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As regras e as práticas

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  • AS REGRAS E AS PRTICAS

    Factores organizacionais e transformaes na poltica dereabilitao profissional das pessoas com deficincia

    Carlos Veloso da Veiga

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    SECRETARIADO NACIONAL PARA A REABILITAO E INTEGRAO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA2006

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    ESTE TRABALHO FOI APOIADO E FINANCIADO POR: CENTRO DE CINCIAS HISTRICAS E SOCIAIS DO INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DO MINHO (CCHS) SECRETARIADO NACIONAL PARA A REABILITAO E INTEGRAO DAS PESSOAS COM DEFICINCIA (SNRIPD)

    Editor: Secretariado Nacional para a Reabilitao e Integrao das Pessoas com Deficincia Autor: Carlos Veloso da Veiga Capa: Isabel Correia Local e data de edio: Lisboa, 2006 Colocao: Cadernos SNR, n. 20 ISBN: 972 9301 94 8 Depsito Legal: 239762/06

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    memria da minha tia Maria Augusta!

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    Difcil atravessar os muros invisveis de que os reais so feitos. Eduardo Loureno

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    AGRADECIMENTOS

    A todos os dirigentes, profissionais e outros actores das organizaes do campo da reabilitao profissional que foram objecto desta investigao, o meu reconhecido e profundo agradecimento por tudo o que me proporcionaram para poder levar por diante esta tarefa. A disponibilidade, a simpatia com que me receberam, a pacincia com que acederam ser interrogados sobre as suas prticas, e a abertura com que me deixaram vasculhar na realidade vivida das suas organizaes foram, e continuaro a ser, provas sinceras de uma colaborao que muito me honra e apraz registar. Confesso que sinto orgulho em poder afirmar que nutro por todos uma grande admirao, estima e sincera retribuda amizade pessoal. Aos amigos e aos colegas do Instituto de Cincias Sociais, em especial, aos do Departamento de Sociologia, que me foram incentivando a continuar, um grande abrao pela fora e pela solidariedade que me concederam. Ao Professor Doutor Moiss Martins, meu orientador, pelas suas sempre oportunas e certeiras observaes, que me permitiram ir habituando o olhar turbulncia da realidade e das ideias e encontrar novos alentos para prosseguir neste rodopiante passo de dana. Se ao apoio do seu saber e da sua argcia cientfica fica para sempre este trabalho em dvida, sua pacincia e sua disponibilidade, sempre renovadas, expresso um muito obrigado do tamanho do mundo. Um grande abrao para o meu pai e para as minhas irms por todo o apoio que me deram ao longo deste tempo. Aos meus meninos Nuno e Catarina e Isabel peo desculpa pelas consecutivas interrupes nos planos da nossa vida comum. Sinto que perdemos algumas coisas que no mais sero recuperadas. Ficarei para sempre com uma dvida de gratido pela vossa, sempre resignada, compreenso!

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    Prefcio

    O estudo da poltica de reabilitao profissional das pessoas com deficincia tem sido o

    principal objecto de investigao de Carlos Veiga, desde que, h cerca de quinze anos, comeou

    uma carreira acadmica no Departamento de Sociologia da Universidade do Minho. Depois de,

    em 1999, ter publicado Cooperativas de Educao e Reabilitao de Crianas Inadaptadas.

    Uma Viso Global, nas Edies do Secretariado Nacional para a Reabilitao e Integrao das

    Pessoas com Deficincia, Carlos Veiga d agora estampa um estudo que constitui a refundao

    da tese de doutoramento, que defendeu na Universidade do Minho, em Julho de 2004.

    Trata-se, sem dvida, de um trabalho de importncia crucial para a compreenso do sistema

    portugus da reabilitao profissional da deficincia, tanto no que respeita s regras do sistema da

    deficincia e s prticas dos actores, sejam eles pessoas com deficincia, tcnicos de formao ou

    responsveis pela tutela, como tambm no que se refere transformao dessas mesmas regras e

    prticas.

    Quem viu crescer infrene o pragmatismo filosfico de Richard Rorty, prolongado pelas

    suas emulaes sociolgicas, que do ao pensamento e teoria social a colorao relativista ps-

    moderna que elas hoje tm em muitas paragens, no pode deixar de se sentir reconfortado com o

    equilbrio da teoria da estruturao de Anthony Giddens, assim como da teoria dos campos

    sociais de Pierre Bourdieu, teorias sociais que encontram a cadncia certa entre as regras da

    estrutura e a liberdade da aco.

    A meu ver, entre as regras do sistema e as prticas dos actores que vemos jogar-se hoje o

    projecto da modernidade e, portanto, tambm o nosso modo de fazer cincia social. Nas questes

    sociais todo o problema reside, com efeito, entre as regularidades e as causalidades do sistema e a

    liberdade condicionada dos actores. Ou seja, em termos sociais, todo o problema reside na

    problematizao do sentido do jogo social, circulando este entre a criatividade dos actores e o

    constrangimento das regras. Quer isto dizer que o sentido tanto produzido pelos sujeitos das

    suas prticas sociais, como os prprios sujeitos so produzidos pelas suas prticas, que exprimem

    regras, isto , consequncias inesperadas da aco.

    todavia surpreendente que o reconforto que Carlos Veiga encontra na teoria dos campos

    sociais de Bourdieu, assim como na teoria da estruturao de Giddens, seja abalado por uma

    grande dvida. No centro do seu olhar sociolgico, um olhar que ele prprio de racionalidade

    limitada, Carlos Veiga coloca a seguinte dvida fundamental: que alcance e que estatuto tm a

    explicao sociolgica?

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    Desde que mile Durkheim estabeleceu a pertinncia da razo sociolgica para explicar os

    fenmenos sociais, todos temos andado mais ou menos tranquilos com o nosso regime do olhar.

    Carlos Veiga coloca-o, no entanto, sob suspeita. E pergunta: at que ponto, como e quanto os

    aspectos fisiolgicos, psicolgicos, orgnicos, influenciam na construo social da realidade

    social? Ou, por outras palavras, at que ponto a incessante estruturao discursiva, que permite

    exprimir as ideologias e as representaes dos actores sobre esse mundo, influenciada por

    factores no sociais? A razo sociolgica , com efeito, em Carlos Veiga no apenas limitada,

    mas tambm insatisfatria, o que quer dizer, que a sua teoria social verdadeiramente ps-

    positivista.

    O mundo de que se ocupa Carlos Veiga a deficincia, designadamente o mundo das

    organizaes que procuram reabilitar profissionalmente as pessoas com deficincia. Sobre a

    separao entre a sade e a doena, e tambm entre a normalidade e a loucura, do mesmo modo

    que sobre o encerramento dos doentes e dos loucos, por um lado em hospitais e clnicas, e por

    outro em reformatrios, escreveu Michel Foucault uma monumental obra, que Carlos Veiga no

    esqueceu na sua arqueologia da deficincia, desde a Histria da Loucura ao Nascimento da

    Clnica, Vontade de Saber e a Vigiar Punir. Como tambm no esqueceu a obra de Erving

    Goffman sobre as instituies totais, ou seja, sobre as instituies de clausura, em geral, fossem

    casas de correco, clnicas e hospitais, fossem quartis e cadeias.

    Todavia, tanto em Foucault como em Goffman, do que se trata fundamentalmente de uma

    sintaxe da loucura e da doena, assim como, do mesmo modo, de uma sintaxe das instituies

    que as enclausuram, instituies essas que prolongam o brao e os desgnios do Estado. Ora,

    enquanto ordem sintctica que prolonga o brao e os desgnios do Estado, este dispositivo

    institucional compreende um conjunto de mecanismos de excluso, outros de rejeio, outros

    ainda de limitao e rarefaco da loucura e da doena. A anlise da loucura, por exemplo, dava-

    -nos a sintaxe de uma ordem disciplinar, a ordem de uma clausura, onde a loucura era vigiada e

    punida. As boas metforas para falar dessa ordem sintctica, fosse a respeito da clnica, fosse a

    respeito da priso, eram as metforas da lepra e da peste. A metfora da peste sugeria, atravs das

    medidas de higiene social que eram impostas a uma cidade em estado declarado de peste, a

    vigilncia e o controle no interior de um dado territrio. Por sua vez, a metfora da lepra sugeria

    a rejeio de algum para fora de um dado territrio, a excluso do convvio social daquele sobre

    quem recasse o estigma da lepra.

    Ao analisar a doena e a loucura, Foucault estabeleceu uma sintaxe. Se falamos de prticas,

    trata-se, de um modo geral, de prticas que repetem as possibilidades de um cdigo, o que levou,

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    por exemplo, Cesare Segre a sugerir que Foucault no se distinguiu por a alm de Lvi-Strauss.

    E Goffman no foi muito mais longe ao tratar das instituies totais, que se ocupam da vida dos

    indivduos por inteiro. Quando se fala de prticas, de aces de indivduos, apenas no sentido

    de reaces s nicas aces que so as aces do sistema.

    A convocao de Pierre Bourdieu, por um lado, e de Anthony Giddens, por outro, tornou

    possvel a Carlos Veiga uma deslocao de ponto de vista. Foi a pragmtica sociolgica de

    Bourdieu e de Giddens que lhe permitiu colocar o acento nas prticas humanas. Ou seja, a

    deficincia deixou de ser em Carlos Veiga uma questo unicamente sintctica, como eram a

    loucura e a doena para Foucault, e as instituies totais para Goffman, e passou a ser uma

    questo de ordem pragmtica, onde se joga a intencionalidade da aco, e tambm as

    consequncias inesperadas e no intencionais da aco. So de facto as prticas dos actores,

    sejam elas de pessoas com deficincia, de tcnicos de formao ou de responsveis pela tutela, o

    objecto do estudo aqui apresentado, prticas essas que se jogam dentro de um sistema de foras

    sociais, que os actores negoceiam como podem, e nunca do modo como gostariam de poder

    negociar.

    A relao com a tradio epistemolgica, que remonta a Foucault e a Goffman, faz-se em

    Carlos Veiga pelo lado das regras, elas que foram objecto de estudo em Wittgenstein, antes de o

    serem em Foucault, como bem acentuou Jacques Bouveresse. um facto, Carlos Veiga tambm

    faz uma genealogia e uma arqueologia do sistema de regras sobre a deficincia. Mas o que lhe

    importa mesmo a diacronia e a sincronia das prticas, a diacronia e a sincronia da aco nas

    organizaes de reabilitao profissional de pessoas com deficincia. Dos doze captulos que

    estruturam este trabalho, sete so sobre a aco, apenas quatro sobre regras e um de

    enquadramento terico. E talvez eu deva mesmo matizar esta afirmao. As regras convocam

    uma perspectiva paradigmtica e sincrnica, mas num ou noutro dos quatro captulos sobre

    regras, verificvel tambm uma dimenso genealgica. Refiro-me, por exemplo, ao captulo

    relativo s origens do sistema de regras sociais sobre a deficincia, assim como ao captulo

    sobre a complexa realidade da deficincia.

