Upload
hoangquynh
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
As Redes Sociais do Samba e do Carnaval de Rua Carioca1.
Andréa Almeida de Moura Estevão
Jornalista, Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Professora da UNESA.
Jorge Edgardo Sapia
Cientista Social pela UFF, Mestre em Sociologia pelo IUPERJ, Professor da UNESA e Professor
Temporário da UFRRJ
Palavras-chave: BLOCOS CARNAVALESCOS,
SAMBA , REDES SOCIAIS.
Introdução
Nos últimos dois anos temos nos dedicado a pesquisar sobre o movimento de retomada
do carnaval de rua carioca, iniciado na década de 1980. Essa pesquisa tem como algumas de
suas diretrizes mapear personagens, lugares de memória, fatos e narrativas que permitam o
resgate da história recente desse movimento; assim como as disputas não apenas em torno do
espaço festivo carnavalesco, mas também em torno dos desejos de cidade presentes no Rio de
Janeiro, nas últimas décadas. Convidados a participar do II Congresso Nacional do Samba,
encontro que propõe uma releitura da Carta do Samba, elaborada há cinquenta anos pelo
folclorista Edison Carneiro, buscaremos contribuir com algumas considerações sobre a relação
íntima, os laços estreitos e afetivos entre alguns desses blocos de carnaval da retomada2, no Rio
de Janeiro, com os botequins e as rodas de samba da cidade.
A Carta Nacional do Samba é de 1962, momento em que as ideias de nação e de cultura
popular pontuavam o debate no qual o samba, desde o final da década de 1930, tinha sido
escolhido símbolo da identidade brasileira e convocado para viabilizar o projeto de construção
da Nação. Projeto que só será concretizado com a implantação, a partir de meados de 1960, de
um sistema de comunicação via satélite, permitindo a consolidação de uma indústria cultural.
Produto da indústria cultural, o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, embalado entre
1 Trabalho apresentado no Segundo Congresso Nacional do Samba. UNIRIO. Rio de Janeiro. 1e 2 de Dezembro
de 2012. 2 Blocos, são grupos carnavalescos, abertos à participação de todos, sem cordas e sem obrigatoriedade de
indumentária própria. Os participantes desfilam em cortejo, cantando durante o percurso uma música autoral feita
especificamente para a ocasião. Para o presente trabalho propomos a seguinte classificação: blocos da primeira
geração, Cacique de Ramos, Bafo da Onça, Boemios de Irajá e Clube do Samba; blocos da segunda geração ou da
retomada, Barbas, Simpatia é quase Amor, Suvaco de Cristo, bloco de Segunda, Carmelitas, Meu Bem Volto Já,
Escravos da Mauá e Que Merda é Essa; e blocos do crescimento, que incluem todos aqueles formados no terceiro
milênio e que, no carnaval do ano 2012, totalizaram aproximadamente 500 agremiações.
2
duas telenovelas, ajudou a construir um imaginário que privilegiou a ideia de modernização e
de construção de um Brasil potência. Nesse contexto, no que diz respeito à produção de gostos
musicais, modernizar-se implicava, como afirma Alejandro Ulloa, “estar em sintonia com a
música e a cultura pop norte-americanas, que farão a ‘cabeça’ das novas gerações. É quando o
samba começa a perder sua hegemonia na mídia ante um público que tem outros gostos, porque
será educado sob outros modelos, os do cancioneiro da música internacional (baladas, rock,
heavy metal, Beatles).” (ULLOA, 1998: 161)
Hoje, 50 anos mais tarde, as ideias de nação e de popular, se encontram em declínio e
as questões culturais são discutidas em outros termos, o que não impede que ainda existam
atores engajados na preservação do gênero musical que funcionou como amálgama da nação
brasileira. A ideia de preservação num momento de consolidação da indústria e mercado
cultural internacional é o objetivo premente, que se constata na letra da própria carta, ao
esclarecer o esforço que esta representa: “esforço para coordenar medidas práticas e de fácil
execução para preservar as características tradicionais do samba sem, entretanto, lhe negar ou
tirar a espontaneidade e perspectiva de progresso.”
