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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Letras Adriana dos Reis Silva AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CLARA E FERA FERIDA Belo Horizonte, 2014

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE … · RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no romance Clara dos Anjos, do escritor

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Page 1: AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE … · RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no romance Clara dos Anjos, do escritor

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Letras

Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA

DE CLARA E FERA FERIDA

Belo Horizonte,

2014

Page 2: AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE … · RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no romance Clara dos Anjos, do escritor

Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA

DE CLARA E FERA FERIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Terezinha Taborda Moreira.

Coorientador: Prof. Dr. Hugo Mari.

Belo Horizonte,

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Adriana dos Reis

S586r As relações interétnicas brasileiras: uma análise da construção discursiva de

Clara e Fera Ferida / Adriana dos Reis Silva, Belo Horizonte, 2014.

188 f.: il.

Orientadora: Terezinha Taborda Moreira

Coorientador: Hugo Mari

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Televisão e literatura. 2. Telenovelas - Crítica e interpretação. 3. Análise do

discurso. 4. Sociolingüística. 5. Racismo. I. Moreira, Terezinha Taborda. II.

Mari, Hugo. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de

Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81).09

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Adriana dos Reis Silva

AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE CLARA E FERA FERIDA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa.

__________________________________________________________________

Terezinha Taborda Moreira (Orientadora) – PUC Minas

___________________________________________________________________

Hugo Mari (Coorientador) – PUC Minas

___________________________________________________________________

Marco Antônio Rodrigues Vieira – UFV

___________________________________________________________________

Paulo Henrique Aguiar Mendes – UFOP

___________________________________________________________________

William Augusto Menezes – UFOP

___________________________________________________________________

Márcia Marques de Morais – PUC Minas

Belo Horizonte, 03 de outubro de 2014.

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Aos meus pais e a todos aqueles

que acreditam em seus sonhos e suas realizações.

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AGRADECIMENTOS

Obrigada meu DEUS pela disciplina, perseverança e sabedoria para conduzir

tudo isso.

Obrigada mãe, pai pelo apoio e crença.

Obrigada Mestres, Terezinha e Hugo, as palavras me faltam para dizer o

quanto sou agradecida...

Agradeço aqueles que trilharam este caminho comigo me aconselhando,

dando apoio moral, (pois sabiam das pedras no caminho...) além da amizade e

carinho, vocês minhas amigas Maysa e Nazaré, boas companheiras.

Agradeço a aquela que estava nos bastidores dessa festa e, certamente, sem

ela não seria possível tal evento, a minha prezada amiga Berenice.

Obrigada àqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ordem do

intelecto: agradeço ao Paulinho (Paulo Mendes), ao Marco Antônio (pelas prosas

insólitas), à Márcia Morais, à Nazaré Fonseca, à Ivete Walty, ao Milton Nascimento,

à Jane Quintiliano, à Juliana Assis, à nossa querida Malu, que certamente, nos olha

lá de cima...

Pela paciência e companheirismo agradeço a vocês meus irmãozinhos:

Camilla, André, Daniela; a minha sobrinha, querida, Yasmim.

Pela virtude daqueles que me escutaram ao longo desses anos: Cris,

Vini (Carlos Vinícius)...

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A experiência de reler um texto ao longo de quarenta anos me mostrou como são bobas as pessoas que dizem que dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa equivale a matar sua magia. (ECO, 1994, p. 18).

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RESUMO

Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no

romance Clara dos Anjos, do escritor Lima Barreto, escrito em 1922 e publicado

postumamente em 1948, em contraponto com a telenovela Fera ferida, de

Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, produção da Rede

Globo de Televisão e releitura da narrativa de Barreto realizada em 1993. À luz da

Análise do Discurso – AD –, aliada às teorias raciais subjacentes aos Estudos

Culturais – EC, objetiva-se analisar, de maneira contrastiva, do ponto de vista

discursivo, a questão das diferenças e/ou contradições raciais apresentadas pela

narrativa literária e pela narrativa telenovelística, tendo como apoio as noções de

semiolinguística e formação discursiva. Aqui intentamos investigar o eco dos

discursos raciais presentes nas vozes literárias e nas da narrativa televisiva, o

engendramento dessas vozes pela ordem do social, assim como as determinações

de caráter sócio-histórico que estão presentes nos recortes dos objetos de estudos

selecionados. Através desse procedimento metodológico, contextualizamos o

discurso racial que se faz presente no corpus. Assim, tratamos da relação

interacional sob a concepção semiolinguística, investigando as relações

intersubjetivas decorrentes do contexto ficcional conflituoso de certos personagens

presentes nas narrativas em questão. Essa análise demonstrou, a princípio, que o

imaginário social brasileiro inscrito na obra de Barreto não permite a mobilidade

social dos sujeitos negros/mulatos e/ou pobres. A desigualdade em relação a esses

indivíduos aqui é incisiva. Entretanto, a narrativa barretiana, mesmo expressando a

pressão do discurso racial de sua época, promove uma subversão e questiona o

racismo ao colocar, na cena literária, personagens negros vivendo no seu próprio

mundo. Diferente da telenovela, que apresentou o debate sobre o racismo a partir de

desvios promovidos por discursos que circulam na sociedade, como aquele que

atribui ao próprio negro características racistas, sem se preocupar em explorar o

porquê disso. A partir da noção de Formação Discursiva – FD –, segundo Michel

Pêcheux, investigaram-se os padrões sociais instituídos pelos contextos ficcionais

de determinados personagens principais das tramas em foco: Clara, Cassi Jones,

Salustiana, Engrácia e Joaquim dos Anjos. Sob essa ótica, verificou-se que as

narrativas Clara dos Anjos e Fera ferida retratam uma sociedade cujo coletivo

ainda mantém uma prerrogativa inferiorizante em relação ao negro. Avaliamos que a

trama contemporânea poderia reler essas questões, buscando desmitificar o motivo

para tal racialização. Porém, a nosso ver, o tempo que decorre entre uma produção

discursiva e outra apenas descaracterizou a contundência racial apresentada pela

primeira – o romance de Lima Barreto –, estabelecendo a cordialidade para com o

outro de cor que se percebe na telenovela Fera ferida.

Palavras-chave: Personagem.Racialidade.Discurso.Interação.Formação Discursiva.

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ABSTRACT

This work aims a reflection about racial conflicts which is present in the novel Clara

dos Anjos, by Lima Barreto, written in 1922 and published posthumously in 1948, in

counterpoint with the soap opera Fera ferida, written by Aguinaldo Silva, Ricardo

Linhares and Ana Maria Moretzsohn, production made by Rede Globo de Televisão

and rereading from narrative by Barreto held in 1993. Through the study of Discourse

Analysis -, allied to the subjacent racial theories to the Cultural Studies, has a goal to

analyze, from contrastive way, by the discursive perspective, question of differences

and/or racial contradictions presented by literary narrative and by television soap

opera narrative, having as support notions of semiolinguistique and discursive

formation. From here we tried to investigate the echo from racial discourses

presented in literary voices and on television narrative, the engendering from these

voices by social order, such as determinations of social historical character which are

presented on cutting of objects from the selected studies. Through this

methodological procedure, we contextualize racial discourse which is present in the

corpus. Therefore, we treat the interactional relationship under a semiolinguistique

conception, investigating intersubjective relations due to the conflict fictional context

from certain characters present in the narratives so far. This analysis showed, at first,

Brazilian social imaginary enrolled in the work of Lima Barreto does not allow social

mobility from subjects like black / mulatto and / or poor. The inequality in relation to

these individuals here is incisive. However, barretiana narrative, even expressing

pressure of racial discourse from his time, promotes subversion and questions racism

to insert, on the literary scene, black characters living in their own world. Different

from television soap opera, which showed the debate about racism from promoted

deviations by discourses circulating in society, as the one which attributes the own

black man racist characteristics, without worrying to explore why does it happen.

From the notion of Discursive Formation, according to Michel Pêcheux, it was

investigated social standards established by fictional contexts of determined

characters from plots in evidence: Clara, Cassi Jones, Salustiana, Engrácia and

Joaquim dos Anjos. Under this view, it has been found in narratives such as Clara

dos Anjos and Fera ferida a society whose collective still retains a inferior

prerogative in relation to black ones. We evaluated a contemporary plot that we could

reread these questions, searching demystify the subject for such racialization.

However, in our view, time runs between discursive production and other only

misread racial forcefulness showed by the first – novel by Lima Barreto -, establishing

cordiality for the other color which is perceived on the television soap opera Fera

ferida.

Keywords: Character. Raciality. Discourse. Interaction. Discursive Formation.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 01: Contrato Comunicacional.................................................................. 75

Quadro 02: Contrato comunicacional adaptado................................................... 77

Quadro 03: Processo enunciativo – circuito interno.... ........................................ 81

Quadro 04: Contrato comunicacional adaptado................................................... 91

Quadro 05: Processo enunciativo – circuito interno............................................ 93

Quadro 06: Caracterização de Clara (Romance)................................................. 116

Quadro 07: Caracterização da personagem Clara (Novela)................................ 118

Quadro 08: Caracterização de Engrácia (Romance)........................................... 135

Quadro 09: Caracterização de Engrácia (Novela)............................................... 136

Quadro 10: Caracterização de Joaquim (Romance)............................................ 147

Quadro 11: Caracterização de Joaquim (Novela)................................................ 148

Quadro 12: Caracterização de Cassi Jones (Romance)...................................... 156

Quadro 13: Caracterização de Cassi Jones (Novela).......................................... 158

Quadro 14: Formação Social e Discursiva – Adaptação do quadro de Grigoletto..............................................................................................................

170

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 10 1. MOTIVAÇÕES ACERCA DA RACIALIDADE................................................ 18 2. A QUESTÃO RACIAL.................................................................................... 31 2.1 Situando o discurso da racialização............................................................. 31 2.2 O racismo brasileiro..................................................................................... 37 2.3. A raça na atualidade................................................................................... 39 3. CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA: EVENTOS COMUNICACIONAIS. 44 3.1 O reconhecimento dos campos teóricos...................................................... 46 3.2 Os objetos.................................................................................................... 55 3.3 O recorte dos objetos................................................................................... 57 4. A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS: LITERATURA X MÍDIA TELEVISIVA... 61 4.1 Gênero Literário: Clara dos Anjos.............................................................. 64 4.2 Gênero midiático: a telenovela Fera ferida................................................ 68 5. CONFLITO CONTRATUAL EM: CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA.... 73 5.1 Os circuitos externo e interno de Clara dos Anjos..................................... 76 5.2 Os circuitos externo e interno de Fera ferida.............................................. 90 6. AS FORMAÇÕES DISCURSVAS EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA..............................................................................................................

105

6.1 Clara dos Anjos: caracterização................................................................... 116 6.2 Clara dos Anjos: análise............................................................................... 119 6.3 Engrácia: caracterização.............................................................................. 135 6.4 Engrácia: análise.......................................................................................... 137 6.5 Joaquim dos Anjos: caracterização.............................................................. 147 6.6 Joaquim dos Anjos: análise.......................................................................... 149 6.7 Cassi Jones: caracterização........................................................................ 156 6.8 Cassi Jones: análise.................................................................................... 159 6.9 Entrelaçamentos discursivos........................................................................ 168 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 174 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 179

ANEXO............................................................................................................... 187

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INTRODUÇÃO

Tecer considerações acerca do trabalho artístico literário, sem dúvida, é algo

arriscado, requer não só conhecimento, mas talvez certo refinamento para entender

as possibilidades significantes que este permite. No entanto, ousaremos percorrer

essa trilha, apreciando uma escritura que nos possibilita ―revelar umas almas às

outras‖ (BARRETO apud PRADO, 1980, p. 112), ou ainda, uma linguagem que traz

à memória uma imagem que simula, através da recriação de um coletivo, o modo de

ser de indivíduos comuns, como os negros, pobres, enfim, aqueles que sobrevivem

marginalmente. Esse parece ser o legado da obra barretiana, cuja proposta estética

apresenta ―o senso da vida e da realidade circundante‖ (BARRETO, 2006) pelas

vozes de suas principais personagens, como Policarpo Quaresma, Isaías Caminha,

Gonzaga de Sá e Clara dos Anjos.

A escrita de Lima erige-se como uma lâmina cortante, subverte o beletrismo

de sua época e deixa esvair a voz dos amargurados. Para tanto, observe como o

autor, por uma via engenhosa, mostra um momento de devaneio e introspecção de

sua personagem Clara dos Anjos:

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. (...) só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si:

- Então, no céu, também se encontram manchas?

Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:

- Que será de mim, meu Deus?

Se "ele" [Cassi Jones] a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse – o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente? (BARRETO, 1998, p. 117).

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Esse retalho de texto alude à condição da mulata Clara dos Anjos,

personagem da narrativa barretiana publicada em romance em 1948, que apresenta

como título, o mesmo nome da moça, Clara dos Anjos. A jovem protagoniza uma

estória de desamparo, pobreza e preconceito, como veremos a seguir. A partir da

metáfora da mancha que destacamos acima, vem à tona a percepção da

personagem Clara acerca dos acontecimentos que a rodeiam. Aqui ela parece se

encontrar e/ou começar a ter noção de quem é. Ao constatar que ―até o céu tinha

mancha‖ – a mácula negra – a personagem reflete sobre o que esperar de sua

situação, já que sua cor representava a ignomínia social. Ela percebe que o estigma

da cor negra permeia outros âmbitos da natureza, e não só sua lastimável condição.

Mais do que isso, ela se dá conta de que, na sociedade em que vive, a infâmia se

abate sobre a imagem do negro.1

Clara consegue, por meio dessa percepção, anunciar seu destino: estaria

fadada à imobilidade social e econômica. O sentimento de isolamento e de

abandono atordoa o mundo de Clara – ―Que será de mim, meu Deus?‖ (BARRETO,

1998, p. 117). Esse sentimento legitima a existência, no contexto da narrativa

barretiana, do preconceito racial, da constante dependência do negro ao branco, de

sua falta de autonomia. A jovem dependia do mundo branco, assim como do

consentimento dessa sociedade para se estabelecer nesse universo, veja como a

moça se expressa: ―Se ele [Cassi Jones] a abandonasse, ela estava completamente

desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate...‖.

(BARRETO, 1998, p. 117). Clara, nesse momento, enuncia as armadilhas que a vida

na sociedade carioca do início do século XX irá lhe oferecer.

É por meio da consciência de raça apresentada pela personagem Clara dos

Anjos, a qual sangra em veias abertas o seu destino enquanto mulata, que

gostaríamos de mostrar como a contemporaneidade da telenovela Fera ferida, de

Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, realizada pela Rede

Globo de Televisão em 1993, construiu a sua releitura da criação barretiana

publicada pela primeira vez como conto em 1922.

O propósito da realização de tal estudo se estabelece a partir das seguintes

indagações: quais seriam as possíveis construções discursivas que evidenciam as

1 Essa inferência se torna possível porque, ―existe um consenso intersubjetivo pelo qual o idealismo

promove a compreensão do indivíduo a partir de seu pensamento‖. (PÊCHEUX, 1997, p. 162).

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relações de sentido etnicorraciais no âmbito da narrativa literária e da narrativa

midiática apresentada pelo corpus? Como se apresentam as determinações e/ou

manifestações históricas constituintes das condições enunciativas raciais presentes

nos discursos em questão.

A partir dessas questões intentamos examinar, de maneira contrastiva, como

se estrutura, do ponto de vista discursivo, a questão das diferenças e/ou

contradições raciais apresentadas pela narrativa literária e sua releitura realizada

pela trama telenovelística.

Assim, através de um espaço/tempo completamente novo e inusitado, intenta-

se desvendar e/ou retomar, desses objetos culturais2, aspectos que demonstrem o

lugar discursivo dos sujeitos negros que integram a nação brasileira. Acreditamos

que recorrer a um exame sobre as práticas racializantes presentes nessas narrativas

certamente nos assegurará uma exterioridade discursiva singular acerca do racismo

brasileiro.