    De entre as grandes interrogaes que atravessam este estudo, penso que de destacar a

    persistente dvida que lanada sobre os limites da poltica de reabilitao das pessoas com

    deficincia. Com efeito, no sistema portugus de reabilitao, os factores de conservao e de

    reproduo da deficincia constituem-se como factores de sobrevivncia das prprias

    instituies. Ou seja, embora constituam consequncias inesperadas, e mesmo no desejadas,

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    pelos actores sociais, os factores de conservao so, nas instituies, bem mais manifestos que

    os factores de transformao.

    Este estudo, que analisa to minuciosamente o nosso sistema de reabilitao da deficincia,

    atravs das regras e das prticas das organizaes que concretizam a poltica de reabilitao

    profissional, no pode, pois, deixar de nos conduzir a uma interrogao to radical quo

    paradoxal: tem sentido falar da reabilitao profissional das pessoas com deficincia, quando o

    destino social que estas tm o de se perpetuarem em instituies de emprego protegido ou

    segregado?

    Moiss de Lemos Martins

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    NDICE Pg. INTRODUO

    1. mbito, objectivo e percurso da investigao 19 2. Algumas consideraes metodolgicas 24

    CAPTULO 1 - PROBLEMTICA E ENQUADRAMENTO TERICO

    1. Algumas consideraes prvias 30 2. Problematizao e enquadramento terico 33

    2.1. Deficincia e poltica de reabilitao 33 2.2. Do paradigma holista ao paradigma integrador 50 2.3. Lgicas de aco 58 2.4. Estrutura, aco e agncia 66 2.5. As regras, o habitus e o poder 73 2.6. Sistemas de regras e reproduo social 88 2.7. Prticas, interesses e contextos 93 CAPTULO 2 AS ORIGENS DO SISTEMA DE REGRAS SOCIAIS SOBRE

    A DEFICINCIA

    1. Introduo 105 2. Breve resenha histrico-social 107

    2.1. Dos primrdios s sociedades agrrias 107 2.2. Nas primeiras civilizaes agrrias 112 2.2.1 Na Mesopotmia 112 2.2.2 No Antigo Egipto e na Palestina 114 2.2.3 Na Grcia Antiga 115 2.2.4 Na Antiga Roma 119 2.3. Nas religies judaica e crist 122 2.4. No perodo feudal 125 2.5. Do Renascimento at ao final do sc. XIX 129 CAPTULO 3 O SISTEMA DE REGRAS SOCIAIS SOBRE A DEFICINCIA

    1. Introduo 136 2. As regras no modelo da sociedade actual 139 3. As regras na interaco social 143 4. As regras nas representaes sociais 151 5. O carcter relativo das regras 158 6. Registos complementares de identificao das regras 161

    CAPTULO 4 A COMPLEXA REALIDADE DA DEFICINCIA

    1. Introduo 164 2. Vocbulos prontos a usar 164 3. As classificaes da Organizao Mundial de Sade (OMS) 167 4. Discursos e realidade da deficincia 172 5. Unidade e diversidade da deficincia: uma realidade movedia 173 6. As definies, usos e abusos 178 7. O recenseamento da populao com deficincia 182

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    CAPTULO 5 ELEMENTOS DE SIGNIFICAO E LEGITIMAO DA

    ACO

    1. Introduo 185 2. Etapas da construo do campo 189 3. Os paradigmas tericos 202

    3.1. O paradigma mdico-funcional 202 3.2. O paradigma social 207 3.3. Os paradigmas emergentes 215

    4. A luta contra a excluso e pela integrao social 218 5. As contra-regras do campo 230 6. Uma apreciao crtica 240

    CAPTULO 6 ELEMENTOS DE DOMINAO NA ACO

    1. Introduo 246 2. Identificao dos elementos de dominao 249

    2.1. Na Constituio da Repblica Portuguesa 249 2.2. Na Lei n 9/89 - Lei de Bases da Reabilitao 251 2.3. No Dec-Lei n 247/89 - Lei Quadro da Reabilitao Profissional 253 2.4. Nos Regulamentos do Programa de Formao Profissional 258 2.4.1. Na participao das organizaes no Programa 262 2.4.2. No recrutamento de formandos pelas organizaes 267 2.4.3. No modelo das aces de formao 268 2.4.4. No controlo tcnico-pedaggico e financeiro 270 2.4.5. Na participao dos formandos 275 2.4.6. No apoio ao emprego 276 2.5. No Programa de Emprego Protegido 279 2.5.1. Apontamento prvio 279 2.5.2. Nas modalidades de emprego protegido em geral 280 2.5.3. Na modalidade de centros de emprego protegido 282 2.5.4. Na modalidade de enclaves 284

    CAPTULO 7 CARACTERSTICAS DAS ORGANIZAES ESTUDADAS

    1. Caractersticas gerais 286 2. Alguns indicadores dos proveitos-custos 293 3. Os recursos humanos 285 4. As pessoas com deficincia nas organizaes 301

    4.1. Caracterizao dos formandos (e dos trabalhadores com deficincia) 301 4.2. Atitudes e comportamentos desviantes 306

    5. Caracteristicas gerais dos principais tipos de deficincia 309 5.1. Da deficincia mental ligeira 309 5.2. Da deficincia fsica (motora) 310 5.3. Da deficincia auditiva 311 5.4. Da deficincia visual 311

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    CAPTULO 8 A ACO TRANSFORMADORA

    1. Introduo 313 2. Identificao e apresentao das prticas 315

    2.1. A suspenso do pagamento das bolsas de formao 315 2.2. O acompanhamento ps-contratao 318 2.3. A criao de enclaves nas prprias organizaes 319 2.4. O protocolo como instrumento regulador da contratao 320 2.5. A subestimao das receitas da formao 321

    3. A tomada de deciso 322 4. Os constrangimentos tomada de deciso e aco 339

    CAPTULO 9 AS RAZES DA ACO

    1. Introduo 361 2. Razes legitimadoras das prticas 367

    2.1. Da natureza da relao com as organizaes tutelares 367 2.2. Da esfera da interpretao dos normativos legais 383 2.3. Da esfera da integrao profissional e das relaes de trabalho 389 2.4. Do mbito do desempenho organizacional 402 2.5. Do comportamento das organizaes congneres 421

    CAPTULO 10 OS APOIOS DA ACO

    1. Introduo 424 2. Factores de ordem intra-organizacional 428

    2.1. Inovao, criatividade e autonomia 428 2.2. Competncia e capacidade profissional 432 2.3. Motivao e a satisfao 448 2.4. Prestgio e confiana nos agentes da liderana 461

    3. Factores de ordem extra-organizacional 467 3.1. Caractersticas das regras legais e regulamentares 467 3.2. Prestgio externo dos agentes da liderana e redes sociais 475

    CAPTULO 11 O CONTEXTO DA ACO

    1. Introduo 485 2. Prticas, lgicas, estratgias e consequncias associadas s prticas 493

    2.1. Da fragilidade econmica suspenso do pagamento das bolsas de formao 493

    2.2. Da admisso dos formandos ao protocolo 504 2.3. Da formao em posto de trabalho ao acompanhamento ps-contratao 519 2.4. Da formao-produo subestimao das receitas da formao e criao

    de enclaves nas prprias organizaes

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    CAPTULO 12 A REPRODUO SOCIAL NA ACO

    1. Introduo 542 2. Os contributos das prticas para a reproduo do sistema de regras sociais sobre

    a deficincia

    550 2.1. Da prtica da suspenso do pagamento das bolsas de formao 550 2.2. Das prticas de acompanhamento ps-contratao, criao de enclaves nas

    prprias organizaes e protocolo

    560 2.3 Da prtica da subestimao das receitas da formao 577

    CONCLUSO

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    BIBLIOGRAFIA 591

    ANEXO - Legislao da Reabilitao Profissional 620

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    Introduo

    1. mbito, objectivo e percurso da investigao

    A investigao que levou at este trabalho desenvolveu-se no contexto de uma realidade social altamente complexa, que como se caracteriza o campo da reabilitao profissional das pessoas com deficincia, a qual importa conhecer e divulgar socialmente. Este campo um sub-campo do campo mais vasto da reabilitao e integrao social das pessoas com deficincia, o qual constitudo por outros sub-campos (educativo, ocupacional, dos lazeres, etc.) e pode ser entendido como um sistema social que possui uma estrutura prpria, ou seja regras (normas formais e informais) e recursos (de todos os tipos) que esto envolvidos na sua (re)produo. Essas suas propriedades estruturais promovem a integrao social dos agentes individuais e a integrao sistmica dos vrios tipos de agentes individuais e colectivos (estado/organizaes de tutela, organizaes e profissionais de reabilitao, pessoas com deficincia, famlias, empregadores, etc.) que nele agem e que esto unidos numa rede de relaes objectivas entre as posies que ocupam. Todos esses agentes possuem diferentes nveis de interesse e pertena ao campo e so possuidores de capitais sociais, cuja posse lhes confere uma determinada posio relativamente aos outros. Aparte as regras sociais que definem a condio social da deficincia e as relaes entre as pessoas com deficincia e as restantes pessoas, as principais regras que estruturam o campo so as normas legais e regulamentares produzidas por via legislativa (leis, decretos-lei, portarias, despachos e regulamentos) que determinam parte substancial das relaes objectivas entre os actores, definem as suas posies sociais e o seu acesso aos recursos (ou sua renovao), impondo, ou sugerindo, as prticas que devem decorrer da e na interaco. Essas regras e recursos so a matriz onde se inscreve a poltica de reabilitao profissional (e a sua prtica), enquanto instrumento usado para realizar objectivos de combate excluso e de promoo da integrao social, prprios do Estado Social de Direito ou Estado-providncia, e que se encontra ancorada em princpios normativos, axiolgicos e ideolgicos, possuindo uma histria prpria que se foi escrevendo ao longo do sculo XX. neste enquadramento que propomos inscrever o principal objectivo deste trabalho, que o de estudar algumas das prticas transformadoras da poltica de reabilitao profissional das pessoas com deficincia (formao profissional e emprego) desencadeadas pela aco prtica dos agentes das organizaes que participam na