Nosso trabalho trilhará de algum modo o eixo de articulação da preservação do samba,
não tanto numa discussão sobre o quanto o samba como gênero segue as tradições ou se inova.
Nosso interesse é pensar os vínculos dos blocos que retomam o carnaval de rua e as práticas
culturais em torno do samba como acontecimento, como encontro, que convoca e reúne
(ULLOA, 1998: 89). Para tanto, trabalharemos com as noções de festa, de memória e de
circuito.
Procuramos neste artigo alinhavar algumas ideias em torno do papel das redes sociais
construídas no processo de retomada do Carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro3. Processo
que começa a ser constituido em meados da década de 1980, no contexto da transição
3 Por retomada carnavalesca fazemos referência, embora não exclusivamente, às agremiações que surgem a partir
de 1985 no vácuo da campanha pelas eleições diretas e que, a partir de 2000, formaram a Sebastiana – Associação
Independente dos Blocos da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da cidade de São Sebastião de Rio de Janeiro. A
associação resultou da necessidade de pensar o fenômeno do crescimento, dos impactos e consequências que a
festa carnavalesca produz. Essa vontade associativa surge quando seus integrantes percebem que, para além dos
encontros simbólicos, a festa se transformava em arena que colocava em contato visões de mundo diferentes.
Discutimos essas questões em SAPIA, Jorge Edgardo; ESTEVÃO, Andréa Almeida de Moura. “Considerações a
respeito da retomada carnavalesca: o carnaval de rua no Rio de Janeiro”. Textos escolhidos de cultura e arte
populares. Rio de Janeiro, v.9, n.1, p. 201-220, mai. 2012.
3
democrática. Talvez possamos ler essa retomada como uma resposta ao sentimento de que o
samba e o carnaval de rua se encontravam, por vários fatores, em declínio. A criação do Bloco
carnavalesco Clube do Samba, em 1979, de alguma maneira faz parte de um impulso de
preservação e resgate. Este, assim como os tradicionais blocos de embalo Cacique de Ramos4,
Bafo da Onça e Boêmios de Irajá serão fonte de inspiração para a formação dos primeiros blocos
da retomada: o Bloco do Barbas e o Simpatia é Quase Amor.
Voltei, aqui é o meu lugar.
O Bloco do Barbas e o Simpatia é Quase Amor, assim como outros que foram
inventados na sequência, resultaram das redes criadas em torno do movimento associativo que
vicejou durante o longo processo de transição democrática: associação de moradores,
movimento a favor da anistia política e, posteriormente, o movimento multitudinário das
Diretas Já. As redes criadas em torno das rodas de samba que aos poucos ocuparam diversos
espaços, particularmente, na Zona Sul e no Centro da Cidade, de um certo modo, deram
continuidade aos encontros da militância anterior. O associativismo, a militância política, e o
mundo do samba são redes de relações recíprocas construídas a partir de um capital social,
acionado durante um longo percurso, que nos permite pensar, hoje, na existência de um
imaginário coletivo que vê os blocos carnavalescos como parte do patrimônio imaterial da
cidade. Patrimônio que é resultado de um longo e prazeiroso processo de organização, de
definição e de administração da festa, que sempre é, como lembra Nelson da Nóbrega Fernandes
(2001), coisa de gente que tem muito o que fazer.
Isso nos leva a pensar que a festa do carnaval de rua é um espaço de observação
privilegiado que permite vislumbrar aspectos da cultura e das redes de sociabilidade cariocas,
pois coloca em circulação na esfera pública, novas formas de imaginação e criatividade social
que intensificam as trocas sociais e simbólicas durante o tempo da festa e ajudam na construção
de pontes que integram diversos setores sociais à memória coletiva da cidade (HALBWACHS,
2004). Há nessas manifestações uma poética e uma estética que precisam ainda ser devidamente
compreendidas.
