteza é muito mais amplo, pois tais posições teleológicas ao se efetivarem põem em movimento forças e nexos reais-concretos novos que trazem novas legalidades que tornam difícil, senão impossível, o vislumbre das novas tendências evolutivas.

“Cio implica bensí una differenza qualitativa, ma ovviamente anche in questo caso non una incertezza assoluta, non uma irrazionalità. I diversi modi con cui, per necessità economico-sociale, si è tentato di influire sugli uomini hanno sempre piú o meno funzionato; il fatto che il coefficiente di incertezza sia piú alto, ha semplicemente comportato in questo campo una presenza, incisività el

123 Confirmando esta assertiva, vejamos a argumentação de Lukács (1981:464): “Per il nostro problema, la cosa piú importante è che tale sviluppo porta a quelle posizioni teleologiche che intendono provocare un nuovo comportamento degli altri uomini e le rende sempre piú importanti, in senso estensivo e intensivo, quantitativo e qualitativo, per il processo di produzione e per l’intera società. Basti ricordare come il costume, le usanze, la tradizione, l’educazione, ecc., che si fondano totalmente su posizioni teleologiche di questo genere, con lo sviluppo delle forze produttive vadano di continuo accrescendo il loro raggio d’azione e la loro importanza, come finiscano per formarsi sfere ideologiche specifiche (anzitutto il diritto) per soddisfare questi bisogni della totalità sociale”.

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efficacia del caso, della ineguaglianza di sviluppo, molto maggiori che nel campo del lavoro in senso stretto (Lukács, 1981:465).

Ou seja, nas posições teleológicas secundárias o grau de incerteza (mas não de irracionalidade) é bem maior do que o verificado nas posições primárias. Mais uma vez nas palavras de Lukács (ibid.):

La differenza sta nel fatto che una posizione teleológica mette in motto in definitiva non uma catena causale, ma uma nuova posizione teleológica. Ne deriva, anzitutto, che, da una parte, la situazione comune di tutte le decisioni umane, l’impossibilità di conoscere tutte le circostanze dell’agire, qui assume un peso maggiore che nell’altro tipo di posizioni, dall’altra parte il senso dell’ intenzione que è molto piú impreciso.La necessaria ignoranza di tutte le condizioni interviene anche nel lavoro, ma qui essa ha in genere un effetto molto piú esterno.

Ou seja, as posições teleológicas de primeira ordem põem em movimento novas causalidades, já as posições teleológicas de segunda ordem ao terem por telus o agir de outros homens, provocam novas posições teleológicas. O resultado de tal diferença é a ampliação da incerteza e uma maior complexidade quanto a intencionalidade da ação no segundo caso. Vaisman (1989:416) resume a questão do seguinte modo:

“Em suma, o que identifica todas as posições teleológicas é o fato de que em todas se dá uma tomada de decisões entre alternativas. Ao lado dessa identidade, no entanto, coloca-se uma série de diferenças. A primeira e fundamental: o objeto das posições teleológicas secundárias são os próprios homens, as suas ações e seus afetos na praxis social extra-laborativa; decorrentemente, a segunda diferença está no grau de incerteza que permeia essas posições, que é muito maior do que aquele que existe no caso do trabalho, o que não impede que haja um conhecimento racional das tendências em presença, mesmo que este conhecimento, de forma mais acabada, só se dê post festum.

Vaisman prossegue sua exposição e passa a estabelecer o limites mais gerais do espaço no qual, para Lukács, a ideologia opera. Assim nos diz que:

Esse espaço é delimitado pelas respostas práticas dos homens, que se voltam à resolução de problemas que permeiam vários níveis de sua existência. Respostas que podem visar a solução de problemas colocados a nível imediato, na própria vida cotidiana, ou podem estar voltadas à solução de problemas de caráter genérico. Em ambos os planos, elas são mediadas por algum tipo de produção espiritual, formando o conjunto das posições teleológicas (excluídos, aqui, o trabalho) onde a ideologia desempenha o papel de prévia-ideação. Ou seja, a ideologia, em qualquer uma de suas formas, funciona como o momento ideal, que antecede o desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias (ibid.).

Mais uma vez, e optando pelo risco da redundância como meio de se evitar mal entendidos: Para Lukács o homem é um ser que responde, a resposta é dada sempre entre alternativas, e tem no ato de trabalho a protoforma do agir humano. O agir humano é condicionado pelo contexto e necessidades histórico-sociais que por sua vez são fruto de decisões humanas anteriores. Para agir e responder a estas necessidades os homens constroem, produzem idéias. Assim, as idéias não têm vida própria, mas são inter-relacionadas, através de vários níveis de intermediação, às formas pelas quais os homens se constituem materialmente, concretamente,

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à forma como eles se produzem enquanto homens e se reproduzem enquanto ser social. Vaisman (ibid., p. 416-417) diz que “o momento ideal das posições teleológicas voltadas à prática social pode vir a ser constituído pelo conteúdo dessas produções espirituais em sua possível função ideológica”. Em Lukács não há um mundo a parte no qual habita a consciência, as idéias. O mundo espiritual, das idéias, produtos da consciência dos homens surge e se desenvolve em estreita ligação com o mundo da produção material, com o mundo real-concreto. De tal modo que quanto mais complexa é a produção material, quanto mais evoluída é a divisão do trabalho, mais diversificada é a produção espiritual da humanidade. Nas palavras de Lukács (1981: 363):

È vero che nelle sfere ideologiche altamente sviluppate vi sono tipi di posizioni che, di regola, solo indirettamente influiscono sull’agire materiale degli uomini, ma bisogna pensare che in questo caso il processo di mediazione presenta soltanto una differenza quantitativa. Quanto piú sviluppata, quanto piú sociale è una formazione economica, tanto piú complessi sono i sistemi di mediazione che essa deve costruire in sé e intorno a sé, ma questi interagiscono tutti in qualche modo con l’autoriproduzione dell’uomo, con il ricambio organico con la natura, restano in rapporto con esso e sono al contempo cosiffatti da retroagire su di esso, nel senso che possono favorirlo o ostacolarlo. In questi casi è altrettanto evidente che parti importanti della sovrastruttura, basti pensare al diritto e alla politica, sono intimamente connesse, hanno uno stretto rapporto reciproco con il ricambio organico.

Em Lukács temos uma dupla caracterização da ideologia, assim ele apresenta a categoria de ideologia numa acepção mais ampla e mais restrita. Nosso autor nos diz que a “forme ideologiche gli strumenti per il cui tramite entrano nella coscienza e vengono affrontati anche i problemi che riempiono tale quotidianità” (1981:446). As formas ideológicas estão permanentemente presentes no cotidiano social, pois este cotidiano enfrenta problemas dos quais os indivíduos devem tomar conhecimento e para os quais devem buscar soluções. Mais adiante Lukács continua argumentando que a ideologia é a forma ideal da práxis social, vejamos:

L’ideologia è anzitutto quella forma di elaborazione ideale della realtà che serve a rendere consapevole e capace di agire la prassi sociali degli uomini. Deriva di qui la necessità e l’universalità di taluni modi di vedere per dominare i conflitti dell’essere sociale. In questo senso ogni ideologia ha il suo esser-proprio-cosí sociale: essa nasce direttamente e necessariamente dall’hic et nunc sociale degli uomini che agiscono socialmente nella società. Questo determinismo verso tutti i modi d’espressioni umani esercitato dall’hic et nunc dell’esser-proprio-cosí storico sociale della loro genesi ha come conseguenza necessaria che ogni reazione degli uomini al loro ambiente economico-sociale può in determinate circostànze diventare ideologia. Questa possibilità universale di trasformasi in ideologia comporta ontologicamente che il suo contenuto (e in molti casi anche la forma) conserva segni incancellabili della sua genesi. Che questi segni divengano impercettibili o risultino chiarissimi dipende dalle loro – possibili – funzioni nel processo dei conflitti sociali. Infatti l’ideologia è anche, indissociabilmente dal primo aspetto, uno strumento della lotta sociale che caratterizza ogni società, almeno quelle della <<preistoria>> dell’umanità. In queste lotte l’ideologia acquista anche il significato peggiorativo divenuto storicamente tanto importante. L’inconciliabilità fattuale delle ideologie in conflitto fra loro prende nel corso della storia le forme piú svariate, può presentarsi come interpretazione di tradizioni, di convincimenti religiosi, di teorie e metodi scientifici, ecc. ma si tratta sempre anzitutto di strumenti di lotta, la questione da decidere è sempre un <<che fare?>> sociale e il loro contrapporsi fattuale è determinato dal contenuto sociale di questo <<che fare?>>. Gli strumenti con cúi viene fondata tale

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pretesa di guidare la prassi sociale restano strumenti il cui metodo, la cui costituzione, ecc. dipendono sempre dall’hic et nunc sociale di quella specie di <<che fare?>> (1981:446-447).

Mais uma vez, a ideologia é o momento ideal da práxis humana, apresenta-se no momento inicial, na finalidade e na dinâmica de tal práxis (Vaisman, 1989:418). A ideologia só pode ser fruto da realidade concreta, realidade sobre a qual ela pensa e atua. Ela surge no “aqui e agora” social que coloca problemas a serem resolvidos pelos homens, pois é produto do pensamento, da consciência do homem e “a forma consciência é a mediação da própria prática social. Do ponto de vista ontológico, estamos, pois, diante do seguinte: o produzido é determinado pela sua produção, que é e só pode ser social. E, em termos gerais, portanto, ela está presente em todas as ações humanas, enquanto orientação ideal” (ibid.). Quaisquer soluções apresentadas pelos homens, aos problemas socialmente postos, que oriente, operacionalize, e torne consciente a prática social, tornam-se ideologias. Daí Vaisman (ibid.) dizer que “ser ideologia não é um atributo específico desta ou daquela expressão humana, mas, qualquer uma, dependendo das circunstâncias, pode se tornar ideologia. Lukács não se restringe, portanto, em tomar a ideologia apenas em seu aspecto de instrumento de luta de classes (...)”. Para a “Ontologia” de Lukács, portanto, ideologia e existência social são realidades necessariamente entrelaçadas. Numa concepção ampla de ideologia podemos dizer que “onde quer [que] se manifeste o ser social há problemas a resolver e respostas que visam a solução destes; é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações” (ibid., p. 419). A caracterização mais restrita de ideologia por Lukács, leva em conta o fato de que o avanço das formas de sociabilidade põe em tela o maior desenvolvimento dos conflitos sociais, estes conflitos apresentam-se agora como o grande problema do ser social. A ideologia sofre um deslocamento e transforma-se num dos instrumentos pelos quais os indivíduos e as classes sociais realizam suas lutas sociais. Vejamos o que nos diz Lukács (1981:452):

Per fare chiarezza dobbiamo tornare allá caratterizzazione piú ristretta, ma anche piú precisa, di ideologia. Secondo Marx, come abbiamo visto, essa consiste nel fatto che gli uomini con l’ausilio delle ideologie portano alla coscienza e combattono i loro conflitti sociali, la cui base ultima è da rintracciare nello sviluppo economico. Vedremo che l’analisi di questa zona piú ristretta ci darà anche la chiave per comprendere con maggior concretezza quella piú ampia, anzitutto portando alla luce i legami ontologici reali fra esse.

Na concepção restrita, a ideologia é tanto instrumento de combate como de conscientização, e se apresenta assim na fase da pré-história humana, na qual predominam formas de sociabilidade cindidas em classes antagônicas. Um ponto importante na concepção ontológica da categoria ideologia por Lukács é que ideologia não é necessariamente uma falsa consciência. Para ele

(...) la correttezza o l’erroneità non bastano a fare di una veduta una ideologia. Né una veduta individuale corretta o erronea, né una ipotesi, una teoria, ecc. scientifica corretta o erronea sono in sé e per sé una ideologia: possono soltanto, come abbiamo visto, diventarlo. Soltanto dopo esser divenute veicolo o pratico per combattere conflitti sociali, quali che essi siano, grandi o piccoli, eisodici o decisivi per il destino della società, esse sono ideologia (1981:448-449).

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Neste momento do texto, nosso autor apresenta alguns exemplos históricos que confirmam sua concepção124 de que ideologia não é necessariamente falsa consciência. E acrescentamos as considerações de Mészáros (1993:10), que reforçam esta perspectiva luckácsiana:

Essa circunstância, por si só, já evidencia como seria ilusória a tentativa de explicar a ideologia meramente pelo rótulo de ‘falsa consciência’, pois o que define a ideologia como ideologia não é seu alegado desafio à ‘razão’, nem sua divergência em relação às normas pré-concebidas de um ‘discurso científico’ imaginário, mas sua situação real em determinado tipo de sociedade. As complexas funções da ideologia surgem exatemente dessa situação, não sendo minimante inteligíveis em termos de critérios racionalísticos e cientificistas abstratos a elas contrapostos, o que constitui meramente uma petição de princípio.

Mais uma vez, com Lukács (ibid., p. 544), “(...) essere ideologia non è una qualità sociale fissa di questo o quel prodotto spirituale, ma invece per sua natura ontológica è una funzione sociale, non una specie di essere”. Ideologia, para nosso autor não é entendida a partir da gnoseologia, mas (e não poderia ser de outro modo) a partir da perspectiva ontológica, ela é uma função social e não uma espécie de ser. Logo é preciso analisar tal categoria a partir da função que ocupa na produção e reprodução do ser social, “(...) enquanto veículo de conscientização e prévia-ideação da prática social dos homens” (Vaisman, 1989:421). Desta forma, e tomando a questão a partir da gnoseologia, “pode-se determinar se um produto é falso ou verdadeiro, mas não se pode através disso determinar se ele pode ou não assumir função ideológica. Essa identificação só é possível através do critério ontológico-prático, ou seja, através do exame da função que este pensamento desempenha na vida cotidiana efetiva” (ibid.).125 Ao longo das secções de “Ontologia do Ser Social” em que trata especificamente da categoria ideologia, Lukács de fato não realiza uma análise completa, exaustiva, de tal categoria. Entretanto, ele aborda questões que são fundamentais para a caracterização da mesma e que nestes nossos rápidos comentários não abordaremos. Mas deixamos registrado o destaque que ele dá para o direito e a política enquanto formas de ideologia restrita e da filosofia e da arte enquanto formas puras de ideologia.

124 “L’astronomia eliocentrica oppure la dottrina evoluzionistica nel campo della vita orgânica sono teorie scientifiche, a prescindere dalla loro correttezza o erroneità, e né esse in quanto tali né il loro accoglimento o ripudio costituiscono in sé ideologia. Solamente quando, con Galilei e Darwin, le prese di posizione nei loro confronti divennero strumenti di lotta per combattere dei conflitti sociali, esse – in tale contesto – operano da ideologia. Il collegamento della loro verità o falsità con questa funzione di ideologie, è naturalmente importante, anche ideologicamente, nelle analisi concrete delle situazioni concrete, ma, fin tanto che si tratta di controversie sociali, non toglie che esse siano da considerarsi ideologie (perlomeno: anche ideologie). Neppure un mutamento di funzione, per cui da fattore di progresso sociale esse divengano un fatto rezaionario cambia questo status sociale di ideologia: i seguaci liberali di Herbert Spencer fecero del darwinismo un’ideologia allo stesso modo dei fautori reazionari del ‘darwinismo sociale’ nel periodo imperialista” (Lukács, 1981:449). 125 Lukács (ibid., p. 461) nos diz que: “Solo quanto alla conoscenza di che cosa sai una ideologia essa induce in errore, a causa del suo impianto prevalentemente gnoseologico. Che la stragrande maggioranza delle ideologie si fondi su premesse che non reggono a una critica gnoseologica rigorosa, specie se condotta su un lungo periodo di tempo, è certamente vero. Ma ciò significa che stiamo parlando della critica della falsa coscienza. Tuttavia, in primo luogo vi sono molte realizzazioni della falsa coscienza che non sono mai diventate ideologia, in secondo luogo quel che diventa ideologia non è affatto necessariamente identico alla falsa coscienza. Quel che è realmente ideologia, perciò, possiamo identificarlo soltanto dalla sua azione sociale, dalle sue funzioni nella società”.

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Neste momento, nosso foco deve se voltar para as relações entre ciência e ideologia. Os primeiros movimentos sobre esta questão, por parte de nosso autor em sua “Ontologia”, estão associados à questão das ciências da natureza. Segundo ele, a origem das ciências naturais associa-se às posições teleológicas próprias do processo de trabalho e o avanço da divisão do trabalho, do próprio processo de trabalho e por fim das formas de sociabilidade que correspondem a estes movimentos, legaram diferenciação e autonomia das ciências naturais em relação aos processos empíricos de trabalho.126 Claramente, para nosso autor os complexos constitutivos das ciências naturais não são ideológicos, pois de partida não estão voltados para a resolução de conflitos sociais e sim para a compreensão mais apurada possível do ser inorgânico e orgânico posto que tal conhecimento é decisivo para a obtenção da prévia ideação posta no processo de trabalho. Daí Lukács (ibid., p. 541-542) dizer que:

La teoria piú complessa nel campo, ad esempio, della física moderna non è, sotto il profilo ontologico generale, una ideologia, per le medesime ragioni per cui non lo era l’individuazione immediata delle pietre adatte alla affilatura da parte dell’uomo primitivo. E quanto a determinati fenomeni sociali generali, abbiamo già visto come la teoria di Galilei o quella di Darwin siano diventate ideologia senza alcun rapporto diretto e necessario con la loro essenza teorica, alla stessa stregua del mito di Prometeo che derivò dall’atto dell’accensione del fuoco. Nondimeno è parimenti mitologico tentar di separare ermeticamente le scienze naturali dal campo dell’ideologia per quel che concerne sia la loro genesi sia la loro azione nel tempo. Qui abbiamo di nuovo qualcosa di fronte a cui gli storici delle scienze naturali sono soliti assumere un atteggiamento di aristocartico fastidio: l’ontologia della vita quotidiana. Ma questa agisce con molta forza proprio su quelle idee di fondo sulle quali la scienza di epoche intere si appoggia normalmente, considerandole cosa ovvia.

Assim, ainda que as ciências naturais não sejam ideologias da perspectiva de sua gênese e da sua ação no tempo, é preciso considerar a ação da ideologia nestes complexos, pois assim não proceder e separar hermeticamente as ciências naturais da ideologia seria algo mitológico. Lukács dedica mais atenção para a inter-relação entre as ciências sociais e a ideologia. Vamos tomar a liberdade de fazermos uma seqüência de citações que, acreditamos, sintetizam esta inter-relação, para em seguida tecermos alguns comentários a respeito das mesmas:

Quanto alle scienze sociali la questione è oggettivamente piú semplice, ma ancor piú controversa sul piano soggettivo. Piú semplice perché la base ontologica di ogni scienza della società è costituita da posizioni teleologiche che intendono provocare mutamenti nella coscienza degli uomini, nelle loro posizioni teleologiche future. Già questo significa la presenza sia nella genesi sia nel loro operare di un elemento ideologico ineliminabile. La realizzazione è naturalmente molto piú complicata. Da un lato perché la funzione esercitata da ognuna di queste scienze nella divisione del lavoro pone al medesimo tempo anche il problema di riflettere, ordinare, esporre, ecc. i fatti e i rapporti da essa studiati nel modo in cui effettivamente sono stati e sono presenti entro la totalità dell’essere sociale. Sono questa tendenza e la sua tendenziale realizzazione che rendono scienze queste scienze, assicurando loro al contempo un posto nella divisione sociale del lavoro. Questo essere sociale

126 “Muovendo da quanto abbiamo raggiunto fin qui, a noi sembra piú facile illuminare l’aspetto ideologico negli altri complessi della sovrastruttura. La questione si presenta semplice nelle scienze della natura. Affermare in termini storici generali che il loro progresso è legato molto saldamente allo sviluppo della produzione, significa dire ancora poco: è una cosa giusta ma astratta. Perché è troppo poco limitarsi a riscontrare che le scienze naturali si sono lentamente differenziate acquistando autonomia a partire dalle conoscenze all’inizio sollo empiriche, spesso accidentali, che sostenevano nella pratica le posizioni teleologiche nel ricambio con la natura” (Lukács, 1981:541).

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immediato può tuttavia produrre la feticizzazione del momento tendeciale in un fatto assoluto. In specie nella battaglia contro la teoria marxiana dell’ideologia si è avuta tale feticizzazione, espressasi sopratutto come rigida contrapposizione metafisica fra ideologia (soggettiva) e pura oggettività in quanto principio esclusivo della scienza. Ma a una considerazione ontologica serena questo antagonismo metafisico si rivela del tutto fittizio. In primo luogo, il fatto che un’opera scientifica o magari un’intera scienza abbia una genesi determinata, dall’ideologia non significa per nulla che essa sia incapace di produrre tesi o teorie scientifiche oggettive (Lukács, 1981:542-543).127

A partir do trecho citado acima, podemos afirmar que para Lukács a ideologia está presente nas Ciências Sociais tanto na gênese destas quanto ao longo de sua ação no tempo. Ontologicamente, as Ciências Sociais são constituídas a partir de posições teleológicas secundárias, as que visam provocar mudanças na consciência dos homens e nas suas posições teleológicas futuras. Ao mesmo tempo, as Ciências Sociais devem compreender, refletir, ordenar, expor, objetivamente seu objeto de tal forma a facilitar o controle dos movimentos e do próprio processo de reprodução do ser social cada vez mais complexo. Essa singularidade das Ciências Sociais frente às Ciências Naturais coloca uma série de problemas dentre os quais Lukács destaca a rígida contraposição metafísica entre ideologia enquanto algo subjetivo e a ciência enquanto representante e encarnação exclusiva objetividade. Tal contraposição é bastante difundida no meio acadêmico (com forte presença na construção de Weber) e mesmo no senso comum, entretanto para Lukács uma consideração ontológica sobre a mesma revela que ela é fictícia. Pois uma obra científica ou uma ciência inteira pode ter sua gênese determinada pela ideologia sem que isto as inviabilize enquanto teorias científicas objetivas, sem esquecer que uma verdade científica pode ser utilizada enquanto ideologia sempre que esteja voltada e seja instrumentalizada para a solução de contradições postas no próprio ser social. Em continuação ao trecho acima citado, e reafirmando que conhecimentos geneticamente influenciados pela ideologia não perdem em objetividade científica, Lukács prossegue argumentando que:

Il motivo di questo fatto è manifesto. La divisione sociale del lavoro fa nascere, in termini sempre piú differenziati, scienze diverse per poter padroneggiare lo specifico essere sociale, allo stesso modo in cui è stato possibile padroneggiare sempre piú il ricambio organico con la natura mediante le scienze naturali. Senza dubbio ciò pone l’esigenza dell’oggettività nella selezione, critica, trattazione, ecc., dei fatti. Sarebbe tuttavia una ilusione ritenere che ciò escluda da tali scienze i momenti ideologici (1981:543-544).

127 Este parágrafo continua com a apresentação de um exemplo que confirma a conclusão exposta ao final do trecho citado acima: “Per richiamasi a un esempio assai noto: il punto di partenza dell’economia di Sismondi è indubbiamente ideologico, e cioè la lotta per un indirizzo evolutivo dell’economia capitalistica che ne eviti le pericolose contraddizioni. Questo orintamento viene però fondato con un’analisi economica che, per la sua correttezza oggettiva, ha fatto epoca nella scienza: dimostrando cioè la legalità economica della crisi a partire da n determinato grado di sviluppo del capitalismo. La legitimità scientifica di queste tesi dovette essere riconosciuta perfino dal suo grande antagonista Ricardo (la base della cui oggettività scientifica, sia detto di passata, vale a dire la considerazione dell’economia capitalistica alla luce dell’interesse del capitale complessivo, era anch’essa determinata dall’ideologia). Ma gli esempi potrebbero essere infiniti” (ibid.).

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Aqui, destacamos a afirmação de que seria uma ilusão excluir o momento ideológico das Ciências Sociais. Vaisman (1989:441-442) a este respeito nos diz que:

(...) as ciências e as formas puras de ideologia se aproximam no plano sócio-ontológico, procedem da mesma base da vida cotidiana, para onde retornam seus produtos, influindo, desse modo, sobre o comportamento geral dos homens. Apesar dessa semelhança, deste ponto de contato que ressalta o equívoco ontológico de conceber ciência e ideologia como universos contrapostos e excludentes, a pretensão à objetividade por parte da ciência não desaparece, de modo que a ciência, do ponto de vista ontológico, é uma área da superestrutura ideal distinta das formas específicas de ideologia, (...).

Sobre esta separação dos dois complexos (ideologia e ciência) Lukács entende que tem por fundamento suas funções no ser social e não critérios de cientificidade ou não cientificidade. A cientificidade se funda na busca do conhecimento acurado da realidade em si. Nas Ciências Naturais esta busca ocorre de forma espontânea, e seus resultados ao serem postos em prática com algum sucesso, podem facilitar o processo de produção e reprodução do ser social. Entretanto, Lukács (1981:442) acrescenta que:

Tuttavia abbiamo già visto che i loro punti di partenza, e quindi i loro metodi e risultati [della scienze naturali – PH], di solito sono largamente determinati dall’ontologia della vita quotidiana. Ora, per quanto spontaneo sia il rapporto della scienza con questa ontologia della vita quotidiana, da una analisi piú approfondita verrà in luce che nela massima parte dei casi il suo semplice accoglimento o il suo rifiuto critico – consapevolmente o no, per via diretta o mediata, talvolta attraverso ampie mediazioni – sono conessi a prese di posizione nei confronti del rispettivo livello delle forze produtive e del rispettivo assetto della società. In termini ancor piú palesi ciò avviene nelle scienze sociali.

Mais uma vez, os pontos de partida, os métodos e resultados da ciência são determinados pela ontologia da vida cotidiana. E a aceitação ou rejeição crítica desta determinação a partir da vida cotidiana está ligada às posições assumidas nos confrontos de dado nível de forças produtivas e da respectiva ordem social. E tudo isto é tanto mais evidente para o caso das Ciências Sociais. Vaisman (ibid., p. 442) assinala que: “Desse modo, não podendo haver uma contraposição rígida entre cientificidade e ideologia, e estando as suas diferenças baseadas nas suas distintas funções no ser social, as articulações sócio-ontológicas entre uma e outra são reais e comuns, independentemente da distinção de estatutos gnoseológicos”. Lukács finda o capítulo “Il Problema dell’ideologia” (que é o terceiro e último da seção III intitulada “Il Momento Ideale e l’Ideologia”) dizendo que não é possível discutir o problema da ideologia, mesmo de forma esquemática, sem tocar, ainda que rapidamente, na questão de como o marxismo se insere no problemático complexo da ideologia. Assinala que até mesmo eminentes pensadores da burguesia tratam esta questão de forma banal:

Uno studioso serio come Max Weber, ad esempio, lo trasforma in uno scherzo gnoseologico: ‘Neppure l’interpretazione materialistica della storia è una vettura di piazza da prendere o lasciare a volontà, ed essa non si arresta di fronte agli attori delle rivoluzioni’. Max Weber si basa qui sulla contrapposizione gnoseologica fra scienza e ideologia, che presuppone un contrasto metafisico rigido: la scienza procede per strade assolutamente avalutative e quindi non può avere nessuna

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identità con le ideologie, che hanno un orientamento valutativo-teleologico, per cui viene escluso fra loro un comune funzionamento sociale. I marxisti perciò dovrebbero, secondo Weber, scegliere una volta per tutte se intendono considerare la loro teoria una scienza o una ideologia. Si tratta di pura metafisica a base gnoseologica (1981:546-547).

Vimos acima a resposta crítica de Lukács para esta separação metafísica entre ciência e ideologia. E nosso autor mais adiante no texto argumenta que o marxismo se vê desde sempre como um instrumento de combate nos conflitos do seu tempo, tempo no qual o conflito central é entre a burguesia e o proletariado. Vejamos:

Da una parte, è chiaro che il marxismo ha visto se stesso fin dall’inizio come organo, come strumento per combattere nei conflitti del suo tempo, e anzitutto in quello centrale fra borghesia e proletariato. La esplicita ultima Tesi su Feuerbac circa il contrasto (e l’unità) fra interpretare e traformare la realtà, anche se è stata spesso letta in termini semplicistici e volfarizzanti, espone con tutta schiettezza questo orientamento fin dall’inizio. Cosí come non si può dire che esso abbia mai cercato di nascondere la propria genesi storico-sociale con una ‘atemporalità’ costruita in forma gnoseologica. Ciò è dimostrato con tutta evidenza dall’atteggiamento fortemente conspevole, al tempo stesso di derivazione e di critica, verso tutti i predecessori (Hegel, l’economia classica, i grandi utopisti). Il marxismo dunque non ha mai celato la sua genesi e la sua funzione ideologiche: nei suoi classici si può leggere di frequente che esso è appunto l’ideologia del proletariato. D’altra parte il marxismo pretende sempre, in tutti suoi discorsi teorici, storici e di critica sociale, di essere scientifico. La sua polemica contro le opinioni errate (per esempio quelle di Proudhon, di Lassalle, ecc.) è nella sostanza sempre condotta sul piano puramente scientifico, vuol dimostrare in modo razionale e programmatico che vi sono incoerente nella teoria, inesattezze nella ricostruzione dei fatti storici, ecc. La circostanza che molto spesso tali discussioni vengano corroborate criticando anche la genesi sociale di queste opinioni errate, così come talvolta l’infondatezza spesso spontanea, l’ingenuità, la malafede, ecc. dell’atteggiamento ideologico in questione, non le cambia il carattere scientifico. La contraposicione reale fra ciò che è scientifico e ciò che non lo è, è una questione di contenuto e di metodo; (...) (1981:549)

Em resumo, para Lukács o marxismo desde sempre postulou de forma explícita ser ideologia e ciência, pois não há contraposição ou exclusão recíproca entre estes complexos. De tal forma que o engajamento político-ideológico não traz, a princípio, limites para a cientificidade do pensamento. Mas a compreensão correta da especificidade do autêntico marxismo, e da ligação entre ideologia e ciência, para nosso autor, exige a compreensão de que o marxismo institui uma nova ligação entre ciência e filosofia. Tal ligação se dá no plano do método, que é a da crítica recíproca (“vicendevole”) entre a filosofia e a ciência:

(...) la scienza controlla in genere ‘dal basso’ se le generalizzazioni ontologiche delle sintesi filosofiche si accordano con il movimento effettivo dell’essere sociale, se non si allontanano da questo sulla strada dell’astrazione. Dall’altro lato, la filosofia sottopone la scienza a una permanente critica ontologica ‘dall’alto’, controllando di continuo fino a che punto ogni singola questione venga discussa sul piano dell’essere al posto giusto, nel contesto giusto, dal punto de vista strutturale e dinamico, se e fino a quale punto l’immersione nella ricchezza delle singole esperienze concrete non renda confusa la conoscenza degli sviluppi contraddittori e ineguali della totalità dell’essere sociale, ma invece la elevi e approfondisca. Ambedue questi atteggiamenti critici guardano, inoltre, anche alla ontologia della vita quotidiana (ibid., p. 550).

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Ou seja, para Lukács o marxismo produz um novo tipo de relacionamento entre filosofia e ciência que supera possíveis antagonismos, exclusões recíprocas, etc. Tal relacionamento funda-se na crítica recíproca na qual filosofia e ciência, nos seus planos específicos e próprios, têm “(...) em relação ao outro uma crítica de caráter ontológico” (Vaisman, 1989:444). A ciência controla, em geral “por baixo” se as generalizações ontológicas das sínteses filosóficas estão de acordo com o movimento efetivo do ser social. E a filosofia submete a ciência a uma crítica ontológica “do alto” de forma a não permitir um distanciamento da ciência da efetividade do ser social, evitando assim que “uma imersão na riqueza das experiências singulares concretas não torne confuso o conhecimento do desenvolvimento contraditório e desigual da totalidade do ser social, mas ao contrário o eleve e aprofunde”. Daí nosso autor concluir que não basta tais críticas estarem voltadas umas para a outra, mas é preciso considerar a ontologia da via cotidiana. Vaisman (ibid.) resume de forma muito adequada estas questões:

O caráter peculiar da ligação entre a filosofia e a ciência instituída pelo marxismo, tem para Lukács um significado decisivo não só no plano gnoseológico, mas também no plano ontológico prático. Isso porque essa ligação reflete toda uma trajetória evolutiva da filosofia, que tem no iluminismo um ponto importante predecessor, e enquanto forma pura de ideologia, voltada que está aos problemas centrais do gênero humano, encontra agora – na medida em que está fundada no mundo da materialidade social – condições de possibilidade para dirimir de modo resolutivo problemas, na base de uma verdadeira cientificidade, atinentes à superação da pré-história da humanidade. Essa possibilidade, naturalmente, de um lado só existe enquanto tal na medida em que o próprio desenvolvimento econômico coloque as condições para tanto; mas, de outro, é imprescindível um autêntico ontologismo social: para Lukács o marxismo é essa expressão ideológica e científica.