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    realizao dos objectivos dessa poltica. Portanto, so as organizaes de reabilitao profissional (os centros de formao profissional e as unidades de emprego protegido), ou melhor, as prticas dos actores sociais que nelas participam, enquanto agentes organizacionais, o centro ou o focal a partir do qual vamos tentar compreender e explicar a sua aco transformadora, com recurso a conceitos tericos e a mtodos e tcnicas prprios da sociologia1. Entendemos que a diversidade da aco dos actores impe uma viso sistmica da realidade, que deve observar-se com recurso aos paradigmas da complexidade e da interaco aco-estrutura, no pressuposto que necessria para a apreenso, compreenso e explicao das prticas, uma abordagem que contemple tanto as interaces entre os agentes das organizaes de reabilitao profissional (intra-organizacionais), como as interaces entre estes e os outros agentes organizacionais do campo, nomeadamente entre agentes de diferentes organizaes de reabilitao, agentes do Estado e com as pessoas com deficincia que demandam as organizaes (formandos ou trabalhadores e suas famlias) onde se realizam as prticas de transformao da poltica de reabilitao profissional que (re)estruturam o campo e (re)produzem o sistema social. Este objectivo ser problematizado recorrendo a um conjunto terico e conceptual capaz de fornecer algumas pistas slidas para responder com interesse social e cientfico a interrogaes muito diversas, designadamente as seguintes: i) ser que os agentes organizacionais tm em mente alcanar um outro modelo de poltica de reabilitao profissional para substituir o vigente, i.e., as transformaes operadas pelas prticas tm um alcance estratgico? ii) a que lgicas de aco, princpios, valores, interesses, motivaes sociais obedecem essas prticas? iii) que processos de legitimao e de justificao da aco so levados a cabo e qual a forma e o grau de envolvimento dos diversos agentes nesses processos? iv) como e por que razes podem os agentes das organizaes de reabilitao profissional das pessoas com deficincia realizar prticas que contribuem para reproduzir elementos das estruturas sociais, quando as mesmas esto em contradio com princpios, finalidades e objectivos das organizaes e do prprio campo de que fazem parte? Assim, ao longo das trs partes em que se poder subdividir este trabalho - identificao, aco e reproduo do sistema de regras sociais sobre a deficincia - e dos vrios captulos que o constituem procuramos mostrar que as prticas transformadoras da poltica, mas reprodutoras das estruturas sociais, ocorrem num contexto triplamente 1Note-se que no nossa inteno, neste estudo, analisar ou discutir os fundamentos da poltica de reabilitao profissional das pessoas com deficincia nem o seu modelo de aplicao, nem mesmo discutir algumas teses sobre poltica social. A este propsito vejam-se, por exemplo, Carreira (1996), Rodrigues (1999) e Santos (1992).

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    dimensionado (temporalmente, espacialmente e paradigmaticamente) e tm razes na histria que importa descrever, caracterizar e analisar. Tambm, procuraremos mostrar como a aco dos agentes organizacionais (a agncia), que se exerce de modo contnuo, interactivo e dialctico, obedece a motivaes especficas e dotada de intencionalidade (visa objectivos determinados) e de racionalidade estratgica, ainda que limitada, os obriga a mobilizarem vrios tipos de capitais sociais (culturais, simblicos, polticos, etc.) sob a forma de conhecimentos, sentimentos, experincias, influncias, legitimidades, ideologias, crenas, valores, recursos materiais, etc. Igualmente, procuraremos mostrar como, na sua gnese e no seu desenvolvimento, essas prticas so consideradas pelos agentes como justas e justificadas, tanto por razes morais e altrustas, como por razes egostas e utilitaristas, ainda que sirvam para a reproduo do sistema de regras sociais (sobretudo de tipo negativo) sobre a deficincia, talvez devido ao facto de incorporarem uma lgica objectiva de adaptao e sobrevivncia organizacional. Procuramos mostrar, ainda, que as tomadas de deciso para a realizao das prticas so, em regra, influenciadas por condies desconhecidas (ou mal conhecidas) da aco que tanto podem produzir efeitos esperados (que obedecem a uma estratgia ou uma finalidade), como produzir consequncias no intencionais (que decorrem do fluxo no controlado nem controlvel da prpria aco). Alm disso, procuramos mostrar que as tomadas de deciso tambm obedecem a um habitus e a outros factores de agncia social que so revelados pela conscincia discursiva dos actores (pelo que exprimem acerca da aco) e pela sua conscincia prtica (pelo carcter rotineiro da sua aco). Subsistem, todavia algumas dificuldades na realizao deste trabalho. No essencial, derivam da tremenda complexidade que constitui a edificao de uma abordagem sociolgica que entra pelo mundo social da deficincia. Trata-se de uma tarefa que est rodeada de dificuldades de vria ordem, devido no apenas s caractersticas prprias desse mundo, mas tambm s especificidades da argumentao e do raciocnio sociolgico. Essas dificuldades ainda crescem mais quando a uma das caractersticas do mundo social da deficincia, a sua multidimensionalidade, acresce a multidimensionalidade que prpria do mundo scio-organizacional onde se inscreveu empiricamente esta investigao. Ao que nos parece aceite actualmente, de modo pacfico pelos cientistas sociais, que as relaes sociais que ligam as mltiplas dimenses do social no so transparentes, unvocas e permanentes. Pelo contrrio, acreditamos que as relaes sociais esto em constante alterao, podem ser transparentes e tornarem-se opacas, modificarem-se, mudarem de sentido.

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    Por isso, temos conscincia de que apenas conseguimos ter em considerao, de forma mais ou menos aprofundada, algumas variveis dessas dimenses. Provavelmente no iremos muito para alm das mais simples, das mais evidentes ou elementares, pelo que muitas outras, igualmente vlidas para usar no processo de investigao, iro ficar por considerar. Confrontado com esta multidimensionalidade e com o carcter condicionado da relao social resta-nos, enquanto socilogo, tentar no nos satisfazermos com um nico olhar sobre a realidade investigada. Ao intentarmos analisar, em um nico estudo, a produo, a aco e a reproduo estrutural do social, tendo em conta as dimenses espaciais e temporais dos acontecimentos, sabemos que nos propomos levar a cabo uma tarefa rdua e deveras complicada. Antecipamos que o peso dessa complexa realidade, sobretudo o peso da realidade do mundo especfico da deficincia contm implicaes analticas que vo muito para alm da anlise das condies sociais da sua produo e das relaes sociais que se estabelecem em redor da problemtica social da deficincia e das pessoas com deficincia na sociedade. que existe todo um outro mundo, fisiolgico, psicolgico, tcnico e cientfico que, em boa parte, nos escapa e cujas implicaes no mundo social so pouco conhecidas. Talvez por isso, partimos para este trabalho com a desconfortvel sensao, com a dvida, que nos acompanhou at sua finalizao, de saber at que ponto sero ou no bem sucedidos os caminhos seguidos para responder s questes que se forem colocando ao longo da anlise. Na realidade, sentimo-nos obrigados a deixar algumas das nossas interrogaes iniciais em aberto, sobretudo pelo facto de a anlise desta realidade nos remeter, essencialmente, para um mundo simblico, formado pelas ideologias e pelas representaes dos actores sociais com quem lidamos. Por isso, ficaro certamente, pelo menos, duas grandes dvidas. A primeira, a de saber, at que ponto, como e quanto os aspectos fisiolgicos, psicolgicos, orgnicos influenciam na construo desse mundo simblico e na construo social da realidade social que o envolve. A segunda, a de saber at que ponto a incessante estruturao discursiva, que permite exprimir as ideologias e as representaes dos actores sobre esse mundo, influenciada por factores no sociais. Ora, tambm sabemos que as representaes dos actores sob a forma de discurso so polissintticas, pois no isolam os elementos mas os apresentam sob a forma de uma totalidade indiferenciada. As representaes sociais apresentam a realidade como uma globalidade que, em rigor, no divisvel e camuflam-na, amide, sob o uso das regras da lgica formal. Nem sempre as causas e os efeitos so distinguveis e, por vezes, nem sequer se deixam determinar. O prprio discurso dos actores sociais com quem lidamos

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    muito marcado pelo acho que, pelo devo, pelo posso e pelo quero, na atribuio dessas relaes causais, o que obriga a um esforo acrescido do investigador para superar essa (i)logicidade e fazer realar as coerncias que do sentido e estrutura sua aco enquanto agentes sociais. Se uma trivialidade afirmar que a dimenso simblica do mundo social se exprime na linguagem, no deixa de ser necessrio relembrar que o mais importante recurso que o socilogo tem para objectivar o mundo social a anlise dos discursos, das palavras ditas e escritas pelos actores sociais. verdade que tambm se pode recorrer ao uso de dados estatsticos, os quais, como sabemos, sendo organizados por outros, noutros contextos e por outras razes, quase nunca, ou nem sempre, cientficas, transportam em si mltiplas conotaes. Esse reconhecimento justifica a diversidade metodolgica adoptada nesta investigao e, ao mesmo tempo, revela as limitaes das regularidades que assim forem obtidas. Tambm procuramos, na medida do possvel, entrar nos termos e nas lgicas prprias de linguagens to dspares como a jurdica, a mdica, a educativa e formativa, a psicolgica e a administrativa, a da deficincia e a da reabilitao. H a referir que existe neste trabalho uma dimenso onde se ligam todas as outras dimenses da realidade social observada. Trata-se da dimenso organizacional, palco das tomadas de deciso, das lutas, das relaes de poder, que os actores tambm exprimem, em boa parte, atravs da linguagem, i.e., da sua conscincia discursiva. Se a sua apreenso depende da argcia e da capacidade de observao e registo do investigador, tambm depende da riqueza dos testemunhos dos actores envolvidos, nomeadamente se estes deixam transparecer, ou no, a sua conscincia prtica. Tais testemunhos transportam consigo os interesses das posies sociais dos agentes e dos grupos de que fazem parte, dos lugares sociais que ocupam e das relaes de fora que estruturam os seus espaos sociais. Da, ser muito pouco provvel que os discursos dos actores interrogados sobre as suas prticas possam trazer tona os efeitos estruturais que, por norma, se encontram fora do alcance dos prprios que os produzem. Isso tambm torna difcil determinar at onde se estende a influncia das ideologias, das relaes de poder entre as posies dos actores, dos lugares que ocupam e das representaes do mundo social que criam, das suas vises do mundo e dos seus posicionamentos subjectivos perante as coisas que nele ocorrem. No fundo, esses factores dificultam a obteno de um resposta inequvoca s questes que colocmos no incio deste estudo, a saber: Ser que as prticas dos agentes das organizaes de reabilitao profissional das pessoas com deficincia, transformadoras da respectiva poltica, reproduzem as prprias regras do sistema de regras sociais sobre a deficincia? O que que promove e sustenta, de facto, as prticas