A fase atual se caracteriza pela descoberta de uma realidade desenhada por uma
multiplicidade de propostas, manifestações e eventos, produzidos por novos atores que
4 Sobre a relação entre o samba e o Cacique de Ramos, ver Carlos Alberto Messeder Pereira. Cacique de Ramos:
uma história que deu certo. E-papers, 2003.
4
disputam a arena festiva. Na virada do século XXI, segmentos cada vez maiores da população
jovem urbana descobrem a festa e também a cidade, num quantitativo de aproximadamente 500
blocos que animam a dilatada folia momesca5.
Da gama diversificada de atores e instituições cujos diversos olhares permitem
identificar a existência de uma arena prenhe de conflitos e significações, vamos citar apenas
alguns. As indústrias ligadas às áreas da hotelaria e do turismo, por exemplo, vêem no
crescimento das festas de rua, boa oportunidade de negócios. A mídia é outro ator que, num
primeiro momento, produziu um olhar eivado de elementos negativos e, hoje, apresenta uma
leitura mais complacente com relação à multidão, ressaltando esses novos formatos de festa na
cidade. Esses novos formatos de festa, por sua vez, instauram uma disputa entre os
essencialistas, que entendem que o carnaval do Rio de Janeiro deva, necessariamente, estar
vinculado ao samba, e aqueles que defendem posições inovadoras6. Algumas das associacões
de moradores das áreas consideradas “nobres” da cidade reclamam do carnaval de rua,
mobilizadas que estão na defesa da preservação de “seus” espaços. As empresas transnacionais,
atores onipresentes, desenvolvem agressivas estratégias de marketing e de comercialização dos
espaços da cidade por onde passam os cortejos carnavalescos. Já o poder público, tem se
mostrado particularmente comprometido com o desenvolvimento de políticas públicas que
confirmam a tendência contemporânea de privatização e comercialização da atividade cultural.
(FORTUNA e SILVA, 2002:429).
5 Foi aproximadamente esse quantitativo de blocos que obtiveram autorização para desfilar no ano de 2012.
Números que revelam a diversidade de propostas e perspectivas que se deixam notar na criação de blocos com
formatos tão diversos: blocos musicais (Céu na Terra, Boitatá, Songoro Cosongo, Os Siderais); blocos de gênero
(Mulheres de Chico); blocos temáticos (Sargento Pimenta, Toca Raul, Fogo e Paixão, Bloco Crú) etc. Além
daqueles que compartilham a proposta da “Desliga carnavalesca”, que tem por base o bloco “Boi Tolo”, dissidência
do bloco musical “Cordão do Boitatá”. Além deste, há outros blocos que compartilham a posição de que a festa
carnavalesca não pode ter restrições espaciais ou temporais. Alguns deles são: o Cordão umbilical; O centrão vai
virar mar; o Zoobloco; o Etnobloco; o Super Mário Broz; etc. 6 A multiplicidade de blocos evidencia uma disputa pela identidade da festa, uma demarcação de fronteiras e
elaboração de identidades sociais que confrontam visões essencialistas e inovadoras. Sobre os primeiros indicamos
o artigo do produtor cultural Lefê Almeida. “O poder de resistência dos cariocas” publicado na editoria de Opinião
do jornal o Globo em 25 de fevereiro de 2007 e o artigo “Muito bloco, pouco samba”, do Músico Henrique Cazes
publicado na editoria de Opinião do Jornal O Globo em 24 de fevereiro de 2012. As posições inovadoras podem
ser encontradas no Manifesto do Carnaval Nômade Cf.
http://carnavalnomade.blogspot.com.br/2010/12/manifesto-do-carnaval-nomade.html
5
A Lapa confirmando a tradição.