4.7.Weber a partir do olhar de Lukács Segundo Mészáros (2002:416) em Lukács “referências a Weber não são muito freqüentes, apesar de serem claramente visíveis as conexões teóricas”. É o próprio Mészáros, nesta obra, quem assinala o peso e influência problemática da teoria dos tipos ideais de Weber no trabalho seminal do jovem Lukács “História e Consciência de Classe”. Neste trabalho, o jovem Lukács não submete tal teoria a nenhum tipo de avaliação crítica, de tal modo que “o conceito de Marx sobre consciência de classe sofre uma distorção idealista na estrutura teórica de Lukács” (ibid., p. 405). Além disto, a aceitação da “mistificadora fusão weberiana dos aspectos funcional e estrutural/hierárquico da divisão social do trabalho – sob o uso legitimador a-histórico que o próprio Weber faz da categoria da ‘especialização’ no seu esquema – tem um impacto negativo na estrutura conceitual de História e consciência de classe. E a avaliação da ‘racionalidade’ e do ‘cálculo’ capitalistas mostrou-se a mais danosa das influências weberianas” (ibid.). Mészáros prossegue lembrando que nas últimas obras de Lukács encontramos uma abordagem mais realista para estes problemas. E, portanto, um distanciamento crítico de Lukács em relação ao seu “antigo professor e amigo” (ibid., p. 416). Lembrando que nosso objetivo não é realizar uma análise sistemática da relação teórica entre Lukács e Weber, mas sim apreender o tratamento crítico que Lukács dispensa à teoria e ideologia weberiana, passaremos a expor as considerações de Lukács sobre Weber presentes em “Marx e o problema da decadência ideológica” que é um ensaio de 1938, integrante do livro “Problemas do Realismo” publicado em 1952. O tratamento que nosso autor dá ao mesmo

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conjunto problemático em “A Destruição da Razão” publicado em 1954. E o constructo teórico de “Ontologia do Ser Social”, por nós brevemente esboçado nos capítulos anteriores e que é o momento de ápice da intervenção teórica de Lukács. Lançaremos mão das contribuições de Mézsáros (1993, 2002 e 2004) para esta parte de nosso trabalho. Em “Marx e o problema da decadência ideológica”, Lukács parte da constatação de que ao longo de século XIX a ideologia burguesa passa a uma nova etapa na qual abandona as posições que defendiam o progresso social-humano frente à velha sociabilidade posta pelo modo de produção feudal, posições efetivamente revolucionárias e que no campo econômico, por exemplo, legou as construções teóricas de Smith e Ricardo. De tal modo que há uma “(...) liquidación de todos los intentos anteriores de los importantes ideólogos burgueses enderezados a comprender intrépidamente y sin preocuparse por el carácter contradictorio descubierto las verdaderas fuerzas impulsoras de la sociedad, esta huida hacia la seudohistoria ideologicamente arreglada, superficialmente concebida y subjetiva y místicamente desfigurada, constituye la tendencia general de la decadencia ideológica” (Lukács, 1966:57). Mais adiante, nosso autor volta à carga argumentando que:

El hecho de que la decadencia ideológica no plantee nuevo problema alguno de principio constituye una necesidad social. Sus cuestiones básicas son, lo mismo que las del período clásico de la ideología burguesa, respuesta a los problemas que plantea el desarrollo del capitalismo. La diferencia consiste ‘simplemente’ en que los ideólogos anteriores han dado una respuesta honrada y sincera, aunque incompleta y contradictoria, en tanto que la decadencia elude cobardemente proclamar lo que es, y disfraza esta evasión ya sea de ‘carácter científico objetivo’ o de curiosidad romántica. En uno y otro caso es anticrítico, se atasca en la superficie de los fenómenos, en la inmediatez, y ensambla fragmentos contradictorios de ideas eclécticamente conexos (ibid., p. 63-64).

Sobre tal fenômeno Mészáros (1993:17) assinala que “(...) é um traço característico exclusivo das ideologias dominantes que, uma vez atingida a fase declinante do desenvolvimento das forças sociais cujos interesses expressam, elas são incapazes de oferecer nada além de um quadro conceitual inteiramente negativo, não obstante sua identificação ‘positiva’ com o status quo”. A este respeito, ainda, lembramos que conforme vimos anteriormente com Marx, Lukács e Chasin, a consciência do homem, o seu pensamento, é circunscrito pela realidade na qual o homem está inserido, a qual ele constrói e reconstrói continuamente, se realizando enquanto indivíduo e espécie simultaneamente. Logo, não poderia ser diferente no que diz respeito ao complexo ideologia. Na continuidade do referido ensaio, Lukács aponta que a divisão social do trabalho, que no sócio-metabolismo do capital atinge seu ápice, leva a uma diferenciação do trabalho intelectual em diversos campos separados, que por sua vez possuem interesses materiais e espirituais particulares e concorrentes entre si. Há uma criação ampla de subespecialistas: técnicos, juristas, economistas, sociólogos, etc. Daí ele dizer que:

(...), la división capitalista del trabajo se somete no solo todos los dominios de la actividad material e intelectual, sino que penetra profundamente en el alma del individuo y provoca en ella importantes deformaciones que se manifiestan luego en formas diversas en las distintas modalidades ideológicas de expresión. La sumisión pasiva a estos efectos de la división del trabajo, la aceptación sin oposición de estas deformaciones psíquicas y morales y, lo que es más, su ahondamiento y adorno

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por el pensamiento y la poesía decadentes, todo esto constituye uno de los rasgos más importantes del periodo de la decadencia (ibid., p. 67).

Para Lukács as ciências sociais burguesas não conseguem superar esta especialização mesquinha não pela amplitude do saber humano, mas devido à forma e à direção tomada pelo desenvolvimento de tais ciências. “En éstas há producido la decadencia de la ideología burguesa un cambio tal, que ya no pueden engranar unas con otras, y que el estúdio de uma de ellas ya no favorece la comprensión más profunda de la otra” (ibid., p. 68). Para Lukács, nem mesmo um sábio, um cientista escrupuloso como Weber, que era ao mesmo tempo economista, sociólogo, historiador, filósofo e político, com profundos conhecimentos em todos estes campos. Nem mesmo ele consegue sequer aproximar-se de um verdadeiro pensamento universalista. E isto ocorre por que Weber toma por base esta história, esta sociologia, esta economia, etc, disciplinas cujos pressupostos ideológicos e metodológicos

(...) ya nada tienen que ver una con otra, ni pueden prestarse una a otra auxilio o estímulo alguno. Así, pues, si Max Weber realizó una reunión del sociólogo, el economista y el historiador, pero juntando – sin espíritu crítico – esta sociología, con esta economía y esta historiografía, era inevitable que la separación de estas ciencias en el sentido de la división del trabajo subsistiera también en su mente. Por el solo hecho de que un mismo individuo las dominaba, no podían, con todo, engranar dialécticamente una en otra, no podían llevar al conocimiento de las verdaderas conexiones del desarrollo social (ibid., p. 69).

Tal atitude pouco crítica de Weber, para Lukács, radica no fato de ser Weber, também, um filósofo seguidor do neokantismo. E tal corrente filosófica não só sancionava esta separação das ciências naturais e sociais, mas também a separação dentre as próprias ciências histórico-sociais. Além disso, segundo Lukács (ibid.), esta corrente filosófica defende que há uma ausência de relações entre pensamento e ação, teoria e práxis. Tal defesa nos traz duas conseqüências: (1) coloca-se um completo relativismo, “la igualdad formal de todos los fenómenos, la equivalencia interna de todos los poderes históricos. La doctrina weberiana de la ciencia postula, de modo consecuente en el sentido del neokantismo, una abstención de juicio teórica absoluta frente a las decisiones de la sociedad y la historia” (ibid., p. 69-70). (2) A decisão ética não estará ligada ao conhecimento dos fatos, mas para Weber estará ligada a uma mística decisão do “livre arbítrio”. De tal modo, argumenta Lukács (ibid., p. 70) que Weber

(...) expresa esta idea, esta mezcla ecléctica de un relativismo extremo en el conocimiento y una mística acabada en la acción, de la siguiente manera: ‘Aquí [o sea en la decisión de cara a la acción, G.L.] luchan también diversos dioses unos con otros, y aun para siempre. Es lo mismo que el mundo antiguo no desencantado todavía de sus dioses y demonios, sólo que en otro sentido: lo mismo que el griego ofrecía un sacrificio ora a Afrodita y luego a Apolo y cada uno ante todo a los dioses de su ciudad, así sigue siendo, aunque en forma desencantada y despojada de la plástica mítica pero interiormente verdadera de aquella actitud, hoy todavía. Y por sobre estos dioses y su lucha campea el destino, pero no ciertamente ‘ciencia’ alguna’.

Lukács conclui que estas idéias de Weber claramente impediam-no de realizar o verdadeiro universalismo, e quando muito permitiam a reunião de um grupo de especialistas num único homem. Mas não mais do que isto. O que, entretanto, apenas viabilizava a deformação produzida pela divisão capitalista do trabalho na alma do indivíduo singular. De tal modo a

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transformar “un individuo, muy superior por lo demás tanto intelectual como moralmente al promedio, un burgués de visión limitada” (ibid.). Na obra “A Destruição da Razão”, Lukács realiza uma crítica um pouco mais sistemática do constructo teórico de Weber. Ele, de início, argumenta que a sociologia no período imperialista posterior à Primeira Guerra Mundial, continuou lutando por seu reconhecimento científico, como já fizera nas décadas anteriores a este evento histórico. Entretanto, “as circunstâncias e características dessa luta se modificaram. Antes de mais nada, a sociologia do período imperialista renunciou cada vez mais – e em escala internacional – a assumir, como ciência universal, a herança da história ou da filosofia em geral. Em relação a vitória generalizada do agnosticismo filosófico, a sociologia se converte – com consciência cada vez maior – numa disciplina singular e limitada, que assume seu posto ao lado das demais disciplinas do mesmo tipo” (Lukács in. Netto, 1981:145). Na Alemanha, continua Lukács, a sociologia neste período flui para as “concepções históricas de tipo romântico-irracionalista de Ranke. Em conseqüência, a epistemologia do neokantismo então dominante revela-se cada vez mais disposta a lhe conceder um modesto posto no sistema de ciências. (...) Desta maneira, salva-se a legitimidade da sociologia do ponto de vista metodológico. E os próprios sociólogos (em particular Max Weber) declaram igualmente não ter a pretensão de descobrir o sentido unitário do desenvolvimento histórico; afirmam ao contrário, que a sociologia é apenas uma espécie de ciência auxiliar da história (...)” (ibid., p. 145-146). Para Lukács, o desenvolvimento do capitalismo na Alemanha com o correspondente desenvolvimento das lutas de classe e o fortalecimento do movimento revisionista capitaneado por Bernstein, coloca para a sociologia uma nova forma de confrontação com o marxismo. Se antes este fora ignorado em bloco, agora buscavam dividi-lo em partes e inserir na sociologia aquilo que pudesse ser utilizado da perspectiva ideológica burguesa. Nosso autor reforça que, apesar deste movimento, a luta contra o materialismo permanecia. A sociologia continuava a lutar “contra a prioridade do ser social e contra o papel decisivo desempenhado pelo desenvolvimento das forças produtivas” (ibid., p. 147). Mas a sociologia acolhia agora “formas abstratas de interação entre base e superestrutura” (ibid.). E este seria exatamente o caso de Weber ao tratar da

relação de dependência recíproca entre as formas econômicas e as religiões, recusando nitidamente a prioridade da economia: ‘Uma ética econômica não é uma simples ‘função’ de formas de organização econômica; nem tampouco, em troca, pode-se dizer que essa ética informe de modo unívoco a organização econômica... Por mais profundos que tenham sido os influxos sociais, condicionados econômica e politicamente, exercidos em casos singulares sobre uma ética religiosa, esta recebeu suas características, em primeiro lugar, de fontes religiosas’. Max Weber assume como ponto de partida inicial a relação de vinculação recíproca entre motivos materiais e ideologia; e combate o materialismo histórico porque este, de um modo que Weber supõe ser cientificamente inadmissível, afirma a prioridade do elemento econômico.(...) As considerações de Max Weber levam sempre a atribuir aos fenômenos ideológicos (religiosos) um desenvolvimento ‘imanente’ que teria sua origem neles mesmos; esta tendência, em seguida, converte-se no ponto de vista segundo o qual eles têm prioridade enquanto causas do processo global (ibid., p. 148).

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A concepção de Weber sobre a relação de dependência recíproca entre as formas econômicas e as religiões vai cumprir um importante e influente papel na explicação sociológica da gênese e da essência do capitalismo possibilitando uma concepção teórica alternativa à teoria da acumulação primitiva de capital de Marx. Assim assinala Lukács (ibid., p. 149-150) que

Weber, (...), parte da relação de dependência recíproca entre a ética econômica das religiões e as formações econômicas, afirmando a prioridade do fator religioso. Seu problema é o de explicar a razão pela qual somente na Europa nasceu um capitalismo. Em contraste com a concepção precedente, que via capitalismo em qualquer acumulação de dinheiro, Weber se esforça por entender a natureza específica do capitalismo moderno e por relacionar o seu nascimento na Europa com a diferença da evolução ético-religiosa no Oriente e Ocidente. Além do mais, e sobretudo, a essência do capitalismo é deseconomizada e ‘espiritualizada’. Como essência do capitalismo aparece a racionalização da vida econômica-social, a possibilidade de calcular racionalmente todos os fenômenos. Assim, Weber esboça uma história universal das religiões para demonstrar que apenas o protestantismo (e, nele, particularmente as seitas) teve uma ideologia que promove e favorece essa racionalização, enquanto todas as outras religiões do Oriente e da Antigüidade produziram concepções de ética econômica que funcionaram como obstáculos à racionalização da vida cotidiana. Weber recusa-se sempre a ver nas concepções de ética econômica uma conseqüência das estruturas econômicas.

Lukács demonstra que ao tratar da China em “Economia e Sociedade”128, Weber identifica de forma simplista economia e técnica produtiva, de modo a aceitar como o capitalismo genuíno aquele capitalismo das máquinas. Deste ponto Weber é conduzido, em “Gesammelte Aufsätze sur Religionssoziologie”, “ao ‘argumento’ histórico ‘decisivo’, pelo qual a ética econômica do protestantismo – que apressou e favoreceu o desenvolvimento do capitalismo – ‘já existia antes’ dele. Com isso, acredita ter refutado o materialismo histórico” (ibid., p. 150). Apreensão da essência do capitalismo sem o compromisso de enfrentar os problemas econômicos reais (por exemplo, a explicação da origem do lucro do capitalista que para Marx radica na mais-valia e na exploração da mercadoria força de trabalho), esta é a metodologia dos sociólogos alemães para Lukács (ibid.). Para nosso autor, a sociologia de Weber reconhece e atribui um papel importante para a separação entre trabalhadores e meios de produção, entretanto, para esta sociologia, as características essenciais do capitalismo são a racionalidade e a calculabilidade. Ficando claro que esta sociologia apreende de forma simplista a aparência e não a essência da formação sócio-metabólica do capital. Daí Weber e os sociólogos alemães do período atribuírem ao direito e à religião (que são formas particulares de ideologia) uma maior centralidade na explicação da forma de sociabilidade específica do capital maior do que a atribuída à economia. Esta perspectiva que apreende o mundo real de forma invertida acaba, por fim, recorrendo a analogias vazias na tentativa de substituir metodologicamente a busca de explicações causais para o funcionamento do ser social. Isto explica a analogia utilizada por Weber entre o Estado moderno e a empresa capitalista129. Lukács arremata dizendo que:

128 “Mas essa ausência de uma religiosidade eticamente racional revela-se aqui como o elemento primário e parece, por sua vez, ter influído sobre o caráter limitado – que continuamente causa surpresa – do racionalismo de sua técnica” (Lukács in Netto, 1981:150). 129 Registre-se que tanto no que diz respeito à posição de Weber quanto à semelhança entre Estado moderno e empresa capitalista, quanto com a característica distintiva do capitalismo assentada na racionalidade e calculabilidade, Lukács realiza uma auto-crítica. Pois em “História e Consciência de Classe” (2003:214-216) ele cita

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Mas, dado que recusa [Weber – PH], a partir de um ponto de vista agnóstico-relativista, o problema da causalidade primária, permanece na simples descrição analógica. Sobre a base de semelhantes analogias, nasce a possibilidade de empreender uma crítica da cultura, que jamais entra nas questões fundamentais do capitalismo; que dá livre espaço à insatisfação com a cultura capitalista, mas que concebe a racionalização capitalista como uma “fatalidade” (Ratheneau) e, portanto, apesar de todas as críticas, faz com que o capitalismo apareça como algo necessário e inevitável (ibid., p. 151).

Por isso, esses raciocínios sempre desembocam na justificação do capitalismo, sendo este entendido como um sistema necessário e só passível de modificações menores, nada que altere sua essência. E findam com a descoberta e demonstração de supostas contradições, econômicas e sociais, práticas e teóricas, insolúveis do socialismo. Lukács entende que os sociólogos alemães do período anterior à Primeira Guerra Mundial, e Weber em particular, são ideólogos burgueses do período imperialista. E esta sociologia tentava demonstrar a superioridade “da forma alemã de Estado e da estrutura social da Alemanha em comparação com as democracias ocidentais” (ibid., p. 152). Nesta questão a posição de Weber é diferenciada em relação aos demais sociólogos alemães. Ainda que ele critique a democracia moderna,

(...) considera a democracia como a forma mais apta à expansão imperialista de uma grande potência moderna. Vê a debilidade do imperialismo moderno precisamente nessa ausência de um desenvolvimento democrático na política interna:130 (...) Aqui se reconhece, de modo evidente, a fonte social da tendência democrática de Max Weber: ele partilha com os outros imperialistas alemães a concepção da missão geopolítica (colonizadora) dos ‘povos’ de senhores’. Mas se distingue deles na medida em que não só não idealiza a condição da Alemanha, com seu parlamentarismo aparente, mas a critica de modo áspero e apaixonado. Ele pensa que os alemães só se poderão converter num ‘povo de senhores’ em regime democrático, como França e Inglaterra. Por isso, a fim de que se torne possível realizar os intentos imperialistas da Alemanha, há que ter lugar uma democratização interna que deve ser levada até o ponto indispensável à obtenção de tais finalidades. (...) esse democratismo de Weber, dado o seu fundamento imperialista tem matizes muito particulares. Numa conversa com Ludendorff,131 Weber – segundo os apontamentos de sua mulher – teria declarado: ‘Na democracia, o povo escolhe o líder em quem confia. Então, quem foi escolhido diz: ‘Agora, cale e obedeça!’. Ao povo e aos partidos, não é permitido retrucar... Depois, o povo pode julgar: se o líder errou, que seja enviado à forca!’

com aprovação e sem crítica duas passagens de Weber que tratam destes casos. E no ensaio “A Destruição da Razão”, que no momento estamos analisando, ele realiza uma crítica acurada. A este respeito vide a argumentação apresentada por Mészáros (2002:416-417). 130 O parágrafo prossegue com uma citação de Weber (Gesalmmelte politische Schriften [Textos políticos escolhidos]: “Tão-somente um povo politicamente maduro é um ‘povo de senhores ... Tão-somente os povos de senhores são chamados a intervir no mecanismo da evolução universal. Se os povos que não têm tais qualidades tentam essa intervenção, não só reage o seguro instinto das demais nações, mas eles fracassam em sua tentativa também interiormente... A vontade de impotência no interior, pregada pelos literatos, não pode se conciliar com a ‘vontade de potência’ no mundo, a qual foi proclamada de modo tão rumoroso”. 131 Mészáros (2004:148) nos lembra que esta conversa relatada por Marianne Weber ocorreu após a Primeira Guerra Mundial e que “o general Ludendorff era um personagem de extrema direita, chefe do estado-maior de Hindenburg e um dos primeiros defensores de Hitler”.

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Não é de surpreender que,em tal conversa, Ludendorff tenha declarado: ‘Uma democracia assim poderia me agradar!’. Deste modo, a democracia de Weber se transmuta num cesarismo bonapartista (ibid., p. 152-154).

Daqui apreendemos a concepção conservadora, bonapartista, autoritária da democracia que Weber possuía. O que leva Mészáros (2004:147) a lembrar que isto não impediu que Weber se tornasse “no decorrer dos desenvolvimentos político-ideológicos do século XX, o pensador reverenciado por todo mundo atlântico como o representante – com um rigor teórico que deve ser considerado exemplar até pelo mais ‘objetivo’ de todos os cientistas sociais – dos valores máximos da ‘democracia liberal’ e do ‘mundo livre’”. Lukács (ibid., p. 154) prossegue denunciando que a sociologia daquele período apresenta uma metodologia extremamente formal e uma gnoseologia extremamente agnóstica e relativista, que se converterá numa mística irracionalista. Assim a sociologia assume o papel de ciência particular da história e devido ao seu formalismo metodológico fica impossibilitada de realizar uma “verdadeira interpretação histórica”. Os problemas relativos ao conteúdo e à gênese das ciências singulares (que se tornam, também, cada vez mais formalistas) são transferidos para o campo da sociologia. Ela, por sua vez, e devido à sua metodologia formalista, passa a trabalhar com “analogias puramente formais em vez de explicações causais” (ibid.). Para Lukács, ainda que Weber polemize explicitamente contra o excessivo formalismo presente, por exemplo, em Simmel, tem uma sociologia eivada de analogias formalistas. Exemplos destas analogias formalistas são facilmente encontráveis: “Assim, (...), são equiparados de modo formalista a burocracia do antigo Egito e o socialismo, os soviets e as camadas feudais; assim, quando fala da vocação irracional do líder (carisma), estabelece uma analogia entre um guru e o líder social-democrata Kurt Eisner, etc”. (ibid., p. 155) Lukács finda este parágrafo assinalando a construção esboços de tipos e tipologias por parte da sociologia132. Construção essa que em Weber será o problema central de sua metodologia:

Ele [Weber – PH] considera como tarefa principal da sociologia estabelecer puros ‘tipos ideais’. Na opinião de Weber, só a partir deles é possível uma análise sociológica. Esta análise, porém, não fornece nenhuma linha de desenvolvimento, mas apenas uma justaposição de tipos ideais escolhidos e ordenados em forma casuística. O devir da sociedade, concebido em sua irrepetibilidade e na impossibilidade de ser subordinado a leis (ao modo de Rickert), apresenta um ineliminável caráter irracionalista, ainda que – para a casuística racional do tipo ideal – o irracional seja elemento perturbador, o ‘desvio’ (ibid.).

O conceito de lei de Weber expressa o caráter subjetivista de sua sociologia segundo Lukács. Ao tratar da sociologia compreensiva133 e das suas categorias ele argumenta, em

132 “O formalismo, o subjetivismo e o agnosticismo da sociologia fazem com que ela, tal como a filosofia da época, não consiga mais que esboçar determinados tipos, construir tipologias e nelas introduzir os fenômenos históricos” (ibid.). 133 O organizador (José Paulo Netto) da coletânea na qual encontramos estes trechos do ensaio “A Destruição da Razão” explica numa nota que: “Em alemão ‘verstehende Soziologie’. Trata-se da contraposição, estabelecida pela escola das ‘ciências do espírito’ (Rickert, Dilthey), entre Verstehen (compreender), que seria a atitude própria das ciências históricas, e Erklären (explicar), própria das ciências da natureza” (ibid., p. 155).

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Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre [Textos escolhidos sobre ciência econômica], que: “O modo de formação dos conceitos sociológicos é predominantemente uma questão de fins. Não somos absolutamente obrigados a formar ... todas as categorias que serão estabelecidas em seguida” (Weber apud. Lukács in. Netto, 1981:156). Registre-se o distanciamento da compreensão de Marx para quem as categorias são “formas de ser”, portanto, ontologicamente dadas. Voltaremos a isto adiante. Prosseguindo com a argumentação de Lukács, temos que a gnoseologia pragmática de Weber o leva a defender em “Economia e Sociedade” que:

As ‘leis’, como se costuma designar algumas proposições da sociologia compreensiva, ... são probabilidades típicas, corroboradas pela observação, de um decurso de ações sociais que devem ser esperadas na base da presença de certos dados efetivos, ações compreensíveis na base dos motivos típicos e das intenções supostamente típicas daqueles que atuam (ibid.).

A conclusão de Lukács é que tal postura de Weber resulta na dissolução subjetiva de toda realidade social objetiva, além das situações sociais assumirem “uma complexidade aparentemente exata, porém na realidade, extremamente confusa” (ibid.). Registramos, também, a distância da compreensão do que sejam leis sociais entre Weber e Marx. Retornaremos a isto adiante. Em seguida, Lukács exemplifica tal confusão com outra citação de Weber de Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre [Textos escolhidos sobre ciência econômica] em que este descreve os proventos do trabalho após ter enumerado as obrigações do trabalhador:

Em seguida, ele [o trabalhador], se realiza tudo isso, tem a probabilidade de receber certos pedaços de metal ou de papel feitos de modo especial, os quais, entregues a outras pessoas, fazem com que ele possa adquirir pão, carvão, calças, etc., e isso com o resultado de que se alguém quisesse retomar dele tais objetos, surgiriam a seu pedido, com uma certa probabilidade, determinados personagens com capacete que o ajudariam a reavê-los, etc. etc. (ibid.).

Lukács passa a comentar a citação acima e nos diz que:

Vê-se claramente, neste trecho, que as categorias sociológicas de Weber – que designa como probabilidade as mais diversas objetivações sociais, como o poder, o direito, o Estado, etc. – não expressam mais do que a psicologia abstratamente formulada do indivíduo que age e calcula segundo os princípios do capitalismo. Também aqui, no erudito alemão que, em suas intenções subjetivas, era o que mais honesta e coerentemente se esforçava no sentido de exercer sua ciência de modo puramente objetivo, no sentido de fundar e pôr em prática uma metodologia da pura objetividade, as tendências imperialistas da pseudo-objetividade revelam-se como as mais fortes. A concepção de Max Weber sobre a probabilidade deriva, por um lado, do exemplo da interpretação dada por Mach dos fenômenos da natureza, e, por outro, é determinada pelo subjetivismo psicologista da teoria da ‘utilidade marginal’; ela converte as formas objetivas, as transformações, os eventos, etc., da vida social num emaranhado de ‘expectativas’ satisfeitas ou insatisfeitas, enquanto suas leis são convertidas nas probabilidades mais ou menos prováveis com que essas expectativas se realizam. É evidente que uma sociologia que trabalha nessa direção pode alcançar, em suas generalizações, tão-somente analogias abstratas (ibid., p. 156-157).

Em resumo, Lukács reafirma que apesar de todo o posicionamento de Weber em busca de racionalidade, neutralidade de valores, objetividade, Weber permanece preso “aos limites ‘irremediavelmente irracionais’ das analogias formalistas” (Mészáros, 2002:417).

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Paradoxalmente, registra Lukács (ibid., p. 157), a luta de Weber contra o irracionalismo o leva a um estágio superior deste mesmo irracionalismo. Weber acredita que seu método agnóstico-formalista seja o único científico, pois através dele só se introduz na sociologia o que é demonstrável. De tal forma que a sociologia forneça “apenas uma crítica técnica”, e investigue “‘quais meios são apropriados em vista de determinado fim’, e, por outro lado, [possa – PH] ‘estabelecer as conseqüências que a aplicação dos meios requeridos poderia ter além ... da eventual obtenção do fim desejado. Tudo o mais, segundo Weber, encontra-se fora do campo da ciência, é objeto de fé e, portanto, algo irracional”. O método de Weber, portanto, exige a exclusão de todos elementos irracionalistas e dos juízos de valor da sociologia. Entretanto, tal procedimento acaba por potencializar “a irracionalização do devir histórico-social” (ibid., p. 157-158). Lukács prossegue sinalizando que contraditoriamente, e sem perceber que isto anula toda a pretensa racionalidade de sua metodologia científica, Weber reconhece que

as ‘avaliações’ estão profundamente enraizadas na própria realidade social. Ele [Weber – PH] diz: ‘A impossibilidade de apoiar ‘cientificamente’ tomadas de posição práticas ... deriva de razões muito mais profundas. Essa tentativa é fundamentalmente absurda, já que as diversas ordens de valores estão entre si em luta insolúvel’ (ibid., p. 158).

Neste momento, Lukács nos lembra que Weber, devido sua visão de mundo, não pode e não quer reconhecer a realidade efetiva apresentada por Marx e Engels no “Manifesto Comunista” de que a história é uma história de lutas de classe. Então

(...), dado não estar nem disposto nem em condições de extrair dessa estrutura dialética da realidade social as conseqüências lógicas dialéticas, é obrigado a refugiar-se no irracionalismo. Isto mostra com grande clareza como o irracionalismo do período imperialista nasce das falsas soluções de problemas em si legítimos, já que colocados pela própria realidade; ou seja, do fato de que a própria realidade, com força cada vez maior, põe aos ideólogos questões dialéticas, que eles, porém – por motivos sociais, e em seguida, metodológicos – não podem resolver dialeticamente. O irracionalismo, por conseguinte, é o caminho para escapar à solução dialética de uma questão dialética. Essa aparente cientificidade, essa exclusão dos ‘juízos de valor’ da sociologia, é, portanto, na realidade, o grau mais alto até agora alcançado pelo irracionalismo. Graças à coerência teórica de Max Weber, essas conseqüências irracionalistas aparecem mais claramente nele do que no neokantismo do período imperialista (ibid.).

Weber, entretanto, realiza uma enérgica polêmica contra o irracionalismo vulgar alemão do seu período. O que, para Lukács, não afasta “o núcleo irracional do método e da concepção do mundo de Max Weber” (ibid., p. 159). Ao mirar na cientificidade da sociologia e excluir os juízos de valor, Weber simplesmente transfere a irracionalidade para estes juízos de valor e para as tomadas de decisão. Sobre isto Lukács nos convida a recordar as afirmações histórico-sociológicas de Weber sobre “a racionalidade da economia e a irracionalidade da religião”. Um exemplo claro da perspectiva subjetivista e relativista da metodologia de Weber é dado por Lukács com uma citação do próprio Weber retirada de Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Textos escolhidos sobre ciência econômica]:

‘Defender ‘cientificamente’ tomadas de posição práticas ... é fundamentalmente absurdo, já que as diversas ordens de valores do mundo estão entre si em luta insolúvel ... Voltamos a saber, em nossos dias, que uma coisa pode ser santa apesar de não ser bela, mas porque e enquanto não é bela ... e

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que uma coisa pode ser bela não e apesar de não ser boa, mas enquanto não é boa. Voltamos a sabê-lo a partir de Nietzche; e o encontramos expresso nas Fleurs du mal, título que Baudelaire deu a seu livro de poesias. É algo que sabemos no dia-a-dia, ademais, que uma coisa pode ser verdadeira mesmo se e enquanto não é bela, nem santa, nem boa ... Aqui combatem entre si divindades diversas e, aliás, combatem por todo o tempo ... De acordo com a posição que assume, uma coisa é para o indivíduo o diabo, outra é Deus; e o indivíduo tem de decidir o que para ele é Deus e o que é o diabo. E assim ocorre em todas as ordens da vida ... Os muitos e antigos deuses, rompido o encantamento, e, portanto, sob a forma de potências impessoais, elevam-se dos seus túmulos, aspiram a adquirir poder sobre nossa vida e recomeçam entre eles a eterna luta’.