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    identificadas e analisadas? Em que medida contribuem tais prticas para a reproduo das regras do sistema de regras sociais sobre a deficincia? Sero o resultado de uma luta subterrnea entre a normalidade e a diferena? Sero um processo da afirmao da coexistncia social de regras e valores sociais contraditrios? Sero parte integrante de um jogo de interesses pessoais e organizacionais de adaptao e sobrevivncia? Enfim, mesmo com base numa viso sistmica e complexa das prticas sociais e das suas consequncias, no estamos certos de responder cabalmente a estas interrogaes. O que sabemos que um estudo sociolgico que se inscreva no mbito da deficincia e da reabilitao das pessoas com deficincia no pode ser um apenas um estudo sociolgico em sentido restrito. No pode ser apenas um estudo que, pleno de objectividade, se baseie numa relao fria e distante da dureza da realidade onde se inscreve. Procuramos que este tambm no o seja, tentando evitar cair na armadilha de uma viso paternalista da deficincia, que o mesmo que ficar aprisionado nas malhas do sistema de regras sobre a deficincia, adoptando uma postura que, sendo de apoio causa da deficincia, procura no perder a clarividncia terica e o rigor metodolgico exigveis. 2. Algumas consideraes metodolgicas Este trabalho no pretende inscrever-se na metodologia dos estudos de caso, que tradicionalmente usada nos estudos centrados nas organizaes complexas. A perspectiva que aqui se adopta poder designar-se como um estudo a partir de casos, dado englobar no mesmo estudo um conjunto restrito de casos similares, ou seja, de organizaes estruturalmente semelhantes. Com efeito, a semelhana estrutural das organizaes estudadas bastante elevada devido ao facto de possurem a mesma estrutura profissional e organizacional, o mesmo objecto de interveno e os mesmos objectivos declarados. A amostra das organizaes para estudar foi seleccionada de forma intencional e a sua dimenso reduzida a uma dezena de centros de reabilitao profissional com base em alguns factores essenciais: - Disponibilidade manifestada pelos seus dirigentes para acolher o investigador e autorizar a recolha de informao; - Capacidade do investigador, em tempo e meios financeiros, para se deslocar aos locais e permanecer em cada um por um perodo de tempo que rondou as duas semanas; - A experincia do investigador e os resultados de algumas anlises prvias que aconselharam a escolha de determinados centros como locais privilegiados para a

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    realizao do trabalho de campo, nomeadamente: i) a sua localizao geogrfica, de modo a abranger todas as regies do Continente; ii) a sua posio no campo da reabilitao profissional ser, em termos de estdio de desenvolvimento organizacional e de prestgio social das suas lideranas, to semelhante quanto possvel, para evitar disparidades na integrao analtica dos vrios casos considerados e reduzir as dificuldades da comparao que resultariam da introduo de muitos elementos de anlise bastante diferenciados entre si.

    Se, do ponto de vista temporal, reunimos algumas informaes que remontam ao

    passado mais remoto da histria da humanidade, a pesquisa emprica centrou-se,

    essencialmente, no perodo compreendido entre os anos de 1990 e 2000. No que respeita

    ao trabalho de campo em termos de observao e recolha de informao nas

    organizaes, o mesmo decorreu entre o final do ano de 1998 e o incio do ano 2000.

    Assim, numa primeira fase levmos a cabo um estudo exploratrio numa das

    organizaes seleccionadas, onde procedemos a recolha de informao variada e

    consultmos uma vasta documentao, sobretudo de carcter legislativo. Realizmos,

    ainda, vrias entrevistas, informais e formais de tipo semi-directivo, a diversos

    dirigentes e profissionais dessas organizaes, a profissionais ligados s organizaes

    da tutela estatal e a membros da Federao Nacional dos Centros de Reabilitao

    Profissional (FORMEM), a maioria delas gravadas, transcritas e analisadas no seu

    contedo.

    Numa segunda fase, permanecemos cerca de duas semanas em cada uma das

    restantes organizaes da amostra onde, para alm da observao directa no

    participante da vida diria, das respectivas actividades, e das muitas conversas

    informais com profissionais e utentes, efectumos cinquenta e duas entrevistas, algumas

    semi-directivas aprofundadas a informantes privilegiados, directores e coordenadores e

    outras mais directivas e no aprofundadas a amostras dos restantes profissionais, todas

    elas gravadas, transcritas e analisadas no seu contedo2. Levmos tambm a efeito

    durante a nossa permanncia uma extensa anlise de documentos projectivos,

    performativos e produzidos pela prpria aco dos agentes organizacionais que incluiu,

    entre outros, quando existiam e nos foi facultado o seu acesso: boletins informativos,

    2No obtivemos recusas para entrevistas, apenas alguns adiamentos que nos dificultaram o cumprimento da cronologia estabelecida e tida como aceitvel numa investigao do gnero. Todas constituram momentos agradveis, tanto para o entrevistador, como para os entrevistados. A durao das mesmas variou entre cerca de 3 horas (no caso das efectuadas a testemunhas privilegiadas, semi-directivas e muito aprofundadas e extensas,) e cerca de 15 minutos (no caso das testemunhas "vulgares", directivas, mas mais ligeiras e intensas). Foram sempre realizadas em privado nos locais de trabalho dos actores entrevistados e gravadas. Naturalmente os guies variaram consoante os objectivos considerados.

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    actas das reunies das equipas tcnicas e das direces das organizaes, dossiers de

    candidatura, oramentos e contas, relatrios e planos de actividades e projectos vrios,

    dos quais efectumos um extenso trabalho de anlise estritamente qualitativa. Procurmos, tambm fundir as metodologias de anlise qualitativa com a metodologia quantitativa. Com inteno de reforar a primeira, aplicmos dois inquritos por questionrio abertos a todos os membros organizacionais. A taxa de respostas foi muito elevada, pois 162 dos inquiridos responderam (93%)3. O seu tratamento foi efectuado automaticamente com recurso a um programa informtico de anlise estatstica -Statistica V7. Como era preciso identificar as lgicas de aco dos agentes organizacionais, encontrar os pontos de consenso e de divergncia quanto forma de realizao das prticas e compreender, ao mesmo tempo, os contextos e os sentidos dessa aco, ao longo do percurso da investigao, tambm participmos em vrios seminrios e outras reunies, apresentando algumas comunicaes prprias, onde tivemos oportunidade de dialogar com especialistas nacionais e internacionais nesta rea. Efectumos, ainda, algumas visitas complementares posteriores e fomos mantendo um amplo e variado leque de contactos com os actores envolvidos nesta investigao. Isso tem-nos permitido manter um relacionamento bastante prximo e frutuoso. Estamos certos de que a nossa presena como investigador, no apenas tolerada, tambm desejada, dado que fomos, e continuamos a ser, convidados e incentivados a dar os nossos contributos para uma compreenso mais profunda da realidade. Ao longo do percurso foram vrios os problemas metodolgicos que se nos colocaram pelo facto de investigarmos as prticas dos agentes. A sua resoluo mostrou-se uma tarefa rdua, complexa e sem fim vista. Desde logo, por as prticas se

    3Quando se projecta um trabalho de investigao, e nesse projecto se inclui a realizao de inquritos por questionrio para obter informao, preciso antecipar os eventuais tipos de anlises de dados que vo ser efectuados, de modo a responder aos objectivos que promoveram a sua realizao. Todavia, o investigador no pode ignorar que a aplicao de algumas das tcnicas estatsticas, em especial as tcnicas de anlise multivariada, apenas se pode levar a efeito quando se dispe de um nmero elevado de casos na amostra considerada, de modo a evitar erros de predio e a conferir poder preditivo aos modelos construdos. Alm disso, a realizao de anlises multivariadas tambm exige uma certa proporcionalidade entre o nmero de casos e o nmero das variveis estudadas, por exemplo, realizar uma anlise de regresso mltipla implica que o nmero de casos seja pelo menos vinte vezes superior ao nmero de variveis independentes para que o modelo possa ser tido como significativo do ponto de vista estatstico. As prprias anlises bivariadas tambm exigem um nmero elevado de casos, sobretudo quando as variveis em causa contm um nmero elevado de categorias especficas. No nosso caso o nmero de casos insuficiente para realizar anlises deste tipo. Foram realizados, em mdia, 17 inquritos por organizao. Muitas categorias profissionais so representadas em cada organizao por 1, 2 ou 3 casos no mximo. Isso impossibilitou que pudssemos realizar a anlise estatstica dos dados de forma mais complexa.

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    desenrolarem num tempo especfico irreversvel que destri a sincronizao e obriga a ignorar o tempo da sua realizao. Depois, pelo facto dos actores entrevistados estarem no fogo do jogo, que a prpria realizao das prticas, decidindo em funo das urgncias e por meio de uma apreciao global e instantnea da (re)aco dos adversrios, dos parceiros e do futuro potencial da deciso tomada, muitas vezes em condies que no possibilitam parar para pensar, para pr distncia ou para recuar. No sabemos at onde chegaram os efeitos do factor de incerteza perante o futuro, bem manifesto, de um modo transversal ao conjunto das organizaes estudadas, quando realizmos o trabalho de campo. Esse factor decorria da convico instalada entre os agentes das organizaes de que estaria a esgotar-se o tempo dos co-financiamentos da Unio Europeia (UE) formao profissional que vinham sendo realizados no mbito do Fundo Social Europeu (FSE). Corria a ideia de que esse facto levaria ao encerramento de muitas organizaes. Essa crena provocava ainda maior temor devido ao desconhecimento de como o Estado portugus procederia reorganizao poltica do campo da reabilitao profissional, considerado excessivamente povoado de organizaes promotoras de formao profissional e ao desconhecimento de qual seria a organizao da tutela estatal que iria fazer a gesto do respectivo Programa de Formao Profissional. De certo modo, durante esse perodo, ameaava instalar-se uma crise no campo com o alarme a soar com a no aprovao de algumas candidaturas de continuidade das aces de formao iniciadas em anos anteriores. Esse acontecimento provocou indignao e revolta nas organizaes que viram as candidaturas rejeitadas e muita apreenso nas restantes, originando um debate especulativo sobre as consequncias da transio para o Quadro Comunitrio de Apoio III. Perante este cenrio esformo-nos para ficar fora do jogo e observar com toda a neutralidade, procurando fazer diluir as urgncias e as ameaas do mundo real dos actores. No fundo, procurmos estar alerta para no sermos induzidos em erro pelos pontos de vista das testemunhas, que so actores mais do que observadores. Procurmos reconhecer prtica uma lgica que no a da lgica formal (Bourdieu, 1972). Muito embora nos tenhamos esforado por separar o real do representado, sabamos que o sentido prtico dos agentes impediria a revelao correcta do seu modus operandi, dado que a matriz prtica s aparece na aco, na sua relao com o contexto e com a situao, e no nos seus discursos. Para isso propusemos aos nossos entrevistados que fizessem um esforo de objectivao, de modo a sarem da sua linguagem esteriotipada, dos seus enunciados correntes, oficiais e oficiosos, sobre as suas actividades e sobre as suas motivaes, de forma a reflectirem de modo prtico sobre as suas aces prticas. Claro que no existe