As redes de sociabilidade criadas em torno do universo dos blocos teve importante
participação nas transformações produzidas em algumas áreas da cidade, particularmente, no
tradicional bairro da Lapa, no Centro. O bairro foi objeto de um processo de revitalização que
começa no projeto “Quadra da Cultura”, criado no governo de Leonel Brizola. Em meados da
década de 1990 um público de foliões e compositores, vinculados aos blocos carnavalescos que
posteriormente fundarão a Sebastiana, marcam presença nos espaços seminais desses circuitos
do samba na cidade. Fazem parte do circuito: o pioneiro Arco da Velha – que ocupava o espaço
do último arco da Lapa, na esquina da Rua Joaquin Silva, na diagonal da Comuna do Semente;
o bar Coisa da Antiga, nos fundos de um antiquário na Rua do Lavradio 100 e, posteriormente,
o Bar Carioca da Gema, na Av. Mem de Sá. Espaços que, sob a produção musical de Lefê
Almeida, dão continuidade as rodas de samba do bar Sobrenatural, de propriedade da Sérvula e
do mestre Wilson Moreira, ou substituem o lugar vazio deixado pelo Bar Mandrake. Este último,
é conhecido reduto do samba do bairro de Botafogo, responsável pela divulgação desse gênero
musical entre uma nova geração de jovens músicos e novos foliões. Sua roda de samba era
frequentada e formada por músicos, tanto amadores quanto profissionais, da classe média e por
militantes de grupos políticos de esquerda como constata, na sua pesquisa, Alejandro Ulloa7.
Entre os profissionais podemos citar Edmundo Souto, Paulinho Soares, Beth Carvalho, Micau,
Walter Alfaiate e Paulão Sete Cordas, só para citar alguns dos músicos e compositores que
marcavam presença no lugar. Estes últimos diretamente vinculados à formação do Bloco do
Barbas, aos quais devemos acrescentar os nomes de Mauro Duarte e Cristina Buarque de
Hollanda. Comparecem nesse ponto de encontro também uma série de produtores culturais como
Paulinho Figueiredo, produtor da Velha Guarda da Portela; Nei Barbosa, fundador do Barbas e
posterior produtor do Zeca Pagodinho; o já citado Lefê Almeida, compositor e intransigente
defensor do que ele denomina de MPC, Música Popular Carioca.
É oportuno citar a tradicional roda do bar XPTO, na Rua do Matoso e, claro, o Bip Bip,
em Copacabana, na medida em que são vistos pelos seus frequentadores como lugares de
7 Sobre as características das rodas de samba do Mandrake, ver Ulloa, Alejandro. Pagode: a festa do samba no Rio
de janeiro e nas Américas. Rio de Janeiro. MultiMais Editoria, 1998.
6
resistência, tanto quanto de comunicação em torno do universo do samba. Universo do qual
fazem parte as rodas do Bar da Rampa, organizadas por Nézio Simões e Negão da Abolição. Nos
últimos anos, cabe ressaltar a importância da Roda do Trabalhador, no Renascença Clube,
organizado pelo músico e compositor Moacyr Luz, este também responsável pela fundação do
bloco carnavalesco Nem muda, nem sai de cima, na Zona Norte da cidade, com sede no Bar da
Maria. Do outro lado da baía, em Niterói, podemos mencionar o terreiro do Candongueiro,
comandado por Ilton Lopes Mendes. Circuitos que dialogam com já tradicional roda de samba
do Cacique de Ramos, definida por Beth Carvalho, como a Sierra Maestra do samba.
Felipe Trotta observa que as rodas de samba são lugares de ”expressão simbólica de uma
visão de mundo”, que possibilitam desenvolver o que ele denomina de experiências musicais-
sociais, isto é, eventos sociais nos quais a música atua como agente de união e elemento
agregador entre as pessoas. As experiências musicais-sociais “são momentos onde os repertórios
musicais serão utilizados e interpretados coletivamente pelos frequentadores na construção de
seus gostos e identidades” (TROTTA, 2004:3)
Seu garçom faça o favor.