Passaremos agora a apontar, com Mészáros, como Weber violava seus preceitos metodológicos garantidores da neutralidade científica, e como sua teoria é, desde sempre, uma clara ideologia defensora da lógica do capital. No ensaio “Objectivity” integrante do livro “In the Methodology of the Social Sciences”, Weber trata da natureza e da validade de seus tipos ideais:

‘A tarefa elementar do autocontrole científico e a única forma de se evitar asneiras graves e tolas requer uma distinção nítida e precisa entre a análise comparativa da realidade através de tipos ideais, no sentido lógico, e o julgamento de valor da realidade baseado em ideais. Em nosso sentido, um tipo ideal /.../ não tem absolutamente nenhuma conexão com juízos de valor, e não tem nada a ver com nenhum tipo de perfeição, a não ser aquela puramente lógica” (Weber apud., Mészáros, 1993:26).

De início, Mészáros, assinala que sequer vai discutir se a proposta de Weber de tomar o autocontrole científico como tarefa elementar é ou não um juízo de valor. Tampouco vai tratar da adequação de se tratar as Ciências Sociais no âmbito de uma perfeição puramente lógica. Isto por que seu foco é avaliar se Weber conseguiu se manter ou não nos “padrões que ele mesmo estabeleceu para a avaliação da ciência social em geral” (ibid.). Ele de imediato já nos diz que Weber não conseguiu, ainda que ele próprio e seus seguidores não desistam das ilusões a este respeito. Tomando inicialmente um tipo ideal “neutro” que é a definição do capitalismo dada por Weber apresentada no mesmo ensaio (“Objectivity”) da citação acima, na qual Weber diz que o capitalismo é uma “cultura” “‘na qual o princípio norteador é o investimento de capital privado’” (ibid., p. 27). Mészáros defende que tal definição não é axiologicamente neutra, ainda que aparentemente expresse uma verdade óbvia que diz que “o capitalismo e o investimento de capital privado estão diretamente ligados” (ibid.). Mas só na aparência isto é uma verdade, pois, de fato, trata-se de uma mera tautologia. E “na definição de Weber o que está para além da pura tautologia é, ou ostensivamente ideológico e com viés valorativo, ou falso – ou até mesmo ambos, ideologicamente tendencioso e falso” (ibid.). Daí Mészáros (ibid.) concluir que:

A definição de Weber é formulada a partir de um ponto de vista definido: não aquele da ‘lógica pura’, mas aquele que convenientemente bloqueia a possibilidade de definições rivais, sem se fundamentar em nada a não ser na pura suposição. A adoção desse tipo ideal como princípio de seleção de todos os dados disponíveis acarreta, necessariamente, que a pesquisa ‘cientificamente autocontrolada’ se limite a dados que se encaixem com facilidade no quadro ideológico das pressuposições contidas na definição de Weber.

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Em seguida, Mészáros passa a analisar como a definição de capitalismo de Weber cumpre funções ideológicas mantendo uma aparência descritiva e não-ideológica. Em primeiro lugar ele destaca o uso do termo “cultura” no lugar de outro como “modo de produção” ou “formação social”. Esse termo conduz a um dado tipo de interpretação “quanto ao desenvolvimento da formação social capitalista” (ibid.), haja vista a interpretação apresentada em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Em segundo lugar, ele sublinha que o capitalismo, para Weber, tem um “princípio norteador” que o caracteriza. E Weber, de fato, não explica os fundamentos “dessa estranha entidade metafísica” (ibid.). Ao adotar tal pressuposto de um “princípio norteador”, metodologicamente Weber “anula a possibilidade de uma pesquisa histórica abrangente sobre as bases reais do desenvolvimento do capitalismo. Em seu lugar, encontramos uma projeção a-histórica da forma desenvolvida que retrocede ao passado, já que o ‘princípio norteador’ deve ser mostrado em todos os estágios. (Esta é a razão pela qual, em última análise, ele deve ser identificado com o ‘espírito do capitalismo’, um tanto misterioso)” (ibid.). A conclusão de Mészáros é que Weber usa suas demonstrações das relações entre o “tipo ideal” e o mundo real, empírico, como um mecanismo ideológico pelo qual ele se resguarda de “possíveis objeções a seu modelo geral” (ibid., p. 28). Em terceiro lugar, para Mészáros a definição de que o princípio norteador do capitalismo é o “investimento de capital privado”, nubla a questão fundamental na lógica do capital que é a relação estrutural entre o capital e o trabalho. Mészáros ressalta que “o termo conspicuamente ausente do tipo de discurso weberiano é, sem dúvida, ‘trabalho’” (ibid.). Diante da impossibilidade de explicar o mecanismo da “real constituição do capital” através da utilização do assim intitulado “espírito do capitalismo”, as questões associadas a esse mecanismo são “descartadas ou relegadas ao plano, intelectualmente secundário, de descrição de um determinado estágio de empiria” (ibid.). Assim, ideologicamente, trabalho, valor, exploração, mais-valia, etc, excluídos do modelo geral de Weber. Em quarto lugar, Mészáros argumenta que “a definição do princípio norteador do capitalismo como o ‘investimento de capital privado’ proporciona, convenientemente, a justificativa necessária e a legitimação da persistência do modo de produção capitalista, contra as alegações opostas do trabalho apropriado” (ibid.). O que tal afirmação encobre é que o lucro é o que move a lógica do investimento, logo o capital privado é investido quando o lucro esperado é suficientemente atrativo para o capitalista. Em quinto lugar, Mészáros (ibid.) destaca que restringir-se à idéia de que o capitalismo se caracteriza pelo “investimento de capital privado” é encobrir a presença cíclica das crises de superprodução do capitalismo e das conseqüências sociais a ela associadas. Ao longo das crises e na fase subseqüente a ela, a lógica do capitalista é não investir o capital excedente. O que por si desmente a afirmativa weberiana. Entretanto, tal idéia bloqueia o estudo dessa importante questão constitutiva da dinâmica do sócio-metabolismo do capital. Em sexto lugar, Mészáros lembra que somente para uma determinada época histórica do desenvolvimento da formação societária do capital há validade (e certamente não associada ao “tipo ideal” de Weber) em caracterizar o capitalismo em geral a partir do “investimento de capital privado”. Tal caracterização é a sublimação do “ponto de vista subjetivo do capitalista individual”. E oblitera uma tendência fundamental do desenvolvimento do modo de produção capitalista ao longo do século XX, que é “o envolvimento sempre crescente do capital estatal na

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reprodução ampliada do sistema capitalista. Em princípio, o limite extremo desse desenvolvimento é nada menos que a transformação da forma prevalecente do capitalismo em um sistema abrangente de capitalismo estatal, que teoricamente acarreta a abolição completa da fase específica do capitalismo idealizado por Weber”. E Mészáros arremata dizendo que é justamente por isso que tal tendência fundamental é “excluída do quadro ideológico do ‘tipo ideal’ de Weber” (ibid., p. 29). Em último lugar, Mészáros denuncia o caráter estático do modelo weberiano. Pois a eliminação da relação estrutural entre capital e trabalho e a “sua substituição pela entidade metafísica congelada, o ‘princípio norteador’, exclui todo dinamismo do cenário” (ibid., p. 29). Com isso, oblitera-se uma avaliação que capture a dinâmica da gênese e do desenvolvimento da formação sócio-metabólica do capital. E, ao mesmo tempo, inviabiliza-se a perspectiva da possibilidade de superação desta formação por outra articulada em torno dos valores onto-societários do trabalho. Portanto, desnuda-se, aqui, a função ideológica (no sentido dado ao termo por Lukács em sua “Ontologia”, como vimos mais acima) do modelo weberiano. Mészáros reforça esta argumentação dizendo que: “Não há vestígios de contradições dinâmicas no modelo; portanto, ele pode apenas abarcar as características estáveis da continuidade – desprezando completamente a dialética da descontinuidade – de um status quo prevalecente. Tal continuidade é simplesmente admitida sob a forma de um ‘princípio’ já prevalecente e, uma vez que ela existe, não pode ser alterada, consoante o modelo estático weberiano” (ibid.). Com Mészáros podemos apresentar uma definição do capitalismo que se contraponha à de Weber. Nesta, o modo de produção capitalista é caracterizado pela contínua extração de mais-valia enquanto condição para produção e reprodução ampliada do capital, sendo o capital em si uma relação social que necessariamente envolve trabalho assalariado e implica na produção de mercadorias. Com alguma ironia, Mészáros diz que “fica para o leitor decidir qual das duas definições é mais ‘ideológica’”. E arremata dizendo que “(...) deve ficar claro que elas não são complementares, mas diametralmente opostas uma à outra: o que absolutamente não seria o caso, se fosse válida a afirmação de Weber quanto ao caráter ‘puramente lógico’ e ‘axiologicamente neutro’ de seus ‘tipos ideais’” (ibid., p. 30). Nosso objetivo com a exposição das críticas de Mészáros a Weber é simplesmente explicitar as dificuldades de Weber em realizar o autocontrole científico, e o viés ideológico presente em seu constructo teórico. Mészáros em outros trabalhos (2002 e 2004) volta a tratar destas limitações presentes em Weber. Apresentando mais exemplos e re-expondo o perfil ideológico e os limites de Weber na aplicação de sua metodologia à sua própria pesquisa. Uma apreciação de Mészáros (2004), em particular, é instigante e sintetiza o movimento intelectual realizado por Weber. Ele sinaliza que Weber realiza duas estratégias intelectuais complementares. Uma

(...) consistia em uma extrema relativização dos valores, acompanhada da glorificação da subjetividade arbitrária e de suas acomodações dúbias à ‘exigência da época’, tal como definida pela ordem estabelecida. Nesse sentido, depois de escarnecer – com um ceticismo que tendia para o cinismo – das ‘muitas pessoas que hoje em dia esperam novos profetas e salvadores’, Weber explicou seu credo em termos inequivocamente relativistas e subjetivistas: ‘Vamos agir de modo diferente, vamos ao nosso trabalho e satisfaçamos à ‘exigência da época’ – tanto no plano humano como no profissional. Essa exigência, no entanto, é clara e simples se cada um de nós encontrar e obedecer ao demônio que segura os fios de sua vida’ (p. 211-212).

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Ainda que os fundamentos da tomada de decisão do indivíduo tenham sido interditados por Weber, Mészáros lembra que esta era uma questão que precisava de resposta. Mesmo defendendo que “as escolhas orientadas por valores não pudessem ser objetivamente justificadas, visto que ‘as várias esferas de valor do mundo permanecem em irreconciliável conflito umas com as outras’” (ibid., p. 212), Weber precisava justificar a própria atividade científica. Segundo Mészáros: “Esta [a atividade científica – PH] tinha de ser resgatada das desastrosas implicações do relativismo e subjetivismo extremos, estabelecidos como princípios orientadores para a constituição das ‘visões de mundo’ sob as circunstâncias ‘desencantadas’ da época moderna” (ibid.). Weber, numa época histórica em que a ciência e a tecnologia já estavam completamente subsumidas à lógica do capital, não podia utilizar para a ciência “os mesmos critérios de orientação que produziam, em relação às ‘várias esferas de valor’, o relativismo e o subjetivismo (...)” (ibid.). Weber, então, procurou demonstrar que os indivíduos “(...) que escolhessem a ciência como sua ‘vocação’ poderiam – embora sendo incorrigivelmente subjetivos em relação a sua ‘posição fundamental’ – ser rigorosamente objetivos em sua busca científica, e, ao mesmo tempo, que as condições objetivas da atividade científica como tal os capacitavam para agir desse modo” (ibid.). É neste ponto que Mészáros (2004:213) apresenta a segunda estratégia intelectual de Weber. Tal estratégia “(...) se articulava como uma metodologia para opor radicalmente a constituição de ‘visões de mundo’ ao reino do ‘conhecimento factual’”. Mészáros prossegue e exemplifica esta posição com a seguinte citação de Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre [Textos escolhidos sobre ciência econômica] de Weber (segundo Mészáros entusiasticamente citada por Merleau Ponty): “‘É o destino de uma época cultural que provou da árvore do conhecimento saber que nós não podemos decifrar o significado dos acontecimentos do mundo, por mais que os estudemos. Devemos, antes de tudo, estar preparados para criá-los nós mesmos e saber que as visões de mundo nunca podem ser produto do conhecimento factual’” (ibid.). Mészáros prossegue comentando a citação acima:

Desse modo, a mensagem de Weber (...) era que, no que diz respeito ao desdobramento histórico dos acontecimentos do mundo, ‘nós só sabemos que não sabemos e que não podemos saber’. Tínhamos de conceituar estes acontecimentos em termos de ‘visões de mundo’ baseadas em escolhas subjetivas, em ‘posições weltanschauliche, em ‘atitudes inconciliáveis’ e em ‘juízos de valor sobre os quais nada pode ser dito na sala de aula’. Todavia, o mundo da ciência poderia ser resgatado do sofrimento deste ceticismo e relativismo universal, desde que adotássemos a atualizada dicotomia weberiano-kantiana entre ‘esferas de valor’ e ‘conhecimento factual’. E, uma vez que a exclusão radical dos juízos de valor fora declarada, o princípio orientador necessário e suficiente da objetividade científica, até a história e o mundo social poderiam se tornar acessíveis à investigação rigorosa, sob a condição de que tal empreendimento fosse dirigido para a construção de ‘tipos ideais’, conforme as exigências da ‘neutralidade axiológica’ (ibid.).

Ou seja, Weber oferece uma solução para uma dupla necessidade posta por sua própria teoria. Por um lado atende às “exigências de ‘exatidão científica’ no domínio dos insuperáveis ‘cálculo’ e ‘racionalidade’ capitalistas”. E ao mesmo tempo não interfere “(...) com o anseio do indivíduo isolado pela autodeterminação subjetiva e soberania na esfera dos valores” (ibid.).

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Para Mészáros (ibid., p. 215), a teoria de Weber traz em si uma “forma acabada de acomodação”. Pois ao defender que as “visões de mundo” “estão necessariamente ligadas a conjuntos de valores inconciliáveis” e “nunca podem ser produtos de conhecimento factual”, Weber apresenta enquanto única justificativa possível para elas (as visões de mundo) aquela calcada na subjetividade e na arbitrariedade. Mészáros prossegue e diz que:

(...) situando todo o discurso sobre valores na esfera da subjetividade isolada, excluiu a priori a possibilidade de uma articulação coerente e objetivamente viável das ‘visões de mundo’ e dos valores a elas associados sobre uma base coletiva e eficaz. Mas era precisamente este o significado ideológico fundamental, assim como o núcleo estruturador, do monumental empreendimento weberiano – empreendimento que, quanto a seu poder de atração ideológico e intelectual, permanece insuperável até hoje, sob vários aspectos.

De todo modo, vimos mais acima que Weber sistematicamente viola seus preceitos metodológicos. Mas não destacamos, da forma devida, que ele tem no socialismo seu principal adversário, sendo, para Mészáros (ibid., p. 216), este o momento de fundamental importância na sua construção teórica. Acompanhado Mészáros (ibid., p. 217), entendemos que Weber estabeleceu um constructo teórico radicalmente antípoda ao constructo teórico marxiano e marxista. Os “tipos ideais” de Weber são frutos de uma postura gnoseológica-epistemológica e se chocam com a apreensão de Marx a respeito das categorias – que são “formas de ser, determinações da existência”. As categorias para Marx têm uma determinação ontológica, são postas pelo próprio ser social na sua dinâmica, no seu vir-a-ser perpétuo. Com a metodologia dos “tipos ideais” de Weber “tudo podia ser relativizado e a própria idéia de leis e tendências objetivas do desenvolvimento histórico ser desacreditada” (Mészáros, 2004:218). Dessa forma, privando o ser social de suas tendencialidades e legalidades, Weber podia entender o capitalismo (“com seus necessários ‘cálculo’, ‘racionalidade’, ‘burocracia’, etc” (ibid., p. 217) como algo perene, cujo destino “era não ser superado” (ibid.). Assim, saiam de cena a questão da revolução social e do socialismo. Voltando a Lukács, é preciso assinalar que no interior da estrutura de sua obra final (“A Ontologia do Ser Social”) verificamos a mesma atitude crítica em relação às construções teóricas weberianas, observadas em “Marx e o problema da decadência ideológica” e em “A Destruição da Razão”. Ao contrário, como assinalamos no início deste item, do que se verifica em “História e Consciência de Classe”. Mészáros (2002) sinaliza que na “Ontologia”, Lukács rejeita “a teoria weberiana da racionalidade e sua aplicação à esfera de moralidade”, posto que dela apenas pode resultar uma “‘concepção’ completamente ‘relativista de valores’” (p. 417). Para Mészáros, a rejeição da teoria weberiana ocorre por que ela é a expressão, a corporificação, de um tratamento para as questões de juízo moral que apenas pode apontar para “um beco sem saída, pois para Lukács, ela representa a combinação de dois falsos extremos típicos que (...) permanecem presos ao fetichismo da aparência e nada trazem com eles a não ser a capitulação da razão moral à ordem estabelecida” (p. 417-418). Os dois extremos a que Mézáros faz referência, para Lukács134 134 Mészáros cita a seguinte passagem da “Ontologia” de Lukács, e aqui preferimos manter em italiano, pois reproduzimos um trecho um pouco maior do que o apresentado por Mészáros: “Ma si tratta solo di un’apparenza. Dietro de essa, infatti, non vi è la realtà, ma da un lato il rimaner fermi alla immediatezza con cui i fenomeni si presentano, dall’altro un sistema iperracionalizzato, logicizzato, gerarchico, dei valori. Questi due estremi, parimenti falsi, se vengono fatti funzionare ciascuno per proprio conto, portano o ad un

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são: a imediaticidade da manifestação dos fenômenos na aparência e um sistema de valores super-racionalizado, logicizado e hierarquizado. Lukács entende que esses dois extremos são igualmente falsos e se venham a funcionar cada um por sua conta hão de produzir um empirismo relativístico ou uma construção racionalística não aplicável de forma adequada à realidade. O comentário final de Mészàros sobre a rejeição por Lukács deste aspecto da teoria weberiana é de que um empirismo relativista “não pode ser contrabalançado até mesmo pelo esquema mais genial de tipologia super-racionalizante, na qual em termos substantivos e em relação às suas correspondentes orientações ideológicas, toda iniciativa permanece presa na prosaica, mas por Weber romantizada ‘jaula de ferro’ da imediaticidade capitalista” (p. 418).135 Retomando o desenvolvimento teórico de Lukács em sua “Ontologia” e por nós, em parte, resenhado nos capítulos anteriores e neste, podemos reforçar a distância que separa Lukács e a compreensão ontológica do ser social, dos constructos teóricos weberianos. Em Lukács e em Marx, todas as categorias são formas de ser, determinações da existência. Não são resultado de um hiper-racionalismo que tenta explicar o real apriorísticamente. As categorias brotam do próprio ser social, da sua própria ontologia. Assim sendo, são capazes de capturar a própria dinâmica da sociabilidade humana sob a égide do capital, o vir-a-ser desta sociabilidade. Tal proceder coloca em evidência as legalidades, tendencialidades desta dinâmica social e coloca no horizonte a possibilidade de superação desta formação humano-societária do capital. No capítulo 2 desta tese vimos que para Lukács, o trabalho é a protoforma do agir humano, é a categoria primária, originária mais simples, ainda que não seja a primeira pois não poderia haver trabalho antes do ser social. Assim o trabalho é o fundamento ontológico das outras práxis sociais. Vimos como o trabalho envolve a prévia-ideação e coloca a exteriorização enquanto momento pelo qual a subjetividade é transformada ao mesmo tempo em que ocorre a objetivação. Com o trabalho humano temos o salto ontológico que põe o mundo dos homens, o ser social. No ser social temos uma segunda natureza, na qual uma vez ocorrida a objetificação, a coisa resultante adquire independência em relação à consciência que a pôs. De tal forma que as coisas passam a ter uma trajetória não-teleológica, somente causal, sendo este o motivo pelo qual no cotidiano essas coisas objetivadas se confrontam com os criadores como uma segunda natureza. Em Lukács a legalidade do ser social tem na consciência dos indivíduos o seu medium, sendo tal legalidade socialmente posta. Ou seja, a reprodução social só pode ocorrer através da mediação da consciência dos indivíduos concretos. Lukács frisa que a essência da categoria trabalho é a relação entre teleologia e causalidade, sendo o ser social uma síntese de teleologia e causalidade. As coisas objetificadas têm uma ação de retorno não prevista sobre os indivíduos criadores, isto é próprio da segunda natureza da qual nos fala Lukács.

empirismo relativistico oppure a una costruzione razionalistica non applicabile in termini adeguati alla realtà; quando li si rapporta uno all’altro, nasce l’apparenza che la ragione morale sia impotente davanti alla realtà” (1981:94). 135 Mészáros defende que a influência weberiana jamais foi de toda superada por Lukács. Neste sentido o uso que Lukács faz da categoria manipulação, não só na sua “Ontologia”, mas também ao longo dos vinte últimos anos de sua vida, envolve a persistência dessa influência: “Não é importante, neste contexto, saber se a categoria da ‘manipulação’ é adequada para tratar dos problemas destacados por Lukács em suas muitas referências aos perigos inseparáveis das práticas econômicas e culturais/ideológicas denunciadas. (Eu creio que não o seja.) O que importa aqui é que muito do que o autor de História e Consciência de Classe aceita da mitologia weberiana da ordem socioeconômica e cultural/legal/política capitalista, como ‘racionalidade’ e ‘racionalização’, é consignada sem hesitação pelo velho Lukács à categoria da manipulação” (2002:418).

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Vimos com Lessa (2002b) que a categoria de reflexo, em Lukács, é fundamental para a constituição desta esfera ontológica específica que é o ser social. Apenas com o reflexo (que é a apropriação ativa do real pela consciência, transformando o real dado em real explicado) o pôr teleológico pode se concretizar, pois é o reflexo que permite a captura das causalidades existentes no concreto dado. Sem esquecermos que tal categoria – reflexo – é historicamente determinada, ou seja, é influenciada por outros complexos como a ideologia, a política, o estranhamento, etc. Neste momento, Lukács introduz a categoria alternativa, esta categoria tem na consciência do indivíduo criador o seu órgão e ela é a mediação entre o “não ser” do reflexo e a causalidade posta. Alternativa não é um momento, para Lukács é sempre um processo. No processo de trabalho, mesmo o mais primitivo, não ocorre uma simples execução mecânica de uma finalidade. Há uma cadeia de decisões alternativas envolvidas no ato de objetificação, na conversão da causalidade dada em causalidade posta. No ato de trabalho, o indivíduo transforma em concreto uma mera potencialidade. E o faz a partir da escolha dentre várias alternativas. A alternativa faz esta articulação entre o reflexo presente na prévia-ideação, com o produto resultante do processo de trabalho. Quando o produto do trabalho está pronto e o processo do trabalho se encerra, novas decisões alternativas surgem. Seja quanto às formas de utilização do produto, seja quanto à sua conservação. Isto leva, ao desenvolvimento da sociabilidade humana, ao recuo das barreiras naturais. Por isso Lukács entende que o desenvolvimento da sociabilidade na esfera do ser social tem por base tanto decisões alternativas que se apóiam em outras decisões alternativas quanto tem por base a causalidade posta. Lessa (2002b) nos lembra que Lukács apresenta duas conseqüências importantes para sua ontologia do ser social após tratar da categoria de reflexo. Primeiro: o vir-a-ser da coisa objetivada (que é o resultado das decisões alternativas do sujeito criador a partir do reflexo do real dado na consciência desse sujeito, que capturou a causalidade dada e a transformou em causalidade posta) não é determinado a priori. O acaso não é excluído da interpretação luckacsiana, pelo contrário, ele é articulado com necessidade e teleologia “no ir-sendo de cada ato e de cada produto final do trabalho” (Lessa, 2002b:109). Segundo: toda decisão alternativa é sempre concreta. A prévia-ideação é composta por dois momentos distintos: uma “busca de meios” que tem por categoria central o reflexo. E uma “posição de fim” que tem no processo valorativo seu núcleo. Como toda escolha é necessariamente concreta, a categoria alternativa inevitavelmente articula-se com os processos valorativos. Os processos valorativos têm um papel central na concretização do desenvolvimento das cadeias de alternativas que serão objetivadas, assim como na direção deste desenvolvimento. Os valores, portanto, ganham cada vez mais destaque com o próprio desenvolvimento da sociabilidade. Para Lukács, os valores têm sua gênese no “ser-precisamente-assim existente” e sempre em articulação com a causalidade. Neste ponto eles se assemelham ao reflexo, mas diferentemente deste, os valores podem se transformar em relações sociais objetivas com o próprio vir-a-ser da sociabilidade. Os valores são categorias sociais e não surgem, portanto, das qualidades materiais da relação social. Ressaltamos que antes, ao tratar do pôr teleológico em sua totalidade, Lukács dizia que o “momento determinante imediato” era o desenvolvimento social objetivo. Mas, ao tratar do momento específico, particular do ato teleológico no âmbito do trabalho, nosso autor entende que o “dever-ser” é este “momento determinante imediato”. Na causalidade posta é o passado que determina o presente, já no agir teleológico do indivíduo singular é o futuro teleologicamente posto o princípio determinante da práxis. Mas isto é válido somente para a esfera do trabalho,

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somente nesta esfera o futuro, o dever-ser, atua enquanto categoria determinante da objetificação. Para o pôr teleológico em sua totalidade, a relação passado-presente permanece inalterada. Para Lukács, assim como o trabalho é a protoforma do agir humano, o trabalho mais primitivo, que só produz valores de uso, serve de modelo para a práxis social mais desenvolvida. O dever-ser em sua forma mais primitiva serve de modelo para as relações sociais mais desenvolvidas. Mas, para Lukács, entre o modelo e suas variantes mais desenvolvidas, há uma relação de identidade e não-identidade. Portanto, é incorreto reduzir os valores e os processos valorativos (fundados no dever-ser) ao dever-ser simples que atua na troca orgânica entre homem e natureza. A base genética do dever-ser é a intermediação que ele faz entre a materialidade e o valor, entre o homem e a natureza. Ele é o momento predominante da escolha entre alternativas que se manifestam no pôr teleológico do trabalho. A alternativa liga a práxis social aos valores e exige uma distinção entre o que é útil e o que é inútil para uma dada objetivação. A distinção entre o que é útil e o que é inútil é a base genética e do desenvolvimento dos valores. Lukács argumenta que o dever-ser enquanto categoria do ser social é indissoluvelmente ligada à categoria valor. Mas tal conexão não é uma identidade. O valor influi na posição de fim e é o princípio segundo o qual valoriza-se o produto realizado. O dever ser age como regulador do processo enquanto tal. Daí concluir Lessa que não é o conteúdo gnoseológico que determina se uma ideação é valor ou dever-ser, mas a função social que ocupa. A objetividade dos valores se apresenta no cotidiano na relação de “se ... então”, ou seja, uma coisa tem valor se cumpre a função esperada dela. Apenas na relação com a causalidade objetiva (com o ser-precisamente-assim) que o processo valorativo pode determinar se a coisa objetivada em dado contexto é ou não útil. A valoração não é algo meramente subjetivo, só é possível valorar o existente tendo por base o pôr teleológico do trabalho. A valoração só pode ocorrer no interior da complexa articulação teleologia-causalidade, que é própria e fundante do ser social. Ou seja, Lukács defende um terceiro caminho entre os que defendem que a valoração é determinada somente pela subjetividade humana e os que entendem a valoração como resultado direto das qualidades materiais dos objetos. Para ele os valores são puramente sociais, estão presentes em potência no ser social realmente existente e tal potência apenas pode se realizar no interior da relação entre teleologia e causalidade. Os processos valorativos atuam sobre as individualidades e sobre a totalidade da formação social. Para tratar desta questão é preciso retomar a categoria de exteriorização e de individuação. Preliminarmente relembramos que exteriorização e estranhamento têm pontos em comum e pontos que as distinguem. Lessa (2002b) sinalizava que exteriorização é a ação de retorno de todo ente objetivado sobre seu criador, e assim, sobre a totalidade social. Corresponde aos momentos nos quais a ação de retorno da objetivação sobre o sujeito criador estimula a individuação. Por outro lado, estranhamento ou alienação são os “obstáculos socialmente postos à plena explicitação da generalidade humana”. Então, o que há em comum entre exteriorização e alienação é que ambas categorias são “ações de retorno das objetivações sobre a individuação (e sobre a totalidade social, com todas as mediações cabíveis)”. A diferença entre eles é que o estranhamento é uma ação que reproduz a desumanidade socialmente posta, e a exteriorização é a “autoconstrução do gênero humano”. Vimos que para Lukács, segundo Lessa (2002b:145), “a exteriorização é uma conseqüência espontânea e inevitável no processo de trabalho”. A objetivação da prévia-ideação pelo processo de trabalho seleciona os comportamentos dos indivíduos que sejam os mais

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adequados à concretização da idéia. Por essa seleção ocorre o desenvolvimento genético de um complexo valorativo centrado no comportamento do indivíduo. Inicialmente trata-se do comportamento do indivíduo para com a natureza que o cerca e imediatamente trata-se da “mediação daquele impulso de Aufhebung dos processos valorativos para além do trabalho, também de complexos valorativos que têm como nódulo o comportamento do indivíduo diante dos dilemas, alternativas, possibilidades, etc. que a sociabilidade em que vive coloca a cada momento histórico”. Logo a exteriorização é “um momento ineliminável e decisivo para o devir-humano dos homens”. Como já dissemos, no trabalho simples já encontramos o dever-ser e os valores em suas formas originárias, pouco desenvolvidas. Eles servem de padrão inicial para a análise das formas mais desenvolvidas da sociabilidade humana, mas a análise das formas mais complexas de valores encontrados no todo mais complexo, como é o caso da moral, da ética, do direito, etc., exige mediações que só podem ser tratadas na categoria da reprodução social. Lembramos que a individuação, ao lado da totalidade social, constituem os pólos centrais da reprodução social. A individuação articula a “exteriorização mediada pelos valores e processos valorativos com o desenvolvimento humano genérico”. Para Lukács, “o ser social é a síntese dos atos dos indivíduos singulares em tendências, forças, etc., genéricas”. São as decisões alternativas tomadas pelos indivíduos que particularizam sua individualidade em relação às demais e em relação à totalidade social. A substancialidade de cada indivíduo singular é dada pela qualidade das relações que ele estabelece com o mundo, sua substancialidade é materializada, portanto, como construção social. O indivíduo constrói sua substancialidade a partir das escolhas dentre alternativas concretas que ele realiza ao longo de sua vida. É por isso que a substancialidade do indivíduo humano é social, histórica e não meramente genética como ocorre com o indivíduo singular orgânico. A evolução dinâmica da substancialidade é determinada historicamente, socialmente. A personalidade de cada indivíduo é construída a partir dessa integração e correlação com e na formação social na qual está inserido. O caminho acima descrito é o que permite a explicitação da categoria individuação. Vimos com Lessa (2002b:150) que este caminho tem três momentos-chave, dos quais destacamos aqui o terceiro e último nexo ontológico que é associado aos complexos valorativos. O desenvolvimento da individualidade exige complexas mediações genéricas que permitam que o indivíduo coloque para si próprio “as exigências postas pela evolução do gênero humano”. Sendo essa a base genética de complexos valorativos tais como os costumes, o direito, a ética, etc. Estes complexos valorativos influenciam as escolhas dos indivíduos dentre as alternativas postas pelo desenvolvimento da sociabilidade, logo influenciam o desenvolvimento interno e específico de cada individualidade. Assim, tais complexos acabam por compor um complexo de determinações que orientam o vir-a-ser humano dos homens para realizações mais (ou menos) genéricas. Constatamos, portanto, que “os valores têm um papel ontológico decisivo no desenvolvimento das individualidades”. Ainda que seja universal, a ação dos valores só é totalmente explicitada com o surgimento da sociabilidade burguesa. Aqui com o indivíduo cindido entre homem econômico e homem político (cidadão), os valores têm uma mudança qualitativa na determinação do processo de individuação. Agora ou os valores direcionam, estimulam as individualidades para posições genéricas, voltando-as para o atendimento de exigências postas pelo desenvolvimento do gênero humano. Ou as estimulam para o atendimento das exigências particulares, associadas à acumulação privada de capital e à própria lógica do capital.