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    forma metodolgica perfeita de escapar s interpretaes e s argumentaes que os actores engendram para relatarem e explicarem as suas prprias aces. Nesse encontro inevitvel com a sociologia dos actores sentimos que no foi possvel escapar totalmente fora interpretativa e ideolgica que os actores usam na apreciao das suas escolhas, das suas decises, das suas motivaes e das razes da sua aco. Alm disso, como o conhecimento pragmtico dos factos sociais, sendo propriedade dos actores, exterior ao investigador que no participou na sua realizao, restou-nos o recurso confiana dupla que deve caracterizar o encontro entre o saber pragmtico dos actores e o saber terico e distanciado do investigador, procurando articul-los da melhor forma possvel. Pensamos que isso foi, pelo menos parcialmente, conseguido, devido elevada qualidade intelectual e capacidade tcnico-cientifica da maioria dos nossos entrevistados privilegiados. Porm, no estamos certos de que a nossa experincia, conhecimento e domnio sobre a situao social da entrevista tenha sido suficiente para eliminar erros de observao e de avaliao. Recordemos que, tal como fizemos, se uma investigao sociolgica ou antropolgica exige a permanncia do investigador no terreno, ainda que temporria, isso equivale a entrar no mundo de seres que nos interpelam e influenciam, actores que esto vivos que agem e pensam de acordo com as suas regras e as suas rotinas de vida. Como a nossa permanncia decorreu em organizaes formais onde essas regras e rotinas so ainda mais actuantes, por vezes sentimo-nos perdidos e a permanncia ameaou tornar-se uma autntica aventura sem fim conhecido. Como sublinha Nicole Diederich (1997: 219-222) o investigador social no deixa de ser um corpo estranho que pode sofrer uma presso de fora tipo centrfuga que o empurra para fora sem obter nada de concreto. Porm, no nosso caso, apesar de algumas dificuldades, julgamos que tal movimento no aconteceu. A nossa permanncia em algumas destas organizaes, embora de forma menos prolongada no tempo, j tinha acontecido ao longo dos vrios anos que dedicamos a este campo de investigao. Felizmente, estamos relativamente seguros que o nosso capital de confiana e a nossa relao de amizade com muitos dos agentes das organizaes estudadas no nos deixou capturar pela aco de foras centrpetas, de modo a enredarmo-nos nas sempre complexas teias das relaes interpessoais e dos conflitos internos. A verdade que ficmos na posse de inmeras informaes confidenciais que no podemos revelar neste estudo, pelo menos de forma explcita, por representarem um compromisso tico e deontolgico. Ainda assim, estamos conscientes de que os resultados desta investigao tero, ou podero ter, algumas implicaes tanto nas organizaes estudadas como no prprio campo da reabilitao profissional das pessoas com deficincia face ao que o

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    texto revela, s suas deficincias expositivas e s eventuais interpretaes que dele decorrerem. Isso poder tornar-se desagradvel para os agentes das organizaes estudadas, pois as suas prticas, passadas e actuais, so aqui submetidas ao crivo da anlise e expostas publicamente. Por essas razes omitimos as identidades das organizaes estudadas e dos actores que colaboraram na realizao deste trabalho. No garantimos, contudo, que o sigilo seja absolutamente conseguido. O nosso conhecimento e a nossa experincia permitem-nos saber que neste campo social todos conhecem todos, que as notcias circulam com rapidez e chegam a todo o lado, de tal modo que ficamos na dvida sobre se o sigilo a que nos comprometemos no se mostrar mais imprudente que a prpria divulgao das identidades.

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    Captulo 1 Problemtica e enquadramento terico

    1. Algumas consideraes prvias

    Por exigir um duplo esforo de realizao a elaborao de uma problemtica , seguramente, a fase mais difcil e exigente de um processo de investigao social. Por um lado, exige um esforo inicial para encontrar os caminhos adequados para responder com eficcia s questes iniciais do problema de investigao e justificar a pertinncia social e cientfica da sua transposio para um processo de investigao. Por outro lado, obriga a um esforo subsequente na elaborao do texto argumentativo, para justificar a passagem desse problema a tema, decidir sobre a validade das informaes disponveis que foram recolhidas e elaborar as necessrias reflexes tericas de enquadramento, de modo sistemtico, preciso e coerente. suposto, no plano terico, que a apresentao formal de uma problemtica deva preceder o modelo de anlise e a discusso dos resultados atingidos. Todavia, trata-se de uma artificialidade, pois a anlise dos resultados tambm vai (re)definindo a problemtica e (re)elaborando o modelo de anlise. Problematizar e modelar no uma tarefa linear, nem de fcil realizao. De facto, em termos prticos essas duas etapas no obedecem cronologia terica das etapas sucessivas e bem delimitadas. Pelo contrrio, trata-se de um processo sinuoso feito de recuos e avanos mais ou menos intensos e frequentes, tanto no que concerne s opes tericas como recolha e ao uso do prprio material emprico. Assim sendo, definir uma problemtica e desenhar os limites do procedente modelo terico de enquadramento da anlise so etapas complexas da investigao sociolgica que, melhor do que ningum, Bourdieu, Chamboredon e Passeron em Le metier de sociologue (1980) mostram de forma exemplar. Esses autores demonstram como as operaes de ruptura com as evidncias e as representaes do senso comum e a construo do modelo de anlise, que deveriam preceder a recolha de dados empricos, acabam por renascer sucessivas vezes ao longo do processo de investigao. Isso acontece na medida em que a construo de um objecto sociolgico oscila, como um pndulo, entre os factos observados, as hipteses explcitas ou implcitas, sempre sujeitas a serem abandonadas, modificadas, corrigidas medida que os trabalhos de construo da investigao progridem. Naturalmente, tambm este trabalho no fugiu a esta regra. A tal ponto, essas etapas e operaes se foram constantemente (re)criando e misturando, que se tornaria um processo pessoalmente doloroso tentar desfazer esse ndulo e recriar a posteriori, at

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    que ponto a sua construo se afastou da lgica subjacente aos passos ou etapas do processo de investigao social teoricamente recomendados pelos cnones metodolgicos classicamente consagrados. Alm do mais, seria absolutamente fastidioso descrever passo a passo todo o percurso que conduziu ao produto final que neste texto ser apresentado. Se algo no se pode evitar, quando se intenta iniciar uma qualquer investigao sobre o social na esfera da cincia sociolgica, a apresentao das razes que presidem s escolhas tericas a adoptar para responder com eficcia ao problema de investigao. Essas escolhas so uma deciso delicada, complexa, de certa forma impossvel de realizar com total sucesso, por serem tantos e to dspares os paradigmas tericos que servem o conhecimento sociolgico. Pessoalmente, por uma questo de relativismo cientfico e de bom senso, pensamos que em todas as teorias sociolgicas disponveis se podem encontrar elementos teis para orientarem uma investigao sociolgica, ou melhor, para ajudarem a enquadrar, descrever, analisar e expor os resultados da pesquisa emprica. De uma maneira ou de outra, todas as teorias disponveis podem ajudar a compreender e explicar os fenmenos sociais observados4. Porm, j se nos afigura bem mais arriscado cometer a um nico paradigma capacidades suficientes para explicar todo e qualquer fenmeno social ou mesmo um nico fenmeno social em todas as suas vertentes. Na verdade, a nossa, ainda que limitada experincia e a nossa intuio dizem-nos que per si as teorias sociolgicas conhecidas so fundamentalmente teis para anlises restritas e parciais dos factos ou fenmenos sociais. Sobre esse ponto, assumimos que todas as teorias sociolgicas, sem excepo, tm de ser relativizadas ao espao e ao tempo da sua produo ou, se quisermos, aos contextos sociais especficos onde viveram ou vivem os autores que as criaram ou que as vo (re)criando.

    4Considerando que, "A explicao encontra o seu campo paradigmtico de aplicao nas cincias naturais. Quando h factos externos a observar, hipteses a submeter verificao emprica, leis gerais para cobrir tais factos, teorias para conter as leis num todo sistemtico, e a subordinao de generalizaes empricas a procedimentos hipottico-dedutivos, ento, podemos dizer que "explicamos". O correlato apropriado da explicao a natureza entendida como o horizonte comum de factos, leis e teorias, hipteses, verificaes e dedues. Em contraste, a compreenso acha que o seu campo originrio est nas cincias humanas, onde a cincia tem a ver com a experincia de outros sujeitos e outras mentes semelhantes s nossas. Funda-se no carcter significativo de formas de expresso como signos fisionmicos, gestuais, sociais ou escritos em documentos e monumentos que partilham com a escrita o carcter geral de inscrio. Os tipos imediatos de expresso so significativos porque se referem directamente experincia das outras mentes que eles veiculam. As outras fontes menos directas como signos escritos no so em si significativos, excepto que nos transmitem as experincias das outras mentes indirectamente, e no de modo directo. A necessidade de interpretar tais signos deriva precisamente do modo indirecto como eles nos transmitem tais experincias" (Ricoeur, 1996: 84).

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    Queremos afirmar com isso que devido s suas caractersticas as teorias existentes encontram-se limitadas na sua capacidade para fornecerem compreenso e explicao plena para a maioria dos fenmenos sociais, tambm eles prisioneiros da intercepo do espao e do tempo em que ocorrem e da dialctica entre a aco e a estrutura, como acontece com o fenmeno social que objecto desta investigao. Ao contrrio do que possa transparecer da leitura do pargrafo anterior, essas caractersticas de diversidade e relatividade das teorias sociolgicas constitui uma riqueza cientfica mais do que um problema. por isso que se prestam a servir, exemplarmente, como pontos de apoio reflexo sobre a realidade e nos fornecem ensinamentos assinalveis que ajudam a obter a linguagem, a imaginao e o esprito sociolgico. Para ultrapassar as dificuldades analticas optamos, sempre que possvel, por recorrer ao longo dos vrios captulos a argumentos tericos de diversas teorias sociolgicas, embora a orientao paradigmtica e a argumentao terica central provenham do recurso a conceitos da teorias sociolgicas da sntese actor-sistema, como so os casos da teoria da estruturao de Giddens e do estruturalismo gentico de Bourdieu com as suas teorias do habitus e dos campos, integrando elementos de outras teorias da aco, da complexidade e dos sistemas de regras sociais. Somos da opinio que recorrendo a uma abordagem terica multifacetada, extraindo da diversidade das teorias o que nos pode auxiliar na anlise da realidade, ser possvel responder com eficcia extraordinria complexidade do fenmeno estudado. Complexidade que nos importa sobremaneira mostrar e realar ao longo de todo o texto. nossa inteno, em termos de anlise, unir os dois nveis tradicionais da anlise sociolgica: o micro e o macro. O micro quando focamos o interior das organizaes e as relaes entre os seus agentes e destes com o seu ambiente especfico e o macro quando nos debruamos sobre as relaes entre as organizaes e o Estado e entre as pessoas com e sem deficincia, fazendo a ponte entre os dois nveis e as suas unidades de observao. No caso da micro-anlise as unidades de observao so as prticas dos agentes e as relaes entre os agentes individuais e colectivos que participam na esfera ntima das organizaes estudadas. No caso da macro-anlise as unidades de observao so as relaes entre a sociedade e o Estado e entre as diversas categorias de actores sociais, mesmo considerando que essas relaes so consubstanciadas por pessoas concretas ocupando posies sociais concretas, como o caso da relao entre os agentes das organizaes estudadas e os agentes das organizaes estatais que tutelam o campo da