A escolha dessas obras não resultou somente de meros insigths. Houve, na

seleção dos objetos culturais com os quais pretendemos trabalhar nesta pesquisa,

uma preocupação quanto à racialidade instaurada no âmbito social brasileiro, que

surge por meio das diferenças existentes nas relações entre indivíduos brancos e

negros, tendo em vista a predominância, na sociedade, de uma crença numa

realidade biológica das raças3. Nesse sentido, buscou-se uma abordagem da

questão racial através dos tempos, por meio de discursos não canônicos, como o

apresentado pela voz mulata do escritor Lima Barreto em suas narrativas literárias e

por meio de outro de cunho midiático, uma telenovela que releu as escrituras deste

autor.

2 Esclarecemos que entendemos por objeto cultural as entidades e/ou sistemas simbólicos que

asseguram o sentido e a significação de determinados estados de coisas partilhados por certos grupos sociais. 3 Kwame Anthohy Appiah explica-nos que o racialismo se baseia na distinção entre as raças segundo

o campo das teorias científicas. Já o racismo é o tratamento diferenciado existente nos relacionamentos humanos, independente da raça do indivíduo. Nesse bojo, o autor distingue o racismo extrínseco, que se baseia na ideia do tratamento diferenciado dado às pessoas de raças diversas, visto que algumas raças são determinadas como superiores ou inferiores. Enquanto isso, o racismo intrínseco estabelece as ―diferenças morais entre membros das diferentes raças, por acreditarem que cada raça tem um status moral diferente, independente das características partilhadas por seus membros‖. (APPIAH, 1997, p. 33-35).

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13

A designação de não cânone com que a princípio referenciamos o autor Lima

Barreto calcou-se no pensamento que vigorava em sua época, constituído por meio

de uma sociedade de classe recém-saída do regime imperial e da escravidão,

fatores determinantes para a desqualificação de mestiços:

Questão fundamental, a mistura de raças na versão poligenista apontava para um fenômeno recente. Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ―degeneração‖ que poderia advir do cruzamento de ―espécies diversas‖. (SCHWARCZ, 1993 p. 56 – destaque da autora).

Lembremo-nos que o ideário brasileiro dos idos de 1900 baseava-se nas

relações senhoriais e burguesas, de precedência europeia, as quais desprezam os

elementos da cultura popular, e Barreto, como um mulato, não seguia essas normas.

Em suas narrativas era recorrente a recriação de aspectos presentes no cotidiano

das massas populares. No entanto, como veremos adiante, a escrita de Lima

Barreto perde esse status de não canônica especialmente a partir de estudos como

os de Osman Lins (1976) e Antonio Arnoni Prado (1980, 1999, 2004), os quais

contribuem significativamente para a revisão crítica da obra barretiana.

Quanto ao sistema de televisão, sabe-se que esta exerce um papel

fundamental para a forma como os sujeitos estabelecem as bases de suas

atividades diárias. Souza (2004) explica que esse sistema apresenta um universo

lúdico, o qual possui a capacidade de cingir e aprisionar a consciência do público por

todos os ângulos. Tal veículo comunicacional tornou-se um importante elemento na

vida cotidiana do brasileiro. Porém, Sodré aponta que

a análise dos diversos aspectos do fenômeno televisivo tem mostrado que a televisão (o sistema de broadcast e suas extensões industriais) não pode ser pensada como um mero esquema técnico de transmissão de imagens, mas como a ponta de um sistema complexo, articulado com todas as instâncias sociais de uma economia de mercado. (SODRÉ, 1987, p. 09).

Assim, não sejamos ingênuos quanto à difusão desse meio de transmissão.

Sobre isso, Muniz Sodré explica que a sociedade industrial do Ocidente se move

através de uma avançada tecnologia e ―cada nova etapa tecnológica pretende

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determinar ideologicamente o conjunto de produção‖. Sendo assim, a ordem de

mercado de uma sociedade moderna estabelece o ―real‖, isto é, uma ―realidade do

espaço social‖ que se constitui por meio de dispositivos ideológicos do mercado.

(SODRÉ, 1987, p. 09). Assim, entendemos que há processos construtivos

divergentes entre a obra literária de Lima Barreto e a sua releitura contemporânea a

partir de uma mass media. Dessa forma, interessou-nos investigar como a temática

barretiana e, consequentemente, a racialidade, são retomadas por esse contexto?

Diante disso, percebemos que, para percorrer por essas vias marginais,

precisaríamos de uma metodologia cuidadosamente articulada. Dessa forma, nos

guiamos pelo campo dos Estudos Culturais, acreditando que essa noção nos

possibilitaria romper com as barreiras tradicionais hegemônicas e adentrar as vias

da ―marginalidade‖, cujas constituintes se estabelecem por meio das camadas

populares brasileiras, contexto de onde emergem nossos objetos de estudo.

Os Estudos Culturais – doravante denominados pela sigla EC –, nessa

perspectiva, como aponta Hall (1980), não se caracterizam como uma disciplina,

mas como um espaço em que as disciplinas interagem, tendo em vista as inter-

relações culturais de uma sociedade.

Por conseguinte, os EC nos permitem adentrar pelo campo da racialidade –

temática abordada por nosso estudo através de suas vertentes críticas, a saber, as

que se estabelecem sob o foco das questões raciais, como os trabalhos de Frantz

Fanon, Kwame Anthony Appiah, Homi K. Bhabha, Paul Gilroy, Stuart Hall, Thomas

Skidmore, Michael Hanchard, Gilberto Freire, Abdias do Nascimento, Carlos Moore,

Muniz Sodré, Lilia Moritz Schwarcz, entre outros que trabalham com as questões

acerca da racialidade. Nessa perspectiva, acreditamos obter uma melhor

compreensão acerca das estruturas e mecanismos que envolvem o discurso racial

brasileiro, tendo em vista que

As grandes divisões do racismo como estrutura de conhecimento e representação são também, a meu ver, um sistema profundo de defesa. São as fortificações externas, as trincheiras, as posições defensivas em torno de algo que se nega a ser domado e contido por esse sistema de representação. (HALL, 2005, p. 08).

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Através dessas considerações, este trabalho se constitui por meio de uma

perspectiva teórico-metodológica filiada à linha de pesquisa ―Enunciação e

processos discursivos‖, da área de Linguística, em diálogo com a linha de pesquisa

―Identidade e alteridade na literatura‖, da área de Literaturas de Língua Portuguesa,

ambas do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas.

Essa possibilidade transversal entre teorias se justifica por dois motivos. O

primeiro refere-se à condição dialogal propiciada pelos estudos da Análise do

Discurso, noção analítica eleita para se estabelecer o sentido racial presente nesse

estudo. O segundo refere-se aos objetos que compõem o corpus desta pesquisa,

estabelecidos a partir de gêneros distintos e de uma temática racializante

manifestada pela opressão e dominação de grupos sociais representados por

negros, pobres e afrodescendentes. Esse fato torna conveniente o empréstimo das

teorias raciais que se vinculam aos Estudos Culturais como cerne do trabalho, pois

essa concepção tem em seu bojo a flexibilidade entre teorias, a preocupação com as

práticas sociais decorrentes de camadas populares e, certamente, a criticidade para

se pensar o racismo na contemporaneidade.

No que se refere à Análise do Discurso, doravante denominada apenas AD,

essa disciplina não se concebe sob uma abordagem única, centrada em um só

método, ou objeto, que se organiza em torno de um exclusivo sistema de

pensamento,

A natureza diversa do objeto-discurso, os múltiplos interesses que nele são projetados possibilitam a existência de escolas distintas, a ampliação do quadro metodológico e uma fundamentação teórica em pressupostos cada vez mais amplos. (MARI et al., 1999, p. 16).

Os métodos constituintes da AD se constroem através de determinados

campos de estudos e objetos que perpassam a psicanálise, pelo marxismo e pela

linguística, porém esses métodos não se confundem, pois a AD relaciona certas

regiões científicas para se constituir, tais como a ideologia, a semântica, a

enunciação, o discurso e suas determinações históricas em seu processo de

significação. (ORLANDI, 2010, p. 13). E ainda, a AD pode ser concebida como uma

investigação acerca da linguagem do homem que vive em sociedade, em relação

com o outro. (CHARAUDEAU, 2012).

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Logo, o estudo desenvolvido pela AD favorece a apreensão das condições de

produção de certos enunciados instaurados nos discursos ficcionais racializantes

que se constroem sob o contexto sócio-histórico e ideológico da sociedade

brasileira. Já os Estudos Culturais, a partir das pesquisas que abordam o

pensamento teórico racial, promovem a multiplicidade discursiva em suas diversas

histórias, compreendendo um conjunto de formações que apresenta conjunturas e

momentos distintos que remontam ao passado (HALL, 2003, p. 200), permitindo

apropriarmo-nos, interpretar e revestir de novos sentidos a racialização presente no

meio social brasileiro.

Nesse sentido, o eco das vozes discursivas, engendradas pela ordem do

social, assim como as determinações de caráter histórico presentes nos recortes dos

objetos de estudo, nos permitem trabalhar com noções como as de enunciação,

gêneros, formação discursiva e com a corrente teórica racial advinda dos EC,

pressupondo que essas categorias nos possibilitarão elaborar análises mais amplas

e completas acerca da circulação dos discursos raciais apresentados ao longo do

tempo no Brasil, assim como de sua permanência nessa sociedade e, ainda, das

possíveis modificações sofridas por estes.

Para a abordagem aqui instaurada, iniciamos o trabalho com o capítulo

―Motivações acerca da racialidade‖ estabelecendo, a partir de um diálogo com os

objetos de estudos, a razão do trabalho sobre a questão racial.

No capítulo seguinte, ―A questão racial‖, buscamos contextualizar o discurso

racial, situando raça na perspectiva brasileira e na atualidade. Ressalvamos que

essa contextualização sobre as teorias raciais advindas dos Estudos Culturais

possibilitam que nossas análises se legitimem, tornando essa concepção um fio

condutor para a realização desse trabalho.

No terceiro capítulo ―Clara dos anjos e Fera ferida: eventos

comunicacionais‖, direcionamos nosso olhar para uma melhor compreensão das

áreas de conhecimento eleitas para a investigação e a apresentação do corpus e do

recorte estabelecidos para o estudo.

No próximo capítulo, o quarto, a abordagem recai sobre a questão do gênero,

intencionando uma reflexão acerca das instâncias sociais caracterizadoras dos

objetos eleitos para esse estudo.

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No quinto capítulo, ―O conflito contratual em Clara dos Anjos e Fera ferida‖,

trataremos das condições racializantes estabelecidas no processo intersubjetivo

constituído pelos atores ficcionais das narrativas em questão, tendo como foco o

contexto conflituoso estabelecido por esses discursos.

O capítulo seis, ―As formações discursivas em Clara dos Anjos e Fera

Ferida‖, se constitui a partir do estudo de Michel Pêcheux (1997) acerca da noção

de formação discursiva. Na análise proposta buscamos apreender os padrões

sociais instituídos pelos contextos ficcionais de determinados personagens, a saber,

os personagens principais das tramas em questão: Clara dos Anjos, Cassi Jones,

Salustiana, Engrácia e Joaquim dos Anjos.

Por último, nas ―Considerações finais‖, registramos uma reflexão geral acerca

das análises desenvolvidas ao longo deste estudo, lembrando que, com vistas a

traçarmos conclusões mais amplas e confiáveis acerca da racialização brasileira,

buscamos articular dados de áreas distintas do saber como a Literatura, os Estudos

Culturais e a Análise do Discurso, apoiando-nos para isso, em autores como Hall

(2003), Fanon (2005), Mendes (2006), Santiago (2008), entre outros.

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1 MOTIVAÇÕES ACERCA DA RACIALIDADE

A possibilidade deste trabalho surge a partir das reflexões advindas da

experiência do mestrado, assim como da participação em projetos, ações afirmativas

e cursos sobre a diáspora negra. Essas experiências nos motivaram a observar

melhor as imagens de negros e mestiços criadas e disseminadas na cultura

brasileira, seja pela literatura ou por outros suportes midiáticos, tais como a

televisão.

A partir disso, o romance de Lima Barreto nos parece bem apropriado para

uma investigação acerca de questão racial, pois o autor se propõe abordá-la sob um

viés de resistência que se molda por um traço pautado pela denúncia contra as

injustiças sociais e a discriminação para com o outro. Não bastando, a

contemporaneidade relê a obra barretiana pela telenovela, mas qual será o

tratamento dado à questão racial nesse âmbito? Através dessa indagação, cresce

nossa expectativa acerca dessa construção contemporânea.

Micheletti explica que Barreto, na obra Clara dos Anjos, que é nosso objeto

de estudos, apropria-se da técnica de escritores realistas, fazendo com que o

narrador se aproxime de seu leitor a partir de descrições

parciais e minuciosas, numa espécie de acúmulo de pequenas informações. Usa (...) o lugar em que moram, trabalham ou se divertem para definir a posição social e construir o perfil psicológico dos personagens. (MICHELETTI, 1998, p. 04).

Nesse sentido, Clara dos Anjos revela contextualmente ―retalhos da vida

suburbana‖, assim como as mudanças urbanas numa sociedade que se mostra a

partir das tensões presentes no romance, e talvez no próprio ambiente vivido por

Lima Barreto. Tal romance ainda denota a preocupação em revelar a marginalização

na qual vivia a camada popular, e, ao fazer isso, o escritor dá aos rejeitados –

sujeitos abandonados pela sociedade – um momento para que estes se apresentem

como o centro articulador da narrativa.

No romance de Lima Barreto, a personagem Clara dos Anjos é uma jovem

mulata de dezessete anos, descrita pelo narrador como ingênua e de personalidade

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frágil. De família humilde, seu pai, Joaquim dos Anjos, era carteiro e, nas horas

livres, compartilhava com os amigos o seu gosto pela música – a modinha – e pelo

violão. Sua mãe, Engrácia, era dona de casa. Devido a uma criação limitada e muito

controladora da família, Clara era uma moça que não possuía ambições de crescer

na vida. Só saia de casa acompanhada pelos pais ou por Dona Margarida, viúva

moradora da vizinhança que ensinava à moça bordados e costuras. Contentava-se

com a sua condição social e prendia-se aos costumes da família. Seus princípios

eram vagos, baseavam-se nas ―modinhas‖ e sonhos nos quais os homens eram

como seu pai, frequentadores de rodas de violão às sombras das árvores. Sempre

repleta de dúvidas, acreditava na pureza do amor. Muito influenciável, Clara deixa-

se seduzir por Cassi Jones de Azevedo, homem branco, com uma grande fama de

sedutor, que já havia desonrado e explorado muitas mulheres pobres e/ou negras e

mestiças, mas que conseguia livrar-se da prisão e ficar impune graças à ajuda da

mãe. Interessado em Clara, o jovem, de uma classe social um pouco melhor, passa

a visitar a casa de Joaquim dos Anjos. Inconformado com a ideia e alerta dos riscos

que essa aproximação podia causar, Marramaque, padrinho de Clara, tenta afastá-lo

dela. Revoltado, Cassi se vinga e assassina Marramaque. Clara engravida e Cassi

desaparece subitamente. A moça conta à sua mãe o acontecido. As duas resolvem

procurar a família de Cassi. Porém descobrem que, para Salustiana, a mãe de

Cassi, era um absurdo uma mulata pobre ter coragem de ir cobrar um casamento

com seu filho. Após se deparar com a mãe de Cassi, Clara toma consciência de sua

posição na sociedade e de sua diferença em relação às outras jovens. O autor

representa, na figura da personagem Clara e no seu drama, a condição social da

mulher pobre e negra na sociedade brasileira do início do século XX. No final do

romance, consciente e lúcida, Clara assim reflete sobre a sua situação:

O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam... (BARRETO, 1998, p. 133).

Em Clara dos Anjos, Lima Barreto nos dá a impressão de não separar o que

de fato é da ordem do literário daquilo pertencente ao âmbito dos acontecimentos

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reais, e assim, sua escrita surge a partir das representações das crenças, dos

comportamentos e das tradições populares das pessoas. Dessa forma, o autor

parece-nos desejar a fusão do real com a ficção e, em função disso, cria uma obra

ficcional que não se permite o afastamento da realidade. Nesse âmbito surgem as

narrativas de acontecimentos e fatos que demonstram a situação das famílias

cariocas no início do século XX, atentando para a maneira de agir de alguns grupos

sociais que contribuiriam direta ou indiretamente na formação da nova sociedade

que estava por vir. Sendo assim, o autor situa bem sua escrita a partir da opção que

faz por relatar a vida dos pobres, negros, mulatos etc. A hipocrisia social e racial,

então, vem à tona pela navalha da escritura realista barretiana.