Entre nós, o botequim funcionou e funciona como ponto de encontro, lugar de
sociabilidade, de prestação de pequenos serviços. Além disso, desempenha importante papel
tanto na história da cidade, quanto de suas principais manifestações culturais8. Em seu trabalho
Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), Carlos Sandroni
(2001) argumenta que o botequim, por ser mais público e socialmente mais aberto, foi
responsável pela substituição dos lugares de consagração do samba que, no ínicio do século,
estavam vinculados às casas das tias baianas. O botequim, então, além de permitir uma maior
circulação deste gênero musical, se encontra associado ao novo estilo de samba – caracterizado
pelo uso de instrumentos de percussão - que tem sua origem no bairro carioca do Estácio de Sá,
bairro que viu nascer a Deixa Falar, primeira escola de samba que, curiosamente, “nunca foi
escola. Foi na verdade, um bloco carnavalesco”, criado em 1928. Cabral (1996:41)
8 Cafés, livrarias, confeitarias e revistas sempre foram ponto de encontro e espaços de atuação de uma
intelectualidade não abrigada nas instituições do Estado. Cf. Monica Pimenta Velloso. Modernismo no Rio de
Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
7
Os botequins, diz Resende de Carvalho, se apresentam como “espaços-síntese” da
cidade, são capazes de evocar uma multiplicidade de referências simbólicas que resultam da
nossa qualidade de seres urbanos e, portanto, do fato de “sermos ‘autores’ da nossa cidade,
construtores permanentes da sua significação e da sua personalidade” (CARVALHO, 1994:
96). O botequim, como lugar de encontro dos foliões acaba transformando-se em uma espécie
de espaço cultural. O Bloco do Barbas é um exemplo. Sua fundação em 1984, no bairro de
Botafogo, resulta de uma sugestão feita pelo compositor Mauro Duarte – o Bolacha –
frequentador do botequim com o mesmo nome do bloco. Dessa maneira, alguns espaços
culturais podem ser lembrados na trajetoria destes atores: a Cobal de Botafogo, vinculada há 25
anos ao Bloco de Segunda; o mercadinho São José, no bairro de Laranjeiras, sede do Imprensa
que eu Gamo; a Taberninha do bairro do Leme, local de encontro dos foliões que fundaram o
bloco Meu Bem, Volto Já; o bar Jóia, no Jardim Botânico, sede do Suvaco de Cristo e o bar do
Serginho, nas ladeiras do Bairro de Santa Teresa, ponto de concentração do bloco das
Carmelitas, no carnaval, e dos foliões o ano inteiro. Vamos ficar só nestes, e aguardar um
mapeamento mais completo no futuro.
Entendemos que essas referências nos permitem pensar a respeito da importância dos
diversos blocos com seus territórios. Não só a presença física, mas se acompanharmos as letras
dos sambas que embalam seus desfiles, podemos facilmente verificar a importância que o
bairro, que o local, tem na conformação da identidade dessas agremiações. Por isso, qualquer
proposta – como já foi feita - de concentrar os desfiles de blocos da cidade numa espécie de
blocódromo, foi enfáticamente rejeitada pelos responsavéis por essas agremiações.
Botequins, blocos carnavalescos, o samba e as festas podem ser vistos a partir da noção
de lugares de memória proposta por Pierre Nora. Nos lugares de memória coexistem aspectos
materiais, simbólicos e funcionais. O aspecto material se refere ao “seu conteúdo demográfico;
o aspecto funcional diz respeito à possibilidade de cristalização da lembrança e de sua
transmissão” e o aspecto simbólico permite que uma experiência vivida por um pequeno grupo
possa ser experimentada como própria por aqueles que não participaram da experiência .
(NORA, 1981:22). Michel Pollak (1992) ampliará a rede de significados e, além dos
acontecimentos “vividos pessoalmente”, chama a atenção para o que denomina de
acontecimentos “vividos por tabela”, isto é, acontecimentos vividos pelo grupo do qual a pessoa
8
não faz parte, porém, se sente pertencer. Talvez esteja nesse imaginário uma das chaves
compreensivas da revitalização e do crescimento dos blocos na cidade.