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Sobre a categoria de reprodução social total, lembramos que é um processo que exige a inter-relação entre complexos sociais parciais relativamente autônomos, mas a reprodução social total tem a influência soberana sobre estas inter-relações. E o processo de reprodução social total tem, necessariamente, uma natureza bipolar. Tem dois pólos que delimitam seus movimentos reprodutivos, que o determinam em sentido positivo e negativo. Estes dois pólos são de um lado o processo reprodutivo em sua totalidade extensiva e intensiva, e de outro, o indivíduo singular cuja reprodução constitui “la base d’essere della riproduzione totale”. No capítulo 3 da presente Tese vimos que são os atos individuais que põem as legalidades, as causalidades, pois os homens fazem mesmo sem sabê-lo. A decisão individual, singular, que é tomada dentre várias alternativas, implicará em conseqüências sociais, implicará em modificações da totalidade do ser social ou de uma totalidade parcial. As tendências, objetividades, etc, do ser social, nascem da práxis humana, mas seu caráter é, no todo ou em grande parte, incompreensível para quem produz. Pois, como vimos, essência e aparência não coincidem diretamente. Vimos que Lukács aponta que todas as alternativas são concretas e estão ligadas ao seu "aqui e agora". E tal concreticidade "nasce de uma ineliminável concomitância operativa entre o homem singular e as circunstâncias sociais em que atua" e que "todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, tem efeitos ulteriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem outras alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas. Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos." Com isso Lukács responde a questão (formulada pelos críticos de Marx) de que as legalidades objetivas136 do ser social, as leis de tendência eliminariam a possibilidade de intervenção do indivíduo na história. De que, portanto. Marx teria formulado um "sistema" mecanicista e determinista de explicação do real E não haveria em tal "sistema" lugar para incertezas, para o acaso. Fica claro que Lukács torna inteligível a articulação entre as legalidades do ser social, os atos individuais de caráter alternativo, que geram tais legalidades, mas depois da ação que delas decorre, aparecem efeitos ulteriores independentes das intenções conscientes. Com isso fazem surgir novas séries causais cuja legalidade vai além das intenções contidas na alternativa. Ou seja, as legalidades objetivas do ser social possuem uma coercitividade social que é independente dos atos individuais alternativos, ao mesmo tempo em que estão ligadas a ele. Por fim, no presente capítulo tratamos, rapidamente da categoria ideologia. Vimos que a ideologia é determinada ontologicamente, é o momento ideal da práxis humana, apresenta-se no momento inicial, na finalidade e na dinâmica de tal práxis (Vaisman, 1989:418). A ideologia só pode ser fruto da realidade concreta, realidade sobre a qual ela pensa e atua. Ela surge no “aqui e agora” social que coloca problemas a serem resolvidos pelos homens, pois é produto do pensamento, da consciência do homem. Quaisquer soluções apresentadas pelos homens, aos problemas socialmente postos, que oriente, operacionalize, e torne consciente a prática social, tornam-se ideologias. Daí Vaisman dizer que qualquer expressão humana pode se tornar ideologia. Em Lukács ideologia não se restringe a ser instrumento da luta de classes. Para a

136 Lembrando que para Lukács (1979b:104:105): "Do ponto de vista ontológico, legalidade significa simplesmente que no interior de um complexo ou na relação recíproca de dois ou mais complexos, a presença factual de determinadas condições implica necessariamente, ainda que apenas como tendência, determinadas conseqüências”.

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“Ontologia” de Lukács, portanto, ideologia e existência social são realidades necessariamente entrelaçadas. Numa concepção ampla de ideologia podemos dizer que “onde quer [que] se manifeste o ser social há problemas a resolver e respostas que visam a solução destes; é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações” (ibid., p. 419). Relembramos, por fim que para Lukács o marxismo desde sempre postulou de forma explícita ser ideologia e ciência, pois não há contraposição ou exclusão recíproca entre estes complexos. De tal forma que o engajamento político-ideológico não traz, a princípio, limites para a cientificidade do pensamento. Mas a compreensão correta da especificidade do autêntico marxismo, e da ligação entre ideologia e ciência, para nosso autor, exige a compreensão de que o marxismo institui uma nova ligação entre ciência e filosofia. Voltando a Weber, lembramos que ele constrói epistemologicamente toda uma tipologia (seus “tipos ideais”). Como vimos no capítulo 1 desta Tese, ele tenta introduzir a estrutura social na análise econômica a partir da ação individual. Logo a ação individual passa a ocupar um lugar chave na sua teoria, e ele passa a construir os “tipos ideais” da ação social, destacando os diferentes tipos da ação social econômica. Para melhor caracterizar a estrutura econômica, Weber recorre a alguns outros conceitos tais como “regularidades determinadas pelo interesse”, relações “comunais” e “associativas”, “poder e dominação”, racionalidade, etc. A complexificação das ações social e econômica leva Weber para o âmbito do conceito de “instituições”, ainda que de fato ele não use este termo. Em resumo: a estrutura hiper-racionalizante de Weber parte do indivíduo, de sua ação social, passa pela relação entre dois ou mais indivíduo que se transformam em relações sociais fechadas (por exemplo: firmas), organizações economicamente ativas (por exemplo: igrejas), organizações regulamentadoras (por exemplo: sindicatos) e organizações que impõem uma ordem formal (Estado liberal). Como vimos com Lukács e Mészáros mais acima, e no capítulo 1, Weber defende que a Ciência Social deve ser livre dos juízos de valor. Pois os valores para Weber só podem ser explicados subjetivamente, e não a partir da objetividade posta pela sociabilidade. Lembramos que neste aspecto Weber se aproxima dos (por ele) criticados positivistas de Comte que procediam de forma semelhante. Mas quando formula o objeto da sua pesquisa, Weber aceita a presença das prenoções. Vimos, que a construção teórica de Weber, ao contrário do que ele imaginava, está impregnada de uma ideologia (no sentido marxiano e luckacsiano) muito específica que se põe na defesa da lógica humano-societária do capital. Vimos como sistematicamente ele próprio burla sua proposta de autocontrole que visa impedir contaminação da pesquisa pelos valores, preconceitos e prenoções do pesquisador. O que nos parece ser a demonstração cabal da inviabilidade do assim chamado autocontrole. Por fim seus tipos ideais, a teoria da ação econômica deles decorrentes, seu entendimento das leis histórico-sociais enquanto probabilidades, sua aceitação da teoria econômica marginalista, tudo isto o leva a um tratamento estático da realidade social. De tal forma que a formação social do capital é vista como perene, para além da qual nada se coloca de fato. O que conclui sua construção teórico-ideológica. 4.8. Polanyi a partir do olhar de Lukács

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Polanyi ao longo do livro “A Grande Transformação”, no qual, de fato, ele se propõe a reescrever a história, parece ter, em vários momentos, um viés crítico-romântico do capitalismo. Ou ainda, parece acreditar que a constituição de uma nova legislação, de novas normas, novos costumes, etc, possam, por si mesmas, refrear a lógica humano-societária do capital. Ele parece acreditar que os complexos constitutivos da superestrutura, por si só, são capazes de por travas e limites à esfera do econômico. Não conseguindo perceber que o sócio-metabolismo do capital tem a capacidade de afastar as travas e os limites impostos à sua lógica sempre que a extração de mais mais-valor se encontre ameaçada. Independentemente do ritmo em que tal afastamento se dê, o resultado final é sempre a manutenção da lógica do capital.137 No próximo capítulo trataremos desta questão ao discutirmos a categoria estado. Por enquanto, registramos que naturalmente, tal viés e tais compreensões de Polanyi estão diretamente associados ao seu constructo teórico. Para nosso interesse, o conceito chave trabalhado por Polanyi, no referido livro, é o de enraizamento. De certa forma, esse conceito permeia a própria re-interpretação da história feita por Polanyi. Quando trata das economias pré-capitalistas, ele argumenta que a economia está enraizada na tradição e na religião dos grupos sociais. Tal aspecto muda com o advento da economia capitalista (o que ele chama de economia de mercado auto-regulado) na qual a esfera econômica não está mais enraizada na tradição e na religião, nas relações sociais. A explicação para este desenraizamento passa pelo que ele chama de estabelecimento do moinho satânico e do duplo movimento a este associado. O advento das máquinas complexas e do sistema fabril mecanizado com a revolução industrial inglesa do século XIX, segundo Polanyi, trouxe a idéia do mercado auto-regulável. Uma exigência imediata da revolução industrial é a disponibilidade, em quantidades adequadas, de trabalho e matéria-prima, que garanta a continuidade do fluxo produtivo. Como a sociedade a partir da qual brota a revolução industrial era uma sociedade agrícola, vários aspectos desta antiga sociedade vão ser alterados. Agora, a obtenção de renda, emprego e provisões passam a depender do fluxo contínuo da produção voltada para o mercado, produção esta que tem por objetivo final o lucro (ao contrário do que ocorria até então quanto o objetivo era a subsistência). Além disso, as transações econômicas são necessariamente monetárias, o que logicamente põe a necessidade da presença do dinheiro em cada espaço da vida industrial. A conclusão de Polanyi é de que na atividade de venda, o mercador-produtor tendo ou não demanda pelos seus “artefatos” não afeta o tecido social. Mas suas compras de matérias-primas e trabalho (natureza e homem) caso sejam paralisadas podem “desorganizar as relações humanas e ameaçar de aniquilamento o seu habitat” (Polanyi, 2000:61). Enquanto Weber fala de um espírito capitalista antes do capitalismo, Polanyi acerta ao demonstrar que a sociedade de mercado auto-regulado, com sua lógica, é uma criação recente na

137 Polanyi apresenta sua posição com o seguinte raciocínio: “Um prevalecimento tão fácil de interesses privados sobre a justiça é visto, muitas vezes, como um sinal certo da ineficiência da legislação; e a vitória da tendência inutilmente obstruída é citada, subseqüentemente, como evidência conclusiva da alegada futilidade de um ‘intervencionismo reacionário’. Todavia, tal opinião parece perder de vista o ponto principal. Por que a vitória final de uma tendência deve ser tomada como prova de ineficácia dos esforços para diminuir o ritmo do seu progresso? E por que o propósito dessas medidas não pode ser visto precisamente naquilo que elas alcançaram, i.e., a diminuição do ritmo da mudança? Aquilo que é ineficaz para parar uma linha de desenvolvimento não é, por isto mesmo, totalmente ineficaz. O ritmo da mudança muitas vezes não é menos importante do que a direção da própria mudança; mas enquanto essa última freqüentemente não depende da nossa vontade, é justamente o ritmo no qual permitimos que a mudança ocorra que pode depender de nós” (2000:55).

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história humana. De tal forma que nas sociedades primitivas a economia estava enraizada, submetida às relações sociais, e de forma alguma se identificava aí um espírito capitalista. Nas sociedades primitivas o sistema econômico era dirigido por motivações não econômicas e para estas não se colocava a maximização do lucro ou coisa que o valha. A questão era cumprir as exigências sociais, garantir sua própria situação social e seu patrimônio social. A ordem na produção e distribuição de valores de uso era garantida pelos princípios da reciprocidade, da redistribuição e da domesticidade. Estes princípios, segundo Polanyi, organizaram o sistema econômico até o fim do feudalismo na Europa Ocidental. Somente com a revolução industrial, no século XIX, é que o mercado assume o lugar central na vida econômica. Agora a sociedade passa a ser dirigida como se fosse um acessório do mercado, ao invés da economia estar enraizada nas relações sociais, são as relações sociais que estão enraizadas na economia. Diante dessa constatação, Polanyi se coloca a tarefa de explicar como ocorreu a transformação de mercados isolados em uma economia de mercado, de mercados reguláveis num mercado auto-regulável. Como os mercados, na opinião de Polanyi, têm uma natureza não expansiva, a explicação será encontrada na intervenção do estado. Essa intervenção tinha por objetivo inicial contrapor-se às tendências dissolutivas do padrão social oriundas da atuação do mercado e às tendências decorrentes do predomínio da máquina na produção fabril. Polanyi defende que o comércio tem por origem uma esfera externa à comunidade, portanto, não estando ligado a organização interna da economia. Polanyi argumenta que o mercado externo favoreceu o desenvolvimento do mercado local. E como o mercado local tinha sua influência sobre a vida social limitada pelo costume, lei, religião, magia, etc., e como as próprias cidades (que eram resultado do desenvolvimento dos mercados locais) tiveram um papel de impedir a expansão das práticas de mercado pelo campo e de seu enraizamento na vida econômica da sociedade mais primitiva, a conclusão dele é que o mercado interno ou nacional foi criado pela intervenção do Estado. As cidades medievais sentiam suas instituições ameaçadas pela mobilidade do capital, e reagiram controlando somente o comércio local, dado que não tinham como controlar o comércio a longa distância. O Estado nacional atuou contrariando este movimento da vida urbana criando o mercado interno/nacional, derrubando barreiras entre o comércio local e intermunicipal, etc. Num primeiro momento o Estado inspirado pelos princípios mercantilistas passa a fazer total regulamentação da vida econômica não só em escala local, municipal, mas em escala nacional. Neste momento a economia ainda estava enraizada nas relações sociais gerais, mas com o advento da Revolução Industrial Inglesa temos o emergir do mercado auto-regulável. Com o mercado auto-regulável surge o que Polanyi chama de mercadorias fictícias: trabalho, terra e dinheiro. Na simplória argumentação de Polanyi, como “tudo que é comprado e vendido tem que ser produzido para a venda” (p. 92), terra, trabalho e capital não são mercadorias. E “incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado” (p. 93). A conclusão é que permitir o funcionamento do mercado auto-regulado sem leis e travas jurídicas é deixar que esse “moinho satânico” leve a sociedade à derrocada. Polanyi tem o mérito de redescobrir o “homem como ser social” (2000:65), mas tal redescoberta, se o permite ter uma compreensão superior das questões da sociabilidade humana, das contradições próprias ao vir-a-ser homem do homem, comparativamente ao que encontramos na economia vulgar, não é suficiente para arrancá-lo de uma postura romântica quanto à possibilidade de deter o avanço do capital e da sua sociabilidade que prescinde das questões ligadas à manutenção do meio-ambiente e da humanidade do homem.

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A incapacidade de dar um tratamento científico para a esfera do econômico, traz limitações graves para a análise de Polanyi. Primeiro, parece que ele não compreende ou não aceita a centralidade da esfera do econômico no ser social, tal como por nós vista ao tratarmos da categoria trabalho no capítulo 2 desta Tese e ao tratarmos do método da economia política de Marx no capítulo 3. Ao longo destes dois capítulos acompanhamos o esforço, quase desesperado, de Lukács em resgatar a centralidade do econômico na explicação do ser social, sem incorrer em quaisquer tipos de mecanicismos ou economicismos. Segundo, ele despreza um tratamento acurado para as categorias com as quais opera. Assim mercadoria é definida como algo que se compra e vende e que logo tem que ser produzida para a venda. E se não for produzido para a venda não é mercadoria. Tal ligeireza no tratamento da categoria mercadoria proporciona equívocos teóricos de graves conseqüências para a continuidade da sua construção teórica. Pois, relembrando Marx, uma coisa é mercadoria quando possui valor de uso, valor de troca e valor (em geral, em abstrato). Sendo o valor, dado pelo tempo de trabalho socialmente necessário e gasto para a fabricação da mercadoria. Além disso, no que diz respeito ao trabalho, não é correto dizer que o trabalhador vende o trabalho. Como vimos no capítulo 2, trabalho é uma categoria que define o homem enquanto homem é intrínseco a ele. É a categoria que o diferencia dos primatas superiores. Na verdade o que é vendido é a força de trabalho, a capacidade de trabalhar do indivíduo, e isto implica a submissão do corpo físico do trabalhador ao capitalista pelo número de horas diárias contratadas. Pois só assim ele pode realizar as tarefas necessárias para a fabricação de mercadorias. Neste sentido, força de trabalho é uma mercadoria que possui valor de uso, valor de troca e valor. A propósito, a discussão sobre a categoria força de trabalho é extensa em “O Capital” de Marx, e nos surpreende que Polanyi passe ao largo dela e se apegue a uma noção ricardiana na explicação do que é vendido pelo trabalhador ao capitalista. Foge ao escopo de nossa tese retomar toda esta discussão a partir de Marx, mas fica assinalada a fragilidade da posição de Polanyi. Entretanto é preciso registrar a explícita rejeição da teoria do valor trabalho de Marx e a adesão, com restrições à teoria do valor utilidade. Naturalmente, tal movimento cobra um alto preço de Polanyi. Por exemplo, o incapacita a explicar cientificamente a categoria de lucro, de tal forma que ele fica preso, sem perceber, a um argumento circular (lucro é “(...) diferença entre dois conjuntos de preços, o preço dos bens produzidos e seus custos, i.e., o preço dos bens necessários para produzi-los” (2000:90)). Na verdade, com a rejeição da teoria do valor trabalho, sai de cena a categoria de capital (entendida enquanto relação social que envolve trabalho assalariado) e exploração da força de trabalho (e, logicamente, a luta de classes). Entendemos que este é um dos cernes das fragilidades analíticas de Polanyi. No que diz respeito a terra (natureza), assinalamos que ela também possui valor de uso, valor de troca e valor, sendo que a renda da terra deve-se basicamente ao monopólio jurídico que uma classe social possui sobre a terra. Sem dúvida, terra é mercadoria. E nem precisamos discutir a capacidade relativa do homem transformar em terras cultiváveis áreas geográficas que até então eram incapazes de produzir, graças ao avanço tecnológico. Por fim, dinheiro de crédito, que é a forma usual que o dinheiro assume hoje no século XXI, também é mercadoria. Ainda que a nota de papel em si não tenha valor, ela é signo do valor. Há toda uma literatura que mostra a desmaterialização do dinheiro e que explica esta peculiaridade a partir da construção teórica marxiana. Aqui o dinheiro de crédito emitido pela Autoridade Monetária, é a expressão do valor contido nas mercadorias. E é em si uma mercadoria, ainda que de tipo especial, pois é produto de um monopólio legal, e tem um preço próprio que é dado pela taxa de juros.

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A análise que Polanyi realiza das sociedades primitivas, apoiada na antropologia de sua época, traz em si o problema de ser utilizada enquanto referencial analítico das formas de sociabilidade mais desenvolvidas. Este é um dos motivos dos tantos equívocos em que Polanyi incorre ao tratar das categorias trabalho, terra e dinheiro. Aqui faz-se necessário retomarmos a questão do método da economia política de Marx138, tal como exposto por Lukács em sua “Ontologia” e por nós brevemente resenhado no capítulo 3 da presente Tese. Curiosamente, Marx trata das categorias trabalho, dinheiro e renda fundiária ao expor seus argumentos sobre o método da economia política. Estando muito claro, para nós, o total desacordo (ou desconhecimento) de Polanyi com relação a tal método, conforme explicitaremos em seguida. Resumidamente, Marx advoga que o método correto, científico para a apreensão do real dado envolve um primeiro movimento de abstração139, de desconsideração de aspectos não essenciais do real, de tal forma que possamos apreender as categorias chaves na explicação da malha constitutiva do real, mas num momento ainda distante da concreticidade. Envolve, daí, um segundo momento, de concretização, de síntese do estudo, de reaproximação do concreto dado, mas agora transformando-se em concreto explicado pelo pensamento. Com Lukács no capítulo 3 da presente Tese vimos que “Marx busca empreender uma crítica ontológica ininterrupta dos fatos, das conexões e das legalidades do ser social. E tal postura vale para a discussão suscitada quanto aos perigos dos caminhos de "cima para baixo" e vice-versa. Pois para Marx não basta ter uma perspectiva genérica do ser social, da sua estrutura, (estrutura que determina os caminhos, as direções, ramificações, etc). Pois para ele é indispensável – no processo do conhecimento – tanto as abstrações e generalizações, como as concretizações, via especificação dos complexos e das conexões concretas. Assim especificar, em termos ontológicos, é perceber a ocorrência das leis do ser social, suas concretizações, modificações, tendencialidades. Para conhecer é preciso investigar os traços particulares de cada complexo objetivo, dessa forma sob a categoria de "desenvolvimento desigual" estão combinados dois pontos de vista que formam uma unidade, a unidade entre tendências de desenvolvimento legais-gerais e tendências particulares. Sendo essa unidade dissociável no plano ideal-analítico e indissolúvel no plano ontológico. Conclui-se que na perspectiva ontológica, ‘trata-se de compreender o ser-propriamente-assim de um complexo fenomênico em conexão com as legalidades gerais que o condicionam e das quais, ao mesmo tempo, ele parece se desviar’ (ibid., p. 111)”. Marx prossegue e passa a tratar da relação entre categorias simples e categorias mais concretas. Permitam-nos uma citação um pouco mais longa de Marx, que acreditamos, ajudará no correto entendimento de seu argumento:

(...) as categorias simples são a expressão de relações nas quais o concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado sem haver estabelecido ainda a relação ou o relacionamento mais complexo, que se acha expresso mentalmente na categoria mais concreta, enquanto o concreto mais desenvolvido conserva a mesma categoria como uma relação subordinada. O dinheiro pode existir, e existiu historicamente, antes que existisse o capital, antes que existissem os Bancos, antes que existisse o trabalho assalariado. Desse ponto de vista, pode-se dizer que a categoria mais simples pode exprimir relações dominantes de

138 Item 3 (“O método da Economia Política”) do Prefácio de “Para Crítica da Economia Política” (Marx:1986). 139 Chasin (1995) apresenta um instigante estudo (“Marx – Estatuto Teórico e Resolução Metodológica”) sobre a resolução metodológica de Marx (item 3. “A Resolução Metodológica”), do qual destacamos a perspectiva das abstrações razoáveis.

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um todo menos desenvolvido, ou relações subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam antes que o todo tivesse se desenvolvido, no sentido que se expressa em uma categoria mais concreta. Nessa medida, o curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao mais complexo corresponde ao processo histórico efetivo”. “De outro lado, pode-se dizer que há formas de sociedades muito desenvolvidas, embora historicamente não tenham atingido ainda sua maturidade, nas quais se encontram as formas mais elevadas de Economia, tais como a cooperação, uma divisão do trabalho desenvolvida, sem que exista nelas o dinheiro (...). É, pois, um erro situar o intercâmbio no interior das comunidades como elemento que as constitui originariamente. A princípio surge antes nas relações recíprocas entre as distintas comunidades, que nas relações entre os membros de uma mesma e única comunidade”. “(...) Esta categoria [dinheiro – PH], que é no entanto bem simples, só aparece portanto historicamente com todo o seu vigor nos Estados mais desenvolvidos da sociedade. (...) De modo que, embora a categoria mais simples possa ter existido historicamente antes da mais concreta, pode precisamente pertencer em seu pleno desenvolvimento, intensivo e extensivo, a formas complexas de sociedades, enquanto que a categoria mais concreta já se achava plenamente desenvolvida em uma forma de sociedade menos avançada. (1986:15-16)

Em primeiro lugar, quero destacar que Marx, antes de Polanyi, já defendia que a troca não se origina no interior das comunidades mais primitivas, mas das relações recíprocas entre elas. Em segundo lugar, na citação acima, em que Marx trata da categoria dinheiro (registramos que na seqüência da exposição ele trata da categoria trabalho e da renda da terra), fica clara a precedência do capital e da sua lógica para a correta compreensão da categoria dinheiro e de toda sua potencialidade intrínseca que somente no todo mais complexo (que é a sociedade capitalista) poderá se realizar, ainda que a forma dinheiro esteja presente em sociedades menos avançadas e aí não entrava em todas as relações econômicas, restringindo-se a alguns aspectos das mesmas. Como já dito, em seguida, Marx passa a tratar da categoria trabalho. Então se ocupa em demonstrar como foi possível ao pensamento científico identificar a categoria de trabalho abstrato. Somente numa totalidade muito desenvolvida na qual encontram-se múltiplos gêneros de trabalho, sem que um gênero em particular predomine sobre os demais. Somente aí foi possível produzir abstrações mais gerais, aí

(...) onde existe o desenvolvimento concreto mais rico, onde um aparece como comum a muitos, comum a todos. (...) Por outro lado, essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito, e, portanto, é-lhes indiferente. Nesse caso o trabalho se converteu não só como categoria, mas na efetividade em um meio de produzir riqueza em geral, deixando, como determinação, de se confundir com o indivíduo em sua particularidade (ibid., p. 16-17).

Para Marx, somente na formação sócio-metabólica do capital é possível a elaboração da categoria de trabalho abstrato, somente quando há uma disseminação do trabalho por todos os âmbitos da atividade econômica é que se torna possível pensar no que há em comum entre todos os tipos diferentes e específicos de trabalhos executados – que é o trabalho humano em geral, em abstrato. Mas, tal constatação o leva imediatamente a anunciar que as categorias abstratas (como é o caso aqui analisado), ainda que tenham validade para todas as épocas, são produtos de determinada época, produtos de determinadas condições históricas é só possuem plena validez

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“para essas condições e dentro dos limites destas” (ibid., p. 17). Isto posto, nosso autor pode explicitar que as categorias que explicam o funcionamento da sociedade burguesa, podem explicar, também, as articulações e relações de produção de todas as formações sociais desaparecidas. Pois, para Marx, como bem nos mostra Lukács, trata-se de acompanhar o desenvolvimento ontológico do ser social, do aumento da sociabilidade humana, do afastamento paulatino das barreiras naturais, lembrando que somente post festum é possível explicar tais movimentos, que não há teleologia neste processo e que em última instância ele é fruto das decisões alternativas de cada indivíduo humano no seu vir-a-ser contidiano. Daí o argumento marxiano de que “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco” (ibid.). Vejamos o que nos diz Marx:

A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A Economia burguesa fornece a chave da Economia da Antiguidade, etc. Porém, não conforme o método dos economistas que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, o dízimo, quando se compreende a renda da terra. Mas não se deve identificá-los (ibid., p. 17).140

Após tratar da categoria trabalho, Marx passa para a análise da agricultura, da propriedade da terra e da renda da terra. O que nos interessa é assinalar que para ele, na sociedade burguesa a agricultura torna-se um ramo da indústria e é completamente dominada pelo capital. E o mesmo se dá com a renda da terra. Vejamos:

Em todas as formas em que domina a propriedade fundiária, a relação com a natureza é ainda preponderante. Naquelas em que domina o capital, o que prevalece é o elemento produzido social e historicamente. Não se compreende a renda da terra sem o capital, entretanto compreende-se o capital sem a renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa, que domina tudo. Deve constituir o ponto inicial e o ponto final e ser desenvolvido antes da propriedade da terra. Depois de considerar particularmente um e outro, deve-se estudar sua relação recíproca (ibid., p. 18-19).

Do exposto até aqui, de forma muito breve, sobre o método da economia política de Marx, podemos apontar as inversões promovidas por Polanyi. De partida, já assinalamos que Polanyi

140 Marx prossegue argumentando no parágrafo seguinte que: “Como, além disso, a própria sociedade burguesa é apenas uma forma opositiva de desenvolvimento, certas relações pertencentes a formas anteriores nela só poderão ser novamente encontradas quando completamente atrofiadas, ou mesmo disfarçadas; por exemplo, a propriedade comunal. Se é certo, portanto, que as categorias da Economia burguesa possuem [o caráter de] verdade para todas as demais formas de sociedade, não se deve tomar isso senão cum grano salis. Podem ser desenvolvidas, atrofiadas, caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas. O chamado desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isso em condições bem determinadas – concebe-os sempre sob um aspecto unilateral.

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toma as sociedades primitivas como referencial analítico para a sociedade burguesa, numa completa inversão do desenvolvimento ontológico do ser social. Daí acusa a economia de mercado auto-regulado (a economia capitalista liberal sob a “Pax Britânica” do século XIX), de por em funcionamento o “moinho satânico” que transforma trabalho, dinheiro e terra em mercadorias e leva a derrocada das relações sociais e do meio-ambiente. Pois a economia está desenraizada das relações sociais. Um novo enraizamento exigiria reformas legislativas, morais e éticas, para garantir a liberdade do homem. Mais uma vez somos obrigados a voltar a Marx, que num pequeno parágrafo, quase ao final do item do “Método da Economia Política” diz que:

Seria, pois, impraticável e errôneo colocar as categorias econômicas na ordem segundo a qual tiveram historicamente uma ação determinante. A ordem em que se sucedem se acha determinada, ao contrário, pelo relacionamento que têm umas com as outras na sociedade burguesa moderna, e que é precisamente o inverso do que parece ser uma relação natural, ou do que corresponde à série do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações econômicas assumem historicamente na sucessão das diferentes formas da sociedade. Muito menos sua ordem de sucessão na ‘idéia’ (...). Trata-se da sua hierarquia no interior da moderna sociedade burguesa (ibid.).