Logo, entender o processo da racialidade conforme é retratado pelo discurso

barretiano torna-se algo relevante para adentrarmos nas investigações as quais nos

propomos, sobre o tratamento dado à questão racial pela narrativa de Lima Barreto.

Pensemos, por exemplo, na construção do personagem Joaquim dos Anjos,

pai de Clara dos Anjos. Tendo em vista sua cor, a submissão que envolve seu

modo de viver e a sua não integração nas estruturas sociais do início do século pós-

escravagista, podemos pensar nele como um sujeito da diáspora. Essa situação, de

certa forma, nos leva a reconhecer um pouco da história do negro em solo brasileiro.

Esse sujeito, tal como observamos no personagem Joaquim dos Anjos, tem pouca

ou quase nenhuma condição para lutar por um espaço identitário nesse território,

pois o arrivismo da escravidão tornou-se contundente nessa época.

A interpretação para a noção de diáspora tornou-se parte do ―nosso recém-

construído senso coletivo do eu‖. (HALL, 2003, p. 28). Modela-se pela história

moderna dos judeus, lócus de origem do termo ―diáspora‖, cujo fim culminou no

holocausto. (HALL, 2003). O conceito de diáspora, segundo Stuart Hall, se pauta

através da visão binária da diferença, um limite que se estabelece de forma

excludente, e necessita de um ―outro‖, além de uma oposição austera entre o ―eu‖ e

aquilo que não se conhece, o que causa o mal-estar entre os sujeitos da diáspora.

(HALL, 2003, p. 33).

Hall explica que sob esse conceito se apoia uma estética diaspórica que traz

em sua configuração o hibridismo,

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uma poderosa dinâmica sincrética que se apropria criticamente de elementos dos códigos mestres das culturas dominantes e os ―criouliza‖, desarticulando certos signos e rearticulando, de outra forma, seu significado simbólico. (MERCER apud HALL, 2003, p. 33 – destaques do autor).

Acerca dessa concepção, também podemos imaginar o personagem Joaquim

dos Anjos como um sujeito híbrido, tendo em vista o seu gosto pelas modinhas, que

o leva a transformar essa prática musical numa ―artinha‖ particular, como explicará o

narrador os saraus que o personagem organiza em sua casa aos domingos.

(BARRETO, 1998, p. 13). Sobre isso, é bom entendermos que à modinha se atribui

um surgimento nobre, branco e europeu. Ela é reconhecida por sua linguagem

harmônica, a qual se desenvolve a ponto de abarcar as camadas populares do final

do século XIX. Trilhando semelhante caminho, o lundu, de origem popular e negra,

surge nesse percurso, se consagra pelo batuque dos escravos libertos e evolui de

modo a tornar-se uma canção que cai no gosto das elites dessa época. Assim, tais

gêneros musicais passam por um processo cultural convergente, ―numa palavra,

mestiço, representando o caráter nacional e popular da música produzida neste

país‖ (FERLIM, 2006, p. 02).

A prática da modinha permite-nos caracterizar o personagem Joaquim dos

Anjos como um sujeito hibridizado porque, ao assimilar a modinha ele a toma para

si, para sua vida, preceitos de valores hegemônicos da cultura europeia portuguesa

os quais incorpora a valores decorrentes de sua origem afrodescendente, tais como

o cultivo da música, em forma ritualística ou como divertimento, nos terreiros e

praças públicas. Assim é que vamos encontrar, na narrativa, o personagem

envolvido com uma prática musical que ele aprende em ―festas de igreja‖ e sobre a

qual demonstra um conhecimento que resulta mais da experiência vivida do que da

teoria:

.

na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas. (...) O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado. Aprendeu a ―artinha‖ musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama

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animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na ―artinha‖ de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além. Pouco ambicioso em musica, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. (BARRETO, 1998, p. 13).

A estética diaspórica, nesse âmbito, nos permite pensar as culturas nacionais

como constituintes de um dispositivo discursivo representado pela diferença como

identidade, perpassada por divisões e distinções internas, que se unem através da

prática instituída pelas diversas formas de poder.

Os motivos para a diáspora, segundo o autor, são vários: as pessoas migram

pela escassez de comida, de trabalho, de educação; pela precariedade econômica

etc. Esses são alguns fatores que originam a dispersão dos povos.

A diáspora, ainda, pode ser entendida como uma forma de dispersão de

certos grupos humanos que implica a separação de um povo como resultado de

preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica.

O Brasil, em seu processo de colonização portuguesa, escravizou o negro

africano tendo em vista o lucro. Essa prática imperialista realizou-se através da

extração da riqueza local brasileira, da fixação do colono português e da doutrinação

religiosa do povo nativo, os índios, juntamente com o africano em solo brasileiro.

O jesuíta Andre João Antonil assim expressou toda a importância do escravo africano para a colonização portuguesa: ―[são] as mãos e os pés do senhor de engenho‖. O escravo negro simplesmente gerava tributos para o rei e lucros para a burguesia metropolitana e para os comerciantes da colônia, garantia a honra e a riqueza da nobreza (...) (BORGES, MEDEIROS, D‘ADESKY, 2002, p. 24).

Os milhares de africanos que cruzaram o Atlântico rumo ao Brasil se

estabeleceram aqui na condição de escravos, foram ―coisificados‖ e marginalizados,

sem reconhecimento de uma história ou família. A colonização portuguesa tentou

impedir a esse povo cultuar suas tradições, costumes etc., e o valor que lhes era

imputado decorria apenas da força do trabalho que eles exerciam. No entanto, essa

tentativa não se sustenta devido ao fato de os sujeitos subalternizados elaborarem

processos de mesclagem culturais pelos quais as matrizes culturais africanas

sobreviviam em contato com a cultura branca europeia, em verdadeiros processos

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de hibridação cultural. É o que se observa, por exemplo, no personagem Joaquim

dos Anjos, o qual, apesar de ser caracterizado como um cantor ―pouco ambicioso‖

(BARRETO, 1998, p. 13) pelo narrador, encontra na prática da modinha um modo de

inserção cultural com o qual se identifica como sujeito híbrido.

Devemos nos lembrar que os sujeitos africanos escravizados mantinham

entre seus grupos diversos elos sociais, como irmandades religiosas, tradições,

crenças e artes próprias de sua cultura, como forma de subverter a imposição da

cultura branca etnocêntrica portuguesa. (BORGES, MEDEIROS, D‘ADESKY, 2002,

p. 25). Essa questão da religiosidade de matriz africana será retratada pela trama

Fera ferida.

Nessa narrativa, Engrácia, mãe de Clara de Clara dos Anjos, é a rainha da

irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Ela cria sua filha para ser sua

sucessora nessa ordem religiosa. A jovem fica em um colégio de freiras até a idade

de dezesseis anos. No entanto, quando Clara sai dessa instituição ela conhece

Cassi Jones e se envolve com ele, não desejando assumir o legado que a mãe lhe

impõe. Assim como na trama barretiana, Clara será abandonada por Cassi.

Entretanto, observaremos Engrácia percebendo que a condição do negro ainda é

desabonadora no contexto social no qual vivem, diferentemente da narrativa de Lima

Barreto, na qual essa descoberta é realizada por Clara dos Anjos.

Assim, na telenovela, o personagem Joaquim dos Anjos aparece ao lado da

filha Clara dos Anjos, defendendo-a das imposições que a mãe faz como rainha da

irmandade. Ele, como membro dessa associação religiosa, contesta tais atos de sua

esposa, Engrácia. Mas perceberemos também, no decorrer deste estudo, que essa

releitura da religiosidade afrodescendente seguirá em um sentido diferente daquele

apresentado pela narrativa barretiana no que se refere à inserção do sujeito numa

prática cultural com a qual ele pode estabelecer uma relação de identidade.

Veremos que a telenovela, ao encenar uma expressão religiosa de matriz africana

nos moldes como elabora a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e sua líder,

Engrácia, acabará por colocar em cena uma forma identitária reprimida, que se

manifestará por meio de um discurso elaborado sob o peso de uma ideologia branca

cristã. Desse modo, a telenovela promoverá uma propagação inadequada da prática

sociocultural do sujeito afrodescendente, acarretando vários paradigmas

preconceituosos acerca do contexto sociocultural desse indivíduo.

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Por sua vez, Wendy Walters (2005) considera que a noção de diáspora, em

muitos dos casos, reacende a nostálgica referência de lar (no sentido de habitação,

pátria), referindo-se à ausência desse lugar e, assim, pressupondo a reconstrução

desse ambiente, seja como for e/ou onde for.

Para Paul Gilroy, a concepção diaspórica se concebe também sob a forma de

conscientização, cuja noção se estabelece pela concomitância da probidade entre

pátrias e culturas (GILROY, 2001). Desse contexto nasce o sujeito da diáspora,

híbrido, resultado de um processo circular devido à constante negociação a que se

expõe, entendendo, com Stuart Hall, que o conhecimento intelectual e a experiência

desse indivíduo criam desordem nos modelos rígidos de identidade cultural. (HALL,

2003).

Suscitamos essas questões porque o Brasil sofreu um processo diaspórico no

início de sua colonização. Os africanos que aqui se estabeleceram foram privados

de manifestarem integralmente suas matrizes culturais. A escravização negra no

Brasil visou apenas aos valores do dominador europeu:

sem exceção, tudo que sobrevive ou persiste da cultura africana e do africano como pessoa no Brasil é a despeito da cultura branco-europeia dominante, do ―branco‖ brasileiro e da sociedade que, há quatro séculos reina coagindo-os a alienar a própria identidade pela pressão social, se transformando cultural e fisicamente em brancos. (NASCIMENTO, 1978, p. 123 – destaques do autor).

Pelas reflexões ora apresentadas percebemos a importância da narrativa

barretiana, que retrata, por meio de seus personagens, um contexto cultural no qual

há uma identificação mútua entre os sujeitos, ou seja, esses indivíduos se inserem

em um lugar de cultura com o qual eles se identificam e que, ao mesmo tempo, os

reconhece como seres humanos. Nesse sentido, ela difere da narrativa

telenovelística, a qual promove um deslocamento da questão identitária do sujeito

afrodescendente por ceder ao peso de um olhar ideologizado.

O senso comum da supremacia branca que permeou esse país emerge de

uma base colonial eurocêntrica, e nela a palavra de ordem centra-se no universo

burguês europeu. Para Muniz Sodré, a Europa se torna ―uma espécie de teatro para

as metamorfoses do ‗império‘, materializado no cristianismo como o poder de tudo

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crer; na técnica como o poder de tudo fazer; na ciência como o poder de tudo

conhecer e na filosofia como o poder de tudo saber‖. (SODRÉ 1999, p. 55 –

destaque meu). Assim, ela reduz o mundo ao seu critério de classificação, o que lhe

confere o direito de nominar, por exemplo, de ―não-homem‖ os índios, os negros, os

bárbaros, os selvagens, enfim todo aquele que não apresente ancestralidade

europeia.

É sob essa óptica que o modo de ser eurocêntrico se estabelece no Brasil

colonial e repercute no modo de viver das pessoas. Dialogando criticamente com

essa perspectiva como a sociedade brasileira se comporta, a escritura de Barreto

mostra que, ao ceder a esse modo de vida, o personagem Joaquim dos Anjos se

contenta em ter um emprego público medíocre de carteiro, levar a vida tocando

modas sem pretensões outras, casar-se com Engrácia e submeter a esposa a seu

jeito peculiar de viver e, logo, seguir a vida reproduzindo o modo de existência

burguês branco. Como, porém, essa forma de vida da sociedade burguesa e branca

que ele reproduz não lhe permite identificar-se como sujeito diaspórico, a educação

que ele dará a sua filha Clara não permitirá à moça desenvolver a consciência de

sua condição de mestiça. Desse modo, podemos pensar que o narrador barretiano,

ao contar a história de Clara, faz uma crítica à maneira como a população

afrobrasileira reproduz o jeito de viver eurocêntrico sem procurar desenvolver uma

consciência de sua identidade mestiça. Inserida em um sistema de vida que não é o

do sujeito diaspórico, Clara dos Anjos sucumbe ao sonho burguês de casar-se com

um homem branco. Ao fim da narrativa, grávida e desprezada pelo namorado,

restará a Clara concluir que ela ―não é nada nesta vida‖.

Sabe-se que a superioridade branca dita a ordem, seja ela de cunho social,

político e/ou cultural. A identidade negra advinda do contexto escravagista não

adquire visibilidade e se organiza sob um segundo plano, insignificante no contexto

macro social brasileiro,

no pressuposto da superioridade branca – algumas vezes implícita, pois deixava em aberto a questão de saber quão ―inata‖ era a inferioridade negra, e usava os eufemismos ―raças mais avançadas‖ e ―menos avançadas‖. (SKIDMORE, 1993, p. 64 – destaques do autor).

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No entanto, é interessante perceber que, no Brasil, tornou-se corriqueiro,

entre a população, afirmar que não existe discriminação do negro. Vivemos a

cordialidade racial, segundo Florestan Fernandes, que se caracteriza por ―um

preconceito de ter preconceito‖. (FERNANDES, 1972, p. 42). O estudioso, nesse

contexto, mostra que nós, brasileiros, ainda, não sabemos tratar com a diversidade e

acabamos por não assumir o nosso preconceito racial. Antes negamos a existência

do preconceito racial. Porém, o quadro discriminante da racialização brasileira

permite-nos afirmar o contrário, conforme pretendemos mostrar por meio do estudo

do corpus selecionado para esta pesquisa.

Esse discurso do ―preconceito de ter preconceito‖ irá aparecer na telenovela

Fera ferida quando, por exemplo, a personagem Engrácia é contextualizada numa

situação de poder, o que sugere, a princípio, a inexistência de discriminação do

negro nessa narrativa. Ela aparecerá como líder de uma irmandade negra e será

respeitada nessa condição até mesmo por brancos que necessitam de sua ajuda.

Porém, a maneira como Engrácia exerce o poder chama nossa atenção. A

personagem age de maneira arrogante e autoritária a maior parte da narrativa. Ao

final, ao que nos parece, ela será castigada por sua atitude: sua filha Clara não

quererá assumir o posto de rainha da irmandade e, além disso, sofrerá abuso sexual

pelo personagem Cassi Jones. Sem suportar a vergonha que a situação lhe trará,

Engrácia renunciará ao posto de rainha da irmandade. Esse será seu castigo. E com

ele atrevemo-nos a sugerir que a retratação da personagem, pela telenovela, reforça

e reascende o preconceito racial. Afinal, pela trama narrativa de Fera Ferida, vemos

que, quando o negro está no poder, ele reproduz o autoritarismo que sofreu ao longo

de sua história. No entanto, ao invés de tratar essa questão numa perspectiva

dialética, que explique a introjeção, pelo negro, de um comportamento

discriminatório, nos moldes como o faz Frantz Fanon (2005, 2009), a telenovela trata

a ação do afrodescendente numa perspectiva maniqueísta, atribuindo-lhe uma

característica negativa pela qual ele merece ser punido. Com isso, ela acaba

reproduzindo a maneira estereotipada conforme o negro sempre foi tratado, por

exemplo, pela literatura brasileira, que sempre atribuiu ao negro um caráter

pervertido em relação aos padrões e valores da sociedade branca eurocêntrica,

conforme nos mostra Domício Proença Filho (2004) em suas reflexões sobre a

trajetória do negro na literatura brasileira.

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A ideia de viver em uma democracia racial no Brasil se forma, inicialmente,

por meio de alguns discursos, como o de Gilberto Freyre em Casa grande &

Senzala (1933), cuja história revela as ―doces‖ relações entre os colonos e os

escravos, fatos que são retratados sob o tom da sutileza. Nesse contexto se

desconhece a violência à qual o negro fora submetido historicamente, e se mostra

como povos com características raciais distintas vivem em harmonia, como, por

exemplo, o português europeu, o índio e o negro africano. Na perspectiva de Freyre,

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo - há muita gente de jenipapo e mancha mongólica no Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (FREYRE, 2002, p. 301).