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    reabilitao profissional das pessoas com deficincia e entre as prprias pessoas com e sem deficincia (ditas normais). 2. Problematizao e enquadramento terico 2.1. Deficincia e poltica de reabilitao Convm desde j esclarecer que no objectivo deste estudo traar a histria da deficincia, das incapacidades ou das desvantagens, ou mesmo em sentido lato dos fenmenos de marginalizao e de desvio ou, ainda, das medidas e solues encontradas pelos grupos sociais para atenuar os efeitos individuais e sociais desses problemas sociais. A essas problemticas vrios autores e investigadores, em particular nos ltimos 30 anos, tm dedicado e consagrado alguns dos seus trabalhos. Sob os mais diversos ngulos de anlise tm tentado analisar e explicar, de modo directo ou indirecto e de acordo com as suas preocupaes, os diversos problemas e factores provocados pela existncia da diferena e de pessoas diferentes nas sociedades humanas. Destacam-se, entre muitos outros, os trabalhos produzidos por Foucault (1961), Canguilhem (1962), Perron (1969), Morin (1973), Levi-Strauss (1974), Labregre (1981) Girard (1981), Swain (1982), Stiker (1982), Enriquez (1983), Scheerenberger (1984), Bardeau (1985), Goffman (1988), Ebersold (1990), Castel (1991;1995), Barton (1993), Shakespeare (1994) Abberley (1997) Oliver (1997), Morvan (1998) e Ravaud (1999). Da produo desses e de outros autores, mais do que os aspectos particulares do problema a que cada um se reporta, e que cada um apresenta ou analisa, interessar sobretudo reter os factores de invarincia que, ao longo da histria da humanidade e das sociedades e civilizaes, na diversidade das situaes, fenmenos e casos aparentemente dspares emergem, na sua similaridade e constncia, para mostrar como na realidade se sustentam e organizam as respostas dos grupos sociais face aos sujeitos que segregam, percebem ou recebem como diferentes. So esses factores que permitiro encontrar as regras sociais que constituem o sistema de regras sociais sobre a deficincia. Desde logo possvel constatar que, desde os tempos mais remotos, sempre se encararam as malformaes fsicas e intelectuais, as transgresses e desvios psicolgicos ou sociais como uma espcie de confronto com uma desordem sofrida ou antecipada, independentemente das tentativas de resoluo que posteriormente foram sendo adoptadas. Essa desordem parece significar uma ruptura relativamente a uma espera prevista e pr-estabelecida, um contra-senso, uma agresso contra a natureza, uma

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    deslocao indesejada do sistema social e do espao interior (psicolgico e individual), com as normas e as pr-figuraes a serem baralhadas e desintegradas. O invlido, o infeliz desfigurado, o anormal, ou usando um termo da modernidade, as pessoas com deficincia, foram no passado e continuam a ser continuamente recebidas pelos seus familiares e pelo grupo social como erros, como castigos divinos, desprezadas e injuriadas - ou seja, como seres ofendidos pela natureza - como expresso mxima do confronto que estabelecem com as pr-figuraes idealizadas do ser humano. So a prova de como o homo sapiens desafiado e afrontado, na feliz expresso de Edgar Morin (1973), por um presumvel homo demens, numa apario (i)lgica que d testemunho da sabedoria e da demncia, da perfeio e da imperfeio, presentes ao mesmo tempo e vez nos mais recnditos genes da raa humana. Esta ruptura com o esperado e o espervel, operada pela deficincia na ordem natural das coisas, o contra-senso e o absurdo que isso representa, despoleta e d desenvolvimento a uma crise que tem, quer a partir das marcas e das referncias perdidas, quer dos sentimentos de incompreenso e de impotncia o significado de uma verdadeira ruptura de linhagem e, ao mesmo tempo, introduz a necessidade de reajustar e reorientar o sujeito referenciado como no normal. Esta crise, que o imaginrio individual e colectivo amplia, aumenta ainda mais face incompletude e deformao visvel dos corpos e das mentes e ao carcter incontrolvel da situao. As consequncias para os sujeitos com deficincia so a sua no investidura como membros dos grupos sociais e o seu no reconhecimento social. De facto, a concesso da identidade, em rigor, no se introduz seno em favor da semelhana familiar. O nascimento dos monstros evoca o surgimento do duplo monstruoso (Girard, 1981: 240-241), pelo defeito de semelhana, pela evocao duma longnqua similitude perturbadora ou pelas marcas de uma estranha alteridade que impede o estabelecimento dos laos de filiao. O resultado um sistema de respostas desmesuradas, contraditrias, tanto mais fortes quanto mais sentida for a ameaa individual ou colectiva, como fonte de contaminao ou de extenso. Exemplar, a este respeito, a depravada teoria da degenerescncia de Morel, pai de uma criana deficiente, baseada na crena numa invaso e na provvel desestabilizao da sociedade pela aco das pessoas com deficincia mental. Na mitologia as rupturas desse gnero so constantes na natureza e na sucesso das reaces familiares e sociais, como sucedeu no caso de Hphaistos, coxo de nascimento, a quem a me, apavorada e envergonhada, ter decidido dissimular da vista das outras divindades atirando-o do alto do Monte Olimpo, acabando por ser recolhido e criado por Ttis (Grimal, 1982). , tambm, o caso de Priape, beb disforme,

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    que a me, assustada, sabendo que se tornaria vtima da chacota dos deuses, se recusa reconhecer e abandona na montanha. Um pastor o encontrou e o educou, considerando que o mal flico de que padecia simbolizava a fertilidade da terra (Olender, 1983: 152). So, ainda os casos de Typhon e de Pan. O primeiro, filho deformado de Hera, foi por ela entregue a um drago para ser educado e o segundo, assim chamado por ao ser mostrado aos deuses pela me quando nasceu, ter sido alvo de farta risota por parte deles devido deformao apresentada. Embora a deformao e a no-conformidade fsica ou mental variem em termos de grau, foram e continuam a ser recebidas com o pavor, a angstia, com o desdm que suscitam. O excesso de tamanho do corpo (como o gigantismo) e a sua reduo (como o nanismo) ou a sua incompletude transformam-se em injria, e aqueles que deles so objecto acabam por ser classificados como coisas que provocam risos e graolas ou, inclusive, como seres portadores de ameaas oraculares. Numa mistura de hostilidade e de culpabilidade so retirados da vista dos outros, ou ento mostrados a todos os olhares, de forma pblica, como maus exemplos. Porm, no deixa de ser verdade que muitas dessas personagens, a mitologia demonstra-o, encontram sempre substitutos para os seus progenitores, que ignorando os pressgios e os maus olhados, ou deles se julgando protegidos, os recolhem e os educam consumando uma primeira ruptura com o quadro original. De facto, como os relatos da mitologia mostram, se o ser anormal e desconforme no for nascena fisicamente eliminado pela morte de forma mais ou menos sumria e radical, em funo do grau e severidade da sua deformao, existe sempre um tempo de hesitao que medeia entre a exposio (na montanha), o abandono (na gua) ou a sujeio a actos de selvajaria do exposto aos elementos da natureza ou do acorrentado e enjaulado exposto no espao pblico at ocorrer a sua morte. nesse lapso de tempo, nesse espao de transio, que pode ocorrer uma nova oportunidade permitida pelos deuses, um recomeo que, apesar de tudo, possvel acontecer. Ao longo da histria os olhares sociais sobre a deficincia, embora nunca eliminando a sensao da desordem inicial, tenderam progressivamente a organiz-la institucionalmente ou, pelo menos, a control-la, atravs de prticas como o isolamento, no caso da "Nave dos Loucos", do grande encarceramento do sc. XVII, da exposio pblica, para delapidar publicamente (como na Antiga Grcia) ou para provocar o riso popular como nos espectculos de exibio que ocorreram no sc. XVIII, ou ainda pela ampliao visual da distino atravs dos estigmas e das etiquetas medicamente, psicologicamente, pedagogicamente e socialmente atribudas. Esses olhares sociais, variados e multiformes, segundo as pocas, so todavia no essencial constantes porque quando escondem a desordem logo a seguir a mostram,

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    quer no espao pblico, quer nos espaos de recluso. So exemplo o famoso passeio a Bictre citado por Foucault (1961), onde a loucura dos doentes um coisa digna de se ver, assim como os espectculos ambulantes que mostram os factores diferenciadores e que servem para estigmatizar e eclipsar as pessoas com deficincia. Essa ambivalncia da necessidade de mostrar e de esconder so, nas palavras de Morvan (1987) propriedades de um espelho que to depressa est ou deixa de estar coberto por um banho de estanho. As experincias dos actores sociais com esta desordem e as tentativas de reposio da ordem natural das coisas podem ser vistas como as respostas dos grupos sociais s suas preocupaes com a defesa do territrio e do futuro. como se fosse fundamental para a sua sobrevivncia, primeiro repelir do espao e depois erradicar do tempo essa desordem que a deficincia e a incapacidade. Portanto, aquilo que efectivamente se mostra e se esconde do olhar a desordem, ao mesmo tempo na crena da sua erradicao e na impotncia que a mesma suscita. Logo, as disposies, os modos de tratar, ritualizados ou no, so tentativas de organizar a desordem, de reduzir a impotncia. A partir do que visto, do que considerado suportvel ou no, ameaador ou no, assim so construdas as significaes da prpria desvincia associada deficincia. Ela acima de tudo um signo de algo esquisito que se tornou objecto de um jogo entre actores que ocupam posies extremas, em que uns querem mostrar e outros esconder, jogo esse cuja prtica tanto impede a excluso definitiva como a plena integrao. Poder-se- afirmar que o percurso para o reconhecimento ao direito das pessoas com deficincia reabilitao e integrao o resultado de compromissos sociais que foram reconhecendo que o semelhante e o diferente podem caminhar juntos e uma resposta s explicaes factuais e teorias que foram dando conta do desvio e da desordem, justificando-os racionalmente. Independentemente dos lugares e das pocas o direito reabilitao e integrao comeou por ser uma tentativa para evitar a desintegrao dos grupos sociais, uma forma de equilbrio social, um paradoxo que se instalou nas relaes entre o corpo social e a desordem provocada pela condio da deficincia. Por via desse direito, paradoxalmente institudo, as pessoas com deficincia, diferentes, desviadas, so alvo, umas vezes por serem veneradas outras vezes por serem repelidas, dos apelos interveno de agentes especializados que se encarreguem de as proteger e de fazer valer os seus direitos. Sem dvida que os desenvolvimentos histricos da reabilitao e da integrao esto inscritos nos movimentos tacteantes de algumas teorias e prticas que foram sendo realizadas para controlar de forma organizada a desordem provocada pela