Entendemos que a forma como Polanyi analisa o enraizamento nas comunidades primitivas e a busca de tal enraizamento na sociedade de mercado auto-regulado determina o tipo de conclusão a que ele chega. Na verdade, concordamos com Swedberger neste ponto. Não nos parece que haja um desenraizamento do econômico nesse último tipo de sociedade. Pois, como o próprio Polanyi constatou, mas parece não ter percebido a dimensão ontológica dessa constatação, o homem é um ser social, e assim sendo, as relações econômicas estão, sempre, necessariamente, enraizadas nas relações sociais em geral. Mais uma vez, o trabalho é a protoforma do agir humano. A anatomia da sociedade burguesa é a chave para a compreensão da anatomia das sociedades primitivas e não o inverso. Essa é uma constatação feita a partir do desenvolvimento ontológico do ser social, sem a presença de quaisquer tipos de juízo de valor, mas uma constatação sobre o que é. A questão, não percebida por Polanyi, é que o capital enquanto lógica, tem a capacidade intrínseca de subsumir tudo a ele. Assim, essa é a categoria chave que permanece fora da análise de Polanyi e que permite que ele fale num duplo movimento mediante o qual a sociedade reage à dissolução do seu tecido social ante o avanço das práticas do livre-mercado. Quando na verdade, a reação da sociedade só pode ser adequadamente entendida da ótica da luta de classes, dos seus interesses antagônicos, de suas ideologias conflitantes e de seus projetos políticos próprios. Sua incapacidade de explicar cientificamente o que é capital parece ter uma raiz acima de tudo ideológica no sentido por nós trabalhado no início desse capítulo. A proposta final de Polanyi (2000: 291 e ss.) é impregnada de um grande idealismo romântico, ele propõe que o trabalho, a terra e o dinheiro (para este o processo já estava estabelecido) fossem retirados do mercado através de uma legislação restritiva. Isto garantiria o início de um novo enraizamento. Tal postura nos remete a uma classificação de Mészáros sobre um tipo específico de ideologia propugnada “(...) por pensadores radicais como Rousseau, [que – PH] revela, com êxito significativo, as irracionalidades da forma específica de sociedade de classe, sem dúvida anacrônica, rejeitada a partir de uma nova posição de observação, mas sua crítica é viciada pelas contradições de sua própria posição social – igualmente determinada pelas das classes sociais, mesmo se historicamente mais evoluídas” (1993:14-15). Entendemos que Polanyi faz uma crítica instigante dos vícios da, por ele chamada, economia de mercado auto-

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regulada, percebe o lado mau da sociabilidade do capital, consegue realizar grandes acertos analíticos, como ao enfatizar que os mercados nacionais surgem por obra e graça dos Estados Nacionais. Em verdade, ele está percebendo algo que Mèszáros em outra obra (2002) vai explorar bastante, que é o fato de que capital e estado serem irmãos siameses. Polanyi compreende que o poder político sempre foi utilizado para viabilizar a expansão do lucro, ou, nas palavras dele como o poder político esteve associado ao valor econômico ao longo do processo de formação das sociedades de mercado auto-regulado. No próximo capítulo voltaremos a essa relação simbiótica entre estado e capital. Assim como trataremos, ainda que rapidamente, da impossibilidade da superação da lógica humano societária do capital, somente pela esfera política ou jurídica, como entende Polanyi. E como, a política adequada para o pensamento marxiano e marxista é a política que se nega a si mesma, pois, enquanto forma de poder, precisa deixar de existir para que o homem possa realizar toda a plenitude de suas potencialidades intrínsecas. 4.9. Granovetter a partir do olhar de Lukács Granovetter, conforme vimos no capítulo 1, apresenta uma clara linha de continuidade em suas pesquisas a respeito da necessidade da criação de uma ligação entre os níveis macro e micro de análise do sistema social. Partindo do seu artigo de 1973 (“The Strength of Weak Ties”), já é explícita sua crítica ao fato da sociologia não apresentar uma ligação convincente entre esses dois níveis de análise. Neste artigo seu interesse é ressaltar a força dos vínculos interpessoais que se verificam nas interações sociais de pequena escala, para a ocorrência de vários fenômenos macro como mobilidade social, organização política, etc. Neste artigo, como vimos, ele explicita conceitos como laços interpessoais fortes, fracos e ausentes, tríade ausente e ponte. É este o caminho para que se perceba a influência da teoria da ação social de Weber em Granovetter e na Nova Sociologia Econômica. O segundo artigo por nós analisado foi o de 1985 (“Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness”). A preocupação central desse artigo é discutir como os comportamentos individuais e as instituições humanas são afetados pelas relações sociais. Esta, conforme o próprio Granovetter assinala, é uma questão clássica para a teoria social. Nesse artigo, Granovetter divide a influência das relações sociais sobre os comportamentos e as instituições entre uma concepção sobressocializada do homem e uma concepção atomizada e subsocializada do homem pouco influenciada pelas relações sociais. Ele aponta que ambas concepções desenraizam os atores do seu contexto social. Pois ambas aceitam que as ações e decisões são tomadas por atores atomizados. Como alternativa a essas perspectivas, Granovetter argumenta que o melhor caminho para entender a influência das relações sociais é através do conceito de enraizamento (“embeddedness”). Aqui é óbvia a ligação com as construções teóricas de Karl Polanyi. Ainda que Granovetter não concorde com o argumento de Polanyi de que na sociedade de mercado auto-regulado tenhamos um total desenraizamento, ao contrário do que verificávamos nas comunidades primitivas em que a economia estava enraizada nas relações sociais. Ou melhor, Granovetter defende que o grau de enraizamento das sociedades pré-mercantis era menor do que o defendido por Polanyi. Além disso, entende que o grau de enraizamento teve uma menor modificação na passagem das sociedades pré-mecantis para a sociedade de mercado auto-regulado do que defende Polanyi. Na verdade, neste ponto, Granovetter parece muito próximo da concepção de Durkheim de que na sociedade moderna (de

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mercado auto-regulado) não é fundamental a consciência orgânica dos indivíduos desta sociedade sobre a interdependência e a inserção da esfera econômica nas relações sociais em geral, como ocorria nas sociedades tradicionais. Para Durkheim, a coesão social e a inserção nas relações sociais são garantidas pela divisão social do trabalho que impõe um conjunto de regras sociais (direito, norma, tradição) elaborados coletivamente e inseridos ou não em relações contratuais. Ou seja, como afirma Raud-Mattedi (2005:129), as relações mercantis não se esgotam num único ato de troca, e geram laços sociais, que ainda que não passem por relações pessoais intimas, acaba por se inserir, se enraizar e participar “do processo de reprodução das instituições sociais”. Neste mesmo artigo, Granovetter volta sua atenção para a “nova economia institucional”, de North e Williamson, que tem no cerne de sua pesquisa as instituições sociais. Ele compreende que o enraizamento nas sociedades mercantis é maior e mais substancial do que o aceito pela “nova economia industrial”. Antes de prosseguirmos com a crítica de Granovetter à “nova economia institucional” e aos economistas modernos, é preciso lembrar que ele, corretamente, assinala que a chamada economia neoclássica por seguir a tradição da teoria do valor utilidade, defende que a ação humana é atomizada e subsocializada. Nela não há relação de determinação entre estrutura social, relações sociais e atividades de produção, distribuição e consumo. Na economia neoclássica não há relações sociais duradouras, instituições, desconfiança e má-fé. Logo o livre-mercado, corporificado na estrutura de concorrência perfeita, interdita o uso da força, inibe a fraude e a má-fé. Assim, as relações sociais e o contexto institucional perdem importância, ou são apenas obstáculos circunstanciais para o funcionamento correto da estrutura de concorrência perfeita. Ao tratar das teorias econômicas de Piore e de Gary Becker, Granovetter argumenta que eles têm uma visão sobressocializada da influência das relações sociais sobre o comportamento individual. Neles, basta conhecer a classe social do indivíduo ou seu lugar no mercado de trabalho e já sabemos tudo sobre seu comportamento e suas tomadas de decisão. As relações sociais condicionam o comportamento dos indivíduos. Além disso, eles ignoram o enraizamento histórico e estrutural das relações sociais (Becker), atribuem um papel menor às relações individuais, enfatizando estruturas perenes que determinarão os papéis normativos. Comparando a teoria econômica neoclássica tradicional com os economistas mais modernos que tentam contornar o problema da visão subsocializada dessa teoria, Granovetter aponta que estes economistas acabam adotando uma visão sobresocializada. Assim, mais uma vez, ele nos diz que ambas as visões convergem para uma versão atomizada dos homens. Mas, para ele, corretamente, os homens não são átomos isolados do contexto social e nem são autômatos dirigidos mecanicamente por relações sociais exógenas às suas decisões. Diante de tal constatação, Granovetter apresenta sua proposta alternativa, nela os homens realizam ações com finalidades, mas sempre inseridas em dadas relações sociais concretas, ou seja, enraizadas. Sendo que o enraizamento se dá através das redes sociais. As redes sociais são o mecanismo do enraizamento dos indivíduos e ao mesmo tempo elas garantem (obviamente com restrições, nunca de forma absoluta, podendo mesmo produzir situações e meios para o surgimento da má-fé e da desconfiança) a confiança das relações e afastam a má-fé e o oportunismo. Em resumo, laços interpessoais constituem redes sociais que variam seu tamanho e abrangência e são a expressão do fato de que o indivíduo, necessariamente, está inserido em relações sociais concretas. Frisamos que tal proposição é facilmente manipulável por diferentes concepções teóricas, sem que sua essência se perca.

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Avaliando o constructo teórico acima esboçado, percebemos que é um marco da epistemologia, pois que ele surge como uma chave heurística, facilmente utilizada. A perspectiva inicial, portanto, não poderia ser mais distante da proposta por Lukács em sua “Ontologia”. Além disso, a construção dos artigos não traz um posicionamento sobre a própria lógica sócio-metabólica do capital. Mas ao limitar-se à descrição das formas de obtenção de confiança, honestidade, etc, pela utilização das redes sociais, em contraposição ao que fazem a economia clássica e os (por ele chamados) economistas modernos, parece cumprir a função ideológica de garantidora do status quo. O seu lado positivo está na constatação de que os indivíduos põem finalidades em suas decisões e suas tomadas de decisão sempre se dão inseridas em realidades sociais concretas. Este é o ponto em que ele tangencia as preocupações de Lukács, pois aqui ele apreende algo posto ontologicamente. Não é apenas um mero exercício da consciência. Tomando por referência a “Ontologia do Ser Social” de Lukács, percebemos que aqui não se trata de corrigir uma visão sobressocializada ou subsocializada. Tão pouco a questão é da inexistência de um enraizamento dos indivíduos nas relações sociais. Entendemos que na “Ontologia” há todo um esforço para desvelar o mundo dos homens, o ser social tal como é, não como resultado de um esforço apriorístico do pensar. Assim, desde a argumentação de que existem três esferas ontológicas distintas (inorgânica, orgânica e social), de que há uma articulação imanente entre elas que só pode ser compreendida pela categoria de momento predominante (cuja forma genérica é o salto ontológico). Passando pela centralidade do trabalho (protoforma do agir humano), pela categoria de prévia-ideação como passo fundamental para a execução do processo de trabalho, chegando à categoria de exteriorização, e à necessidade do conhecimento das leis do ser inorgânico e orgânico para que os objetivos do processo de trabalho possam ser alcançados. Chegando a uma síntese dialética que supera (“aufhbung”) tanto o trabalho quanto a natureza e origina o mundo dos homens, o ser social. Ao chegar ao ser social, Lukács fala de uma segunda natureza, na qual o objeto que é objetivação da prévia-ideação torna-se algo distinto do sujeito criador e passa a ter uma história própria, autônoma em relação ao criador e influenciando o criador e a própria sociabilidade. Assim a totalidade social é o resultado de atos individuais, singulares, de pessoas concretas. E depois de criada, tal totalidade é uma exterioridade objetiva que vai exigir a ação consciente e coordenada dos homens, que a criaram, para transformá-la. E tais transformações exigem mudanças na consciência dos homens, uma mudança ideológica. Mais uma vez vimos, com Lessa (2002), que no ser social todo o momento de sua estrutura interna surge imediatamente de uma posição teleológica, e toda posição teleológica realizada coloca em movimento séries causais, mas nunca uma teleologia. Ou seja, posições teleológicas põem em movimento séries causais, mas a legalidade das séries não é determinada pelo conteúdo do pôr teleológico. É por que a coisa, seja ela algo singular, seja a totalidade das relações sociais, uma vez objetivada adquire uma independência da consciência que a pôs, é por isso que as coisas objetivadas têm uma trajetória não-teleológica, puramente causal e surgem frente aos sujeitos criadores como uma segunda natureza. A legalidade que surge no ser social é uma causalidade socialmente posta. Com Lukács reafirmamos algo que já encontrávamos em Marx: os indivíduos fazem a história, mas não como desejariam, eles são tributários do conjunto de valores herdados. É o conjunto de decisões individuais, descoordenadas, que permite o funcionamento da sociedade humana, em particular na formação sócio-metabólica do capital. Tais decisões individuais estão na base das legalidades postas pelo movimento do ser social, isso porque os resultados obtidos

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pelas decisões individuais em geral são diferentes dos esperados pelos tomadores de decisão, todo ato singular, toda decisão individual, traz em si alternativas, e essas alternativas trazem toda uma série de determinações sociais gerais, de efeitos (efeitos esses independentes das intenções conscientes do tomador de decisão) que produzem outras alternativas de estrutura semelhante, que trazem toda uma série causal cujas legalidades escapam às intenções originais. Daí Lukács (1979b:84) dizer que: “(...) as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mesmo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos”. Mais uma vez: as decisões individuais e descoordenadas fazem funcionar legalidades que escapam a vontade dos sujeitos individuais. A tendência do ser social, portanto, nada mais é do que o resultado do movimento dinâmico-contraditório entre complexos em movimento. E aqui reforçamos a apreensão dinâmica da sociabilidade humana por parte do pensamento marxiano, apreensão que permite perceber certas legalidades e tendencialidades próprias ao ser social no seu vir-a-ser constante. Recapitulando: Lukács ressalta que o trabalho é a protoforma do agir humano, a partir dele é possível entender outras estruturas pertinentes aos outros agires do ser humano. A partir da análise da categoria trabalho, e do processo de trabalho, foi possível perceber como são criadas as relações de causalidade, que geram legalidades e permitem o movimento do ser social de forma tendencial. Sendo que a lei universal do ser social é o contínuo aumento da produtividade do trabalho, tal aumento leva ao afastamento progressivo das barreiras naturais e ao aumento das formas de intermediação social, de progresso ontológico das formas de sociabilidade. Em particular, vimos no capítulo 2 da presente Tese que no item 4 (“La riproduzione dell’uomo nella società”) do capítulo II (“La riproduzione”), Lukács relembra que a reprodução social total é um processo que exige a inter-relação entre complexos sociais parciais relativamente autônomos, mas a reprodução social total tem a influência soberana sobre estas inter-relações. E o processo de reprodução social total tem, necessariamente, uma natureza bipolar. Tem dois pólos que delimitam seus movimentos reprodutivos, que o determinam em sentido positivo e negativo. Estes dois pólos são de um lado o processo reprodutivo em sua totalidade extensiva e intensiva, e de outro, o indivíduo singular cuja reprodução constitui “la base d’essere della riproduzione totale”. Ele entende que é preciso buscar um tertim datur para ter uma imagem ontologicamente correta da transformação do homem, no curso de desenvolvimento social, de mero exemplar da espécie humana, de homem singular, em homem real, enquanto portador de uma personalidade própria, de uma individualidade. Este terceiro caminho por ele proposto deve evitar duas falsas abstrações extremas: a que entende o homem como simples objeto da legalidade econômica e a que entende que a determinação essencial do seu ser-homem é ontologicamente independente da sua existência. O homem enquanto ser ativo reproduz-se no interior da sociedade. Lukács (ibid., p. 260) nos diz que ele é um ente complexo-unitário que reage concretamente à realidade concreta. Sua complexidade concreta é ao mesmo tempo premissa e resultado da reprodução, da sua concreta interação com o próprio ambiente concreto. Segundo Lukács (ibid.), impera uma falsa antinomia que leva o pensamento a um beco sem saída. Tal antinomia era constituída por um lado pelo raciocínio que defendia a existência de uma substância da individualidade humana fora do espaço e do tempo, de tal forma que as circunstâncias da vida só poderiam modificá-la superficialmente (o equivalente ao conceito de subsocializado de Granovetter). Por outro lado, há o raciocínio que entende o indivíduo como um simples produto do ambiente no qual está inserido (o equivalente de sobressocializado de Granovetter). Vimos então que para Lukács (ibid.) temos aqui uma

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deformação do problema ontológico. Pois, por um lado, há um fetiche da substância humana “in una entità astrattamente fissa, meccanicamente separata dal mondo e dalla propria attività (come in vario modo accade nell’esistenzialismo)”. Por outro lado, transformam a substância humana num objeto “quasi privo di resitenza a qualsivoglia manipolazione (che è il risultato ultimo del neopositivismo)”. O terceiro caminho ontológico proposto por Lukács mostra um novo lado do seu conceito de substância, conceito que é universal e ao mesmo tempo histórico. Ele vem argumentando desde sempre que o elemento imediato do quadro histórico social é a decisão alternativa dos homens concretos. Tomando esses atos em termos ontológicos, temos que são atos concretos de indivíduos concretos no interior de uma parte concreta de sociedades concretas, ou seja, utilizando o conceito de Polanyi-Granovetter, enraizados. Com essas considerações reforçamos que Lukács percebe, necessariamente, ontologicamente, o indivíduo inserido nas relações sociais. As decisões individuais ocorrem dentro de relações sociais e acionam outras tantas relações. E tais relações sociais podem assumir a forma de redes sociais, redes de contatos e de influência recíproca dos mais variados tipos. Esta é uma constatação ontológica, pois no mundo dos homens redes de contatos, de relações sociais, são as formas assumidas usualmente pelos contatos dos indivíduos entre si nas variadas esferas de atuação. Logo, não estamos utilizando a chave heurística epistemologicamente, mas referindo-nos a algo que é posto pelo próprio ser social na sua constituição. Ressaltamos também que a contribuição de Weber para a construção de uma teoria da ação social se tem espaço no arcabouço teórico de Granovetter, passa muito longe do constructo lukacsiano, conforme assinalamos anteriormente. E a questão do enraizamento/desenraizamento de Polanyi sequer se põe no horizonte marxiano-lukacsiano. A questão que se coloca agora é sobre a possibilidade de pensarmos num desdobramento para constatação da existência desta manifestação da sociabilidade. Acreditamos que o reconhecimento das redes sociais pode nos ajudar a pensar num tipo específico de política pública que esteja de acordo com o constucto teórico marxiano e marxista. Mas para tratarmos disso será preciso esclarecer, inicialmente, algumas categorias sem as quais a noção de políticas públicas adequadas ao constructo marxiano e marxista fica interditada a priori. Tais categorias são: estado, poder, política, hegemonia, estratégia política, etc. Faremos isso no capítulo 5.

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CAPÍTULO V: PENSANDO A POSSIBILIDADE DE UMA POLÍTICA PÚBLICA MARXISTA/MARXIANA 5.1. Introdução Este capítulo aborda as políticas públicas por uma ótica marxista, para isto vamos retomar o entendimento do Estado na economia capitalista e sua necessidade ontológica para a reprodução do capital, utilizaremos largamente as propostas teóricas de Mészáros. Em seguida trataremos da ontonegatividade da politicidade e dos momentos em que podemos entendê-la pela ontopositividade, para tanto utilizaremos os textos de Chasin. Destacaremos uma determinada perspectiva de estratégia para a superação da formação histórica que melhor permite a expansão do valor, aqui utilizaremos Gramsci e as propostas interpretativas de C. N. Coutinho, mas apontando algumas observações críticas com base nas discussões acima e nas propostas de Perry Anderson. Por fim, trataremos das redes de política pública enquanto metodologia de análise e forma de governança que acrescenta operacionalidade a esta visão de superação da lógica humano-societária do capital, aqui utilizaremos os textos de Romano, Schneider e Santos. 5.2. Articulação entre Estado e Economia segundo Mészáros Inicialmente cabe afastar de nosso horizonte teórico quaisquer concepções mecanicistas e economicistas sobre as possíveis relações entre economia e Estado. Ou seja, para Marx o Estado não é uma superestrutura que se constitui sobre as bases econômicas individuais constitutivas da infra-estrutura do capitalismo. Para melhor desenvolver esta afirmação, é preciso retomar o entendimento marxiano de algumas categorias que se tornaram correntes ao longo do século XX e que perderam seu sentido original. Para Marx capital é relação social, é valor que se expande, valor que se valoriza. É uma relação social que envolve trabalho assalariado e extração de valor a mais, valor excedente, de mais-valia. Assim sendo, não é correto tomar capital como sinônimo de

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capitalismo. Capitalismo é um modo de produção ou um metabolismo social específico e que melhor permite a expansão do valor, a expansão plena das potencialidades do capital, tanto positivas quanto negativas. Mas o capital é também e

(...) em última instância, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. A razão principal por que este sistema forçosamente escapa a um significativo grau de controle humano é precisamente o fato de ter, ele próprio, surgido no curso da história como uma poderosa - (...) - estrutura ‘totalizadora’ de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua ‘viabilidade produtiva’, ou perecer, caso não consiga se adaptar. (Mészáros, 2002:96)

O sistema do capital também é um modo específico de controle sociometabólico, ele possui e articula uma estrutura específica, simples, de comando. E “(...) dada a modalidade única de seu metabolismo socioeconômico, associada a seu caráter totalizador – (...) – estabelece-se uma correlação anteriormente inimaginável entre economia e política” (op. cit., p. 98) Diante dos defeitos estruturais do sistema do capital que se expressam de forma visível “no fato de serem os novos microcosmos que o compõem internamente fragmentados de muitas formas” ( op. cit, p. 105), o Estado moderno surge como

(...) a única estrutura compatível com os parâmetros estruturais do capital como modo de controle sociometabólico. Sua função é retificar – deve-se enfatizar mais uma vez: apenas até onde a necessária ação corretiva puder se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do capital – a falta de unidade em todos os três aspectos (...) [os quais trataremos em seguida – PH]. (ibid., p. 107)

Mas o capital apresenta um defeito estrutural de controle em três situações marcantes, conforme argumenta Mészáros (2002:105): (1) “produção e controle estão radicalmente isolados entre si e diametralmente opostos”; (2) “no mesmo espírito e surgindo das mesmas determinações, a produção e o consumo adquirem uma independência e uma existência separadas extremamente problemáticas, de modo que, no final o ‘excesso de consumo’ mais absurdamente manipulado e desperdiçador, concentrado em poucos locais, encontre seu corolário macabro na mais desumana negação das necessidades elementares de incontáveis milhões de pessoas”; (3) “(...) o capital social total [tem-PH] (...) de penetrar no domínio da circulação global (ou para ser mais preciso, de modo que seja capaz de criar a circulação como empreendimento global de suas próprias unidades internamente fragmentadas, na tentativa de superar a contradição entre produção e circulação. Dessa forma, a necessidade de dominação e subordinação prevalece, não apenas no interior de microcosmos particulares – por meio da atuação de cada uma das ‘personificações do capital’ – mas também fora de seus limites, transcendendo não somente todas as barreiras regionais, mas também todas as fronteiras nacionais”. Nestas três situações listadas o defeito estrutural do controle localiza-se na ausência de unidade,

Além do mais, qualquer tentativa de criar ou superpor algum tipo de unidade às estruturas sociais reprodutivas internamente fragmentadas em questão tende a ser problemática e a permanecer rigorosamente temporária. O caráter irremediável da carência de unidade deve-se ao fato de que a própria fragmentação assume a forma de antagonismos sociais. Em outras palavras, ela se manifesta

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em conflitos fundamentais de interesse entre as forças sociais hegemônicas alternativas. (ibid., p. 105-6)

Para a realização dos objetivos metabólicos do capital (do qual o fundamental é a contínua auto-expansão do valor), a sociedade deve se sujeitar às exigências deste modo de controle. Assim, a divisão da sociedade em classes sociais abrangentes e antagônicas entre si e a instituição do controle político são expressões desta sujeição.

E como a sociedade desmoronaria se esta dualidade não pudesse ser firmemente consolidada sob algum denominador comum, um complicado sistema de divisão hierárquica do trabalho deve ser superposto à divisão do trabalho funcional/técnica (e, mais tarde, tecnológica altamente integrada) como força cimentadora pouco segura – já que representa, no fundo, uma tendência centrífuga destruidora – de todo o complexo (ibid., p. 99)

E para o metabolismo posto pelo capital, não é suficiente a divisão do trabalho hierarquicamente fundado sobre aspectos funcionais e técnicos do processo de trabalho. Ele exige que tal divisão

(...) seja apresentada como justificativa ideológica absolutamente inquestionável e pilar de reforço da ordem estabelecida. Para esta finalidade, as duas categorias claramente diferentes de ‘divisão do trabalho’ devem ser fundidas, de modo que possam caracterizar a condição, historicamente contingente e imposta pela força, de hierarquia e subordinação como inalterável ditame da ‘própria natureza’, pelo qual a desigualdade estruturalmente reforçada seja conciliada com a mitologia de ‘igualdade e liberdade’ (...) e ainda ratificada como nada menos que ditame da própria razão (ibid.)

O Estado vai buscar garantir a unidade ausente entre produção e controle ao proteger legalmente a dominação exercida pelas “personificações do capital” sobre a força de trabalho e ao mesmo tempo impor a ilusão de um relacionamento formal (jurídico) entre indivíduos iguais. Daí dizer Mészáros que

(...) no que se refere à possibilidade de administrar a separação e o antagonismo estruturais de produção e controle, a estrutura legal do Estado moderno é uma exigência absoluta para o exercício da tirania nos locais de trabalho. Isto se deve à capacidade do Estado de sancionar e proteger o material alienado e os meios de produção (ou seja, a propriedade radicalmente separada dos produtores) e suas personificações, os controladores individuais (rigidamente comandados pelo capital) do processo de reprodução econômica. Sem essa estrutura jurídica, até os menores ‘microcosmos’ do sistema do capital – antagonicamente estruturado – seriam rompidos internamente pelos desacordos constantes, anulando dessa maneira sua potencial eficiência econômica. (ibid., p. 107-8)

Com relação ao segundo defeito estrutural – a separação entre produção e consumo, colocada pela prioridade do valor em relação ao valor de uso para a lógica do capital. Posto que o valor de uso é o portador do valor e é a expansão máxima do valor o objetivo buscado por todo o sóciometabolismo do capital – o Estado moderno tem um papel totalizador que é essencial. A terceira contradição resulta de uma tentativa de superação da contradição anteriormente tratada – entre produção e consumo. As unidades sócio-econômicas anteriores ao predomínio do capital (as da Antiguidade, da Idade Média Feudal, do comunismo primitivo, etc) não sofriam

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com os problemas associados com a circulação. Pois voltavam-se para a produção e consumo de valores de uso e estavam presas ao princípio da auto-suficiência. O avanço do modo de controle do capital implica na quebra da auto-suficiência e a afirmação de “conexões metabólicas/reprodutoras mais amplas [indicando – PH] (...) o vitorioso avanço do modo de controle do capital, trazendo consigo, no devido tempo, também a difusão universal da alienação e da reificação”. (ibid., p. 101) Assim, segundo Mészáros (ibid., p.102), o capital se afirma – após se livrar das restrições de auto-suficiência e de outro modo não poderia ser – como a mais dinâmica e eficiente força bombeadora, extratora, de trabalho excedente de toda história do ser social. Mas o faz com a reificação da idéia de trabalho livre contratado no mercado, com a alienação inerente ao processo de trabalho assalariado e levando a que os trabalhadores assalariados aceitem a exploração da força de trabalho sem ter que recorrer (o capital, sua lógica e suas personificações) a imposições e reimposições externas aos sujeitos do trabalho. Apenas diante de graves crises é que a forma de dominação política, enquanto forma de dominação forçada, é utilizada. Daí Mészáros (ibid. p. 103) aduzir que

(...) o capital ultrapassa infatigavelmente todos os obstáculos e limites com que historicamente se depara, adotando até as formas de controle mais surpreendentes e intrigantes – aparentemente em discordância com seu caráter e funcionalmente ‘híbridas’ – se as condições o exigirem. De fato, é assim que o sistema do capital constantemente redefine e entende seus próprios limites relativos, prosseguindo no seu caminho sob as circunstâncias que mudam, precisamente para manter o mais alto grau possível de extração de trabalho excedente, que constitui sua raison d’être histórica e seu modo real de funcionamento.

Nesta terceira contradição o papel do Estado na tentativa de garantir a unidade entre produção e circulação é talvez maior que nas contradições anteriores. Esta tentativa, assim como a tentativa de “(...) preencher [o – PH] (...) domínio do consumo, em primeiro lugar dentro de suas próprias fronteiras nacionais [são – PH] ‘infectadas pela contingência’ [e –PH] (...) simultaneamente também por insolúveis contradições” (ibid., p. 111) Segundo Mészáros, uma contradição evidente e inadministrável é dada pelo fato de que “(...) historicamente as estruturas corretiva global e de comando político do sistema do capital ser articulam como Estados Nacionais, embora como modo de reprodução e controle sociometabólico (com seu imperativo de circulação global) seja inconcebível que tal sistema se confine a esses limites”. (idem). Ao Estado resta tentar resolver esta contradição oferecendo nos países centrais um padrão de vida mais elevado para a classe trabalhadora e um regime de democracia liberal. E na periferia, tipos de governo diretamente impostos ou caudatários dos países centrais, e que garantam a maximização da extração de mais-valor. Tendo, em geral, um perfil autoritário. O comportamento do Estado é diferente nos planos nacional/interno e externo/internacional. No plano interno ele cuida de evitar que a tendência à concentração e a centralização do capital prejudique a “força combinada do capital nacional” (ibid., p. 113). Daí introduzir medidas antimonopolistas quando as condições internas exigem e as condições gerais permitem. Mas estas medidas são abandonadas quando mudanças nos interessem do capital nacional/combinado determinam. No plano externo o Estado estimula e defende as posições monopolistas do capital nacional, pois isto ajuda na luta contra empresas concorrentes potenciais ou reais originárias de

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outros países. Daí dizer Mészáros: “No sistema do capital, o Estado deve afirmar, com todos os recursos à sua disposição, os interesses monopolistas de seu capital nacional – se preciso, com a imposição da ‘diplomacia das canhoneiras’ – diante de todos os Estados rivais envolvidos na competição pelos mercados necessários à expansão e à acumulação de capital”. (idem) Considerando os três defeitos estruturais do capital acima assinalados e as tentativas do Estado em resolver tais contradições, concluímos com Mészáros que

(...), o Estado moderno como única estrutura corretiva viável não surge depois da articulação de formas sócio-econômicas fundamentais, nem como mais ou menos diretamente determinado por elas. Não há dúvidas quanto à determinação unidirecional do Estado moderno por uma base material independente, pois a base socioeconômica do capital é totalmente inconcebível separada do Estado. Assim é certo e apropriado falar de ‘correspondência’ e ‘homologia’ apenas em relação às estruturas básicas do capital, historicamente constituídas (o que em si, implica um limite de tempo), mas não de funções metabólicas particulares de uma estrutura que corresponda às determinações e exigências estruturais diretas da outra. Tais funções podem se contrapor vigorosamente uma às outras, pois suas estruturas internas vão se ampliando durante a expansão necessária e a transformação adaptativa do sistema do capital. Paradoxalmente, a ‘homologias das estruturas’ surge primeiro de uma diversidade estrutural de funções cumpridas pelos diferentes órgãos metabólicos (inclusive o Estado) na forma absolutamente única da divisão social hierárquica do trabalho desenvolvida ao longo da história. Esta diversidade estrutural de funções produz uma separação extremamente problemática entre ‘sociedade civil’ e Estado político sobre a base comum do conjunto do sistema do capital, de que são partes constitutivas as estruturas básicas (ou órgãos metabólicos). No entanto, apesar da base comum de sua constituição interdependente, o relacionamento estrutural dos órgãos metabólicos do capital está cheio de contradições. (ibid., p. 117)

O longo trecho acima reproduzido fundamenta a percepção de que Estado moderno e sociedade capitalista surgem simultaneamente, mantendo-se a determinação em última instância (“determinação unidirecional”) da base material independente sobre o Estado. Mas o Estado não é uma mera superestrutura reflexiva da infra-estrutura econômica. O apropriado é expor as relações entre eles como de “homologia” e apenas nas “estruturas básicas do capital”. Neste sentido, Mészáros soma-se a um conjunto de pensadores marxistas como Poulantzas (1985), Mandel (1985a), Gramsci (1989a; 1989b), Brunhoff (1977), Jessop (1998), Therét e Palombarini (2002). O capital, enquanto modo particular de controle sócio-metabólico, exige, para o seu funcionamento, uma estrutura de comando específica. E na relação entre as unidades socioeconômicas reprodutivas e a política não é possível que uma das duas seja a dominante141. As falhas estruturais de controle vistas acima, levaram ao surgimento de “estruturas específicas de controle capazes de complementar – no nível apropriado de abrangência – as constituintes reprodutivas materiais, de acordo com a necessidade totalizadora e a cambiante dinâmica expansionista do sistema do capital. Foi assim que se criou o Estado moderno como estrutura de comando político de grande alcance do capital, tornando-se parte da ‘base material’ do sistema tanto quanto as próprias unidades reprodutivas sócio-econômicas” (Mészáros, op.cit., 118-119)

141 No feudalismo, o fator político era dominante, por exemplo. Vide Mészáros, 2002:118 ou Poulantzas, 1985:22.

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Aceitando que o Estado moderno e as estruturas reprodutivas materiais diretas guardam uma relação de “correspondência” ou “homologia”, entendesse que o inter-relacionamento entre eles (questão de temporalidade) é dado pela “(...) categoria de simultaneidade e não pelas do ‘antes’ e ‘depois’” (ibid., p. 119). O mesmo é válido para a questão das determinações,

(...) só se pode falar de co-determinações. Em outras palavras, a dinâmica do desenvolvimento não deve ser caracterizada sob a categoria do ‘em conseqüência de’, mas em termos do ‘em conjunção a’ sempre que se deseja tornar inteligíveis as mudanças no controle sócio-metabólico do capital que emergem da reciprocidade dialética entre sua estrutura de comando político e a socioeconômica. (ibid., p. 119)