A história narrada por Freyre apresenta-se sob um tom poético, conivente

com a visão colonialista e muitas vezes descompromissado com a realidade da

escravização negra e indígena, bem como com os efeitos dela decorrentes, tais

como a exploração sexual da mulher, tanto a indígena quanto a negra. O discurso

de Freyre sugere que a própria existência da miscigenação seria uma evidencia de

que nunca teria existido discriminação em relação ao negro nem ao indígena na

formação étnica e cultural brasileira.

Cabe reconhecer, nesse âmbito, ainda, a obra de Sergio Buarque de

Holanda, Raízes do Brasil (1995), que apresentará uma mediação na divisão social

brasileira sob outra óptica, a do homem cordial, aquele que, na verdade, retém

vantagens individuais. O autor apresenta esse discurso para mostrar como a relação

familiar e a ligação estatal no Brasil se difere do resto do mundo. Tal fato cria uma

situação propícia para a constituição do sujeito cordial:

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A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. (HOLANDA, 1995, p. 146).

A partir desse imaginário social, fundado no império da família patriarcal, o

Brasil apresentará um sistema administrativo e uma gama de empregados que se

dedicam inteiramente a interesses particulares. Assim, não há uma separação do

público para o privado, e a compreensão da integração para um Estado burocrático,

que deveria ocorrer de modo impessoal, inexiste. Essa conduta nos leva a perceber

o surgimento do que virá a ser a cordialidade brasileira.

Tal perspectiva não escapa à crítica do narrador barretiano quando esse

descreve Joaquim dos Anjos, um sujeito originário de Diamantina que segue rumo

ao Rio de Janeiro como um serviçal de um Inglês. Após conhecer a cidade carioca e

não mais prestar serviços para o tal estrangeiro, Joaquim decide permanecer na

cidade maravilhosa, e assim consegue um emprego em um escritório, como

veremos a seguir:

Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.

- Não te darei coisa que valha a pena - disse-lhe logo o doutor -, mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde.

Viu bem que o "doutor" lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções. (BARRETO, 1998, p. 14).

Nota-se, nesse contexto, certa ironia do narrador à cordialidade que Joaquim

demonstra ter em relação a seu patrício. Aparentemente, aquilo que faculta a

Joaquim assimilar a cordialidade relaciona-se à sua acomodação à sua condição de

mestiço. Ou seja, Joaquim não se percebe como negro e tenderá a assimilar um

comportamento da sociedade burguesa e branca brasileira. Nessa perspectiva, a

cordialidade afetará não apenas a vida de Joaquim dos Anjos, mas também, e

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principalmente, o comportamento de Clara e seu modo de vida. Ela terá uma

formação débil, uma falta de maturidade, que ocasionarão a projeção negativa que

constituirá de si e que se formará em torno dela, dado que sustentará a sua falta de

faculdade de estabelecer julgamentos morais e éticos sobre os atos que realizará.

Outro ideário que perpetuou o mito da democracia racial no Brasil advém da

consolidação do ―racismo científico‖ e suas peculiaridades eugênicas. O movimento

eugênico, ocorrido no final do século XVIII e início do XIX, defendia a manutenção

de uma raça pura e pressupunha que o homem branco era o protótipo ideal dessa

raça; quem não era branco era inferior, e assim, alvo de discriminação. Nesse

sentido, o trecho acima nos revela a forma como Joaquim lida com a concepção

cientificista e fortalece os indicativos da estratificação social por ele vivido.

Tais fatos nos ajudam a compreender o tratamento velado dado à racialidade

brasileira. Nas palavras de Kabenguele Munanga, ―a retórica oficial se expressa

através das próprias contribuições culturais negras no Brasil, para negar a existência

do racismo e afirmar a proclamada ‗Democracia Racial‘‖ (MUNANGA, 1991, p. 09 –

destaques do autor).

Ações preconceituosas contra a etnia africana são perceptíveis no discurso

social brasileiro. Basta observar atentamente o contexto midiático, por exemplo. Nas

telenovelas a subalternidade dos personagens recai, geralmente, para os atores e

atrizes negras, como poderá ser observado em Fera ferida. No cenário televisivo,

percebemos, também, pouca aparição de apresentadores e jornalistas de cor.

Lilian Moritz Schwarcz explica que expressões como ―esse é um sujeito de

raça, você vale quanto vale sua raça, vai na raça‖, mais do que vestígios de algo

que já passou, remontam a uma lógica que se mantém e direciona uma visão de

nação ―como um resumo das raças que a compõem‖. (SCHWARCZ, 1993, p. 249).

Sob esses apontamentos, torna-se pertinente observar, a partir da narrativa

barretiana, a assimilação dos discursos dos segmentos sociais superiores pelos

outros estratos da população, como reconhecemos rapidamente pelas passagens

anteriores e veremos em análises posteriores através da voz do personagem

Joaquim dos Anjos. Nesse sentido, a obra de Barreto ressignifica a óptica racial por

meio da criação de ―uma literatura social politicamente militante, voltada para a

urgência do cotidiano em mudança e ao mesmo tempo inspirada na redenção do

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homem e na defesa do trabalhador oprimido pelas distorções sociais‖. (PRADO,

1980, p. 13). De forma divergente, a narrativa Fera ferida mostrará, em sua trama, a

desconstrução dos discursos produzidos sobre o negro, perspectiva que distorce a

racialidade e, consequentemente, demanda uma nova ordem, como a criação de leis

que se interpõem de forma a rever a questão racial.

A partir disso, vimos no Brasil um cenário em modificação, o tema racial

adquiriu seu lugar na mídia, tornando-se alvo de debates significativos e de combate

através de notícias e reportagens acerca do assunto. O racismo também tem sido

contestado a partir de certas leis4, como, por exemplo, o Projeto de lei nº 4.370/98,

do deputado Paulo Paim (PT-RS), que define a cota de 25% de presença obrigatória

de negros e afrodescendentes em atrações de TV, filmes e peças e, em peças

publicitárias, aumenta a exigência para 40%; entre outras. Uma ilustração de mais

um projeto em prol dos negros ocorreu no âmbito educacional brasileiro quando se

criou a Lei nº 10.639/03, contemplando a diversidade inter-racial e fazendo-a

presente em nossa constituição. Nela incluem-se a obrigatoriedade do ensino da

história africana e a valorização da cultura afrodescendente em território nacional. O

debate proposto por essa norma se estende para a Lei nº 11.645/08, que torna

obrigatório na educação básica, agora também, o estudo da constituição e da cultura

dos povos indígenas. As duas legislações pressupõem um resgate desses

elementos constituintes da nação brasileira e sua inserção mais cuidadosa na

educação básica.

Sendo assim, os objetos escolhidos para esse estudo nos permitem examinar

a ocorrência de discursos raciais que se fazem presentes na sociedade brasileira em

um contexto temporal significativo, compreendido pelo início e final do século XX, de

maneira a promover um novo modo de olhar o lugar do negro nessa sociedade.

4 A nosso ver, essas leis são formas de retificar, assim como de ratificar a existência do racismo. No

entanto, não é objetivo deste estudo debater esta questão.

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2 A QUESTÃO RACIAL

Este capítulo se constrói no intuito de esclarecer certos conceitos raciais

pelos quais necessitaremos percorrer em nossas análises sobre a obra Clara dos

Anjos e a telenovela Fera ferida. Sendo assim, traremos, a seguir, um discurso

pautado em abordagens teóricas que envolvem a racialidade em sua constituição ao

longo do tempo.

A incursão dessas secções tem a sua devida importância neste estudo na

medida em que retoma aspectos da racialização ora desconhecidos e/ou velados.

Logo, intenta-se, com esse capítulo, uma breve ―arqueologia‖ da questão racial, de

forma a consolidar as reflexões que se evocam a partir dos diálogos propostos com

as tramas narrativas em questão.

Sabe-se que ações anti-racistas têm se proliferado na atualidade social

brasileira, e se existe essa preocupação e necessidade, é porque a discriminação

existente na sociedade brasileira ainda é um fato real.

Mas há a preocupação em reverter esse quadro. A exemplo disso, no ano de

2005, a temática racial esteve presente nas discussões governamentais brasileiras.

A ordem do dia foi promover debates sobre a racialização brasileira, inserindo nesse

contexto projetos sociais novos, propostas educacionais, tais como a implementação

de cotas nas universidades etc. (SCWARCZ, 2005-2006, p. 06). A conscientização

quanto à alteridade do outro, nesse caso, a do negro, do afrodescendente, parece-

nos um assunto que ainda precisa ser discutido.

2.1 Situando o discurso da racialização

Raça, outrora, foi um conceito que se apoiou na Biologia. Sabemos hoje que

isso não faz sentido. Os princípios da ciência do século XXI nos confirmam esses

dados. Contudo, existe uma construção sociopolítica para o conceito de raça, pois

não há uma designação única acerca desse vocábulo. Entretanto, muitas vezes,

essa concepção surge sob um estado de coisas de ordem ideológica.

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São várias as denominações acerca do léxico raça, tais como conjunto de

características físicas de um sujeito (para identificar indivíduos – brancos, negros

etc.); elemento que permite reconhecer certos grupos humanos pertencentes a

determinadas regiões do mundo (raça africana, raça oriental, raça ariana etc.); e

ainda, elemento caracterizador de populações a partir de conceitos genéticos

(subespécie, espécie avançada etc.). A ideia de raça difere, assim, do racismo, pois

este é um fenômeno histórico que se relaciona aos embates recorrentes entre

determinados povos, tratando-se de algo ―que antecede sua própria definição‖.

(MOORE, 2007, p. 38).

Ao se pensar em raça, à maneira do Brasil, observa-se que esse termo, em

nossa cultura, expressa uma conotação política, sendo frequentemente usado nas

práticas sociais/culturais como meio de identificar certos atributos físicos, morais e

sociais, determinantes para a posição social/cultural dos sujeitos que engendram a

sociedade brasileira. Não obstante, ao abordar a racialização a partir de uma

perspectiva sociopolítica, o centro dessa discussão vem à tona. O negro, então,

adquire o direito de reivindicar seu lugar sociocultural, podendo, assim, desmistificar

e tornar conhecidas as afirmações excludentes das teorias raciais formuladas em

outros tempos a seu respeito. Por conseguinte, percebe-se que, para entender os

elementos geradores da racialização, se faz importante uma retomada da história da

própria humanidade.

Desde há muito, a escravidão racial tem um público alvo: os negros. Essa

realidade, sem precedentes, iniciou-se por volta do século IX, com o tráfico negreiro

pelo oceano Índico, e se estendeu ao resto do mundo. A partir do século XVI, com o

tráfico negreiro pelo oceano Atlântico, torna-se um fenômeno de proporções

mundiais, seja na área demográfica, econômica, política e cultural, dado que esbarra

e converge nas apropriações do mundo capitalista. (MOORE, 2007, p. 250).

Contudo, por volta do século XVIII-XIX, na era do iluminismo, a partir de

associações classificatórias, como a científica e a religiosa, o conceito de raça se

torna determinante para a segregação racial. Essa noção, segundo Niro (2003),

surge como maneira de aquietar a consciência ocidental e permitir-lhe justificar-se

em seu processo de escravização do homem negro africano, fato que, mais uma

vez, promove a soberania da Europa.

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Diante disso, não havia nada mais a fazer, senão criar uma ideologia para

sustentar o tratamento discriminatório destinado a uma importante força de

sustentação do quadro econômico da Europa: o negro. A sociedade, que já via esse

sujeito de forma bestial, agora o toma também como inferior. Nessas circunstâncias,

o crescimento das fronteiras europeias faz com que o resto do mundo torne-se um

simples ―objeto dos processos de acumulação capitalista‖ (MOORE, 2007, p. 127),

fato categórico para a promoção, por parte da Europa, de um sistema econômico

universal e racista em relação aos países conquistados.

Assim, a hegemonia europeia define, por exemplo, a ideia de identidade, seja

no plano político, religioso, social etc. O indivíduo, nesse momento, ou é ―o ser

humano universal‖, que se molda através de uma noção cultural que reflete a

realidade da vida burguesa europeia, ou se enquadra como ―inumano universal‖,

tendo atributos tais como ―não-homem‖: ―bárbaro‖, ―negro‖, ―selvagem‖ (SODRÉ,

1999, p. 54).

Percebe-se, nesse contexto, que há um lastro simbólico estruturando as

relações entre os homens. A partir dessa ótica, o racismo parece manifestar-se sob

níveis distintos, como explica Moore (2007):

(a) através de processamento simbológico pelo qual uma coletividade, convertida em grupo dominante, estabelece uma forma de rejeição de uma dada alteridade fenotípica, com o propósito de exercitar a dominação grupal de maneira efetiva sobre o outro inferiorizado;

(b) pela organização da sociedade numa ordem sistêmica, de acordo com um critério especificamente fenotípico, para exercer uma gestão monopolista dos recursos globais, de modo a excluir o grupo dominado e subalternizado;

(c) a partir da elaboração de estruturas intelectuais normativas (as ideologias), sob a seguinte ordem: regulamentar as relações entre dominados e dominantes; inculcar um sentimento permanente de derrota no segmento subalternizado; criar uma convicção narcísea de inquestionável superioridade e invulnerabilidade no setor dominante. (MOORE, 2007, p. 248).

Em síntese, a gênese do fenômeno racial, como delineada acima, manifesta-

se, respectivamente, a partir: de certo grupo dominante - exemplo, quando um dado

colonizador elege determinados signos sociais como certos; da distinção de classes

como determinante para a segregação; da superioridade de um povo cuja ideologia

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é ressaltada como a ideal – a soberania social/cultural de qualquer colonizador é

sempre imposta ao colonizado.

Os movimentos mencionados, portanto, quando interligados, parecem revelar

como se dão as bases sustentadoras da racialização. Todavia, pensando em um

processo contrário, percebe-se a importância da luta anti-racista como maneira de

romper com essas ações advindas do plano sócio-histórico-cultural elaborado e/ou

desenhado segundo as demandas ontológicas acerca do outro, aqui, o negro.

Nesse contexto, compreender a racialização – a relação entre o sujeito

branco e o negro – torna-se algo complexo, sobretudo porque ―o branco está

fechado na sua brancura. O negro na sua negrura.‖ (FANON, 2008, p. 27). O

embate entre o negro e o branco tornou-se uma questão política, além de

socioeconômica, já que ―a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita

tomada de consciência das realidades econômicas e sociais.‖ (FANON, 2008, p. 28).

O complexo de inferiorização, assim, se baseia no processo econômico e na

―epidermização dessa inferioridade‖ (FANON, 2008, p. 28):

Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008, p. 34).

Ao negro nega-se tudo, a pobreza torna-se parte de sua natureza social, sua

pele o difere dos demais. A cultura e a identidade dessa etnia se perdem diante do

domínio do colonizado. O discurso da soberania social branca impõe a esse

indivíduo, o negro, uma sobredeterminação quanto ao modo de ser/agir/viver etc.

Um fato curioso explicitado por Fanon diz respeito à linguagem: ―quando

encontro um alemão ou um russo falando mal o francês‖ há a tentativa, segundo ele,

através da gestualidade e/ou outro modo de se comunicar, de ceder a esses sujeitos

as informações que eles necessitam. No entanto, em se tratando de um negro,

―nada é parecido‖, o olhar que se tem dele é o de aculturação, incivilização, de

negação do seu passado histórico. (FANON, 2008, p. 46). A origem da mobilização

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da resistência negra pode surgir desse contexto, dessa necessidade de provar ao

mundo branco a existência de uma civilização negra. (FANON, 2008, p. 47).

Lembremo-nos aqui que não só o branco impôs ao negro essa condição

inferiorizante, pois o próprio negro sofreu em África um processo racializante: ―os

menos afortunados eram destinados às fazendas de escravos, onde trabalhavam

sob as ordens de um feitor e o máximo a que podiam aspirar era ter uma parcela de

terra para trabalhar em proveito próprio.‖ (PRIORE & VERNÂNCIO, 2004, p. 18). Ou

seja, o próprio negro africano escravizava o seu semelhante.

Uma das explicações para tal processo pode ser encontrada pela desolação

natural sofrida em África, como, por exemplo, aquela resultante dos grandes

períodos sem chuva que provocava a aridez do solo e a escassez de comida,

culminando numa situação de pobreza absoluta, fazendo os africanos se vender

como escravos como único meio de sobrevivência. (PRIORE & VERNÂNCIO, 2004,

p. 11).