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    deficincia. Por exemplo, o recurso clausura institucional ou liberdade de movimentos segue a ideia de que possvel s pessoas com deficincia evoluirem do estado de dependncia, dado que possuem capacidades de aprendizagem e de autonomia. Para entender isto basta convocar, como exemplo, o caso de Victor, o selvagem de Aveyron que depois de mostrado aos parisienses, como era costume na poca, foi retirado da vida institucional para ser educado por Itard, o qual estava convencido que era possvel reabilit-lo e modificar o curso do seu inelutvel destino. A reabilitao das pessoas com deficincia tem pois a sua prpria histria. Apesar dos fracassos e das teorias e prticas aberrantes desenvolvidas, a poca contempornea tem sido de progresso em termos de humanizao e de consignao de direitos, e representa uma ruptura com as concepes mais violentas e radicais de resoluo da desordem provocada pela deficincia. Ainda assim, curiosamente, no afasta a ideia fundamental consagrada nos mitos fundadores, i.e., a ideia de um renascimento que consiste, essencialmente, na constituio de um novo quadro de vida, a partir de espaos transitrios onde se retoma o processo de (re)socializao, como nos casos de Hephaistos, Priape e do prprio dipo. A estratgia de substituio desse quadro original est presente nos trabalhos de precursores da reabilitao como Abb, Epe, Hauy, e seus sucessores, que tinham como objectivo provar que, mesmo nos casos de deficincia profunda e grave, ser sempre possvel restaurar, pelo menos em parte, o processo de comunicao entre a pessoa com deficincia e o meio. Esta estratgia surgiu como resposta aos movimentos segregativos que justificavam as suas concepes na impossibilidade comunicativa. A teoria seguida prope que se podem compensar os dfices de um dos sentidos pelo incremento da capacidade de outro dos sentidos. Por exemplo, trocando o ouvido pelo olhar, o olhar pelo tacto, a palavra pela mmica, d-se aos cegos uma viso alternativa e aos surdo-mudos restabelece-se a sua capacidade de comunicao oral com os outros (Swain, 1982). Este processo de substituio para garantir a entrada das pessoas com deficincia no cdigo cultural comum pode conceptualizar-se como processo de socializao especfico, uma vez que exige educao, assistncia e formao. Tal exigncia teve, naturalmente, efeitos no crescimento e desenvolvimento do campo da reabilitao das pessoas com deficincia. Os governos dos pases criaram polticas pblicas especficas e disponibilizaram recursos, surgiram novas profisses (trabalho social, ensino especializado, reabilitao mdica e funcional, etc.) que segmentam cada vez mais a deficincia por saberes especializados, dando forma, deste modo, quilo que desde os mais remotos tempos se foi fazendo queles que estavam situados fora do espao, do

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    tempo e da cultura. Os objectivos declarados destas polticas pblicas visam experimentar e desenvolver novos processos de normalizao que possam fazer (re)entrar as pessoas com deficincia na ordem social. Movimentos sociais humanitrios e caritativos, voluntariado, profissionalizao, tcnicas educativas ou teraputicas, aplicadas individualmente ou em grupo, multiplicam-se, cruzam-se e opem-se medida que se d a renovao dos grupos sociais. Na nossa poca crescem as crenas na reabilitao, impulsionadas pelo sentimento de culpa herdado do passado, pelo altrusmo, pela tica, pela ideologia. Por vezes parecem estar orientadas pela recuperao de velhos mecanismos de segregao que, sob novas formas e novos pretextos, numa ambivalncia constante navegam por dentro das tentativas de (re)organizao do campo da reabilitao, se posicionam a par das novas tcnicas de diagnstico e prognstico (cada vez mais sofisticadas) e das inovadoras metodologias de reabilitao educacional, profissional ou da vida diria. O actual desafio, dentro e fora dos espaos especializados, que move a multiplicidade de agentes, o de dotar as pessoas com deficincia de modelos de comportamento socialmente aceites como sendo a sada possvel da situao de desvantagem que, como mostra a via mitolgica, so a forma das pessoas com deficincia (o monstro, o disforme, o tolo, o cegueta, o entrevadinho), passada a experincia socializadora de educao e formao, acederem e se apropriarem do seu prprio espao e futuro. Esse acesso como um reencontro com o mago da natureza humana, com a face divina da humanidade, com o tempo mgico que liberta da situao anterior. para fazer face a esse desafio que apontam os principais princpios orientadores do campo da reabilitao profissional e os objectivos declarados na actual poltica da reabilitao e nas finalidades das organizaes estudadas. Obviamente, o que atrs assinalmos indica que problematizar esta complexa realidade obriga tambm a recorrer a uma viso histrica, mesmo que sucinta, da constituio e desenvolvimento do campo da reabilitao profissional. E indica tambm que preciso fazer isso com um esforo que no se pode limitar a enunciar a cronologia dos acontecimentos, da criao das organizaes e das iniciativas legislativas ou a dar relevo s principais experincias e iniciativas pioneiras, mas que ponha em evidncia todos os principais elementos que o foram estruturando e que marcaram o seu desenvolvimento e a natureza das interaces entre todos os seus agentes. Na realidade, a generalidade das relaes sociais que iremos considerar neste estudo, ocorrem dentro de um dos sub-campos do campo da reabilitao das pessoas com deficincia e giram em torno da realizao da respectiva poltica. Assim, essencial ter presente o conceito que actualmente permite distinguir e designar uma pessoa como pessoa com deficincia, pessoa deficiente ou portadora de deficincia. Se bem que em

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    captulo prprio se discuta o conceito, em termos nacionais no art 2 da Lei n 9/89 de 5 de Maio que se encontra a expresso jurdica que, em nosso entender, melhor serve para designar uma dura realidade que faz parte das evidncias da vida quotidiana. De acordo com esse artigo da Lei n 9/89 considerada pessoa com deficincia "aquela que, por motivo de perda ou anomalia, congnita ou adquirida, de estrutura ou de funo psicolgica, intelectual ou anatmica susceptvel de provocar restries de capacidade, pode estar considerada em situao de desvantagem para o exerccio de actividades consideradas normais tendo em conta a idade, o sexo e os factores scio-culturais dominantes". Por conseguinte, assim definidas, as pessoas com deficincia no so apenas objecto de uma mera etiqueta social, pois passam tambm a constituir parte integrante do vocabulrio da lei e das actividades sociais e, ao mesmo tempo, essa definio passa a conferir identidade a um elevado contingente de actores sociais e a um vasto conjunto de organizaes especializadas na sua educao, reabilitao, apoio, formao profissional e emprego, nos termos do desenvolvimento da poltica nacional de reabilitao que decorre da aplicao prtica do exposto nos artigos 71 e 74 da Constituio da Repblica Portuguesa. As polticas sociais, tal como as demais polticas pblicas so decises governamentais com a finalidade explcita de levar o Estado a intervir na construo da realidade social. Essa interveno do Estado efectua-se ao nvel dos problemas e conflitos sociais e na organizao e no desenvolvimento de outras actividades relevantes para si prprio e para a sociedade. Anderson (1979: 3) definiu as polticas pblicas como "linhas de aco finalizada seguidas por um actor ou grupo de actores confrontados com um problema ou um sujeito alvo de interesse". Normalmente, as polticas pblicas so desencadeadas a partir dos apelos ou das contestaes de grupos de presso ou movimentos sociais no sentido da interveno do Estado. O problema social da deficincia, tal como outros problemas com que se debatem as sociedades actuais, complexas e em mutao, parte integrante das agendas governamentais, em especial nos pases mais desenvolvidos. Para alm dos governos, muitas outros actores procuram ter parte activa na apresentao e discusso de propostas de aco que tm em vista solucionar os problemas socialmente reconhecidos. Na verdade o reconhecimento social dos problemas que leva ao aparecimento de polticas sociais pblicas que promovem a produo, a distribuio de bens materiais e de outras recompensas simblicas, utilizando os recursos da sociedade, que provm da tributao fiscal dos contribuintes e da cobrana de outros impostos e taxas sobre a riqueza nacional.

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    As regras das polticas sociais, tal como sucede com as regras da poltica nacional de reabilitao profissional das pessoas com deficincia, no se estabelecem de modo espontneo, so impostas pelos agentes do Estado aos outros agentes sociais, em resultado de um plano de aco prvio, que pode ser objecto de uma negociao com os parceiros sociais, e todos os actores que nela participam esto constrangidos obedincia. No entanto, o envolvimento dos actores tanto os pode levar a aceitar como a rejeitar as regras propostas. O seu comportamento mais usual o de tentarem influenciar a feitura dos normativos reguladores e dos respectivos programas e suas orientaes operacionais. A importncia actual das polticas sociais de tal ordem que, nas sociedades desenvolvidas, consomem cada vez maiores fraces dos recursos financeiros, humanos e materiais disponveis e a sua estruturao faz-se por meio de normas legais, que as instituem e regulam, e de actividades que so organizadas a partir de programas de aco. So essas normas e esses programas que de modo concreto e especfico, sobretudo na sua efectiva execuo, retratam a essncia de uma poltica e no as intenes e os objectivos abstractos proclamados. H, de resto, um problema bsico na anlise das polticas sociais e que respeita determinao dos objectivos reais que pretendem alcanar. Essa determinao muito delicada pois se, em rigor, deveriam resultar de um consenso estabelecido entre os decisores, os executores e os destinatrios da poltica, muito raro que isso acontea em termos concretos. Por exemplo, no caso da poltica de reabilitao e integrao das pessoas com deficincia, evidente que a maioria dos objectivos desejados e aceites por todos os actores interessados so demasiado abstractos. Certos objectivos gerais, como os que decorrem dos princpios declarados na Lei n 9/89 de 2 de Maio, nomeadamente os de universalidade, globalidade, integrao, coordenao, equiparao de oportunidades, participao, informao e solidariedade, e outros, como os de integrao socio-econmica, mudana de atitudes e justia social, so muito difceis, para no dizer impossveis, de transpor integralmente para o domnio operatrio. Desde logo, pelas dificuldades de mensurao que oferecem, apenas se prestam a avaliaes mais ou menos aproximadas, por comparao ao mundo dito normal. Para dar um exemplo, os normativos reguladores que operacionalizam a poltica, quase s definem com rigor os tempos de durao dos programas, os custos envolvidos, os procedimentos recomendados e, por vezes, alguns mecanismos de avaliao da sua execuo. essa realidade que se expressa na generalidade dos indicadores disponibilizados pelas organizaes estatais que vo sendo regularmente publicados. Por essa razo, consideramos que um estudo sociolgico que envolva a consecuo de polticas sociais, como o caso deste estudo que envolve a poltica de reabilitao