Diante disto, Mészáros conclui que: (1) o Estado não pode ser descrito como uma superestrutura, e mais, enquanto “estrutura de comando abrangente, tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apropriadamente como “superestrutura legal e política” – exatamente como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas próprias dimensões superestruturais” (ibid.). (2) O Estado não pode ser autônomo ou independente em relação ao sistema do capital, “(...) pois ambos são um só e inseparáveis. Ao mesmo tempo, o Estado está muito longe de ser redutível às determinações que emanam diretamente das funções econômicas do capital. Um Estado historicamente dado contribui de maneira decisiva para a determinação – no sentido já mencionado de co-determinação – das funções econômicas diretas, limitando ou ampliando a visibilidade de algumas contra outras” (ibid.). (3) “(...) a ‘superestrutura ideológica’ – que não deve ser confundida ou simplesmente identificada com a superestrutura legal e política”, e muito menos com o próprio Estado – também não pode se tornar inteligível a menos que seja entendida como irredutível às determinações materiais/econômicas diretas, ainda que a esse respeito se deva resistir com firmeza à atribuição freqüentemente tentada de uma autonomia fictícia (no sentido idealísticamente ampliada de independência)” (ibid.). A noção de que o Estado é uma estrutura de comando abrangente e que tem sua própria superestrutura torna-se clara ao lembrarmos que o imperativo estrutural do sistema do capital é a sua auto-expansão, e a esta auto-expansão todos os órgãos da sociedade do capital devem se adaptar. Isto inclui, segundo Mészáros “(...) desde a [prática – PH] reprodutiva econômica direta até as funções reguladoras mais mediadas do Estado”. (ibid., p. 120) Mas as contradições que atravessam o sistema do capital fazem com que surja uma determinação “centrífuga dos constituintes reprodutivos econômicos do capital” (idem). Independentemente do seu tamanho estes constituintes econômicos não são capazes por si sós de realizar o imperativo estrutural do capital – expansão constante do valor, ou seja, extração constante de trabalho excedente – por não possuírem “(...) a determinação coesiva essencial para a constituição e o funcionamento sustentável de um sistema sociometabólico” (ibid.). Daí a necessidade da presença do outro lado da equação, ou seja, a necessidade “(...) do Estado como estrutura de comando político centralizadora” (ibid.).142

142 “Sem a emergência do Estado moderno, o modo espontâneo de controle metabólico do capital não pode se transformar num sistema dotado de microscosmos socioeconômicos claramente identificáveis – produtores e extratores dinâmicos do trabalho excedente, devidamente integrados e sustentáveis. Tomadas em separado, as unidades reprodutivas socioeconômicas particulares do capital são não apenas incapazes de coordenação e totalização espontâneas, mas também diametralmente opostas a elas, se lhes for permitido continuar seu rumo disruptivo, conforme a determinação estrutural centrífuga de sua natureza. Paradoxalmente, é esta completa ‘ausência’ ou ‘falta’ de coesão básica dos microcosmos socioeconômicos constitutivos do capital – devida, acima de

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Assim, o Estado pertence e é parte constituinte da base material do sistema do capital. De tal forma que ele “(...) deve articular sua superestrutura legal e política segundo suas determinações estruturais inerentes e funções necessárias” (ibid., p. 121). Essa “superestrutura legal e política” pode se modificar conforme o exijam situações históricas específicas, por exemplo, assumindo as “formas parlamentaristas, bonapartistas e até de tipo soviético pós-capitalista” (ibid.). E mesmo sem que exista mudança da formação sócio-econômica ele pode sofrer modificação: forma liberal democrática para formas “ditatoriais de legislação e dominação política” (ibid.). Daí conclui Mészáros que: “Esse tipo de mudança seria inconcebível se o Estado como tal fosse apenas uma ‘superestrutura’”. (ibid.) O Estado moderno cumpre o papel de controlar os antagonismos estruturais do sistema de controle sociometabólico do capital. Ele garante a reprodução desse sistema autoritário e reforça a “(...) dualidade entre produção e controle e também a divisão hirárquico/estrutural do trabalho, de que ele próprio é uma clara manifestação”. (ibid.; p. 122) Resumindo o que foi dito acima, temos que o Estado moderno

(...) é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário da transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global. Neste sentido fundamental, o Estado – em razão do seu papel constitutivo e permanentemente sustentador – deve ser entendido como parte integrante da própria base material do capital. Ele contribui de modo significativo não apenas para a formação e consolidação de todos os grandes sistemas reprodutores da sociedade, mas também para seu funcionamento ininterrupto. No entanto, este inter-relacionamento íntimo também se mantém quando visto pelo outro lado, pois o Estado moderno em si é totalmente inconcebível sem o capital como função sociometabólica. Isto dá às estruturas materiais reprodutivas do sistema do capital a condição necessária, não apenas para a constituição original, mas também para a sobrevivência continuada (e para as transformações históricas adequadas) do Estado moderno em todas as suas dimensões. Essas estruturas reprodutivas estendem sua influência sobre todas as coisas, desde os instrumentos rigorosamente repressivos/materiais e as instituições jurídicas do Estado, até as teorizações ideológicas e políticas mais mediadas de sua raison d’être e de sua proclamada legitimidade” (ibid.; p. 124-125).143

Por fim um breve comentário, ainda com Mészáros, sobre a dissonância estrutural entre o Estado moderno e as estruturas reprodutivas do capital: a ação humana de controle – sujeito social. Pois o sistema de controle do capital é um sistema sem sujeito. As determinações e imperativos do capital prevalecem sobre a subjetividade do pessoal controlador que põem em tudo, à separação entre o valor de uso e a necessidade humana espontaneamente manifesta – que faz existir a dimensão política do controle sociometabólico do capital na forma do Estado moderno.” (ibid., p. 123) 143 Mészáros continua sua explanação acrescentado: “Em razão dessa determinação recíproca, devemos falar de uma correspondência estreita entre, por um lado, a base sociometabólica do sistema do capital e, por outro, o Estado moderno como estrutura totalizadora de comando político da ordem produtiva e reprodutiva estabelecida. Para os socialistas, esta é uma reciprocidade desafiadora e desconfortável. Ela põe em relevo o fato acautelador de que qualquer intervenção no campo político – mesmo quando visa a derrubada radical do Estado capitalista – terá influência muito limitada na realização do projeto socialista. E, pelo lado oposto, o corolário desse mesmo fato acautelador é que, precisamente porque têm de enfrentar a força da reciprocidade auto-sustentada do capital sob suas dimensões fundamentais, os socialistas jamais deverão esquecer ou ignorar – embora o esquecimento proposital deste fato tenha sido a razão da tragédia de setenta anos da experiência soviética – que não existe a possibilidade de superar a força do capital sem permanecer fiel à preocupação marxista com o ‘encolhimento’ do Estado”. (ibid.; p. 125)

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prática estes imperativos. Daí Marx falar em personificações do capital. É uma manifestação da alienação e do fetichismo dada pela separação entre produção e controle. É a alienação do produtor pelo controlador e a fetichização do controlador pelos imperativos do capital. O Estado vai buscar oferecer garantias contra rebeliões potenciais que possam escapar ao controle. Enquanto essas garantias forem eficazes,

(...) o Estado moderno e a ordem reprodutiva sociometabólica do capital são mutuamente complementares. No entanto, a alienação do controle e os antagonismos por ela gerados são da própria natureza do capital. Assim, a recalcitrância é reproduzida diariamente através das operações normais do sistema; nem os esforços mistificadores de estabelecimento de ‘relações industriais’ ideais – seja pela ‘engenharia humana’ e pela ‘administração científica’, seja pela indução dos trabalhadores à compra de meia dúzia de ações, tornando-se assim ‘co-proprietários’ ou ‘parceiros’ na administração do ‘capitalismo do povo’ etc. –, nem a garantia dissuasória do Estado contra a potencial rebelião política podem eliminar completamente as aspirações emancipatórias (autocontrole) da força de trabalho. No final, essa questão é decidida pela viabilidade (ou não) dessa ordem sociometabólica de autocontrole, baseada na alternativa hegemônica da força de trabalho à ordem de controle autoritário, sem o sujeito, do capital. (ibid.; p. 127)

Terminamos esta resenha de Mészáros sobre a articulação entre o sistema do capital, o Estado moderno e a impossibilidade de humanização deste sistema com uma citação que a expõe de forma clara:

O sistema do capital é um modo de controle sociometabólico incontrolavelmente voltado para a expansão. Dada à determinação mais interna de sua natureza, as funções políticas e reprodutivas materiais devem estar nele radicalmente separadas (gerando assim o Estado moderno como a estrutura de alienação por excelência), exatamente como a produção e o controle devem nele estar radicalmente isolados. No entanto, neste sistema, ‘expansão’ só pode significar expansão do capital, a que deve se subordinar tudo o mais, e não o aperfeiçoamento das aspirações humanas e o fornecimento coordenado dos meios para sua realização. É por isso que, no sistema do capital, os critérios totalmente fetichistas da expansão têm de se impor à sociedade também na forma de separação e alienação radicais do poder de tomada de decisões de todos – inclusive ‘personificações do capital’, cuja ‘liberdade’ consiste em impor a outros os imperativos do capital – e em todos os níveis de reprodução social, desde o campo da produção material até os níveis mais altos da política. Uma vez definidos à sua maneira pelo capital os objetivos da existência social, subordinando implacavelmente todas as aspirações e valores humanos à sua expansão, não pode sobrar espaço algum para a tomada de decisão, exceto para a que estiver rigorosamente preocupada em encontrar os instrumentos que melhor sirvam para atingir-se a meta predeterminada. (ibid.; p. 131)

5.3. Concepção Ontonegativa da Politicidade

Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’ (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da

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sociedade burguesa (bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política. (Marx, 1986:25)

Como vimos no item anterior, o Estado moderno é parte constituinte da base material da lógica expansionista do capital. Neste sentido a política enquanto emanação dinâmica da luta pelo poder do Estado está subsumida à lógica do capital. O termo “ontonegatividade da politicidade” foi forjado pelo filósofo marxista José Chasin144 e surge como resultado das escavações que o mesmo faz nos textos marxianos pré-marxianos (no período de 1841-1843, Marx encontrava-se ligado, teoricamente às concepções filosóficas hegelianas. São desse período sua tese doutoral “A Diferença da Natureza em Demócrito e Epicuro”, e outros artigos da “Gazeta Renana”) e do Marx já marxiano em seus primeiros momentos e depois (“Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução”, “Sobre a questão judaica”, “Crítica de Kreuznach”, “Glosas Críticas Marginais a ‘O Rei da Prússia e a Reforma Social’”, “Materiais Preparatórios para a Redação de A Guerra Civil na França”, etc). Chasin, mantendo-se firmemente ancorado na perspectiva ontológica da sociabilidade humana (nos termos propostos pelo velho Lukács (1981)) demonstra que Marx rompe com Hegel, os jovens hegelianos e com Feuerbach no entendimento da politicidade. Inicialmente ele acreditava, como todos os outros, que a política e o Estado eram a

(...) própria realização do humano e da sua racionalidade. Vertente para a qual estado e liberdade ou universalidade, civilização ou hominização se manifestam como determinação recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada como predicado intrínseco ao ser social e, nessa condição – enquanto atributo eterno da socialidade – reiterada sob modos diversos que, de uma ou de outra maneira, a conduziram à plenitude da estatização verdadeira na modernidade. Politicidade como qualidade perene, positivamente indissociável da autêntica entificação humana, portanto, constitutiva do gênero, de sorte que orgânica e essencial em todas as suas atualizações. (Chasin, 1995:354)

Entretanto, Marx evolui para uma posição radicalmente contrária a este tipo de pensamento político expresso quando de sua participação no jornal Gazeta Renana. Tal movimento foi deflagrado – segundo o próprio Marx relata no Prefácio de 1859 de “Para a Crítica da Economia Política” (Marx, 1986:24) – quando ele se vê confrontado com a discussão sobre os chamados interesses materiais (deliberação do Parlamento Renano sobre o roubo de madeira, etc). Ele se volta para realizar uma revisão da filosofia do direito de Hegel e beneficiado pelos textos de Feuerbach publicados à época (“Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia, escritas em abril de 42, mas só publicadas no Anedokta em fevereiro de 43, e Princípios da Filosofia do Futuro, editados em julho de 43” (Chasin, 1985:360)) nas quais ocorria uma ruptura com o pensamento hegeliano. A posição radicalmente diferente difundida agora por Marx, põe a perspectiva ontológica como centro e guia de sua investigação; Agora interessa-lhe o homem em sua efetividade

144 Registre-se que Mészáros (2002, cap. 13, em particular no item 13.1) defende que Marx define a política de forma predominantemente negativa. Neste capítulo intitulado “Como poderia o Estado Fenecer”, ele corrobora a construção interpretativa de Chasin, ainda que pareça desconhecê-la. Vamos focar principalmente em Chasin devido ao maior esforço e resultados obtidos por este autor na tentativa de desvelar o papel da política no ser social conforme ou segundo Marx.

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material, logo a sociabilidade decorrente da vida material-real do homem passa a ser a base para a intelecção do ser social. Assim Marx renega o idealismo hegeliano, sua postura especulativa, logicista e abstrata da razão que se auto-realiza. Conforme Chasin “(...) irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade civil’ – o campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo social – como demiurgo real que alinha o estado e as relações jurídicas” (1985:362)145 Na “Para a Crítica da Filosofia do Direito – Introdução” de 1844 e pensado como introdução à “Para a Crítica da Filosofia do Direito” ou “Crítica de Kreuznach” de 1843, Marx já faz a crítica da política. Segundo Chasin neste texto Marx inferioriza a política, esta esfera perde altura e centralidade. Vejamos:

Mundo político, intrinsecamente imperfeito e carente de solidez, que é configurado como patamar inferior no evolver histórico, resumo do ‘nível oficial dos povos modernos’, ao qual é contraposto o patamar superior da ‘altura humana’, altitude apontada como o ‘futuro próximo’ a ser atingido pelos povos que já alcançaram a modernidade política. (...) desloca a politicidade para os contornos de uma entificação transitória a ser ultrapassada. (...) É nítido pois, desde o instante em que Marx passa a elaborar o seu próprio pensamento, que a esfera política perde a altura e a centralidade que ostenta ao longo de quase toda a história do pensamento ocidental, cedendo lugar ao complexo da ‘emancipação humana geral’, vinculada no texto à noção de ‘revolução radical’, que ‘organiza melhor todas as condições da existência humana sob o pressuposto da liberdade social’, em contraste com a ‘revolução parcial’, identificada à revolução meramente política, que deixa de pé os pilares do edifício’. Em determinação confluente, resguardada sua importância com grau transitório de liberdade limitada ou, mais precisamente de iliberdade, a revolução política, por natureza, é apenas uma função mediadora, encarregada simplesmente das tarefas destrutivas, enquanto a ‘revolução radical – a emancipação humana geral’ compreende o teor do grande e verdadeiro objetivo – é o télos permanente, onímodo e, como tal, último em sua infinitude, por isso mesmo demanda sempre reiterada, que não se esgota em qualquer instância conclusiva ou momento final, pois cada ponto de chegada é também um novo ponto de partida, perfazendo no conjunto a universalidade da sucessão contraditória e sem termo de todos os patamares de afirmação e construção do ser humano-societário”. (Chasin, 1995:365-366)

Nas páginas finais de “Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução” (2005:154-156), Marx deixa evidenciada a centralidade da revolução radical (ou social) para a emancipação global do homem, para o início da realização das potencialidades inerentes ao homem, para o avanço do processo de hominização. Sendo o agente de tal processo identificado “numa classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua caráter universal porque os seus sofrimentos são universais (...); por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem emancipá-las a todas – o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado”. (2005:155-156)146

145 Vide o relato de Marx no Prefácio de 59 de “Para a Crítica da Economia Política”. 146 Sobre a validade atual do proletariado enquanto personificação histórica da revolução social, remetemos José Chasin, “Ad Hominen – Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista” (2000), item 4, pp. 64-67.

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Em suma, agora Marx não deixa dúvida do seu distanciamento da revolução política “stricto sensu”, não se trata mais da constituição de um estado ou de uma nova prática política mais perfeita, equilibradas ou éticas147. Trata-se de iniciar a humanização do homem, de findar a pré-história humana e iniciar a verdadeira história. Para Chasin a política é ontonegativa, pois não pertence à essência do ser social, sua presença é “extrínseca e contingente” e “circunstancial” em relação ao ser social. Ou seja, a política só é admitida “(...) enquanto predicado típico do ser social, apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história. É no interior da intrincada trajetória dessa pré-história que a politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de poder político centralizado, ou seja, do estado moderno”. (1995:368) Essa perspectiva marxiana é o antípoda da posição dominante (secularmente falando) que adota a perspectiva onto-positiva da política. Para esta perspectiva a política é intrínseca ao ser social, sendo vista como a mais elevada espiritualmente ou mais relevante pragmaticamente, e isto desemboca na “(...) indissolubilidade entre política e sociedade, aponto de tornar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que independa de qualquer forma de poder político”. (idem) Para Marx a emancipação humana implica na reintegração das “forças sociais alienadas à política, ou seja, que ela só pode se realizar como reabsorção de energias próprias despidas da forma política, depuradas, exatamente, da crosta política sob a qual haviam se auto-aprisionado e perdido”.(ibidem)148 Chasin (p. 369) prossegue lembrando que por toda a pré-história da humanidade temos formas de sociabilidade de pouca racionalidade, pouco evolvidas, nas quais a politicidade sempre se apresenta com seu irmão siamês a propriedade privada dos meios de produção. Sendo que uma é incapaz de viver sem a outra e só podem desaparecer como vivem – juntas. Daí ele adita que o predicado da politicidade exige, de forma continuada, atos de poder. O que explica a atividade política enquanto necessidade nessas formas de sociabilidade e isto englobam tanto as atividades políticas que defendem quanto as que contestam o status quo. Em se tratando de contestação consciente e que mira deliberadamente na emancipação humana, exige-se a prática de “(...) uma política orientada pela superação da política, pois seu escopo é a reconversão e o resgate das energias sociais desnaturadas em vetores políticos”.(ibid.) Ou seja, a determinação onto-negativa da politicidade – “fundamento da reflexão política de Marx” (ibid.) – coloca a necessidade da metapolítica:

conjunto de atos de efetivação que não apenas se desembarace de formas particularmente ilegítimas e comprometidas de dominação política, para as substituir por outras supostas como melhores, mas que vá se desfazendo, desde o princípio, de toda e qualquer politicidade, à medida em que se eleva da aparência da política à essência social das lutas históricas concretas, à proporção em que promove a afloração e realiza seus objetivos humanos societários, os quais, em suma, têm naquela

147 Considerações sobre ética e política na perspectiva da ontonegatividade podem ser encontradas em Chasin, “Ad Hominen – Rota e Prospectiva de um Projeto Marxista” (2000:36-42). 148 “Ao identificar a natureza da força política como força social pervertida e usurpada, socialmente ativada como estranhamento por debilidades e carências intrínsecas às formações sociais contraditórias, pois ainda insuficientemente desenvolvidas e, por conseqüência, incapazes de auto-regulação puramente social, nas quais, pela fieira dos sucessivos sistemas sociais, quanto mais o estado se entifica real e verdadeiramente, tanto mais é contraditório em relação à sociedade civil e ao desenvolvimento das individualidades que a integram (...)”. (Chasin, 1995:368)

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ultrapassagem, indissociável da simultânea superação da propriedade privada dos bens de produção, a condição de possibilidade de sua realização. Numa frase, a crítica marxiana da política, decifração da natureza da politicidade e de seus limites, é por conseqüência o deslocamento da estreiteza e insuficiência da prática política enquanto atividade humana racional e universal, donde o salto metabólico a encontro resolutivo da sociabilidade, essência do homem e de todas as formas de prática humana.(ibid., p. 369)

5.4. Hegemonia e Guerra de Posição: O Papel das Políticas Públicas Sinalizada a importância do salto metapolítico, permanece a questão que move o presente capítulo: o lugar das políticas públicas no processo “resolutivo da sociabilidade”, de hominização. Para tratar esta questão, vamos recorrer ao pensamento de Antonio Gramsci, ou mais precisamente, vamos recorrer principalmente a comentadores qualificados do pensamento de Gramsci. Tal procedimento é devido ao reconhecimento da magnitude da obra de Gramsci escrita no cárcere do fascismo italiano – e por isto envolto numa linguagem que buscava despistar a censura fascista e as próprias dificuldades de sistematização do autor como assinala Perry Anderson (1985). A princípio registramos que Gramsci trata a categoria de sociedade civil de forma diferente do tratamento dado por Marx. Em Marx a sociedade civil (bürgliche Gesellschaft ou ao pé da letra sociedade burguesa) é o terreno das relações de propriedade dadas pela lógica do capital, é o lugar do egoísmo e da luta de todos contra todos. O Estado moderno, como vimos, é uma exigência posta pelas características da sociedade civil, e esta, por sua vez, é posta pela lógica do capital. Em Gramsci, sociedade civil também expressa a esfera das relações privadas (não estatal), o que inclui a economia. A diferença está em que agora a sociedade civil não diz respeito somente às necessidades individuais, mas inclui organizações sociais e traz em si a possibilidade (in potentia) da constituição da liberdade, da sociedade auto-regulada. Aqui a sociedade civil é a “(...) portadora material da figura social da hegemonia, como esfera de mediação entre a infra-estrutura econômica e o Estado (...)” (C.N. Coutinho, 1999:121). Logo, tratar de política pública, exigirá o domínio, a apropriação intelectual, a intelecção destas categorias. Além disto, podemos perceber a relevância da articulação das relações entre Estado e sociedade civil para Gramsci. Adiante vamos tratar deste ponto. Daqui em diante, vamos utilizar o trabalho de Carlos Nelson Coutinho (1992, 1996, 1999, 2000(a), 2000(b), 2006) como referência para a tarefa de estudar as categorias de Gramsci. Ao mesmo tempo, vamos fazer alguns comentários críticos às posições deste autor. C. N. Coutinho procura demonstrar que Gramsci, ao tratar das categorias sociedade civil e sociedade política – que perfazem o que ele chama de Estado em sentido ampliado (1999) e que Anderson (1986:33) vai dizer se tratar da terceira tentativa presente nos “Cadernos do Cárcere” de tratar da articulação entre sociedade civil e sociedade política – realiza um procedimento de concretização, de redução do nível de abstração, similar a que Marx realiza em “O Capital”. Tal movimento foi possível porque Gramsci testemunhou a complexificação do ser social quanto ao desenvolvimento das organizações constitutivas da sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia – partidos, sindicatos, igrejas, jornais, etc), que ocorreu no que ele chamou de sociedades ocidentais (adiante voltaremos à discussão sobre sociedades ocidentais e orientais). C.

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N. Coutinho adverte que Gramsci consegue captar um movimento histórico-ontológico, ou seja, existiria um movimento tendencial no ser social de uma situação na qual o Estado é tudo e há o predomínio da coerção em detrimento da sociedade civil, do consenso, pois a sociedade civil é frágil e fluida, para uma situação na qual o Estado (ampliado) é o próprio equilíbrio entre coerção e consenso ou dominação e direção. C. N. Coutinho parece, em alguns momentos, ter uma concepção onto-positiva da politicidade. Ainda que, de forma inteligente, procura determinar o conceito de política, de tal forma a não romper com a concepção marxiana da necessidade de superação/destruição do Estado e da política como pré-condição para o início da história humana. Senão vejamos, ele defende que Gramsci apresenta dois sentidos para a categoria política. Um dito “restrito” e outro “amplo”. A política em seu sentido amplo

(...) identifica-se praticamente com liberdade, com universalidade, com toda forma de práxis que supera a mera recepção passiva ou a manipulação de dados imediatos (passividade e manipulação que caracterizam boa parte da práxis técnico-econômica e da práxis cotidiana em geral) e se orienta conscientemente para a totalidade das relações subjetivas e objetivas. E, segundo essa acepção, é justo dizer com Gramsci – pois isto corresponde a um fato ontológico real – que todas as esferas do ser social são atravessadas pela prática política, contêm a política como elemento real ou potencial ineliminável. Poderemos compreender isso melhor se observarmos que, nessa acepção ampla, política em Gramsci é sinônimo de ‘catarse’. (...), uma classe social, se não é capaz de realizar essa ‘catarse’, não pode se tornar classe nacional, representante dos interesses de um bloco histórico majoritário, e, desse modo, não pode conquistar a hegemonia na sociedade.(1999:90-91)149

Repare que a política em sentido amplo é contida em todas as esferas do ser social de forma ineliminável. O que é claramente uma abertura para a ontopositividade da política e o esquecimento do econômico como fundante do ser social, de acordo com o pensamento marxiano e com o ser em si150.

149 Gramsci nos “Cadernos do Cárcere explica a expressão “catarsis” da seguinte forma: “Pode-se empregar a expressão ‘catarsis’ para indicar a passagem do momento puramente econômico (ou egoísta-passional) para o momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e tornando-o passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas. A fixação do momento ‘catártico’ torna-se assim, creio, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético.[Aqui Gramsci introduz uma nota de pé de página que reproduzo em seguida – PH] Recordar sempre os dois pontos entre os quais oscila este processo: que nenhuma sociedade se coloca tarefas para cuja solução já não existam, ou estejam em vias de aparecimento, as condições necessárias e suficientes; - e que nenhuma sociedade deixa de existir antes de haver expressado todo o seu conteúdo potencial” (1989:53) 150 Em outro texto (1996), C. N. Coutinho se propõe a completar a “Ontologia do Ser Social” de Lukács, acrescentando o que ele acredita ser o grande ausente deste constructo teórico: a política. Aí fica patente que seu entendimento de política envolve qualquer atividade do indivíduo humano. Logo o ser humano é entendido como um ser político. E tal entendimento eliminaria os desvios deterministas ainda presentes na concepção do velho Lukács. Em verdade isto evidencia a discordância de C. N. Coutinho com a construção de Lukács que integra vontade individual e tendências gerais do desenvolvimento do ser social. Ou seja, ele discorda da forma como Lukács explica que o ser humano tem liberdade na tomada de decisões, mas esta liberdade está condicionada por condições que

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O conceito de catarse é tido como presente não só na política em sentido amplo, mas em toda forma de práxis. Desde que envolva a passagem da “recepção passiva do mundo”, da “manipulação imediata” para a “esfera da totalidade” da modificação do real. (p. 92) A política em sentido restrito é constituída de grande política (“compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, com a luta pela destruição, defesa e conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais”. (idem)) e pela pequena política (“do dia-a-dia, parlamentar, de corredor, de intriga (...) [das – PH] questões parciais e cotidianas, que se colocam no interior de uma estrutura já estabelecida”. (ibid.)). A grande política pode ser um espaço de manifestação da catarse, já a pequena política está limitada pela práxis manipulatória, pelo determinismo. Para C. N. Coutinho, mais uma vez Gramsci identificaria um aspecto ontológico fundamental do ser social ao tratar da política: o ser social “(...) é resultado da articulação de determinismo e liberdade, de causalidade e dever-ser”. (ibid., p. 93) A conclusão é que a política em sentido amplo, como “catarse” é um momento inerente e ineliminável do ser social e a política em sentido restrito é algo “historicamente transitório” (ibid.). A política em sentido estrito tem um caráter histórico, pois surge com o surgimento da divisão da sociedade em classes, com governantes e governados, dirigentes e dirigidos. E deverá desaparecer com o desaparecimento da sociedade cindida em classes, com o advento da sociedade regulada (comunista). C. N. Coutinho diz:

Do mesmo modo como, nessa ‘sociedade regulada’, os organismos sociais deverão absorver a economia (no sentido de subordinar suas leis espontâneas e aparentemente naturais ao controle consciente e programado dos produtores associados) assim também – pensa Gramsci – tais organismos deverão absorver o Estado (a sociedade política), pois as funções desse ‘corpo separado’ se dissolverão nas relações conscientes e consensuais que caracterizam a sociedade civil. (ibid., p. 94)

C. N. Coutinho se esforça em demonstrar que Gramsci não põe a política acima da economia151 e, portanto, se mantêm de acordo com a ontologia marxiana. Retomando o momento de “catarse”, ele lembra que este processo ocorre “no interior de determinações econômico-objetivas que limitam (mas sem anular) o âmbito de atuação da liberdade” (ibid., p. 97). Ou seja, a “catarse” é uma “teleologia do movimento da causalidade econômica” (ibid.). O mesmo valendo para a política em sentido restrito – tanto para a determinação econômica de cada ação política singular (por exemplo, na análise da correlação de forças) quanto para a determinação da política em geral pela economia em última instância. Pois o surgimento da política em sentido restrito e sua absorção (“aufhebung”) pela sociedade comunista, dependem em última instância da economia enquanto relação social. E da relação entre economia e política, C. N. Coutinho, retira uma conclusão ousada, vejamos:

(...), se ao processo de socialização da produção econômica corresponde um tendencial ‘recuo das barreiras naturais’, um maior âmbito de liberdade em face da coerção das leis naturais, a correspondente socialização da política implica o que poderíamos chamar de ‘recuo (tendencial) das barreiras econômicas’, com a conseqüente ampliação da autonomia e do poder determinante da esfera política sobre o conjunto da vida social. Quanto mais se ampliar a socialização da política,

independem da vontade do indivíduo que decide. Ainda que suas decisões contribuam para estes condicionamentos, mas em geral não da maneira como o indivíduo espera que ocorra. 151 Vide o conceito de bloco histórico.