A organização familiar em África também motivou a segregação. ―Sem filhos

está nu‖ é uma espécie de slogan que mostra que a virilidade era fundamental para

que um homem fosse honrado. A mulher fértil tinha seu lugar de aceitabilidade na

sociedade, a estéril não. Os filhos eram a garantia de que os pais teriam uma velhice

assegurada. Além de garantir a ancestralidade, eles garantiam a existência de seu

grupo nas sociedades, às vezes de maneira violenta. Os indivíduos que não

possuíam descendência corriam o risco de serem agregados, muitas vezes na

condição de escravos, daqueles grupos étnicos mais fortes. (PRIORE &

VERNÂNCIO, 2004 p. 12).

Estabelecer que a exploração colonialista fosse a grande causa para a

separação de negros e brancos é uma assertiva inviabilizada pela própria história

africana, como vimos anteriormente. Mas, torna-se interessante pensar que as

formas de exploração se assemelham, buscam se sustentar através de algum

―decreto bíblico‖, mítico e/ou sagrado, já que ―todas as formas de exploração são

idênticas, pois todas elas são aplicadas a um mesmo ‗objeto‘: o homem.‖ (FANON,

2008, p. 86 – destaque do autor).

Na contemporaneidade, tornou-se um desafio saber se o negro superaria o

sentimento de inferioridade adquirido em decorrência do processo colonial: ―no

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negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma

incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável‖.

(FANON, 2008, p. 59).

A inferiorização do negro ―é o correlato nativo da superiorização europeia.

Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado‖. (FANON,

2008, p. 90).

Na situação colonial, o colonizado aceita os valores do colonizador como uma

lei. A posição de soberania, e assim, a legitimidade de poder se instaura nas mãos

do colonizador. ―Todo mundo já disse para o negro que a alteridade não é do outro

negro, é do branco‖ (FANON, 2008, p. 93):

O negro não deve mais ser colocado diante desse dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se o encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a ―manter as distâncias‖; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais. (FANON, 2008 p. 96 – destaques do autor).

O colonialista precisa sempre se justificar, a fim de manter sua conduta

doutrinária junto ao colonizado. Ele estabelece sua história, seu costume, e o que é

sociológico esse colonizador batiza como biológico, ou ―melhor metafísico‖. (MEMMI,

1977, p. 70). A opressão ao modo de viver do colonizado se instaura, e esse acaba

ou por odiar a si mesmo ou ―adorar‖ seu benfeitor colonialista.

Nesse contexto, funda-se uma relação de autoritarismo, desprezo e

exploração do Outro. Os direitos dos seres são negados e subjugados por atos de

violência cometidos pelo colonizador, como, por exemplo, aqueles narrados nas

histórias brasileiras acerca do tráfico negreiro, de açoites de negros e de agressões

vivenciadas pelos escravos em solo brasileiro, entre muitas outras atrocidades que

estabelecem, para esse indivíduo, uma condição subumana.

Assim, o indivíduo negro precisa do confronto que procede de objetificação da

sua alteridade: ―na psique colonial, há uma negação inconsciente do momento

negador, fendente, do desejo‖. (BHABHA, 1998, p. 86). A representação do espaço

do Outro não pode ser vista somente através da ótica fenomenológica fixa que se

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opõe ao eu, como uma reprodução da consciência cultural estrangeira. Ela deve

também ser encarada como uma ―negação necessária de uma identidade primordial

– cultural ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao

cultural ser significado como realidade linguística, simbólica histórica‖. (BABHA,

1998, p. 86).

2.2 O racismo brasileiro

No Brasil, o racismo surge de uma maneira ―cordial‖, ou parece mesmo não

existir. A telenovela Fera ferida mostrará, em sua parcialidade narrativa, a

proporção dessa perspectiva, como será observado nas seções que se seguem a

este capítulo, principalmente, no que diz respeito à condição da personagem

Engrácia enquanto rainha da irmandade negra da cidade ficcional de Tubiacanga.

Tomando as palavras de Schwarcz (2000): a racialidade brasileira apresenta

uma ―especificidade‖ singular em seu ―preconceito de ter preconceito‖

(FERNANDES, 1972). E entender esse processo demanda uma retomada da

história.

A questão racial, como se pode observar, emerge desde os tempos mais

remotos, e é interessante pensar que o Brasil, mesmo com mais de quinhentos

anos, ainda tem muito pouca idade diante da existência europeia. Os preceitos

sociais, morais, culturais etc. advindos do continente europeu foram contundentes

para o processo de colonização brasileiro.

A noção de raça que se desenvolve no ideário social brasileiro aparece, num

primeiro momento, por volta do século XVIII, quando se começa o questionamento

acerca das noções de desigualdades/diferenças humanas.

As pesquisas desenvolvidas no Brasil acerca da racialização, nessa época, se

fizeram sob o julgo do conhecimento trazido por estudiosos europeus para essas

terras – a visão nacional brasileira repetia a europeia. Ao continente americano

recaía o título de ―debilidade‖ e ―imaturidade‖, lugar onde os homens são devastados

pela ―preguiça‖, pela não ―sensibilidade‖ e pela fraqueza mental, e mais, onde os

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seres humanos da época são vistos como ―bestas decaídas‖. (SCHWARCZ, 2000, p.

16).

Um estudo realizado no Brasil entre os períodos de 1817 e 1820, percorrendo

grande parte do território brasileiro, apontou que a situação do país permanecia

em grau de inferior da humanidade, moralmente, ainda na infância, a civilização não altera o primitivo, nenhum exemplo o excita e nada o impulsiona para um nobre desenvolvimento progressivo. (PAW apud SCHWARCZ, 2000, p. 16).

O Brasil era visto como um local que tentava rumar para a civilidade; no

entanto, não conseguia nada mais que a degradação de sua ―espécie‖. Desde logo,

percebe-se que a visão acerca de nosso país era a de pura degenerescência

humana. A ideia de inferioridade populacional começa a se arraigar no imaginário

social, se tornando uma concepção arrebatada pelo senso comum da época.

Se as teorias raciais percorreram um trajeto especifico no contexto europeu e norte-americano, o mesmo pode ser dito do caso brasileiro. Tomaram força e forma conjuntamente com o debate sobre a abolição da escravidão, transformando-se em ―teorias das diferenças‖, na medida em que recriaram particularidades e transformaram em estrangeiros aqueles que há muito habitavam o país. (SCHWARCZ, 2000, p. 32 – destaque da autora).

Cria-se nesse contexto a seguinte máxima: ―quem pensa em raça esquece o

indivíduo‖. O jogo das relações sociais aqui despreza índios e negros e revela a

superioridade dos brancos, nascendo daí um racismo particular. (SCHWARCZ,

2000, p. 32). O problema acerca da racialização brasileira revela, então, a

desigualdade entre os homens mestiços, negros e índios de um lado, e homens de

direito e ciência de outro, sendo este último o grupo que irá ditar as leis e deveres

daqueles que só fazem degenerar o país.

Diante dessas questões, arriscamos uma conjetura: parecem existir

circunstâncias específicas para a constituição da dinâmica que envolve a racialidade

brasileira. O trabalho de Moore (2007) acerca desse assunto revela que esse

processo acontece a partir de:

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(i) ―fenotipização de distintas civilizações e culturas‖, que pode ser

entendida a partir das características singulares de um povo como

justificativa para sua exclusão, ou subalternização;

(ii) ―simbologização da ordem fenotipizada por meio de transferência do

conflito concreto para a esfera do fantasmático‖, que remete a algo de

ordem metafísica, isto é, as crenças sobre o fenótipo humano se

realçam a ponto de alguns grupos considerarem isto uma

bestialidade/pecado/etc.

(iii) ―estabelecimento de uma ordem social baseada numa hierarquização

raciológica, mediante a subordinação política e socioeconômica

permanente do mundo populacional conquistado‖, instância na qual

nos parece que a disposição de caráter capitalista prevalece.

Nessa perspectiva, o argumento racial brasileiro ganha força, tendo a seu

favor pressupostos etnocêntricos de ordem capitalista, cientificista e religiosa que

fazem emergir uma formação nacional e social desqualificadora para todo aquele

sujeito que não pertença à elite branca e/ou europeia.

2.3 A raça na atualidade

Na atualidade, a ideia racializante parece estar perdendo a credibilidade pela

biologia e também pela antropologia. O pensamento de superioridade racial tem sido

rejeitado pelas ciências sociais e até pela racionalização do senso comum, sendo

―retrabalhado pelos discursos midiáticos‖. Esses estudos consideram que raça, em

sujeitos falantes, existe apenas uma, a humana. (PAIVA & SODRÉ, 2004, p. 143).

O preconceito racial, assim, abandona os seus fundamentos biológicos,

porém entranha-se pelas razões socioculturais, apreendido pela supremacia branca.

Se raça não existe, a relação de racialização ainda continua trazendo ―o sentimento

de dissimetria ou disparidade nas relações sociais‖, fato este causado pela ilusão

racial, isto é, pela superioridade de um modelo étnico ou fenotípico sobre os outros.

Para Paiva e Sodré,

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40

o preconceito racial já pode mesmo abrir mão da palavra ―racial‖, pois hoje ele se difratou (...) para uma gama ampla de pequenas certezas, que estão ancoradas no senso comum da branquitude e chegam junto com uma miríade de proposições culturais hegemônicas. (...) O problema, como se pode perceber, persiste neste terceiro milênio, sob múltiplas astúcias da razão e do sentimento. (PAIVA & SODRÉ, 2004, p. 144 – destaque do autor).

Hall (2003) aponta que o trabalho que se volta para a questão da raça ainda é

um desafio. É necessário, segundo o autor, tratar esse assunto de maneira cautelar,

para que se obtenha um reconhecimento sério acerca dessa discussão diante da

teoria política, do ideário jornalístico e academicista. Para autor, a veleidade sobre

essa temática esta sendo rompida na medida em que os debates sobre a racialidade

se interpõem na consciência pública. ―Encontramos agora ‗raça‘ entre parênteses,

‗raça‘ sob rasura, ‗raça‘ em uma nova configuração com etnicidade.‖ (HALL, 2003, p.

52 – destaques do autor). Nessa perspectiva, raça poderá ser trabalhada como uma

categoria discursiva que incide sobre o campo político, social e cultural, se

organizando sob um sistema de poder socioeconômico que explora, além de excluir.

Van Dijk (2008) explica que existe uma preocupação atual pelo estudo

acadêmico acerca do racismo, no intuito de desmistificar a negação racial, fato que

acontece, por exemplo, na América Latina, em países como o Brasil e a Venezuela,

onde se fala em uma ideologia de democracia racial.

Para o autor, o racismo não é algo inato, é aprendido/reproduzido; os

indivíduos não nascem racistas, eles aprendem a sê-lo com seus pares (família,

escola, mídia etc.).

Muitas práticas de racismo cotidiano, tais como as formas de discriminação, podem até certo ponto ser aprendidas pela observação e imitação, mas até mesmo estas precisam ser explicadas, legitimadas ou sustentadas discursivamente de outro modo. (DIJK, 2008, p.15).

Hoje, a apresentação dos discursos políticos acerca de imigrantes e/ou

minorias étnicas ocorre de maneira eufêmica, revestida sob uma discursivização

positiva, como tentativa de atenuar o olhar discriminante sobre o outro, fato que

dissimula a satisfação política de se viver numa sociedade multicultural.

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O multicultural, segundo Hall, tornou-se um ―termo qualitativo‖, expõe

particularidades sociais e problemáticas da ―governabilidade‖ apresentada por

sociedades que têm grupos culturais distintos convivendo e buscando, juntos,

construir uma comunidade, ―ao mesmo tempo em que retém algo de sua identidade

original‖ (HALL, 2003, p. 52).

Entretanto, sabemos que a possibilidade de apropriação dos aspectos

culturais e/ou sociais pertencentes ao Outro, o negro é pouca ou nula – a negação

dos segmentos afrodescendentes da sociedade torna-se contundente diante do

poder inscrito nas mãos das elites simbólicas brancas.

Discursos racistas surgem através de atitudes socialmente compartilhadas

por determinados grupos. Há a necessidade de apreensão desses contextos

racistas, na tentativa de explicar esse engajamento racial.

É interessante pensar que no Brasil o escopo racial se fixa pela negação do

mesmo. A contemporaneidade não precisa mais do conceito de raça em seu

discurso. Grande parte dos países ocidentais exerce a racialização antinegros e

antiárabes, e para isso, não mais utiliza as noções de superioridade e inferioridade

racial, apenas as concepções de diferenças culturais e identitárias. (MUNANGA,

2005-2006, p. 53).

Raça, nessas circunstâncias, aparenta ser uma realidade social e política -

uma categoria social que exclui. Os atos raciais existem socialmente e independem

da aceitabilidade do Outro,

O discurso racial torna-se então ―culturalizado‖ ou ―mentalizado‖, (...) a substituição da noção zoológica de raça pela noção de cultura implica um deslocamento da problemática (...) o que torna o pluralismo cultural um dos fenômenos aceitos por todos hoje, porque nele se esconde o racismo. (MUNANGA, 1996, p. 18 – destaques do autor).

Sob essas circunstâncias cruzam-se as discussões e polêmicas quanto aos

direitos dos indivíduos (no âmbito da mistura cultural), das identidades coletivas,

pois os discursos com o propósito racial ou antirracial militante acabam se

transpondo sob o mesmo jogo da linguagem, percorrem as mesmas evidencias e

visam realizar valores iguais. (MUNANGA, 1996).

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Nesse sentido, existe uma antinomia do antirracismo, fundada a partir de uma

dualidade retórica: primeiro, ela se baseia nos direitos do homem que se estabelece

como indivíduo pertencente ao grupo humano (tem garantia de sua humanidade), e

segundo, ela se fixa no direito à identidade comunitária, no direito à diferença que se

perpetua no grupo (étnica, cultural etc.). (MUNANGA, 1996, p. 19).

Ainda existe a necessidade da luta contra a alienação, mais até do que contra

a segregação, já que a perda de identidade é algo sério, talvez até mais do que o

isolamento de uma etnia. (MUNANGA, 1996, p. 19). Estudiosos, como por exemplo,

Kabenguele Munanga, chamam a atenção para a necessidade de se fazer alguma

coisa para mudar a representação negativa dos grupos minoritários, sugerindo que

uma política de reconhecimento de uma identidade seria um bom começo.

Nesse bojo, o conceito de identidade proposto por Hall torna-se proeminente

para essa discussão. Para o autor a identidade como um conceito, deve ser tomado

―sob rasura‖, pois, para ele, a identidade se realiza ―no intervalo entre a inversão e a

emergência: uma ideia que não pode mais ser pensada da forma antiga, mas sem a

qual certa questões-chave não podem ser sequer pensadas.‖ (HALL, 2000, p. 104).

A noção de identidade, segundo Hall, não se apresenta de modo

essencialista. Trata-se de uma concepção estratégica e posicional, pois não se

traduz sob o significante habitual, ―não assinala aquele núcleo estável do eu que

passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da

história‖. (HALL, 2000, p. 108). Esse conhecimento rompe com a ideia de um eu

imutável, e não faz referência à identidade cultural traduzida pela história de um

povo, sua ancestralidade, tradição etc.

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas, que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. (HALL, 2000, p. 108).

As identidades pensadas dessa forma sofrem modificações históricas e estão

sempre sob a intervenção das mudanças, das rupturas e das metamorfoses que

elas tangenciam. Nessa perspectiva, os debates sobre identidade têm que ser

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construídos na emergência da modernidade e da globalização instaurada no

planeta.

Os processos de migrações forçadas, como também daquelas livres,

contribuem da mesma forma para a crescente problemática sobre a identidade. Ao

pensar em identidade deparamo-nos com indagações como ―quem nós somos‖, ―de

onde nós viemos‖, ―quem nós podemos nos tornar‖, ―como nós temos sidos

representados‖, ―como essa representação afeta a forma como nós podemos

representar a nós próprios‖. (HALL, 2000, p. 109). Essas indagações surgem, de

acordo com Hall, sob a invenção da tradição, ou pela própria tradição, nos fazendo

ler as várias transformações a que estamos sujeito.