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    profissional das pessoas com deficincia, no se pode satisfazer com a descrio e anlise dos normativos reguladores, com a anlise dos objectivos declarados nos programas ou com uma avaliao global do seu grau de concretizao. tambm necessrio ter em conta a descrio e a anlise das prticas dos agentes sociais que no terreno executam os programas, e a verificao e a crtica das consequncias intencionais e no intencionais dessa sua aco. Assim, estamos cientes de que o presente estudo corre o risco de ser envolvido em polmica, devido ao facto de resultar de uma problematizao que tem como pano de fundo a relao entre a poltica de reabilitao profissional estabelecida e as prticas dos agentes que a executam. Por duas ordens de razes. A primeira, devido incompletude da informao disponvel sobre a realizao dos programas. A segunda, devido ao facto de os diferentes actores que participam na realizao dessa poltica no terem a mesma percepo dos objectivos, nem avaliarem do mesmo modo as performances obtidas. Por outras palavras, os diferentes actores (agentes da tutela, agentes das organizaes e pessoas com deficincia) parecem ter interpretaes diferentes sobre o que se pretende atingir, sobre o modo da sua execuo e, muito importante, sobre o modo de avaliar o que foi efectuado. Sabemos que vamos ser confrontados com a existncia de fenmenos de meta-comunicao, visto que a transmisso da informao atravs dos textos normativos e regulamentares, redigidos e publicados por agentes ao servio do Estado, procura que os outros actores do campo da reabilitao ajam de acordo com a sua vontade e as suas preferncias. No entanto, tal vontade e tais preferncias esto sujeitas a fenmenos de interpretao por parte dos outros actores. Pode mesmo acontecer que os actores das mesmas categorias tambm variem nas suas interpretaes, por as suas preferncias, interesses e capacidades serem diferentes, seja pelo facto dos seus contextos locais de aco serem igualmente diferentes, ou por outra qualquer razo que os possa levar a tratarem a informao reguladora de forma diferente e, nesse processo, a oporem-se a uns e a aliarem-se a outros, a realizarem algumas prticas, umas vezes da mesma forma, outras vezes de forma diferente, e mesmo a no realizarem algumas das prticas que outros realizam. um facto que ao participarem nos programas da poltica de reabilitao profissional (formao profissional e emprego), e ao verem as suas actividades reguladas por disposies normativas e regulamentares, os agentes das organizaes estudadas colocam-se na funo de reprodutores dessas normas. Da a necessidade de sabermos como so interpretadas essas normas e quais as implicaes dessas interpretaes nas prticas dos agentes. Alm disso, tambm preciso considerar e analisar a forma como os prprios agentes do Estado controlam a aplicao das normas

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    por parte dos agentes das organizaes que executam as aces previstas nos programas. De acordo com o conhecimento que possumos o Estado considerado, pela generalidade dos agentes das organizaes estudadas, uma pessoa ausente, mas que se encontra sempre presente. Ainda que os seus agentes no estejam fisicamente e de forma assdua presentes, ou no entrem em contacto directo e regular com os agentes organizacionais no exerccio das suas funes de regulao e de fiscalizao, o Estado em sentido abstracto est simbolicamente sempre presente, embora a considervel distncia social. Salvo excepes, so normalmente atribudos, dada essa distncia social, atributos pouco abonatrios para a tradicional imagem do Estado como pessoa de bem, sem excluir a hiptese de alguns dos seus agentes desfrutarem, em termos pessoais, de uma imagem social positiva junto dos agentes das organizaes. Devemos confessar que no encontrmos literatura sociolgica que relacionasse a influncia de organizaes do tipo das estudadas, ou similares, com as transformaes ocorridas nas polticas pblicas. Essa lacuna no nos inibe de colocar a questo de saber at onde se estende a influncia dos agentes organizacionais sobre a prpria definio formal da poltica nacional de reabilitao profissional das pessoas com deficincia. Ser que existem exemplos que tornem possvel explicar as transformaes ocorridas nessa poltica como consequncia das prticas dos agentes organizacionais, recorrendo anlise organizacional, nomeadamente, com recurso a dimenses prprias das organizao formais e complexas, vistas como sistemas de aco e sistema abertos? Recordemos que a organizao formal a estrutura objectiva de uma organizao e a expresso da sua racionalidade administrativa, ou se quisermos, a sua estrutura descritiva. Podemos objectiv-la a vrios nveis, como a formalizao, o tamanho, a complexidade, a diferenciao, a autonomia face ao exterior, o controlo, a estrutura de papis, a relao hierrquica, a centralizao e a concentrao da tomada de deciso, a configurao de papis, a especializao funcional, os modos de recrutamento e seleco, etc. (Thompson, 1969; Hage e Aiken, 1970; Bertrand e Guillemet, 1993; Bilhim, 1996). Com o recurso organizao concebida como sistema de aco e sistema aberto, colocamos no centro da nossa ateno os actores sociais que nela participam, fazemo-los agentes sociais, tendo em conta a sua racionalidade limitada e contingente e as influncias recebidas do meio ambiente. Desta forma, o destaque ser dado capacidade de interveno dos actores, o que permite exprimir a sua margem de liberdade e dar conta dos seus jogos e dos fenmenos de negociao e de interdependncia em que se envolvem (Crozier e Fridberg, 1977).

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    Neste entendimento os conceitos de escolha estratgica e de coligao dominante parecem ser essenciais para estabelecer a ligao entre as prticas organizacionais e os seus efeitos na poltica de reabilitao profissional das pessoas com deficincia. Por estratgias, devem entender-se no s as prticas, mas tambm as prprias polticas organizacionais. Ambas so determinadas pela coligao dominante e respeitam fixao de novas regras de aco, para alcanar os objectivos de mdio e longo prazo, e para a distribuio dos recursos considerados necessrios para alcanar esses objectivos. Da coligao dominante fazem parte os actores com capacidade de deciso e de aco. Ocupam as posies estratgicas que lhes permitem, num dado momento, em funo do estado das relaes de poder, intervir na escolha das opes estratgicas. Entre esses actores esto os que iremos denominar de agentes de liderana e que, nas organizaes estudadas, obtiveram doses elevadas de capital social, tcnico e simblico, que os levou liderana, e que com isso, a ocuparem as posies estratgicas. muito provvel que tais actores disponham de uma considervel experincia pessoal e profissional da vida no interior do campo social em questo e uma margem considervel de liberdade no seu sistema de aco, devido posio que ocupam. Esses recursos conferem-lhes o poder que lhes permitir agir em defesa dos seus interesses individuais, organizacionais e das conquistas j atingidas. Temos conhecimento de que, na sua maioria, procuram desde h muito, com as suas aces, influenciar as polticas de reabilitao das pessoas com deficincia, na medida em que estas se constituem para eles em ganhos e perdas e ditam uma parte importante das suas vivncias pessoais e sociais. Podemos ento admitir, como hiptese, que as prticas que vamos analisar devido s caractersticas do sistema de aco das organizaes estudadas, tm efeitos transformadores (ou distores) na poltica de reabilitao profissional das pessoas com deficincia, por fora da aco desses agentes de liderana e das coligaes dominantes a que pertencem. Com o recurso ao conceito de organizao enquanto sistema aberto, podemos analisar a articulao que existe entre o campo social e o campo poltico. Como as organizaes no so concebidas como sistemas fechados, com fronteiras demarcadas que impedem a contaminao da sua estrutura pelo exterior e vice-versa, evidente que, tanto a estrutura formal, como o sistema de aco, sofrem essa influncia, como decorre da teoria da contingncia. No caso das organizaes estudadas, podemos admitir a hiptese de que o dispositivo regulador da poltica de reabilitao profissional tem impactes na forma como as organizaes se estruturam, e sofre os efeitos dessa estruturao organizacional.

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    No ser difcil perceber e mostrar que a estrutura formal das organizaes estudadas depende fortemente desse dispositivo regulador, por exemplo no que respeita variedade de profisses, sua diferenciao interna, ao tamanho do corpo profissional, organizao das actividades e quantidade de recursos financeiros. No entanto, o sistema de aco depender mais do meio social de onde provm os agentes organizacionais, que transportam modos de agir e de pensar que so capazes de, ao mesmo tempo, contaminar a poltica de reabilitao profissional atravs das suas polticas e prticas. Haver que considerar, igualmente, que o desenrolar das actividades, a tomada de deciso e a implementao de uma poltica, pode obrigar os agentes das organizaes a processos de negociao com o meio ambiente, ou seja, com as organizaes, os grupos e as pessoas com as quais a organizao est em relao e que esto directa ou indirectamente ligados fixao e realizao dos seus objectivos. Para isso, pensamos que existem pelo menos trs dimenses a considerar. A primeira a dimenso formal das relaes. Esta dimenso , talvez, a face mais visvel e mais fcil de analisar e compreender, por incidir directamente no desenvolvimento das actividades, na estrutura dos papis e das funes dos actores, nos servios de informao e nas relaes com os outros actores do campo (agentes do Estado e pessoas com deficincia, sobretudo), para que as organizaes possam realizar os seus objectivos prprios e os objectivos da poltica. Embora tais objectivos possam no ser coincidentes, dificilmente deixaro de ser inspirados, pelo menos em parte, pelo dispositivo regulador da poltica com o qual devem estar em consonncia. Podemos, ainda, deixar implcita a hiptese de as caractersticas da estrutura formal das organizaes determinarem a sua capacidade para solucionar os problemas provenientes do meio ambiente. Ou seja, a existncia de especialistas, de unidades funcionais e de outros meios (materiais ou simblicos) que possibilita s organizaes avaliar o estado do meio, lidar com os desafios e constrangimentos que lhes so colocados e encontrar respostas. No caso em apreo, essa uma condio essencial para saber como lidam os agentes das organizaes com as imposies do dispositivo regulador no qual se inscrevem as actividades e que dita parte das regras da sua relao com os utentes, com os empregadores e com os agentes das organizaes das tutela estatal. A segunda dimenso a ter em ateno a relao que o sistema de aco estabelece com o meio enquanto processo de poder e de trocas. Como mostram os trabalhos de Crozier (1971), e tambm de Grmion (1976; 1979), os actores sociais nunca esto totalmente determinados na sua aco. As relaes de poder que se verificam no interior das organizaes tambm se estendem s trocas entre as organizaes e o seu

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    meio. De facto, nas prticas a considerar para anlise tambm esto omnipresentes as relaes de poder, do mesmo modo que esto presentes em todas as trocas que ocorrem entre os actores que definem e gerem a polt