Desta maneira, se os acontecimentos, personagens e lugares são vetores de produção de
memória, individual e coletiva, suas “sedes”, isto é, os diversos botequins espalhados pela
cidade, e seus trajetos, reproduzidos durante os cortejos carnavalescos, podem ser considerados
como lugares de apoio à memória transformamdo-se, por conseguinte, como sugere POLLAK
(1992) em lugares de comemoração.
José Guiherme Magnani sugere a noção de circuito para pensar aquilo que “une
estabelecimentos, espaços e equipamentos caracterizados pelo exercício de determinada
prática” em espaços urbanos não contíguos e conhecidos basicamente pelos seus usuários
(MAGNANI, 1996:45). Os espaços acima citados fazem parte de um circuito do samba, fazem
parte do patrimônio cultural da cidade, são como acabamos de sugerir, lugares de memória. As
rodas embaixo da tamarineira do Cacique de Ramos, na rua Uranos, ou bar Bip Bip, em
Copacabana são, como observa Felipe Trotta, lugares de “expressão simbólica de uma visão de
mundo”, que permitem o desenvolvimento de “experiências musicais sociais” e se transformam
em instâncias que “promovem a circulação de música pela sociedade, exercendo um papel de
legitimação perante os repertórios utilizados nesses eventos”. (TROTTA, 2004:3).
É o juízo final
Uma característica fundamental do carnaval de rua e o clima de celebração e festa, de
contagiante alegria, de produção de felicidade, que deveria, como no Butão, ser incorporada
oficialmente no índice de medição da qualidade de vida da população. Esta dimensão é crucial,
pois como aponta Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais, as festas emanam dos fins superiores da existência humana,
isto é, do mundo dos ideais e são uma forma primordial da civilização humana:
As festividades tiveram sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo,
exprimiram sempre uma concepção de mundo. Os ‘exercícios’ de
regulamentação e aperfeiçoamento do processo do trabalho coletivo, o ‘jogo
no trabalho’, o descanso ou a trégua no trabalho nunca chegaram a ser
verdadeiras festas. Para que o sejam, é preciso um elemento a mais, vindo de
uma outra esfera da vida corrente, a do espírito e das ideias. (BAKHTIN,
1987:7-8)
9
Enquanto produto social, a festa é produtora de identidade entre os participantes, pois
estes compartilham do “símbolo que é comemorado e que, portanto, se inscreve na memória
coletiva como um ato emotivo, como a junção dos afetos e expectativas individuais, como um
ponto em comum que define a interação dos participantes”. (GUARINELLO, 2001)
Léa Freitas Perez discute no artigo “Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil”
três categorias de ligação, que são, como diz a autora,
Três formas fundamentais de ligar, três formas eminentes de sociação, por
intermédio das quais se realizam a troca e a comunicação, dois fundamentos
essenciais da experiência humana em coletividade. Ligação/comunicação
com os afetos e com as emoções, ligação/comunicação/troca com o sagrado
e com os deuses, ligação/negociação com os deveres e com as obrigações.
(PEREZ, 2011:26)
Portanto, a festa é uma categoria boa para pensar sobre os processos de integração, de
confronto e de conflitos que estão na base dos processos de interação social e das formas de
sociação, categoria central na sociologia de George Simmel. Para o autor, a sociação só
começa a existir:
Quando a coexistência isolada dos indivíduos adota formas determinadas de
cooperação e de colaboração, caem sob o conceito geral da interação. A
sociação é, assim, a forma realizada de diversas maneiras, na qual os
indivíduos constituem uma unidade dentro da qual realizam seus interesses.