Como as identidades se constroem dentro e não fora do processo discursivo,

precisamos entendê-las como produções históricas e institucionais que presidem no

interior de formações e práticas discursivas específicas. (HALL, 2000, p. 109).

Nesse sentido, compreendemos que a perspectiva identitária pode, através

das posições que o sujeito assume para si, promover a apreensão de novas

produções de sentido acerca das práticas discursivas que buscam interpelar o

indivíduo, nesse caso, as que dizem respeito à racialidade.

Assim, entender, esclarecer e tentar formar massa crítica para que se

realizem discussões pertinentes acerca dos fatos de ordem racial tornou-se, desde

já, um caminho fundamental no que diz respeito às mudanças das concepções

racialistas que ainda vigoram no Brasil e no mundo, e nessa pesquisa, mais

propriamente, torna-se uma apropriação relevante para apreender a temática racial

apresentada pelas tramas Clara dos Anjos e Fera ferida.

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3 CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA: EVENTOS COMUNICACIONAIS

O texto literário, assim como o midiático, não se ―move‖ sozinho; ele se

estabelece a partir das interações compartilhadas entre sujeitos, que se reconhecem

e se descobrem através de possibilidades comunicacionais. Nessas circunstâncias,

admitimos que nossos objetos a priori se ordenam sob certos enunciados que

pressupõem um agir sobre os outros.

Considerar os enunciados como atos é, então, admitir que eles são realizados para agir sobre os outros, mas também para levá-los a reagir: o dizer não é somente fazer, mas também fazer fazer. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 73).

Nesse sentido, a obra Clara dos Anjos, de Lima Barreto e a telenovela Fera

ferida, de Aguinaldo Silva e coautores podem ser vistas como ―eventos linguísticos‖,

no sentido atribuído por Culler, que conjectura nessa instância um modo de

imprimir/expressar uma ficcionalidade constituída por meio dos sujeitos ficcionais

(seres de fala), acontecimento, público, dêiticos (traços orientadores da linguagem

que se relacionam com o momento elocutivo, tais como pronomes, advérbios etc.)

(CULLER, 1999, p. 37). Esses projetam mundos ficcionais, constituídos através da

enunciação, ou seja, da relação existente entre a língua e o mundo, dado que

permite a representação dos fatos enunciativos, além de definir os acontecimentos

no tempo e no espaço. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 193).

As narrativas em questão, sob a óptica apresentada, se estruturam sob um

viés linguístico e psicológico, ambos transmitidos de maneira histórico-cultural,

orientados pelo nível de domínio linguageiro de cada sujeito e por meio da junção de

práticas sociocomunicativas estabelecidas em certos contextos, nesse caso sob a

práxis racial.

Sendo um produto da televisão, a telenovela se faz sob o avanço tecnológico

instituído pela ordem ideológica do mercado e/ou do mundo globalizado, tratando-se

de uma espécie de monopólio, o que a torna, nesse contexto, um meio

comunicacional propício para inserir ou defender certas tendências. A obra literária,

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ao seu modo, também busca consolidar certo ideário, prerrogativa que nos motiva a

indagar sobre a construção do discurso racial brasileiro nesses contextos.

Dessa maneira, tanto o romance barretiano como a telenovela nos levam a

um tipo de comunicação intersubjetiva, constituída sob um plano discursivo,

apreendendo que ―o discurso (...) não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou

os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual

nos queremos apoderar.‖ (FOUCAULT, 1996, 10).

Os discursos produzidos por essas obras, portanto, trazem a racialização a

partir de circunstâncias históricas distintas e que, certamente, revelam, cada uma a

seu modo, as relações interétnicas decorrentes do meio social que se erige no Brasil

– fato que iremos contrastar, pressupondo, nesse sentido, um resgate das relações

entre negros e brancos estabelecidas nesse espaço temporal.

A racialidade que nos propomos reconstruir se faz sob o plano dos

enunciados constituídos pelas narrativas Clara dos Anjos e Fera ferida e se

realizará por meio de um diálogo entre campos de saberes distintos, a saber, o da

linguística e o da literatura.

Nessa perspectiva, o texto não mais é estudado por si próprio, tampouco por

seus meros efeitos; ele se fixa por seu viés subjetivo, o cunho sociocultural e

ideológico é imprescindível para a sua compreensão. (JOHNSON 2010). Assim,

acreditamos que os objetos escolhidos para essa pesquisa podem apontar aspectos

pertinentes para tratar e/ou legitimar questões importantes sobre a racialidade

brasileira, pois

as estórias, obviamente, não se apresentam apenas na forma de ficções literárias ou fílmicas; elas se apresentam também na conversação diária, nos futuros imaginados e nas projeções cotidianas de todos nós, bem como na construção de memórias e histórias – de identidades individuais e coletivas. (JOHNSON, 2010, p. 69).

Através dessas reflexões, percebe-se a possibilidade de se construir, por

meio desses atos de linguagem, novas redes de significações, modos distintos de

olhar e de apreender os sentidos instaurados pelo (re)arranjo entre a literatura e a

telenovela acerca das relações interétnicas constituintes da formação brasileira:

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Ao longo de nossa história, o fenômeno da mistura de raças e culturas recebeu distintos tratamentos, indo da idealização romântica de uma terra sem conflitos ao mito da democracia racial, por um lado; e da condenação racialista típica do século XIX ao fundamentalismo de muitos segmentos contemporâneos, que rejeitam a mestiçagem e defendem a existência de uma possível essência racial negra, por outro. (DUARTE, 2005, p. 113-131).

Reconhecendo, portanto, os lugares sociais, as circunstâncias históricas e

culturais que permeiam a presença da etnia africana no Brasil é que buscamos

discutir, analisar e revelar as possíveis construções de sentido instauradas pelos

discursos advindos desses objetos de estudo.

A partir de tais perspectivas, abranger a temática racial conforme ela se faz

presente nas camadas elitistas e populares brasileiras e retomar essa temática num

discurso produzido por meio de um instrumento de transmissão de massa tão

peculiar ao Brasil, quanto a telenovela, a princípio, se mostra um fato inusitado, mas

pertinente. Afinal, esse assunto precisa ser ratificado, já que a sociedade brasileira

trata a questão racial de maneira velada. O comprometimento ideológico no sentido

de reacender a discussão e a conscientização acerca da constituição racial se faz

necessário no contexto social em que vivemos.

3.1 O reconhecimento dos campos teóricos

Resgatar em textos literários e midiáticos algum elemento axiológico em que

se interpõe o imaginário coletivo e que conduz certas atitudes socioculturais de um

povo, como a racialidade, é, em certa medida, reconhecer a existência de uma

interação entre os sujeitos que se realiza a partir de diferenças existentes entre

negros e brancos, de uma hierarquia global que orienta a emergência dessas

diferenças, e ainda, de uma forma de poder que se legitima em torno dela.

Diante disso, a interface entre a Análise do Discurso – AD – e as questões da

identidade e da alteridade propostas para esse estudo se sustentam, pois estamos

lidando com discursos advindos de práticas raciais estruturadas a partir de atos

enunciativos realizados por meio da relação entre brancos e negros, presentes em

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narrativas distintas, mas que se constroem sob determinados símbolos, crenças,

comportamentos, juízos de valores etc., concebidos pela intersubjetividade e,

sobretudo, a partir de um olhar peculiar sobre o outro.

A AD, nessas circunstâncias, se torna uma ferramenta imprescindível para a

investigação discursiva acerca da constituição racializante dos objetos de estudo.

Entretanto para tal estudo, necessitamos de uma noção mediadora, que nos permita

percorrer por essas questões veladas, como o racismo. Sendo assim, nos

apropriamos de certas pesquisas que tratam da racialidade advindas dos Estudos

Culturais – EC –, área do conhecimento que se estabelece sob tendências distintas,

porém, apresenta um foco singular, a cultura, e ainda, que se caracteriza por uma

dimensão multidisciplinar, que busca romper com as fronteiras tradicionalmente

estabelecidas pelas universidades, pois a preocupação inicial dos EC se constitui a

partir das pesquisas vinculadas aos produtos da cultura popular e dos mass media,

expressões culturais da contemporaneidade e que presidem nossos objetos.

O ponto inicial das discussões acerca dos Estudos Culturais inicia-se na

academia britânica, tendo como principais representantes Raymond Williams, E. P

Thompsom e Richard Hoggart.

Willians, em suas pesquisas sobre os meios comunicacionais, pressupõe que

estes evocam significados culturais, como os textos produzidos em um determinado

tempo histórico. A mídia provocaria impactos comportamentais que se

externalizariam a partir de certas intenções, de caráter persuasivo ou subjetivo. Além

disso, o significado veiculado pela mídia envolveria as pessoas, promovendo a

intersubjetividade sob um dado momento cultural e histórico. (WHITE, 1998, p. 60).

Os trabalhos de E. P. Thompsom e Richard Hoggart acerca da cultura

presentificada pela classe de trabalhadores também tiveram seu grau de relevância

para os Estudos Culturais:

Esta cultura é apresentada de dentro, isto é, interpretada pela própria classe trabalhadora, apresentada não como um grupo passivamente explorado, mas como um conjunto de pessoas que criam sua própria tradição paralela, a despeito da modernização da mídia de massa e da incorporação à cultura massificada. (WHITE, 1998, p. 60).

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Os primeiros olhares para o que viriam a ser os Estudos Culturais não se

limitariam a um único campo do saber, mas retomariam os elementos definidos por

outras disciplinas, estabelecendo uma nova correlação para as formas de cultura.

Nota-se que os EC agregam trabalhos advindos da crítica literária, entretanto,

confluem também com outros campos do conhecimento, como a sociologia, a

história, a antropologia, a linguística etc. O interessante desse entrecruzamento,

certamente, é que ele se atém aos vários significantes culturais que cada

abordagem revelará.

Outra figura importante para a formação dos EC foi Stuart Hall (1969-1979),

motivador de pesquisas etnográficas sobre os meios massivos e de investigações de

práticas de resistência em subculturas. Para Ana Carolina Escosteguy,

A proposta original dos cultural studies é considerada por alguns como mais política do que analítica. Embora sustentasse um marco teórico específico – amparado principalmente no marxismo, a história deste campo de estudos está entrelaçada com a trajetória da New Left, de alguns movimentos sociais (Worker’s Educational Association, Campaign for Nuclear Disarmament) e de publicações – entre elas, a New Left Review – que surgiram em torno de respostas políticas à esquerda. (ESCOSTEGUY, 2010, p. 141-142 – destaque da autora).

Na primeira década do surgimento dos EC observou-se que a ênfase de Marx

nas relações de classe compatibilizava com o foco dos trabalhos desenvolvidos pelo

Centre for Contemporary Cultural Studies – CCCS –, da Universidade de

Birmingham, Inglaterra na cultura popular, vista como um ―reflexo da luta implícita da

classe operária por sua autoexpressão‖. (SCHULMAN, 2010, p. 178).

Com a entrada de Hall no referido Centro, a transformação viria por meio de

textos midiáticos, mostrando como a ideologia presentificava as ideias dos grupos

dominantes. Ao reler os trabalhos de Antonio Gramsci, o Centro lança um novo olhar

aos estudos do gênero e da raça, passando a ver a cultura popular como um lugar

de resistência e de embates em potencial. (SCHULMAN, 2010, p. 179).

Os EC rompem com a ideia de que a cultura só poderia ser expressa através

de pesquisas consolidadas pelo cânone tradicional. Nessa perspectiva, a cultura

relaciona-se a um domínio do campo do conhecimento que permite a produção do

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sentido através das vivências humanas, que se organizam sob as práticas sociais,

delineando, segundo Hall, ―um modo de vida global‖. (HALL, 2003, p. 127).

Hall aponta que, por várias vezes, o desenvolvimento dos EC foi interrompido

por ―verdadeiras rupturas‖, isto é, por novos pensamentos, desviando o foco do

Centro, tal como aconteceu com os estudos acerca do feminismo e da questão

racial. (HALL, 2003, p. 210).

Nesse âmbito, os trabalhos sobre identidade, pós-colonialismo,

multiculturalismo etc., problematizam a questão da raça e da etnicidade e

estabelecem uma nova ordem para se debaterem a racialidade e as relações de

poder assimétricas manifestadas nas atitudes preconceituosas existentes entre

grupos humanos diversos, isto é, não-europeus. Questões como as de cunho

sexual, gênero etc. também ganham destaque nesse momento dos EC, constituindo,

assim, um processo de rupturas e de proliferação subalterna das diferenças, como

aponta Hall:

Os resultados das lutas de poder entre os grupos são vistos como fluidos, contínuos, nunca pré-determinados; eles compreendem pequenas ―revoluções em torno de algo tão específico quanto a mudança da forma como os epítetos raciais são usados. (HALL, 2003, 178 – destaques do autor).

Sob essa perspectiva os EC conquistam espaços reais, reivindicando

recursos para aprimorar conhecimentos, priorizando pesquisas e manifestando, a

partir das práticas sociais, os efeitos da ideologia. A questão da identidade, por

exemplo, abordada pelos EC não é algo novo, mas segundo Hall, as novas

demandas sociais e políticas da contemporaneidade possibilitam observar a questão

identitária de uma forma mais problematizada a partir do tratamento dado à

etnicidade, pauta que se renova na perspectiva dos EC:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que somos, mas daquilo em que nos tornamos. (HALL, 2000, p. 109).

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Logo, o que nos interessa observar nessa instância recai sobre as questões

de raça, que se traduzem sob formas de resistência, mestiçagem, hibridação e que

convergem para a formação de identidades múltiplas. Especificamente para esse

estudo interessam-nos aquelas questões que dizem respeito à racialização

brasileira.

Para um melhor entendimento sob a perspectiva de raça, Kabengele

Munanga nos explica que

A história das sociedades e culturas modernas foi sempre acompanhada de certa ideia de humanidade, de uma apreensão do ser humano pensado essencialmente através das noções de igualdade e de liberdade. À medida que a significação e o alcance dessa ideia moderna de humanidade foram se aperfeiçoando, ela se viu atravessada por uma tensão muito forte entre duas exigências comparativamente opostas (MESURE & RENAUT, 1999, p. 18, apud KABENGELE MUNANGA, 2005-2006, p. 47).

Segundo o autor, a exigência primeira estabelece a compreensão de que a

humanidade se constitui por sua essência ou natureza. Os valores do humanismo

abstrato e/ou do universalismo, que sugerem haver uma natureza comum a todos,

se legitima nesse discurso. Já a segunda exigência pode ser notada no ―fim do

século XVIII na Alemanha, depois na França e na Inglaterra, na medida em que

alguns efeitos perversos da primeira exigência se deixaram perceber.‖ (MUNANGA,

2005-2006, p. 47). Nessa ocorrência a definição essencialista do sujeito agiu como

pretexto para a discriminação, já que os grupos que não pertenciam a certa

identidade poderiam ser excluídos sob alegações despóticas, que se fundam em

―algumas máximas universais e sacrificam totalmente a riqueza e diversidade das

tradições.‖ (MUNANGA, 2005-2006, p. 48).

Após a Segunda Guerra Mundial, muitos liberais aguardavam alguma

mudança sobre os direitos do homem, discurso pautado pela Declaração Universal

dos Direito Humanos, da Organização das Nações Unidas – ONU. Acreditavam que

esse ato resolveria, de alguma forma, os problemas das minorias. Nesse âmbito,

havia o pensamento de que os grupos culturais minoritários estariam, de certa

forma, protegidos pelas garantias dadas a todos os sujeitos quanto a seus direitos

civis e políticos fundamentais – a liberdade de expressão, de associação, de

consciência –, sem consideração do seu pertencimento a qualquer grupo.

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(MUNANGA, 2005-2006, p. 51). Nesse sentido, muitas vezes o sistema torna-se

inoperante e controverso quando se trata de resolver as questões dos subgrupos

que, dentro de uma sociedade, consideram-se e/ou concebem-se como diferentes.

Para Gilroy, estudar a cultura negra tornou-se algo maior, isto é, parte de um

contexto cultural transnacional, que apresenta a capacidade de incorporar, além de

inflamar as manifestações que emergem nas fronteiras geográficas, como o caso da

brasileira.