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quanto mais a sociedade civil for rica e articulada, tanto mais os processos sociais serão determinados pela teleologia (pela vontade coletiva organizada) e tanto menor se imporá a causalidade automática e espontânea da economia.(ibid., p. 99)

Este trecho tenta fixar a idéia de que o modo como as esferas da economia e da política se articulam não é imutável e dado de uma vez por todas. Será o tipo de formação social que explicará a articulação entre as esferas e “(...) o maior ou menor poder de determinação em sua ação recíproca”.(ibid., p. 100) Sendo claro que Gramsci percebe a prioridade ontológica do econômico sobre o político, sem que isto implique numa hierarquia fixa e imutável. A socialização política é condicionada, em “última instância” pela socialização da produção, pela economia. Ou seja, o papel econômico de uma catástrofe natural (seca, enchente, etc) é diferenciado no caso de uma forma de sociabilidade pouco desenvolvida (selvagens primitivos) em relação à outra na qual a socialização da produção propiciou recursos tecnológicos para amenizar os efeitos da catástrofe natural. Podemos pensar, ainda, que a determinação da esfera econômica numa forma de sociabilidade na qual a sociedade civil é fluida e amorfa é diferente de uma sociabilidade na qual a sociedade civil é sólida e desenvolvida. Neste caso, a sociedade civil se interpõe entre a esfera econômica e a esfera política e promove o recuo das barreiras econômicas. Pensando estas questões à luz do que discutimos no item anterior, poderíamos entender a política em sentido amplo (“catarse”), como a metapolítica de Chasin. Entretanto, a idéia de que a sociedade civil se desenvolvendo leva a um recuo das barreiras econômicas, que a socialização da política leva a um recuo das barreiras econômicas, traz a questão de que a política em sentido restrito cumpre um papel no desenvolvimento da sociedade civil. Sendo assim, a diferenciação entre ambas perde o sentido. E a ontopositividade da política se expressa com toda sua força. Marx, Engels e Lênin concentraram-se na análise do Estado enquanto um conjunto de órgãos ou aparelhos repressivos, dedicaram atenção para o momento da coerção. O que, de todo modo, estava de acordo com as realidades nas quais eles estavam inseridos. Gramsci, contemporâneo dos processos de aumento da participação política (conquista do voto universal, surgimento de grandes sindicatos, partidos de massa, etc), vai voltar sua análise para esta nova “trama privada” – que segundo C. N. Coutinho é constituída por organismos aos quais os indivíduos aderem voluntariamente, sendo por isso “privados” e que não são caracterizados pelo uso da repressão (1999:125). Gramsci também vai se referir a esta trama privada como “sociedade civil” e como “aparelhos privados de hegemonia”. Esta nova esfera do ser social tem “(...) leis e (...) funções relativamente autônomas e específicas, tanto em face do mundo econômico quanto em face dos aparelhos repressivos do Estado” (ibid., p. 124). Ainda, segundo a argumentação de C. N. Coutinho, vamos expor o seu entendimento sobre o conceito de Estado de Gramsci. Adiante faremos pequeno comentário crítico sobre esta e outras interpretações deste autor, utilizando o material teórico dos itens anteriores e o texto de Perry Anderson intitulado “As Antinomias de Antonio Gramsci” (1986). C. N. Coutinho defende que Gramsci ao tratar do Estado em sentido amplo ou integral (= ditadura + hegemonia ou coerção + consenso ou sociedade política + sociedade civil) coloca uma novidade em relação aos autores clássicos do marxismo. Agora a hegemonia é uma figura social com uma base material própria (sociedade civil), podendo se manifestar num espaço autônomo e específico. A sociedade civil, mais uma vez, é constituída pela trama das organizações (escolas, igreja, partidos, sindicatos, meios de comunicação de massa, etc) que são as produtoras e/ou

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difusoras das ideologias. A sociedade política é constituída pelos aparelhos repressivos de Estado, que por sua vez são controlados pela burocracia civil e militar-policial. Ao tratar da ideologia e comparar as sociedades de tipo ocidental (Estado ampliado) com as de tipo oriental (Estado restrito), C. N. Coutinho defende que Gramsci promove mais um exemplo de integração da práxis política na ontologia marxiana. Pois nas primeiras a esfera ideológica

(...) ganhou uma autonomia material (e não só funcional) em relação ao Estado em sentido restrito. Em outras palavras: a necessidade de conquistar o consenso ativo e organizado como base para a dominação – uma necessidade gerada pela ampliação da socialização da política – criou e/ou renovou determinadas objetivações ou instituições sociais, que passaram a funcionar como portadores materiais específicos (com estrutura e legalidade próprias) das relações sociais de hegemonia. E é essa independência material – ao mesmo tempo base e resultado da autonomia relativa assumida agora pela figura social da hegemonia – que funda ontologicamente a sociedade civil como uma esfera própria, dotada de legalidade própria, e que funciona como mediação necessária entre a estrutura econômica e o Estado-coerção.(ibid., p. 129)

Assim a função social (hegemonia), ganha uma base material (sociedade civil), que agora é parte constitutiva do Estado ampliado. E se um Estado no sentido ampliado apresenta um perfil em que predomina o consenso sobre a coerção e vice-versa, isto vai depender da autonomia relativa das esferas constitutivas da sociedade civil e política, do grau de socialização da política que a sociedade possui e da correlação de forças entre as classes em luta pela hegemonia, pela supremacia (enquanto síntese do domínio (coerção) e da direção intelectual e moral (consenso)). Nas formações sociais em que ocorre o Estado em sentido ampliado, C. N. Coutinho entende que é possível que o sistema de ideologias “(...) das classes subalternas obtenham a hegemonia no interior de um ou de vários aparelhos hegemônicos privados, mesmo antes que tais classes tenham conquistado o poder de Estado em sentido estrito, ou seja, tenham se tornado classes dominantes” (1999:134). E justifica tal afirmativa com a seguinte citação de Gramsci: “‘um grupo social pode e mesmo deve ser dirigente [hegemônico] já antes de conquistar o poder governamental’; uma possibilidade que, aliás, no quadro das sociedades complexas, onde o Estado se ‘ampliou’, torna-se também necessidade, já que – prossegue Gramsci – essa é uma das condições principais para a própria conquista do poder’”. (idem) Nesse momento, começa a ficar nítida a visão de C. N. Coutinho de uma estratégia Gramsciana para o socialismo: guerra de posições. A conquista do poder de Estado nas sociedades de tipo ocidental exige uma longa luta pela hegemonia na e através da sociedade civil, ou seja, no interior do próprio Estado. Adiante voltaremos a tratar criticamente esta perspectiva. Por ora é preciso concluir os traços gerais da visão de C. N. Coutinho sobre alguns pontos chave do pensamento de Gramsci. A exposição de C. N. Coutinho identifica em Gramsci uma nova concretização superadora dos clássicos do marxismo, quando este trata da questão do Estado na sociedade comunista (sociedade regulada na linguagem cifrada de Gramsci). Assim, Gramsci entendia a extinção do Estado como extinção progressiva dos aparelhos de coerção, seria a reabsorção da sociedade política pela sociedade civil. É como se as funções de dominação e coerção saíssem de cena com o avanço gradual rumo a sociedade regulada e em seu lugar passa a predominar a hegemonia, o consenso. Assim, diz C. N. Coutinho:

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‘O elemento Estado-coerção – diz Gramsci – pode ser imaginado como capaz de se ir exaurindo à medida que se afirmam elementos cada vez mais numerosos de sociedade regulada (ou Estado ético ou sociedade civil)’. Por outro lado, essa reabsorção do Estado pela sociedade civil – o fim da alienação da esfera política – liga-se a uma preocupação básica revelada por Gramsci: a de que a divisão entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, que ele reconhece necessária em determinado nível da evolução social (no qual exista não só a divisão da sociedade em classes, mas inclusive um certo grau de divisão técnica do trabalho), não seja considerada como uma ‘perpétua divisão do gênero humano’, mas apenas [como] um fato histórico, correspondente a certas contradições’. Torna-se assim necessário ‘criar as condições nas quais desaparece a necessidade dessa divisão [entre governantes e governados]’. (ibid., p. 138)

Em resumo, segundo C. N. Coutinho, Gramsci entende que o fim do Estado é o fim do Estado-coerção, a sociedade política e logicamente a política em sentido restrito. Mas a sociedade civil e sua trama permanecem (!) e são, então, a base material do autogoverno da humanidade.152 Logo o fim do Estado não é o fim do governo (!). A sociedade está, então, condenada a viver com governantes e governados... Voltando à questão do tipo de estratégia política para a construção da sociedade regulada, conforme Gramsci, voltamos às idéias de sociedade oriental versus ocidental. Agora o tipo de formação social irá determinar o tipo de estratégia revolucionária. Na formação de tipo ocidental – como dissemos acima – as batalhas constitutivas da guerra deverão ocorrer no seio da sociedade civil e se destinam a conquista de espaço e posição na trama da sociedade civil, a conquista da direção política e ideológica, do consenso, da maioria da população. Isto é pré-requisito para a conquista do núcleo duro do Estado (aparelhos repressivos executores da coerção) e para a conservação do poder. Logo a estratégia é da guerra de posição, prolongada, cercando e desgastando o inimigo. Já nas formações orientais, o papel ocupado pela coerção, pelo Estado restrito, e a fluidez da sociedade civil, exigem um tipo de luta que ataque frontalmente e de forma rápida o aparelho coercitivo do Estado, a sociedade política. É o caso da estratégia da guerra de movimento ou, como Gramsci a associa, da revolução permanente defendida por Marx, Engels e Trotsky. Esta estratégia visava não só à conquista do aparelho de Estado, mas também à sua posterior conservação. A nova estratégia proposta por Gramsci, de conquista da hegemonia, guerra de posição, segundo C. N. Coutinho (1999:149) é devida a diferenças simultâneas (sincrônicas) entre formações de tipo ocidental e oriental e por diferenças dinâmicas (endogenamente às sociedades que estão em processo de ocidentalização). A guerra de movimento, então, seria aplicada ao caso de formações orientais, de predomínio da coerção, de “Estados absolutos ou despóticos”. E nos casos em que há um “Estado liberal elitista” com uma sociedade civil pouco desenvolvida, como na Europa até 1870.

152 “O ponto novo, a concretização gramsciana da teoria ‘clássica’ do fim do Estado, reside em sua idéia – realista! – de que aquilo que se extingue são os mecanismos do Estado-coerção, da sociedade política, conservando-se entretanto os organismos da sociedade civil, que se convertem nos portadores materiais do ‘auto-governo dos produtores associados’. O fim do Estado não implica nele a idéia – generosa, mas retórica – de uma sociedade sem governo.” (ibid., p. 141)

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A proposta de “Frente Única” das forças políticas representantes dos trabalhadores e defensores de visões variadas do socialismo, feita por Lênin e Trotsky no Terceiro Congresso da Terceira Internacional Comunista em 1921, e que fora na época do seu lançamento atacada por Gramsci e pela maioria do Partido Comunista Italiano (PCI), é defendida nos “Cadernos do Cárcere” como a aplicação – para sociedades ocidentais – da guerra de posição. Curiosamente, no trecho em que se refere à tática de frente única, ele ataca pesadamente Trotsky (Gramsci, 1989:74-75). Tal procedimento, em parte, pode ser explicado pelo seu isolamento no cárcere, o que o levava a desconhecer que no mesmo período, no exílio na ilha de Prinkipo, Trotsky defendia a mesma tática. Por outro lado, cabe lembrar que a Terceira Internacional atravessava o período de esquerdismo, tendo abandonado a política de frente única e adotado a linha catastrofista (iminente colapso final do capitalismo e início imediato da crise revolucionária mundial) que levou, como é sobejamente sabido, à vitória nazista na Alemanha, a vitória de Chang Kai Chek na China, etc. Sendo assim, é bem possível que o ataque a Trotski tenha como alvo a política da Terceira Internacional, que propugnava um ataque rápido ao Estado, um “putsh”, nos mais variados e diferentes quadros nacionais. Coerente com sua construção teórico-metafórica, Gramsci vai redefinir o papel das crises econômicas nos processos revolucionários, na desagregação do bloco histórico dominante153 e na estratégia da guerra de posição. Nas formações ocidentais as crises econômicas, mesmo as mais catastróficas, não têm por desdobramento uma crise generalizada da formação social. Isto porque nela a sociedade civil com sua trama desenvolvida absorvem os impactos da crise econômica, elas funcionam com as “trincheiras” da guerra de posição. Logo, nestas formações, a crise revolucionária envolve outros níveis de contradições e outros tipos de articulações, para além dos colocados pela crise econômica. E sua solução, pelas forças questionadoras do “status quo” exige um longo período histórico, no qual deve ocorrer a desagregação do bloco histórico então dominante. A crise revolucionária nas formações ocidentais é chamada por Gramsci de “crise orgânica”. Segundo C. N. Coutinho, “se a ‘crise orgânica’, em seu aspecto econômico, apresenta-se como manifestação de contradições estruturais do modo de produção, ela aparece – no aspecto superestrutural, político-ideológico – como crise de hegemonia”. (1999:153) Então, a crise de hegemonia – enquanto expressão política-ideológica da crise econômica – incidirá por um longo período durante o qual as classes em luta buscarão manter ou conquistar a hegemonia na formação social, logo teremos avanços e recuos ao largo deste período. Logo, ela afasta de imediato a revolução explosiva, o “putsh”, o golpe de Estado, e abre espaço para a revolução enquanto processo, processual. Mas o desfecho da luta não está dado a princípio. Tanto o bloco dominante pode, no curto prazo, utilizar-se da coerção para manter-se dominante e no médio prazo conseguir reorganizar seu bloco via concessões, cooptação de lideranças, corrupção, etc. E nesta tarefa pode ser ajudado pela fragilidade das forças sociais antagônicas que se mostrem incapazes de propor caminhos que conquistem a direção política-ideológica da maioria da população. Quanto as classes contestadoras, podem vir a consolidar novas alianças, conquistar

153 C. N. Coutinho entende que Gramsci utiliza o conceito de “bloco histórico” de duas formas diferentes mas interligadas de forma dialética. Por um lado é “(...) a totalidade concreta formada pela articulação da infra-estrutura material e das superestruturas político-ideológicas (...) [e por outro – PH] uma aliança de classes sob a hegemonia de uma classe fundamental no modo de produção, cujo objetivo é conservar ou revolucionar uma formação econômico-social existente.” (1999:153) Para ele a interligação dialética ocorre quando “(...) a construção de um ‘bloco histórico’, no segundo sentido, implica a criação de uma nova articulação entre economia e política, entre infra-estrutura e superestrutura.” (ibid.)

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o consenso, a hegemonia na sociedade civil e se tornarem classe dirigente. Este é o passo para se tornarem classe dominante. Ou seja, torna-se dirigente dos aliados antes de tomar o poder do Estado restrito, quando então tornasse classe dominante. Logo, para uma classe ser dirigente ela precisa ir além das questões corporativas, deve vir a ser classe nacional com propostas para a resolução dos problemas da Nação. Deduz-se que a resolução da crise de hegemonia implicando na extinção da formação social que melhor expressa a lógica do capital, só pode ser resultado da ação de “sujeitos coletivos” (ibid.,p. 155) que façam política envolvendo a maioria da população na solução de seus problemas, que lute para conquistar posições na sociedade civil, etc. Ou seja, a resolução da crise de hegemonia se dá com guerra de posição e revolução processual. O “sujeito coletivo”, o agente que vai encarnar a “vontade coletiva transformadora” é o moderno príncipe para Gramsci, é o partido político. Ao discutir o papel do partido e suas funções, Gramsci mantêm-se próximo ao desenvolvimento teórico de Lênin. Em ambos, a principal função do partido é permitir que a classe trabalhadora vá além das questões econômicas, corporativas-sindicais. Para tanto ele vai oferecer os elementos organizativos e teóricos que possibilitam uma elevação do nível de consciência de “classe em si” para “classe para si”. Assim a classe trabalhadora estaria em condição de tomar iniciativas políticas voltadas para o conjunto dos problemas da nação, seria a manifestação de uma vontade coletiva nacional-popular, conforme lembra C. N. Coutinho. Ele lembra ainda que o partido, neste sentido, “(...) aparece como uma objetivação fundamental do que Gramsci chama de ‘momento catártico’; não é casual, por exemplo, que ele afirme explicitamente que, ‘nos partidos, a necessidade se torna liberdade’” (ibid.; p. 169). C. N. Coutinho conclui que sendo o partido um organismo ‘catártico’, universalizante, “cada pessoa individual – ao ingressar no partido – realiza total ou parcialmente esse ‘momento’, capacitando-se a atuar de modo mais livre e mais consciente na sociedade em que vive” (ibid.). Ao partido político cabe construir a “vontade nacional popular”, só com ela pode-se constituir “(...) um novo bloco histórico revolucionário, em cujo seio a classe operária (liberta de corporativismo) assuma o papel de classe dirigente” (ibid., p. 170) Para a constituição de tal “vontade coletiva”, o partido deve compreender e considerar os “resultados ‘espontâneos das massas. Esses sentimentos (...) [segundo Gramsci – PH] devem ser educados, purificados, orientados, mas nunca ignorados” (ibid., p. 172). E ao considerá-los, ele deve realizar a síntese entre o sentimento das massas e a direção política consciente. Mas a formação da “vontade coletiva” está imbricada com a reforma intelectual e moral, com uma revolução cultural-ideológica. A luta pela hegemonia antes da conquista do núcleo duro do Estado, ou seja, a conquista do consenso, tem na esfera da cultura, da direção ideológica seu ponto básico. Será a difusão de uma nova cultura, fundada no que de melhor a cultura do passado produziu, mas sob a lógica humano-societária do trabalho, que permitirá a criação das condições da consolidação de uma nova hegemonia. E esta reforma intelectual e moral será decisiva para a superação da divisão entre trabalho manual e intelectual, para a criação do autogoverno dos produtores livremente associados. Por fim, registre-se o papel de destaque que Gramsci dá aos intelectuais na formação e constituição do partido político em função da relevância da reforma intelectual e moral. Palmiro Togliatti, herdeiro de Gramsci, segundo C. N. Coutinho, realizou um avanço nas concepções de Gramsci ao falar numa teoria que defende o pluralismo socialista, ou seja, ao falar

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da possibilidade e/ou necessidade da construção do socialismo com vários partidos e movimentos sociais. É a teoria de “democracia progressiva”, que seria

(...) um regime democrático republicano que graças à articulação dialética entre os organismos tradicionais de representação democrática (parlamentos, etc) e os novos institutos de democracia direta (conselhos de fábrica, de bairro, etc), permite o avanço progressivo no sentido de transformações sociais e econômicas profundas, da conquista permanente de posições no rumo do socialismo (ibid., p. 161). Agora (...) a democracia política perde seu caráter de etapa a ser cumprida e abandonada no momento do ‘assalto ao poder’, (...), para ganhar a característica de um conjunto de conquistas a serem conservadas e elevadas a um nível superior (...) na democracia socialista. (ibid., p. 162)

Trazendo esta discussão para a questão das políticas públicas no atual quadro de crises fiscal do Estado, poderíamos pensá-las inseridas num novo tipo de hegemonia que articule o pluralismo existente nas sociedades de tipo ocidental. Isto, conforme sugestão de C. N. Coutinho (2000b:117), exigiria a criação de blocos de força majoritários que se articulam em torno de questões nacionais (por exemplo, saúde) e apresentam propostas globais de reformas que consideram os interesses corporativos das forças envolvidas, mas que, ao mesmo tempo os ultrapasse. A realização de tais reformas globais poderia ser progressiva e não simultânea e as forças sociais envolvidas não necessariamente deveriam ser as mesmas em todos as propostas de reforma. Tais reformas deveriam ter, no seu conjunto, a busca do reordenamento da formação social de maneira a superar a lógica do capital. 5.4.1. Algumas Considerações Críticas As construções teóricas acima descritas e atribuídas a Gramsci, apresentam algumas dificuldades que precisam ser apontadas antes que passemos para a parte final deste capítulo. Em primeiro lugar cabe destacar com Anderson (1986) que a teoria dualista de poder da sociedade burguesa não abarca o conjunto de coações econômicas diretas que os explorados sofrem nela. Pois não se trata nem de coerção nem de consentimento. Em segundo lugar, na democracia burguesa, o Estado representativo é o principal mecanismo de obtenção de consenso. Pois o Estado se apresenta com representante do conjunto da população, população constituída de indivíduos em condições materiais desiguais mas que formalmente são igualados perante o Estado. O Parlamento é a expressão soberana da vontade dessa totalidade formalmente igual da população realmente desigual e surge aos olhos dela como seu próprio governo. Assim consolida-se a separação entre governo e população e a política é expropriação do indivíduo de sua possibilidade de auto-realização. Em resumo, o Estado democrático-representativo é a base para todos os outros aparatos ideológicos da obtenção do consenso. Logo é equivocado situar o consenso na sociedade civil e a coerção na sociedade política, pois se a coerção é da sociedade política, o consentimento é de ambas.

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A inter-relação entre consenso e coerção nas formações de tipo ocidental é que traz maior relevância para a análise. O que permite o funcionamento normal do metabolismo destas formações, com a subordinação ideológica das classes exploradas é a coerção, o monopólio estatal da violência. Sem coerção, o consenso se fragiliza e já não há limites de ações contra ele (vide a atitude dos tipógrafos nas Revoluções Russa e Cubana, em que eles acrescentavam informações e desmentidos aos artigos dos jornais que atacavam o processo revolucionário (Anderson, 1986:42)). Com a presença da coerção, o consenso pode até aparentemente existir sem ela. Ou como expõe com clareza Anderson:

O poder capitalista pode (...) ser visto como um sistema topológico com um centro ‘móvel’: em toda crise, assiste-se a um deslocamento objetivo e o capital, deixando de lado seus aparelhos representativos, se reconcentra em torno dos seus aparelhos repressivos. (...) Esta é uma lei do capitalismo, que não pode ser violada, sob pena de morte. É a regra de uma situação de fim de jogo, de decisão final. (ibid.)

Em terceiro lugar, retomando a distinção de Gramsci entre Oriente e Ocidente, ele nos diz:

No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e em qualquer abalo do Estado imediatamente descobria-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente por isto exigia um acurado reconhecimento do caráter nacional. (Gramsci, 1989:75)

Aqui fica claro que Gramsci supõe que as formações sociais do leste e oeste estão na mesma temporalidade “(...) e podem por isso ser opostas uma à outra, como variações da mesma categoria (...) sua premissa não estudada é que o Estado é o mesmo tipo de entidade em ambas. Mas esta suposição ‘natural’ era (...) o que precisava ser questionado” (Anderson, 1986:49). Segundo Anderson, Gramsci não percebeu que o absolutismo russo era associado a um Estado feudal, o que era completamente diferente da situação da Europa Ocidental. Uma outra questão é que mesmo com toda sua ortodoxia manifesta, Gramsci não articula a guerra de posição à guerra de movimento. Lênin, nas suas polêmicas com Martov154, já advogava esta articulação. Aí a guerra de posição é a fase da disputa do consenso para a obtenção da sociedade auto-regulada e se coloca antes da fase em que o príncipe moderno dirigirá um movimento coercitivo contra o núcleo duro do Estado político. A hegemonia seria exercida no bloco histórico revolucionário dos explorados e a coerção aplicada aos exploradores com a destruição do aparelho estatal que garantia seu antigo “status quo”. A inexistência desta articulação no pensamento de Gramsci possibilita sua apropriação por posições teóricas reformistas e limitadas ao horizonte do capital. O que está muito longe das posições originais deste pensador. A proposta de C. N. Coutinho de completar a ontologia de Lukács com a introdução da política a partir da sua interpretação de Gramsci demonstra que ele não aceita a articulação entre

154 Vide Anderson, 1986:65.

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indivíduo e tendencialidade do ser social conforme proposto por Lukács. Continua a ver neste constructo um determinismo e economicismo que precisaria ser eliminado. Mas ao dar centralidade à política no ser social ele traz uma perspectiva inteiramente positiva da mesma. E entra em rota de colisão com o ser social em si e com as construções teóricas de Marx que confirmam a negatividade da política e apontam que se o homem é um ser social ele atua em condições dadas independentes de sua vontade. É a liberdade de escolha em meio a condicionalidades dadas. Assim, ele passa a crer que todo processo de superação do capital e de sua lógica é dado pela política, pela expansão da democracia, pela democracia como valor universal. E como vimos, tal perspectiva só pode alimentar ilusões desastrosas para o evolver da humanidade. Posto que o questionamento da lógica do capital exige um outro movimento, um movimento que a confronte em seu próprio campo de produção e reprodução das condições materiais da vida humana. Pois, conforme demonstra Mészáros, o capital é também uma forma incontrolável de controle sociometabólico. Na qual o Estado surge como uma totalidade corretora das contradições colocadas pela lógica expansiva e reprodutiva do capital, de tal forma que Estado e capital são as duas faces de um mesmo fenômeno. E só podem ser superados como surgem na história da humanidade, em conjunto e ao mesmo tempo. Concluímos que a proposta de C. N. Coutinho, de separar a grande da pequena política, introduzir o conceito de catarse, de defender a extinção da pequena e a permanência da grande e catártica só pode ser aceita e pensada enquanto meta-política. Enquanto política que nega a própria política, nos termos propostos por Chasin. E sua analogia que diz existir um afastamento das barreiras econômicas pelo avanço da política, pela complexificação da sociedade civil e da democracia só pode ser aceita se entendemos o avanço da socialização da política como o desaparecimento da própria política. Do contrário, estaríamos presos à existência permanente de dominantes e dominados, diante de um poder alienado do próprio homem. Daí porque não é aceitável a proposição de que na sociedade regulada desaparece o Estado-coerção e permanece o Estado-consenso. Permanecendo o Estado-consenso, a divisão entre governantes e governados se eterniza. Ao contrário do que acredita C. N. Coutinho, a superação do capital e de sua lógica exige o fim do Estado e a constituição de uma sociedade sem governo, o que é não só generoso como imperativo. Sendo tarefa da humanidade no alvorecer de sua história colocar fim a tal divisão que inviabiliza o desenvolvimento de toda a potencialidade do indivíduo humano. 5.5. Esboço de uma Proposta de Política Pública no Rumo da Constituição de uma Nova Hegemonia: Redes de Política Pública Neste momento de nossa exposição, não iremos demonstrar como o Estado age para contrabalançar as fases declinantes do ciclo industrial ou como age para contrarrestar a tendência à queda da taxa média social de lucro e outros temas correlatos a eles. Ainda que esta seja uma discussão do campo marxista, ela já foi bastante explorada por vários autores: Sweezy (1985), Castells, Manuel (1978), Mandel (1985a, 1985b, 1989), Poulantzas155 (1985), etc.

155 Registre-se a forma como Poulantzas integra a questão econômica em sua análise do Estado. Com o rigor e a pertinência da análise marxista. E registre-se a crítica leviana de Przeworski (1995:103 ss.) a Poulantzas, primeiro ao afirmar que Poulantzas “(...) tinha aversão à ciência econômica, [e – PH] não procura sequer especificar o que o Estado poderia ser chamado a fazer no campo econômico para preservar o capitalismo” (1995:105). Em segundo,

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Também não iremos retomar a análise crítica de autores que defendem que a presença do Estado na economia justifica-se para a correção de falhas de mercado, tais como fazem os modelos de escolha racional e análise de escolha pública (conforme Moyer e Josling, 1990). Nos quais o movimento dos agentes, incluso políticos e burocratas é a maximização de suas funções utilidade, que no caso são constituídas pelo poder que cabe a cada um destes agentes. Também não trataremos da teoria econômica da regulação de Stigler, Posner, Peltzman e Gary Becker (conforme Peltzman, in. Mattos (coord.), 2004). Retomando o que desenvolvemos até agora no presente capítulo, temos que o Estado moderno é a outra face do capital, são inseparáveis. O Estado funciona como mecanismo de redução e controle das tendências centrífugas colocadas pela dinâmica do capital. A política é decorrência desta necessidade, ela aliena o ser humano de sua capacidade decisória e funciona como a chave da existência de governantes e governados, é o próprio mecanismo do poder. Logo a superação da formação social que melhor expressa a lógica do capital exige uma política que vá além da política, do Estado e de sua contraparte – a lógica humano-societária do capital. A isto, Chasin chamou de metapolítica. Como a formação social capitalista não tende para o colapso por suas contradições endógenas, numa derrubada final, a luta política (em sua negatividade) pode e deve cumprir o papel de permitir sua superação. Aqui a teoria gramsciana tem destaque por colocar em evidência a importância da luta pelo consenso na sociedade civil no processo de conquista de posição rumo a sociedade regulada. As políticas públicas são, aqui, um espaço privilegiado de luta pela hegemonia. Elas definem arcos de alianças entre classes sociais e frações de classe e com setores da burocracia estatal. Definem a utilização de recursos financeiros, materiais e de pessoal do Estado. Definem os setores a serem privilegiados, focados, nas políticas. Torna-se evidente o lugar das políticas públicas na guerra de posição antevista por Gramsci156. Mas gostaríamos de apontar para um tipo específico de estruturação de políticas públicas, pensando-as neste arcabouço acima resenhado: as redes de políticas públicas. Vamos tomar a noção de redes de políticas públicas como uma forma de governança política, conforme a sugestão de Schneider (2005:29). Ao mesmo tempo a vemos como “uma metodologia em busca de uma teoria” (Romano, 1998:235). O conceito de governança na contemporaneidade não se limita à discussão do “governo do Governo”, abrange não só o governo, mas a “regulação e condução da sociedade por meio de instituições e atores sociais” (Schneider, 2005:34). Romano, com base em Le Galis, ressalta que a

alegando que Poulantzas desconhece que “O Estado não desempenharia qualquer papel na análise de Marx sobre a economia capitalista. Apesar de ter planejado continuar O Capital com um volume dedicado ao Estado, não há nada que pudesse ter escrito. De acordo com a teoria presente nos três volumes realmente publicados, o capitalismo se reproduz e se desenvolve por ‘si próprio’” (ibid., p. 92). Quanto à primeira crítica registramos que no livro “O Estado, o Poder e o Socialismo”, Terceira Parte, Item II, intitulado “Economia e Política”, Poulantzas faz observações a este respeito. Isto já num contexto de afastamento de Altusser. Quanto à segunda crítica, Przeworski parece desconhecer do que trata. Primeiro por que Marx sinalizou na Introdução de “Para a Crítica da Economia Política” (1986: 19), que iria escrever uma parte específica de O Capital para tratar do Estado, mas também registrou o abandono deste projeto, ficando restrito aos quatro livros (e não três como afirma Przeworski) realmente publicados (o quarto é conhecido como Teorias da Mais-Valia). Segundo, ele se refere a possibilidade de crescimento equilibrado dos esquemas de reprodução do livro II, que são só possibilidades, conforme nos lembra Rosdolsky (1989:195) 156 Não retomaremos as ressalvas feitas a esta estratégia, mas temos claro que elas continuam válidas como expressamos no item anterior.

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partir dos anos 70 ocorreu uma proliferação de redes de todos os tipos, e uma diferenciação e autonomização de subsistemas, e estas formas possuíam capacidade de resistir às investidas do governo. Tal situação levou a análise dos “mecanismos alternativos de negociação entre os diferentes grupos, redes e/ou subsistemas suscetíveis de tornar possível a ação do governo (Le Gales, 1995:19) (...). Assim, a problemática da governança nos reorienta para as interações entre Estado e sociedade e os modos de coordenação que viabilizam a ação pública (Kooiman, 1993)” (Romano, 1998:215). Na ótica das redes de políticas públicas, o Estado tem seus segmentos constitutivos vistos como um dos agentes dos processos de elaboração e implementação das políticas (Romano, 1998:215). A partir dos anos 1960, verificou-se nos países capitalistas centrais, um crescimento quantitativo e qualitativo do Estado moderno. Este crescimento levou a uma diferenciação interna do Estado o que, por sua vez, colocou novas características para a organização interna dele. Schneider (2005:51) observa que:

Com a diferenciação ocorre uma crescente autonomização de algumas repartições, que são por um lado intencionais e fundamentados formal e institucionalmente. Por outro lado, com base simplesmente nos recursos resulta em conseqüências não intencionais de ação no processo de expansão do Estado. Vincula-se a isso uma crescente especialização e dispersão de recursos no espaço social e com isso uma autonomização de partes constitutivas da sociedade e unidades organizadas.

Com a especialização de suas funções, há um ganho de autonomia por parte dos segmentos constitutivos do Estado. O que inviabiliza a eficácia de um controle hierárquico. Hoje em dia, além da administração tradicional do Estado, temos “instituições públicas, empresas públicas e agências reguladoras independentes – sem falar das formas mistas de organização semi e para-estatais”. (ibid.) Ao mesmo tempo a sociedade modificou-se e o Estado defronta-se com grande quantidade de atores cooperativos, organizações formais, grandes empresas e associações. Não se pode esquecer que a internacionalização ou globalização observada nas últimas décadas trouxe uma sobreposição a essas relações entre Estado e atores sociais. Novas estruturas internacionais desenvolveram novas formas de dependência recíproca entre os Estados e estes são impulsionados a políticas de negociação, coordenação e cooperação entre eles. Logicamente tendo presente a dinâmica conflitiva dos interesses dos capitais nacionais.157 A noção de redes destaca as relações entre o nível micro e macro da análise das políticas públicas. No nível micro ela vai tratar “do papel dos interesses privados e do governo o contexto de decisões políticas particulares” (Romano, 1998:216). No nível macro vai tratar da distribuição de poder na sociedade. A rede de política pública, ainda que não venha a determinar os resultados

157 Cabe lembrar que Jessop (1998:43) argumenta que “a ‘reprodução ampliada’ do capitalismo e das classes sociais no antigo espaço econômico do fordismo atlântico não está mais ligada politicamente ao Estado Keynesiano de bem-estar nacional com as suas correias de transmissão locais, inclinações corporativas e apoios internacionais. Ela foi realocada no regime schumpeteriano pró-trabalho pós-nacional, mais internacionalizado e localizado. As funções particulares deste último se dispersaram por vários níveis institucionais de organização territorial e são partilhadas com um amplo leque de agentes financeiros funcionalmente relevantes (bem como política e ideologicamente definidas). Porém, a função política genérica de manter a coesão social ainda é desempenhada no nível do Estado Nacional, no quadro deste conjunto político reestruturado e reorientado”.