E é na base desses interesses – tangíveis ou ideais, momentâneos ou
duradouros, conscientes ou inconscientes, impulsionados causalmente ou
induzidos teleologicamente – que os indivíduos constituem tais unidades
pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus
interesses. (SIMMEL, 1983:60)
Nesse sentido nossa preocupação se orienta para o mundo da vida, entendido enquanto
lugar de afetos, sentimentos e paixões que se fazem particularmente presentes no tempo e no
espaço da rua, lugar como sabemos, privilegiado das festas carnavalescas. (SCHUTZ, 1979)
As festas são, como lembra Roberto DaMatta, o “extraordinário construído pela e para
a sociedade”, (DAMATTA, 1978: 37), encontram-se situadas fora do dia a dia repetitivo e
rotineiro e se caracterizam pelo caráter aglutinador de pessoas e grupos sociais. No caso que
escolhemos investigar, esse caráter aglutinador projeta-se além do tempo e do espaço do
10
carnaval, permitindo a construção de novos olhares que talvez nos permitam entender o que os
blocos podem revelar sobre a cidade e sobre a festa do samba.
11
Referências Bibliográficas:
ALBURQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. “Festas para que te quero: por uma historiografia do
festejar”. Patrimônio e Memória. UNESP-FCLAs-CEDAP, v.7, n.1, p.134-150, jun.2011.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo:
HUCITEC/UNB, 1987.
CARVALHO, Maria Alice Rezende. Quatro Vezes Cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2006.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. – Para uma sociologia do dilema Brasileiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1997.
FERNANDEZ, Nelson da Nóbrega. Escolas de Samba: Sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio
de Janeiro: Secretaria das Culturas. Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais: O surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras
questões carnavalescas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
FORTUNA, Carlos e SILVA, Augusto Santos. “A cidade do lado da cultura: Espacialidades sociais e
modalidades de intermediação cultural”. In: SANTOS, Boaventura de Souza. (org.) A
Globalização e as ciências sociais. 2.ed. São Paulo- Cortez, 2002.
GUARINELLO, N. L. Festa, Trabalho e Cotidiano. In: Istvan Jancso; Iris Kantor. (Org.). Festa: Cultura
e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: EDUSP/HUCITEC, 2001, v. 2, p. 969-975.
LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1996.
MAGNANI, José Guilherme. "Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole". In Na
Metrópole: textos de antropologia urbana. José Guilherme Magnani e Lilian e Lucca Torres
(org.) São Paulo. Ed. Universidade de São Paulo; Fapesp, 1996.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
PEREZ, Léa Freitas. Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil. Porto Alegre: Medianiz, 2011.
PUJOL CRUELLS, Adrià. Ciudad, fiesta y poder en el mundo contemporáneo. In Liminar.
Estudios Sociales y Humanísticos, Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas. San
Cristóbal de las Casas, México, V.002, p. 36-49, Diciembre 2006.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio
de Janeiro. Jorge Zahar Ed./Ed. UFRJ, 2001.
12
SAPIA, Jorge Edgardo; ESTEVÃO, Andréa Almeida de Moura. Considerações a respeito da retomada
carnavalesca: o carnaval de rua no Rio de Janeiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares,
Rio de Janeiro, v.9, n.1, p. 201-220, mai. 2012.
______________ “Festas carnavalescas costurando e redesenhando a cidade”. Narrativas sobre a
Cidade. EPapers, 2013. (no prelo)
SIMMEL, Georg. "O problema da Sociologia". In: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983.
TROTTA, Felipe da Costa. “Entre o Candongueiro e o Canecão: os espaços do samba na indústria da
cultura”. Trabalho apresentado no V Congresso Latino-americano da Associação Internacional
para o Estudo da Música Popular, IASPM- LA. Rio de Janeiro, 21 a 25 de junho de 2004.
ULLOA, Alejandro. Pagode: A festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas. Rio de Janeiro,
MuiltiMais Editorial, 1998.
VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
VILLAROYA, Antonio Ariño e PILÁN, Pedro Garcia. “Apuntes para el estudio social de las fiestas en
España”. In: Andalu -Revista Andaluza de Ciencias Sociales. Nº 6 2006. P. 13-27.