Situamos essa dimensão cultural do racismo lembrando que esse fato se

expressa no cotidiano, por meio de formas de comportamento – escolhas

matrimoniais, tratamento pessoal discricionário, rituais –, insulto racista,

humilhações, assim como por meio da marginalização social e espacial,como

veremos, adiante pelas análises de nossos objetos. Sob essa óptica, sabe-se que o

racismo vem sendo combatido de diversas formas: introdução de conteúdos anti-

racistas nos currículos escolares, assistência jurídica a vítimas de racismo, rigor na

apuração e punição de crimes de racismo etc. Para Hall,

O preconceito, a injustiça, a discriminação e a violência em relação ao ―Outro‖, baseados nessa ―diferença cultural‖ hipostasiada, passou a ocupar seu lugar — o que Sarat Maharaj chamou de um tipo de "sósia-assombração do apartheid" — junto com racismos mais antigos, fundados na cor da pele ou na diferença fisiológica — originando como resposta uma ―política de reconhecimento‖, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social. (HALL 2003, p. 46 – destaques do autor).

De acordo com Hall, a batalha que a modernidade travará advém dos

processos das diferenças e semelhanças culturais, já que o povo que foi obrigado a

se sentir fora de uma dada cultura tem uma visão singular a respeito dessa

sociedade. (HALL, 2003).

Hall afirma que a identidade cultural leva em si traços de uma unidade

essencial e questiona: ―unicidade primordial, indivisibilidade e mesmice, como

devemos pensar as identidades inscritas nas relações de poder, construídas pela

diferença e disjuntura?‖ (HALL, 2003, p. 28). Tarefa complicada diante do postulado

de que a identidade seja algo compartilhado desde o nascimento, que se estabelece

por uma linhagem genética, constitutivo de nosso eu interior. (HALL, 2003, p. 28).

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Nessa perspectiva entende-se o quanto se torna difícil aceitar o Outro, aquele que

advém de um contexto de pobreza, ou de um lugar como África,

O subdesenvolvimento, a falta de oportunidades – os legados do Império em toda parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento – a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno. (HALL, 2003, p. 28).

Para o autor, essa conjetura tornou-se importante para apreender a diáspora,

que fornece, sob sua metáfora dominante, a possibilidade de disseminar os

discursos libertários do povo negro em solos americanos:

Nessa metáfora, a história – que se abre à liberdade por ser contingente – é representada como teleológica e redentora: circula de volta a restauração de seu momento originário, cura toda ruptura, repara cada fenda através desse retorno. Essa esperança foi condensada, para o povo caribenho, em uma espécie de mito fundador. Pelos padrões usuais, trata-se de uma grande visão. Seu poder – mesmo no mundo moderno – de remover montanhas jamais deve ser subestimado. (HALL, 2003, p. 29).

Hall explica, nessas circunstâncias, a relevância de se possuir uma identidade

cultural e conseguir relacionar-se com um ―núcleo imutável e atemporal‖, que une o

passado ao futuro e o agora num circuito sem interrupções; a essa ligação o autor

chama de tradição, consciência de si, conhecimento da origem. (HALL, 2003 p. 29).

Ainda sobre a reflexão acerca da questão de raça, Hall, relatando o momento

das especificidades culturais negras, toma de empréstimo a conjectura formulada

por Cornel West, que consiste em uma genealogia constituída por três grandes eixos

para se pensar esse momento da cultura popular negra:

um primeiro que se faz pelo descolamento dos paradigmas europeus da

alta cultura – a Europa enquanto sujeito universal da cultura, e ―da própria

cultura‖;

um segundo com o surgimento dos Estados Unidos da América – EUA –

como potência mundial, sendo o centro de produção e circulação da cultura

global (nesse âmbito há uma desarticulação e uma modificação

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hegemônica na ―definição‖ de cultura – ―um movimento que vai da alta

cultura à cultura popular americana majoritária e suas formas de cultura de

massa mediadas pela imagem e formas tecnológicas‖);

e um terceiro eixo que se estabelece pela descolonização do terceiro

mundo, assinalado pelo iminente momento cultural das ―sensibilidades

descolonizadas.‖ (HALL, 2003, p. 336).

Sob a descolonização, Hall esclarece: ―Eu entendo a descolonização do

Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon: incluo aí o impacto dos direitos civis e

as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da diáspora negra.‖

(HALL, 2003, p. 336).

Diante desses apontamentos, percebe-se que os negros continuam a viver

num período de contradições, ambiguidades quanto às hierarquias étnicas, sabendo

que são essas hierarquias que definem as políticas culturais, as quais, em muitos

desses momentos, acabam por silenciar as classes minoritárias da sociedade.

Por essas questões é importante fixarmo-nos em concepções que nos

permitam

Rastrear as origens dos sinais raciais a partir dos quais se construiu o discurso do valor cultural e suas condições de existência em relação à estética e à filosofia europeias, bem como à ciência europeia, pode contribuir muito para urna leitura etno-histórica das aspirações da modernidade ocidental como um todo e para a crítica das premissas do Iluminismo em particular. É certamente o caso das ideias sobre "raça", etnia e nacionalidade, que formam urna importante linha de continuidade vinculando os estudos culturais ingleses a urna de suas fontes de inspiração – as doutrinas estéticas europeias modernas que são constantemente configuradas pelo apelo à particularidade nacional e, muitas vezes, à particularidade racial. (GILROY, 2001, p. 44 – destaque do autor).

Os Estudos Culturais, assim, emergem por meio de teorias e métodos que

enfocam: ―descrições complexas, concretas, que sejam capazes de apreender,

particularmente, a unidade ou a homologia das formas culturais e materiais‖

(JOHNSON, 2010, p. 42). Para além disso, eles se tornam um local para observar

e/ou trabalhar as diferenças, os embates sociais, onde a representação se apoia nas

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formas vividas por certos grupos sociais subordinados e promove a criticidade

acerca dos modos de dominação públicos existentes. (JOHNSON, 2010, p. 105).

Sobre os EC, portanto, recai a tensão entre o querer do analista em investigar

a cultura a partir de um conjunto de códigos e práticas alienantes dos seres e de

seus ganhos, e o desejo do pesquisador de deparar, nesse contexto, com uma

cultura popular como uma expressão autêntica de valor. (CULLER, 1999, p. 51).

Sob tais possibilidades percebemos que trabalhar com os EC em

consonância com a AD se faz pertinente à medida que essas áreas do

conhecimento nos propiciam investigar o fenômeno sociorracial por meio das

estruturas enunciativas presentes nos objetos deste estudo. A primeira nos

fornecendo o embasamento para situar o discurso racial no contexto acadêmico; a

outra produzindo meios materiais de exteriorizar o sentido dos discursos presentes

nos objetos em questão. Assim, aspectos relevantes, como os de cunho social,

cultural e ideológico advindos da racialidade brasileira podem vir a ser revelados,

vislumbrando o que se pode dizer sobre si e o outro nesse contexto, e ainda, as

significações que emergem acerca do sujeito de cor brasileiro.

Como se pode observar, as pesquisas realizadas no campo das teorias

raciais nos permitem estruturar os processos discursivos raciais sob a problemática

das ambiguidades, subjetividades, incidentes etc., que circulam pela sociedade

acerca da racialidade. Acreditamos que o contraponto realizado sob os dois objetos

culturais distintos, a saber literatura X mídia telenovelística, poderá nos esclarecer

e/ou permitir o reconhecimento acerca da racialização existente no meio social

brasileiro.

A inter-relação teórica adotada para este estudo, portanto, parece se fixar em

um ―entre-lugar‖, pressupondo um entrecruzamento discursivo que se faz através de

estratégias intersubjetivas e se estabelece sob o jogo das formações imaginárias,

presidindo o discurso racializante em questão. Assim, buscamos novas

interpretações sobre os signos que compõem a identidade do negro brasileiro, além

de apreender a nova ordem que se instaurou sobre o ideário de raça na sociedade

do Brasil.

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3.2 Os objetos

O nosso primeiro objeto é o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto. Ele

se constrói a partir da história de Clara, filha do carteiro Joaquim dos Anjos e da

dona de casa Engrácia, irrompendo nesse contexto o envolvimento amoroso com

Cassi Jones, um exímio conquistador suburbano. Lembremos que Clara é uma

mulata, filha de um casal de cor, ambos descritos pelo autor como pardo-claros. A

trama descreve o meio degradante vivido pelos negros, pardos e mulatos brasileiros,

como, por exemplo, quando retrata a trajetória decadente do poeta mulato Leonardo

Flores, o alcoolismo do dentista Menezes, além do destino maculado das mocinhas

de cor, como foi o caso de Clara.

A narrativa se desenvolve sob o olhar de um narrador heterodiegético, que

revela de modo onipresente os acontecimentos dessa estória. O espaço se

caracteriza através da apresentação do subúrbio, remetendo ao Rio de Janeiro do

início do século XX, que o autor denomina como ―refúgio dos infelizes‖ (BARRETO,

1998, p. 74).

Através da personagem Clara e da condição social na qual vive, a obra de

Barreto retrata as humilhações, em especial a decorrente do preconceito racial, de

que eram vítimas os afrodescendentes. Sendo assim, esse autor se afirma enquanto

escritor que, em perspectiva realista, faz o narrador se aproximar do seu leitor a

partir de descrições singulares, mas que, de certa forma, sugerem informações

importantes para apreender o espaço físico e o ambiente, assim como a posição

social e moral de um Brasil pós-escravocrata recriado em texto. Veja-se, por

exemplo, uma das descrições do subúrbio:

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central. (...)

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. (...)

Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. (...)

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Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus – tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.

Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.

A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres. (...)

Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que possa se julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro, Um ―belchior‖ de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito. (BARRETO, 1998, p. 72-73 – destaques do autor).

Nessa passagem o narrador retratra a dificuldade que se econtra no subúrbio,

decorrentes da superpopulação que ali vive e do mal estar decorrente da situação

financeira precária dos indivíduos de cor.

A estória de Clara apresenta um triste desfecho para ela; para as

afrodescendentes, como Inês, que, após ser seduzida por Cassi Jones, filho da

patroa Salustiana, gerar um filho dele e perder o emprego, acabou se tornando ―uma

negra suja, carpinha, desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da

cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete.‖ (BARRETO, 1998, p. 115);

e também para as moças pobre como Nair, cuja mãe suicida-se após entender que

não havia reparo para o defloramento da filha pelo mesmo Cassi Jones.

―Nós não somos nada nessa vida‖ (BARRETO, 1998, p. 133) é a conclusão

da jovem mulata Clara quando, ao final da narrativa, encontra-se grávida, sozinha e

estigmatizada pela sociedade branca. A fala de Salustiana, mãe de Cassi Jones,

reitera o infortúnio de Clara: ―Casado com gente dessa laia‖. (BARRETO, 1998, p.

131). A mulata, nessa obra, revela um status marginal, pois não tem direito à

liberdade e carrega os estereótipos de uma sociedade pós-escravagista.

Para contrapor ao referido objeto literário, trouxemos um outro, pertencente à

mídia, a telenovela Fera ferida, que rememora, em seu contexto, várias histórias de

personagens criados ao longo da carreira literária de Lima Barreto.

A história é escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria

Moretzsohn. É uma produção da Rede Globo de Televisão exibida de novembro de

1993 a julho de 1994, no horário de oito e trinta, tendo 221 capítulos.

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Fera ferida se passa na cidade ficcional de Tubiacanga, tendo como

protagonista Raimundo Flamel ou Feliciano Júnior (Edson Celulari), sujeito que volta

a essa cidade para vingar a morte de seus pais.

Essa telenovela traz personagens curiosos, presentes em várias obras do

escritor Lima Barreto, como o Professor Praxedes de Menezes, que reúne

características trazidas pelo personagem Lobo, de Recordações do escrivão

Isaías Caminha (1909) e também por Pelino Guedes, personagem presente em

Nova Califórnia (1910). Praxedes (representado por Juca de Oliveira), nesse

contexto, é apresentado como um gramático purista, intelectual. Ele é o editor do

jornal Gazeta de Tubiacanga e diretor do liceu. É Casado com Querubina (Vera

Holtz) e sempre tem desavenças com o poeta Afonso Henriques (Otávio Augusto).

Nessa narrativa encontramo-nos, também, com personagens presentes em

contos de Lima Barreto, como: ―Nova Califórnia‖, com os personagens Flamel, Major

Bentes etc.; ―O homem que sabia Javanês‖ (1911), com o personagem Castelo (o

sujeito que dizia saber javanês), além, de ―Clara dos Anjos‖, com os personagens

Engrácia, Clara, Joaquim, D. Margarida, Cassi Jones, Salustiana, entre outros. Até o

próprio Lima Barreto é reconstituído em Fera ferida através do personagem poeta

Afonso Henriques de Lima Barreto, interpretado por Otávio Augusto. Além disso, a

novela faz outra menção a Lima Barreto ao mostrar sua foto com a faixa presidencial

dentro do gabinete da cidade ficcional de Tubiacanga.

Essa novela projeta várias tramas paralelas, como traição, corrupção, racismo

etc, sendo que nosso enfoque, a princípio, se volta para o núcleo vivenciado pela

personagem Clara dos Anjos e as condições racializantes estabelecidas naquele

contexto.

3.3 O recorte dos objetos

Na constituição deste corpus verificou-se a necessidade de um recorte, pois

se constatou que seria inviável um estudo de todos os elementos presentes nos

objetos em questão, segundo a definição do marco teórico e da temática racial.

Assim, previamente, realizou-se um exame sobre a narrativa barretiana, retirando

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desse contexto as enunciações que evidenciavam a racialização, isto é, a relação

entre negros e brancos que se direcionavam para um possível conflito entre sujeitos

e/ou processos de natureza discriminatória, preconceituosa. E isso pontuando que a

narrativa de Barreto é o texto fundador, pois a trama televisiva é uma releitura deste.

Elegeu-se, assim, o contexto racial apresentado pelas personagens centrais

de Clara dos Anjos, seguido de outros secundários, necessários para a

investigação enunciativa, recaindo a escolha sobre a personagem Clara, sua família,

Cassi Jones, Salustiana, Inês, Marramaque e Margarida Weber.

Passando à telenovela, mantivemos a mesma organização, tentando, a

princípio, um contraste homológico entre personagens, isto é, na obra barretiana

escolheu-se a personagem Clara dos Anjos e sua família; em Fera ferida,

trouxemos o processo racializante também explicitado pela família dos Anjos,

buscando, desse modo, uma contraposição dos discursos presentes entre as duas

narrativas.

O recorte realizado na novela ocorreu sob uma base similar ao recorte

realizado no romance Clara dos Anjos, porém, acrescentando-se alguns

personagens cuja relevância se fez proeminente para a composição do núcleo

ficcional eleito, construído em torno da personagem Clara.

Na trama televisiva, personagens como Clara e sua família não são mais

centrais, como os apresentados pelo romance de Barreto. Logo, a Clara dos Anjos

de Fera ferida não é mais a protagonista da obra ficcional. A centralidade dessa

trama se faz através de outros personagens, como Raimundo Flamel e Linda Inês.

Nessa trama, o tema principal é a relação amorosa e seus desencontros. A visão

crítica da sociedade racista proposta por Lima Barreto dá lugar a um enfoque

―contemporâneo‖ do racismo, aparentemente amistoso, porém persuasivo, sedutor e

maniqueísta, distanciado do debate racial pretendido por Barreto com a obra Clara

dos Anjos no Brasil do início do século XX.

Diante disso, percebemos que o tratamento dado pelas narrativas Clara dos

Anjos (1922) e Fera ferida (1993) à questão racial se difere inicialmente pela forma

de criação, exposição, veiculação, intencionalidade, proposta estética que cada uma

apresenta, objetivos desses objetos de estudos – que também são bem diferentes –,

e ainda, pela modernidade – a novela se estabelece como um produto tecnológico.

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Outro fato que se faz importante mencionar diz respeito ao processo de coleta

de dados realizado para a análise da telenovela. As cenas dessa trama

selecionadas para a investigação foram extraídas a partir da relevância racial ali

apresentada e, após tal escolha, essas cenas foram transcritas, buscando uma

representação fidedigna da pronúncia dos personagens. Para realizar este processo

de transcrição, então, nos baseamos no trabalho de Preti (2000), conforme o anexo,

entendendo que é fundamental para o analista saber quais são seus objetivos no

momento da transcrição, para não deixar de pontuar aquilo que lhe convém.