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da política, ela os influencia. E ela reflete o poder de dados interesses particulares neste campo político específico. Romano nos apresenta uma bela síntese do que é o conceito de redes de política:

Assim, num ambiente complexo, as redes seriam o resultado da cooperação mais ou menos estável, não hierárquica, entre organizações que se conhecem e se reconhecem, negociam, trocam recursos e partilham, em medida variável, de normas e interesses. Estas redes, conformadas por laços institucionais, mas também por relações interpessoais têm, sem dúvida, um papel importante na elaboração da agenda, no processo de decisão e na política da ação pública. Nas redes as regras institucionais, os modos operativos que derivam das instituições e as representações estruturam as interações entre os atores de uma política pública. Mais ou menos abertas, mais ou menos institucionalizadas, mais ou menos integradas, as redes de ação pública podem tomar a forma de redes pontuais laxas, ou de comunidades de políticas públicas fechadas, estáveis e integradas, que se constituem numa forma de coação maior para a definição e implementação de uma política. Esquematicamente, os diferentes tipos de redes da ação pública apresentariam um continuum entre dois pólos: as redes temáticas (issue networks) e as comunidades de política (policy community)158. Nas redes temáticas, o número de participantes é importante, os interesses representados são muito diversificados, as interações são flutuantes, a hierarquização ausente e os conflitos freqüentes. No caso das comunidades de política, o número de participantes é limitado, alguns são até excluídos a priori (fato que aponta a ausência de competição entre grupos reconhecidos pelo Estado), os interesses representados são econômicos ou profissionais, a hierarquização é relevante, as interações freqüentes e prevalece o consenso (Hassenteufel, 1995).

A noção de rede de ação pública é vista por Rhodes e Marsh (segundo Romano, ibid., p. 227) como um termo genérico que engloba as comunidades de política e as redes temáticas. E ambas são vistas como categorias ideais úteis como parâmetro de comparação com o que se observa empiricamente. Sendo que dificilmente teremos uma relação política real que seja idêntica a uma das descrições acima vista. Logo o importante é analisar o continuum existente entre elas. Analiticamente a noção de redes ressalta o papel dos atores coletivos e de suas interações. Assim ficam no mesmo plano de análise os atores dos segmentos estatais e os atores não estatais. A fragmentação do Estado é analisada com prioridade, e aceitasse que ministérios, agências governamentais, empresas estatais, etc se diferenciam não só por suas funções (deliberativa, executiva, regulatória, etc), mas por possuírem objetivos e estratégias diferentes e às vezes conflitantes. Acrescente-se a tudo isto as pressões que se exercem sobre estes segmentos. Esta analítica traz a ruptura com a visão linear e seqüencial de constituição de políticas públicas (aparição do problema, agendamento do problema, busca por solução, decisão e implementação da política pública), que, por exemplo, é descrita em Thoenig (1985, cap. 1) e Muller (2003). É o que se chama de “abordagem das políticas públicas a partir da base (bottom up) e não pelo alto (top down)” (Romano, 1998:217). Aqui o destaque é para o início da implementação, momento no qual “decisões são tomadas e problemas reformulados” (ibid.). Isto leva a retratar os atores estatais e não estatais envolvidos, as formas de interação entre eles e suas estratégias, representações, etc.

158 [PH - Vide a distinção de Frey (2000) para policy, politics e politic.]

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Por fim, tal analítica aponta a complexidade do setor público e de suas ações (nas formas de política agrícola, de saúde, etc). Tal complexidade associa-se ao fato de que mais de uma rede pode operar no setor público em questão. A interação entre os atores coletivos (e nalguns casos individuais) é determinante no funcionamento da rede de ação pública. Logo é de grande importância analítica explicar a interação entre eles. Nessa explicação a proposta analítica de Granovetter de relações interpessoais e de redes sociais interpessoais pode trazer uma interessante contribuição. Alguns autores destacam que a lógica do interesse explica a interação (Marsh e Rhodes, 1992, apud. Romano, ibid., p. 229). Outros como Jordan (1990, apud. Romano, ibid.) destacam que é a existência do interesse comum que caracteriza a rede. E “Waarden (1992:31) ressalta que a presença de uma rede de interação estabilizada reduz os custos de transação (...), reforçando a comunidade de interesse entre os participantes” (ibid.). Como redes de ação social pública exigem estabilidade do intercâmbio entre os agentes mesmo sabendo que seus interesses podem alterar-se rapidamente, os valores ou crenças comuns são também destacados na explicação da estabilização das interações. A explicação da estabilização da interação entre os atores coletivos se completa com a noção de intercâmbio político. Aqui temos um tipo de troca baseada na ordem social e que permite a articulação dos atores coletivos e a obtenção da estabilidade. “Os recursos que o Estado oferece neste intercâmbio – institucionalização, concessão de monopólios de representação, acesso privilegiado às decisões, subvenções, capacidade de conformar expertises, etc – tendem a consolidar os atores com os quais interatua, favorecendo o seu desenvolvimento organizacional. O reforço organizacional tem por objetivo incrementar a capacidade desses grupos para assegurar o papel de regulação social. Ou seja, a existência do intercâmbio político permite explicar a interdependência entre os atores estatais e não estatais” (Romano, ibid., p. 230) Esta noção de intercâmbio político é a descrição de um jogo no qual tanto o Estado quanto os grupos de representação ganham. Para o primeiro, ocorre um aumento de sua capacidade de ação, sendo ele organizado, representativo e dispondo de meios para agir, tudo isto facilita a implementação da decisão da política pública e sua legitimação. Para os segundos, ocorre sua consolidação institucional e sua participação no início da implementação da política pública fazendo intercâmbio político com o Estado – tudo isto incrementa sua capacidade de ação pública (Romano, ibid.). Por fim, cabe ressaltar que o intercâmbio político nos leva à necessidade de “conhecer as características organizacionais dos atores na compreensão da estabilização de uma interação no seio de uma rede de ação pública. O conhecimento da estrutura interna e dos recursos dos atores coletivos organizados permite compreender as estratégias e, através delas, o seu modo de inserção na rede. (Hassenteufel, 1995:99-100)” (Romano, ibid.) Romano (ibid., p.234-235), utilizando Hassenteufel (1995) elenca alguns limites, questões e problemas presentes na abordagem de redes de ação pública: (1º.) A abordagem de redes não é operativa nem pertinente à fase de introdução do problema na agenda, ainda que ajude na compreensão da tomada de decisão e início da implementação da política pública. (2º.) O estudo dos atores e de suas interações não tem muita operacionalidade para ações públicas que ocorrem em contextos nos quais a organização dos atores coletivos é frágil ou onde “predominam formas de ação simbólicas e pontuais”.

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(3º.) Há o risco de nublar conflitos internos existentes no setor, conflitos que em geral são relevantes para a análise. (4º.) Há uma “tendência a sobrevalorizar a particularização dos setores, isto é, a negligenciar-se as interdependências setoriais”. E a perder de vista os problemas gerais da ação pública. As análises das redes de ação pública destacam a estabilidade da ação e vêem mudanças como graduais. Ela tem dificuldades em pensar a mudança, a transformação radical. Romano (ibid., p. 236) diz que é preciso “desenvolver metodologias específicas para o estabelecimento das fronteiras de redes e a avaliação de sua pertinência para o caso analisado”. E diz ser preciso dar grande atenção na identificação das variáveis significativas para a rede e suas interações. As redes de políticas pública, tendo como um dos elementos dinâmicos os movimentos sociais que por sua vez são parte constitutiva da sociedade civil159, são espaços privilegiados para a luta por novos consensos por parte das classes subalternas. Interessante destacar que Schneider (2005:53) aponta que a presença de redes de políticas públicas e sistemas novos de negociação são novas formas de governança que distorcem a representação democrática. E para ele, a proposta de Benz (1998) de combinar as arenas postas pelas redes de políticas públicas com democracia direta, reduziria o déficit de legitimação. “De acordo com essa idéia, nas redes de políticas públicas e nas arenas parlamentares poderiam ser negociados e decididos sobre os mesmos temas e num segundo passo os cidadãos decidiriam diretamente entre alternativas negociadas de solução”. Schneider vê tal proposta como algo que minaria ainda mais a posição do Parlamento. Entretanto, pensando na metapolítica, este seria um movimento da constituição de um processo de duplicidade de poderes. Pré-condição para o início do fim da política enquanto mecanismo reprodutor do homem alienado. 5.6. Considerações Finais Retomando Marx e a tradição marxista, Mészáros nos mostra que o sistema e a lógica do capital se constitui de elementos centrífugos, conflitantes e antagônicos. Daí o Estado moderno ser a dimensão que dá coesão e tenta manter a unidade de todo o sistema. Daí capital e Estado moderno constituírem o próprio Jano bifronte. Com Chasin vimos que a política, decorrente da luta pela obtenção e manutenção do poder, é a forma de expressão da vida alienada imposta pela lógica do capital. Ela é a negatividade encarnada. É a usurpação do poder decisório do homem, sua separação entre cidadão e homem real. Logo, toda luta que se limita à política para a transformação do real está fadada ao fracasso. Mas como a política, com sua negatividade é o único meio disponível para as classes exploradas superarem a formação humano-societária que as tolhe, esta política deve ser uma metapolítica. Uma política que coloque a necessidade do seu próprio desaparecimento. Portanto, a única política ética possível. O desaparecimento da política, logicamente, só pode se dar com o desaparecimento dos gêmeos siameses: o capital (e sua lógica) e o Estado moderno. Com Gramsci (e a versão proposta por C. N. Coutinho), vimos que a metapolítica deve levar em conta as novas conformações do Estado (= sociedade política + sociedade civil). E da crítica a esta versão, vimos que a guerra de posição enquanto momento da obtenção de consenso

159 Além da discussão anterior, ver sob uma ótica reformista o mesmo princípio em Santos, Hermínio (1995).

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entre as classes subalternas antecede a guerra de movimento enquanto momento da coerção das classes e frações de classe que personificam a lógica do capital. Reconhecendo que os movimentos sociais são um setor dinâmico da sociedade civil, e reconhecendo seu papel na constituição e execução de políticas públicas, e percebendo que as políticas públicas constituem um momento importante na luta pela hegemonia, passamos a tratar das redes de política pública enquanto metodologia de análise e forma de governança. Enquanto quadro para o desenrolar das lutas metapolíticas pela obtenção do consenso.

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VI. CONCLUSÕES O eixo central de nossa Tese radicava na possibilidade de diálogo entre a “Ontologia” de Lukács e a Nova Sociologia Econômica de Granovetter. Entendíamos que por aqui passavam duas questões de vital importância para uma teoria científica e ideológica como é o pensamento marxiano/marxista. Por um lado colocava-se a necessidade de retirada de uma série de imputações a essa teoria, estranhas a ela, à sua própria formulação, e que em última instância implicavam em sérias deformações quando da aplicação prática de seus constructos teóricos. Por outro lado, tratava-se de proceder a uma atualização desse constructo teórico, o que poderia ser estimulado pelo diálogo com os novos avanços teóricos no campo das Ciências Sociais. Articulado a esse eixo central e ao mesmo tempo, enquanto decorrência dele, percebemos que havia espaço para o pensar um certo tipo de política pública (redes de política pública), que trazia uma dupla possibilidade: (1) enquanto forma de governança e de metodologia ela poderia ser integrada a uma perspectiva marxiana/marxista que não retira a necessidade da superação da formação humano-societária do capital do seu horizonte teórico e prático; (2) enquanto metodologia ela poderia ganhar em poder explicativo a partir das construções analíticas da Nova Sociologia Econômica de Granovetter. Do tratamento à Nova Sociologia Econômica constatamos que Granovetter é devedor das construções teóricas de Durkheim, Weber e Polanyi. Ainda que em relação aos dois primeiros sejam muito claras as possibilidades de uma maior integração, em particular, no caso de Durkheim, na discussão sobre o papel das instituições e contratos, conforme defende, por exemplo, Raud-Mattedi. Sobre Durkheim, nossa pesquisa constatou sua postura positivista de busca da neutralidade do pesquisador diante do objeto analisado e sua posição ideológica assentada na lógica da formação social do capital. Constatamos, também que Durkheim realiza uma crítica correta da teoria econômica neoclássica do mercado, e entende o mercado enquanto construção social, portanto, o mercado (para ele a esfera do econômico) encontra-se inserido (enraizado) nas relações sociais, tal como compreende Granovetter. Quanto a Weber, verificamos que a Nova Sociologia Econômica pode se beneficiar da sua teoria da ação social, tal como assinala, por exemplo, Swedberg. Weber, em sua construção teórica parte da ação social individual, passa pelas relações e interações entre dois ou mais indivíduos e aponta como a ações econômicas desses indivíduos se transformam em organizações. Portanto ele também opera com a noção de que a esfera econômica está inserida (enraizada) nas relações sociais. Percebemos algumas limitações no seu constructo teórico, em particular nas suas propostas de construção dos tipos ideais que funcionam como modelos para, por exemplo, os vários tipos de ação social. E apontamos para sua dificuldade em se libertar do positivismo, ao defender a necessidade de neutralidade na pesquisa e apresentar o auto-controle do pesquisador como garantia da neutralidade. A relação de Granovetter com Polanyi não nos pareceu de complementaridade. Pois Polanyi constrói sua análise com base no entendimento de que nas sociedades primitivas as

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relações econômicas estavam inseridas (enraizadas) nas relações sociais, e com o advento da sociedade de mercado auto-regulado (capitalista), trabalho, terra e dinheiro são transformados em mercadorias (fictícias) e inicia-se o moinho satânico. A sociedade reage a essas transformações que ameaçam o tecido social e a natureza, dando origem ao que ele chama de duplo movimento. Mas o fato é que para Polanyi, nas sociedades de mercado auto-regulado as relações sociais é que estão inseridas, enraizadas, nas relações econômicas. Granovetter compreende que nas sociedades de mercador auto-regulado o enraizamento das relações econômicas nas relações sociais permanece até num grau mais elevado. E demonstra isso através das redes de relações interpessoais, elas são o meio de manifestação desse enraizamento. Em Granovetter sinalizamos a continuidade entre suas preocupações iniciais com a explicação do funcionamento dos vínculos interpessoais (laços fracos, etc), enquanto momento decisivo para a articulação entre os níveis micro e macro de análise social, e sua explicação de como as relações sociais influenciam comportamentos individuais e instituições humanas. Sendo que tal explicação ocorre com Granovetter polemizando com as concepções da teoria neoclássica que viam o indivíduo humano como um átomo maximizador de utilidade cujas decisões são pouco influenciadas pelas relações sociais – sendo essa uma visão subsocializada da influência das relações sociais sobre os comportamentos individuais e as instituições. Mas, ao mesmo tempo, Granovetter se ocupa de polemizar com o que ele chama de economistas modernos, neles identifica grupos com uma perspectiva subsocializada (Williamson e a Nova Economia Institucional quando discutem a questão da má-fé e dos contratos) e outros com uma perspectiva sobressocializada (Kenneth Arrow ou Akerlof) – na qual as relações sociais influenciam mecanicamente o comportamento do indivíduo, esse passa a se comportar, na teoria, como um autômato. Em suma na proposta do enraizamento de Granovetter, as redes sociais concretas nas quais os indivíduos estão inseridos estão na origem da confiança e do afastamento da má-fé e do oportunismo. É claro que Granovetter realiza um esforço de romper com as velhas fronteiras entre os campos do conhecimento no âmbito das Ciências Sociais, o que por si, nos parece ser um esforço correto. Para melhor expor nossas conclusões sobre a possibilidade do diálogo entre a Nova Sociologia Econômica de Granovetter e a “Ontologia” de Lukács, vamos assinalar alguns poucos aspectos que exploramos dessa última. Ao tratarmos da “Ontologia” de Lukács, fizemos um esforço por desvelar as articulações principais presentes no texto que nos facilitaria a representação do esforço do autor em resgatar o pensamento marxiano e marxista da série de deformações que ele sofreu ao longo de sua história. Iniciamos pela chamada parte sistemática da “Ontologia” e tratamos primeiro de explicar o por quê de uma ontologia marxista hoje. Esse nos pareceu o movimento necessário para afastar dúvidas e mal entendidos. Compreendemos que para Lukács, Marx funda uma nova concepção ontológica da sociabilidade humana. Para Marx a essência humana é “o conjunto de relações sociais”, e tal conjunto é posto pelos sujeitos individuais, logo a essência é necessariamente histórica, e é resultado da própria processualidade histórica. Assim sendo, decisões tomadas pelos indivíduos constitutivos de uma dada sociabilidade pode alterar “o conjunto das relações sociais” e, assim, alterar a própria essência humana. Em resumo, Lukács está reafirmando a possibilidade ontológica da revolução social fundada na lógica humano-societária do trabalho. E este é o principal objetivo dele ao construir uma ontologia em pleno século XX. Tratamos da questão da essência enquanto lócus da continuidade e ao apontarmos a polêmica de Lukács com Engels quanto a categoria substância, desdobramos para a construção de

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Lukács que articula ontologicamente os três níveis de ser (inorgânico, orgânico e social),e explica o que os diferencia e os mantém unidos. No âmbito do ser social Lukács diz que o trabalho é a protoforma do agir humano, a partir dele pode-se entender outras estruturas pertinentes aos outros agires do ser humano. O que já põe a centralidade do trabalho e a prioridade do econômico em sua análise. A partir da análise do processo de trabalho, Lukács demonstra a importância do pôr teleológico para a realização da tarefa de trabalho, como é preciso construir na consciência (prévia-ideação) os passos necessários para a execução da tarefa de trabalho, a necessidade do correto domínio das causalidades do ser natural por parte do indivíduo criador para a objetivação da prévia-ideação. Como o processo de trabalho envolve sempre a tomada de decisões alternativas entre si, e como a coisa objetivada influencia o criador abrindo novas alternativas. As relações entre objetivação, exteriorização e estranhamento são fartamente exploradas por Lukács aqui. Lukács demonstra, ao abordar a categoria de reprodução, como a partir do trabalho são criadas novas causalidades que geram legalidades e essas se articulam na dinâmica do complexo social total, no movimento dinâmico do ser social de forma tendencial. Então, mais uma vez, as decisões individuais estão na base das legalidades postas pelo desenvolvimento do ser social, e os resultados das decisões individuais tomadas sempre dentre várias alternativas, colocam resultados que em geral não são os esperados pelos tomadores de decisão. E estou tratando, aqui da reprodução social global. Assim ocorre por que cada decisão individual aciona uma série de novas alternativas que por sua vez colocam novas determinações sociais gerais, de tal forma que o resultado final é a constituição de novas legalidades que escapam ao controle dos indivíduos e agem diretamente sobre eles. A tendência de movimento no ser social é o resultado do movimento dinâmico-contraditório entre complexos em movimento. E a tendência universal do ser social, para Lukács, é o progressivo afastamento das barreiras naturais devido ao aumento paulatino da produtividade do trabalho. E tal aumento só é possível com a complexificação das formas de sociabilidade, com o aumento do domínio do homem sobre a natureza, com o aumento das intermediações sociais necessárias para a produção e reprodução social. Em seguido, passamos a tratar da Ontologia de Marx que Lukács expõe na parte histórica de sua obra. Inicialmente procuramos demonstrar como Lukács identifica no pensamento marxiano a perspectiva ontológica. E em particular como o método da economia política de Marx se articula com essa perspectiva ontológica. Nosso esforço foi no sentido de demonstrar que no pensamento marxiano não há, portanto, espaço para determinismo econômico, raciocínios mecânicos, etc. Mas nele as decisões individuais são a base estruturante do ser social, das suas legalidades, tendencialidades, do seu vir-a-ser. Ao confrontarmos as duas vertentes teóricas, concluímos que Lukács apresenta um constructo filosófico mais elaborado, abrangente e ambicioso do que o de Granovetter, com um enorme espectro de possibilidades teóricas possíveis de serem exploradas. O que coloca um grau de dificuldade maior para uma apropriação dessa teoria pela Nova Sociologia Econômica, mas inversamente, facilita a integração dessa última pela construção marxista/marxiana. E é este o caminho que tomamos. Assim, iniciamos com um olhar crítico (a partir de Lukács) para os autores que influenciaram a construção de Granovetter, em particular Weber e Polanyi. Weber constrói epistemologicamente toda uma tipologia (seus “tipos ideais”). Ele tenta introduzir a estrutura social na análise econômica a partir da ação individual. Logo a ação individual passa a ocupar um lugar chave na sua teoria, e ele passa a construir os “tipos ideais” da

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ação social, destacando os diferentes tipos da ação social econômica. Weber defende que a Ciência Social deve ser livre dos juízos de valor. Pois os valores para ele só podem ser explicados subjetivamente, e não a partir da objetividade posta pela sociabilidade. Neste ponto seu proceder é semelhante ao dos positivistas que ele tinha por alvo de suas críticas. Mas quando formula o objeto da sua pesquisa, Weber aceita a presença das prenoções. Sua construção teórica, ao contrário do que ele imaginava, está impregnada de uma ideologia (no sentido marxiano e luckacsiano) muito específica que se põe na defesa da lógica humano-societária do capital. Em vários momentos Weber burla sua proposta de autocontrole a partir da qual ele tenta impedir a contaminação da pesquisa pelos valores, preconceitos e prenoções do pesquisador. O que nos parece ser a demonstração cabal da inviabilidade do assim chamado autocontrole. Por fim seus tipos ideais, a teoria da ação econômica deles decorrentes, seu entendimento das leis histórico-sociais enquanto probabilidades, sua aceitação da teoria econômica marginalista, tudo isto o leva a um tratamento estático da realidade social. De tal forma que a formação social do capital é vista como perene, para além da qual nada se coloca de fato. O que conclui sua construção teórico-ideológica. Weber tem no socialismo seu principal adversário, sendo que isso influencia de maneira fundamental sua construção teórica. Essa construção é radicalmente antípoda ao constructo teórico marxiano e marxista. Os “tipos ideais” de Weber são frutos de uma postura gnoseológica-epistemológica e se chocam com a apreensão de Marx a respeito das categorias – que são “formas de ser, determinações da existência”. As categorias para Marx têm uma determinação ontológica, são postas pelo próprio ser social na sua dinâmica, no seu vir-a-ser perpétuo. Com a metodologia dos “tipos ideais” de Weber “tudo podia ser relativizado e a própria idéia de leis e tendências objetivas do desenvolvimento histórico ser desacreditada” (Mészáros, 2004:218). Dessa forma, privando o ser social de suas tendencialidades e legalidades, Weber podia entender o capitalismo (“com seus necessários ‘cálculo’, ‘racionalidade’, ‘burocracia’, etc” (ibid., p. 217) como algo perene, cujo destino “era não ser superado” (ibid.). Assim, saiam de cena a questão da revolução social e do socialismo. Por fim, apontamos, com Lukács (in. Netto, 1981:159), que a polêmica que Weber trava com irracionalismo vulgar alemão não o impede de atingir o paroxismo do irracionalismo ao operar com um método e uma concepção de mundo que ao pretender obter a cientificidade para a Sociologia excluindo os juízos de valor do cientista no ato da pesquisa, simplesmente transfere a irracionalidade para os juízos de valor e para as tomadas de decisão. O constructo teórico weberiano, portanto, é antípoda ao construto marxiano/marxista que foi trabalhado na presente Tese. Polanyi coloca uma outra série de problemas. Ele redescobre que o homem é um ser social, entretanto, demonstra que não é capaz de dimensionar o grau de importância de tal descoberta. Por um lado, tal redescoberta permite que ele tenha uma melhor compreensão da real sociabilidade humana, das contradições próprias ao vir-a-ser homem do homem, comparativamente ao que encontramos na economia vulgar. Por outro lado, isso não é suficiente para arrancá-lo de uma postura romântica quanto à possibilidade de deter o avanço do capital e da sua sociabilidade que prescinde das questões ligadas à manutenção do meio-ambiente e da humanidade do homem. Em boa medida essa deficiência encontra-se fundada na sua incapacidade de dar um tratamento científico para a esfera do econômico. Polanyi não compreende ou não aceita a

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centralidade da esfera do econômico no ser social, tal como por nós vista ao tratarmos da categoria trabalho e do método da economia política de Marx. Acredita que seja possível explicar o todo mais desenvolvido (o sócio-metabolismo do capital) a partir de um todo menos complexo (sociedades primitivas), invertendo o próprio vir-a-ser ontológico da sociabilidade humana. Ele despreza um tratamento acurado para as categorias com as quais opera. Assim mercadoria é definida de forma pouco cuidadosa e o pior, desconsiderando a bastante conhecida teoria marxiana do valor e das mercadorias. O resultado é que Polanyi160

160 Registramos nossa distância teórica em relação à formulação proposta por Burawoy (2003) que busca uma convergência complementar entre Gramsci e Polanyi. Acreditamos que a exposição da nossa compreensão do constructo teórico marxista/marxiano fale por si mesmo a esse respeito.

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irá incorrer em graves equívoco teóricos que comprometerão sua construção teórica. Em resumo, o problema radica na sua postulação de que trabalho, terra e dinheiro são mercadorias fictícias, e o tornar tais coisas mercadorias aciona um mecanismo autodestrutivo da sociabilidade humana. A solução adiantada por ele é a adoção de uma legislação que impeça que tais coisas continuem a ser tratadas como mercadorias. E aqui se expressam suas ilusões, por não conseguir compreender o que é o capital (relação social que implica em expansão permanente do valor e forma de controle sócio-metabólico) acredita que um travamento jurídico será suficiente para desativar o “moinho satânico” e realizar um novo enraizamento da esfera econômica nas relações sociais, e ao mesmo tempo não consegue entender que o “duplo movimento” é a própria expressão das classes em luta por seus interesses imediatos e por suas propostas de resolução dos conflitos sociais (visão ideológica). Sem esquecer que seu constructo o leva a um erro teórico importante ao postular que nas sociedades de mercado auto-regulado há um total desenraizamento do econômico. E vimos que da perspectiva do ser em si, ontológica, isso está longe de ser verificado. Confrontando a “Ontologia” de Lukács com a construção de Granovetter, concluímos que essa última é um marco da epistemologia, pois que ela surge como uma chave heurística, facilmente utilizada. A perspectiva inicial, portanto, não poderia ser mais distante da proposta por Lukács em sua “Ontologia”. Além disso, a construção teórica de Granovetter rastreada nos artigos selecionados não traz um posicionamento sobre a própria lógica sócio-metabólica do capital. Mas ao limitar-se à descrição das formas de obtenção de confiança, honestidade, etc, pela utilização das redes sociais, em contraposição ao que fazem a economia clássica e os (por ele chamados) economistas modernos, parece cumprir a função ideológica de garantidora do status quo. O seu lado positivo está na constatação de que os indivíduos põem finalidades em suas decisões e suas tomadas de decisão sempre se dão inseridas em realidades sociais concretas. Este é o ponto em que ele tangencia as preocupações de Lukács, pois aqui ele apreende algo posto ontologicamente. Não é apenas um mero exercício da consciência. Como já argumentamos anteriormente as questões caras a Granovetter, em particular a existência ou não de enraizamento das relações econômicas nas sociais, as visões sobressocializadas ou subsocializadas da influência das relações sociais sobre o comportamento individual e as instituições humanas. São respondidas pelo próprio posicionamento ontológico de Lukács. O mundo dos homens, o ser social, que tem por prioridade ontológica a esfera do econômico, dado que o trabalho é a proto-forma do agir humano, traz sempre o econômico articulado com as demais dimensões do ser social. E não poderia ser de outra forma. E como o agir humano envolve sempre alternativas, e a objetivação implica em exteriorização, que sempre põem novas alternativas para os produtores, não temos uma visão sobre ou subsocializada. Mas o desvelamento do que é. Com essas considerações reforçamos que Lukács percebe, necessariamente, ontologicamente, o indivíduo inserido nas relações sociais. As decisões individuais ocorrem dentro de relações sociais e acionam outras tantas relações. E tais relações sociais podem assumir a forma de redes sociais, redes de contatos e de influência recíproca dos mais variados tipos. Esta é uma constatação ontológica, pois no mundo dos homens redes de contatos, de relações sociais, são as formas assumidas usualmente pelos contatos dos indivíduos entre si nas variadas esferas de atuação. Logo, não estamos utilizando a chave heurística epistemologicamente, mas referindo-nos a algo que é posto pelo próprio ser social na sua constituição.

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Concluímos que aqui se apresenta a possibilidade de integração entre a “Ontologia” de Lukács e a Nova Sociologia Econômica de Granovetter. Para isso é preciso abandonar os preconceitos, pré-noções e ideologias presentes em Granovetter e em seus inspiradores, e apreender o que ele consegue captar do ser em si. Acreditamos que tal movimento traga para a análise marxista/marxiana a melhoria na capacidade de lidar com um nível de análise que eu diria ser meso, situada ali entre as esferas micro e macro de análise. Uma possibilidade de desdobramento para essa integração é o pensar na constituição de um tipo específico de políticas públicas que tenha por foco as redes de relação interpessoal e que, ao mesmo tempo, se articule com o constucto teórico marxista/marxiano que estamos trabalhando aqui. Para realizar esse movimento resgatamos o entendimento de que para o pensamento marxiano/marxista o Estado é ontologicamente necessário para o processo de reprodução ampliada do capital. O sistema do capital é constituído por elementos centrífugos, conflitantes e antagônicos, e o Estado surge como a estrutura que irá buscar corrigir os defeitos estruturais, a unidade, a coesão desse sistema conflituoso. Por isso é que Estado e capital são os dois lados da mesma moeda, o deus mitológico de duas faces, o Jano bifronte. Para Marx a superação e desaparecimento do Estado só podem se dar a partir de um posicionamento que ultrapasse o ponto de vista político, pois “(...) o Estado e a política em geral, como a conhecemos, são por sua própria natureza, incapazes de abolir a si mesmos” (Mészáros, 2002:565). O que nos coloca que Marx traz uma apreensão predominantemente negativa da política. Aqui recorremos ao conceito de ontonegatividade da política desenvolvido por Chasin. Com Chasin vimos que a política, decorrente da luta pela obtenção e manutenção do poder, é a forma de expressão da vida alienada imposta pela lógica do capital. Ela é a negatividade encarnada. É a usurpação do poder decisório do homem, sua separação entre cidadão e homem real. Logo, toda luta que se limita à política para a transformação do real está fadada ao fracasso. Mas como a política, com sua negatividade é o único meio disponível para as classes exploradas superarem a formação humano-societária que as tolhe, esta política deve ser uma metapolítica. Uma política que coloque a necessidade do seu próprio desaparecimento. Portanto, a única política ética possível. O desaparecimento da política, logicamente, só pode se dar com o desaparecimento dos gêmeos siameses: o capital (e sua lógica) e o Estado moderno. Com Gramsci (e a versão proposta por C. N. Coutinho), vimos que a metapolítica deve levar em conta as novas conformações do Estado (= sociedade política + sociedade civil). E da crítica a esta versão, vimos que a guerra de posição enquanto momento da obtenção de consenso entre as classes subalternas antecede a guerra de movimento enquanto momento da coerção das classes e frações de classe que personificam a lógica do capital. Reconhecendo que os movimentos sociais são um setor dinâmico da sociedade civil, e reconhecendo seu papel na constituição e execução de políticas públicas, e percebendo que as políticas públicas constituem um momento importante na luta pela hegemonia, concluímos que as redes de política pública, enquanto metodologia de análise e forma de governança, podem ser pensadas como espaço para o desenrolar das lutas metapolíticas pela obtenção do consenso. Para a análise de casos concretos, a analítica proposta pela Nova Sociologia Econômica de Granovetter parece ser bastante proveitosa. Com ela torna-se possível a identificação de pontes, laços fortes e fracos, a trajetória constitutiva da rede interpessoal, e assim, a apresentação e implementação de políticas concretas que se

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coloquem na ótica humano-societária do trabalho, e que se articulem com um novo projeto ideológico, de reforma cultural, capitaneado pelo príncipe moderno na luta pela emancipação do homem. Lembrando que, “(...) o que se exigia como condição vital de sucesso seria a progressiva reaquisição pelos indivíduos dos poderes alienados de tomada de decisão política – além de outros tipos de decisão – na transição para uma sociedade autenticamente socialista. Sem a recuperação desses poderes, nem o novo modo de controle político da sociedade por seus indivíduos seria concebível, nem a operação diária não-antagônica e, portanto, coesiva e planejável, das unidades produtivas e distributivas, auto-administradas pelos produtores associados”.(Mészaros, 2003:104)

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VII. BIBLIOGRAFIA

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