Desse modo, as etapas que seguem essa pesquisa se constituem a partir das

categorias analíticas: teorias raciais, gênero, processo enunciativo, formação

discursiva, pressupondo a seguinte organização:

i. As teorias raciais integrarão cada uma das categorias apresentadas, a fim

de consolidar e/ou corroborar as questões raciais investigadas.

ii. A categoria de gênero propiciará entender as intenções e as situações

comunicativas apresentadas por ambas narrativas propostas para a

investigação desse corpus.

iii. A noção semiolinguística conduzirá a construção da intersubjetividade

instaurada pelas relações enunciativas entre os personagens ficcionais

negros e/ou brancos, buscando determinar e apreender os conflitos

raciais presentes nos objetos.

iv. A concepção sobre a formação discursiva sustentará as análises dos

contextos sócio-históricos vividos pelos personagens escolhidos, segundo

a temática racial, tanto na narrativa literária quanto na telenovela,

demonstrando as formações discursivas e ideológicas inscritas em uma

dada formação social instaurada no âmbito de cada objeto.

v. Por fim, apresentaremos os resultados encontrados nesse percurso.

Logo, acreditamos que o estado de coisas que deverá emergir dessa

ficcionalização racializante apresentada pelo corpus nos conduzirá rumo a

descobertas e/ou aos entendimentos acerca de práticas discursivas de cunho

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racializante que circulam na sociedade e que ainda necessitam de um debate

significativo, no intuito de desmitificar a racialização presente no contexto social

brasileiro.

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4. A PERSPECTIVA DOS GÊNEROS: LITERATURA X MÍDIA TELEVISIVA

Eleger objetos de pesquisa pertencentes à esfera pública, que apresentam

gêneros distintos, como a literatura e o midiático campo da telenovela, para repensar

e re (construir) a racialização moderna, mostrou ser, a princípio, um trabalho

inusitado, curioso e ousado (isso não seria tarefa da antropologia, sociologia etc.?).

Não bastando, buscamos uma interface entre campos de saberes como linguística e

literatura, outra perspectiva não usual. Mas, entendemos a viabilidade dessa

construção a partir das manifestações da linguagem, objeto comum a essas duas

áreas do conhecimento.

Dessa forma, a obra literária e a telenovela podem ser vistas como espaços

que reúnem diversas possibilidades de leitura, devido à pluralidade de sentidos que

caracteriza ambas. Além disso, podem ser pensadas como lugares onde se

privilegia a produção/reprodução simbólica significante, cuja enunciação pode

originar elementos relevantes que apagam ou ressignificam uma dada identidade

social.

Contudo, aprendemos que a linguagem literária apresenta uma estética e se

constitui como um bem capital cultural. A narrativa telenovelística não tem esse

caráter, trata-se de um elemento da mass media e tem um status que caminha para

a marginalidade, daí a proposta de se trabalhar com campos teóricos distintos, como

mostramos acima.

Ainda, sob certos aspectos da dualidade, observamos que os discursos de

Clara dos Anjos e Fera ferida se exteriorizam por meio de subjetividades

individuais e coletivas, como se percebe pelo romance, o qual emerge de uma

individualidade para abranger certas camadas coletivas da sociedade. Já com a

telenovela isso não acontece; ela se constrói sob o olhar de várias pessoas:

primeiro, os autores; após eles, os diretores, atores etc. Quer dizer, ela se organiza

a partir de um grupo que apresenta núcleos coletivos, visando temáticas distintas,

em horários pré-determinados para um público alvo, projetados para uma sociedade

massiva.

Nesse âmbito, torna-se interessante verificar o posicionamento desses

discursos a partir de seus modos de constituição e/ou construção, quer seja

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enunciativa, composicional, estilística etc. Para tal investigação, portanto, propomo-

nos utilizar a noção de gêneros discursivos de Bakhtin (1997), Bronckart (2003),

Maingueneau (2004), entre outros.

Tomamos os gêneros, primeiramente, à luz de Bakhtin, que considera que as

esferas humanas, por mais distintas que sejam, sempre se relacionam por meio do

uso da língua.

A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 1997, p. 280).

Segundo o autor os recursos da língua como o conteúdo temático, o estilo e a

construção composicional se organizam de forma indissolúvel no ―todo‖ do

enunciado. As esferas de utilização da língua estabelecem as bases dos enunciados

de maneira ―relativamente‖ estáveis, constituindo, assim, os gêneros do discurso.

Nossos enunciados, sob tal acepção, se baseiam em formas padronizadas e

apresentam uma estabilidade relativa de estruturações como um todo, marcadas por

uma dada conjuntura sócio-histórica fundada sob diferentes situações sociais.

Bakhtin diferencia os gêneros discursivos primários dos secundários. O

primeiro o autor chama de simples, algo semelhante à comunicação do dia a dia. O

segundo é considerado como complexo, pois surge a partir de circunstâncias de

comunicação cultural elaboradas, como a escrita. Durante o processo formativo, os

gêneros secundários ―absorvem e transmutam‖ os gêneros primários de qualquer

espécie, constituídos em ocasiões comunicativas cuja verbalidade é expressa

espontaneamente:

Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios - por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do romance, só se

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integram à realidade existente através do romance considerado como um todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literário-artística e não da vida cotidiana. (BAKHTIN, 1997, p. 280).

Existem autores que fazem distinções ao tratarem dos gêneros, como por

exemplo, Bronckart (2003), que em seu trabalho explica a dificuldade de se definir

gêneros. O pesquisador expõe nesse estudo a noção terminológica de gênero e tipo,

segundo Ducrot & Todorov (1973), observe:

Diante do universo de textos concretos em um período histórico dado, eles consideram que uma primeira abordagem, de observação e de indução, permite delimitar gêneros diferentes, mesmo quando as fronteiras entre esses gêneros permaneçam permeáveis. Sobre essa base, uma segunda abordagem, de caráter dedutivo, permitiria então postular as regras e as características linguísticas definidoras de um tipo: em princípio o tipo não seria jamais realizado por um exemplar de texto concreto, mas constituiria uma espécie de modelo teórico subjacente a cada gênero. (BRONCKART, 2003, p. 52).

Bronckart ainda explana sobre as ―tipologias de tipologias‖, como a de

Petitjean (1989), sugerindo classificações baseadas em critérios homogêneos ou

dominantes que demarcam os ―tipos‖ – ―tipos de textos‖ fundados em critérios

linguísticos, ―nesse caso sobre a forma de sequencialidade ou de ―plano‖ que um

texto exibe (planos injuntivo, argumentativo, narrativo etc.)‖ (BRONCKART, 2003, p.

53). E ainda, fala de ―tipo de discurso‖ para aqueles que privilegiam os fatores

pragmáticos (o modo enunciativo, intenção comunicacional, condições sociais de

produção). (BRONCKART, 2003, p. 53).

Segundo Maingueneau (2004), existem vários autores que empregam de

maneira indiferente ―gênero‖ como ―tipo de discurso‖. Contudo, a tendência é tentar

distingui-los, como mostrado acima pelos estudos de Bronckart.

O gênero, de acordo com Schneuwly & Dolz, tende a atravessar

a heterogeneidade das práticas de linguagem e faz emergir toda uma série de regularidades no uso. São as dimensões partilhadas pelos textos pertencentes ao gênero que lhe conferem uma estabilidade de fato, o que não exclui evoluções, por vezes, importantes (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p. 45).

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Por conseguinte, parece-nos que o estudo dos gêneros nessa perspectiva

ajudará a corroborar a apreensão acerca do formato do romance barretiano e sua

releitura pela telenovela.

4.1 Gênero literário: Clara dos Anjos

Intentamos neste momento, situar Clara dos Anjos como um gênero

discursivo construído sob determinados padrões (princípios) que se exteriorizam sob

propriedades classificatórias específicas. Entretanto, faz-se importante entender a

complexidade de se trabalhar com um objeto situado no campo da Literatura, então,

ressalvamos que o presente estudo não tem a pretensão de discorrer sobre esse

campo teórico. No entanto, em determinados momentos dessa pesquisa, talvez haja

a necessidade de se fazer um ―passeio pelos bosques da ficção‖ (ECO, 1994) como

maneira de legitimar certos aspectos desse objeto.

A literatura tornou-se uma instituição paradoxal na medida em que criar

literatura é produzir uma escrita segundo alguns moldes já existentes, ―produzir algo

que parece um soneto ou que segue as convenções do romance – mas é também

zombar dessas convenções, ir além delas‖. (CULLER, 1999, p. 47). Esse campo de

conhecimento apresenta, em suas composições, regras e características lexicais

próprias para cada gênero; e como uma instituição, tem o propósito de se tornar a

expressão cultural de uma sociedade.

Em seu sentido amplo, tudo que é impresso, e até mesmo manuscrito, situa-

se no espaço da literatura. Os livros de uma biblioteca, por exemplo, pertencem ao

domínio literário; essa é uma acepção clássica para o termo ―belas-letras as quais

compreendiam tudo o que a retórica e a poética podiam produzir, não somente a

ficção, mas também a história, a filosofia e a ciência, e, ainda toda a eloquência.‖

(COMPAGNON, 1999, p. 31). Nessa perspectiva encontra-se o caminho para o

conhecimento clássico e formal dos indivíduos, emergindo daí a face elitista da

literatura. O reconhecimento e a autorização para determinar o que é literário ficam a

cargo de poucos, como os homens de cultura, professores, escritores, críticos,

acadêmicos etc.

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A distinção entre as obras literárias dos outros textos de cunho narrativo

começa a se estabelecer pela seletividade: o texto de literatura se publica, resenha-

se sobre o assunto, há a possibilidade de reimpressão, tudo isso para que o leitor se

aproxime desse bem cultural, dando-lhe o seu devido valor. A obra literária, assim,

adquire um princípio cooperativo que é ―hiper-protegido‖. (CULLER, 1999, p. 33). E,

inevitavelmente, se torna um campo do saber de domínios específicos.

Em tal âmbito, a literatura apresenta-se como uma etiqueta institucional que

―nos dá motivo para esperar que os resultados de nossos esforços de leitura

―valham a pena‖. (CULLER, 1999, p. 33 – destaques do autor). O literário, também,

é reconhecido como ―capital cultural‖, já que a compreensão sobre a literatura

fornece ao sujeito uma ―baliza na cultura que pode compensar de variadas

maneiras, ajudando-o a se entrosar com pessoas de status social mais alto‖.

(CULLER, 1999, p. 46).

Ainda, a literatura pode se constituir em um ―instrumento poderoso‖ que, ao

mesmo tempo em que deleita, educa, mas não no sentido pedagógico, exemplar: a

literatura educa para a vida justamente por ser capaz de nos mostrar as

contradições, as experiências diversas, o bem, o mal etc., que compõem a

experiência humana: ―A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e

combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.‖

(CANDIDO, 2004, p. 175). A obra literária, sob esse viés, nos propicia uma (re)

ordenação da percepção do mundo, ampliando os horizontes do ser humano.

A escrita de Lima Barreto, tal como os romances de sua época, se fixam sob

o campo da literatura e, em virtude disso, se constituem sob determinados padrões

genéricos, visto que certas convenções pragmáticas regem essas construções

discursivas, como por exemplo, a linguística, a estilística, a teoria da literatura etc.

O panorama literário da época barretiana tem em sua expressão a realidade

local, exibindo-a como um ―elemento positivo na construção nacional‖. Nessas

circunstâncias, houve uma ―tomada de consciência dos autores quanto ao seu

papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo

quando não a descreviam.‖ (CANDIDO, 1981, p. 27-28). A ordem era ―maquiar‖ o

cenário brasileiro. No entanto, o escritor Lima Barreto não segue as regras, rompe

com os modelos acadêmicos de sua época, contemplando sua realidade local: ―Lima

insurgiu-se contra a ordem estabelecida nos cânones literários e contra o

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cerceamento da liberdade na sociedade carioca que se modernizava rapidamente.‖

(SANTOS, 2011, p. 04). Desse modo, o autor surge para balançar o ―adestramento

intelectual do dominante sobre o dominado‖, e claro, sofre as consequências desse

ato. (NOLASCO-FREIRE, 2005, p. 16). O reconhecimento acadêmico de Barreto só

acontece tardiamente. O estudioso Antonio Arnoni Prado, nesse sentido, aponta

que,

No conjunto, mais talvez que a singularidade dos tipos, Lima Barreto inaugura uma incursão estética pela melancolia da pobreza. Com ele surge uma nova paisagem na ficção brasileira que vem do artigo de jornal e da crônica do cotidiano para encorpar o registro que migra do realismo convencional para um novo enquadramento da realidade na chave do relato-flagrante, anterior à prosa de 22. (PRADO, 1999, p. 77).

Em Clara dos Anjos, por exemplo, quando Barreto se refere ao subúrbio

como ―o refúgio dos infelizes‖ – ―os que perderam o emprego, as fortunas; os que

faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se

aninhar lá (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 74), percebemos a incursão de uma criação

artística singular de um sujeito preocupado em descrever um discurso que outros

não consideravam conveniente.

Na trama barretiana, percebe-se um discurso oralizado e a situação do pobre,

do negro, do indivíduo desfavorecido socialmente é contada através desse tom.

Esse fato contraria toda uma expectativa elitista brasileira em relação à literatura.

Barreto, com essa forma de escrita, subverte os padrões dominantes de sua época e

a crítica literária o coloca à margem do sistema social, ora ignorando-o, ora tratando-

o com desprezo, atribuindo a sua obra um caráter marginalizado, considerando-a

uma não-literatura. Somente na contemporaneidade Lima Barreto conseguiu entrar

para o rol da academia literária, como vimos pelo contexto acima.

A primeira versão de Clara dos Anjos publicou-se em forma de conto em

1922, época pós-abolição, e sua versão final se fez a partir de outro gênero, o

romance, publicado em 1948.

O conto remonta à época em que a transmissão oral das narrativas tem seu

auge até a afirmação de seu caráter literário. Manifesta, de maneira peculiar, como

os grandes escritores flagraram a vida cotidiana de seu tempo. (GOTLIB, 2006). O

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conto, segundo Gotlib, carrega consigo a dificuldade de uma definição. No entanto,

esse gênero apresenta elementos constantes, imanentes à sua construção, como a

brevidade, a explosão de energia, a condensação em sua relação tempo e espaço, a

promoção do sequestro do leitor, prendendo-o à obra, à intensidade.

Já o romance, explica Reeve, trata-se de uma narrativa que é centrada na

vida real, está próxima do leitor no tempo e no espaço, retrata fatos do cotidiano,

busca o convencimento, pois quem o lê acredita que aquilo realmente aconteceu.

Segundo Benjamin (1994), o romance difere da narrativa, assim como da

―epopéia no sentido estrito‖ porque ―ele está essencialmente vinculado ao livro‖, quer

dizer, sem a invenção da imprensa não haveria a possibilidade de existência esse

gênero.

Por volta do século XVII, especialmente na Europa, assim como no Brasil, o

gênero romance expressava uma finalidade moralizante, trazia aspectos do

cotidiano, e de certa forma, uma concepção pedagógica, sobretudo aquele romance

ambientado no espaço urbano. Tal gênero poderia colaborar para a construção de

alguns mitos nacionais, assim como na divulgação histórica e geográfica da nação.

(FRANÇA, 1998, p. 71).

A experiência humana, nesse sentido, será uma expressão do gênero

romance, pelo menos no que diz respeito aos escritores oitocentistas brasileiros. E

sob manifestação similar surge a obra de Barreto, situada em um tempo cujo ideário

se depreende do conservadorismo do final do século XIX e início do século XX.

Segundo um estudo realizado por Silva (2008), Lima Barreto construiu três

produções literárias sob o mesmo título, Clara dos Anjos. O primeiro experimento

textual deu-se em 1904 e foi inserido no diário particular do escritor, figurando como

um esboço dessa obra. Em 1905 Lima escreve em seu Diário Íntimo:

Veio-me a ideia, ou antes, registro aqui uma ideia que me esta perseguindo. Pretendo fazer um romance em que descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de ―germinal‖

5 negro, com mais psicologia especial e maior sopro de

epopeia. Animará um drama sombrio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravidão. (...) Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra prima, adiá-lo-ei para mais tarde. (...) Ah! Se alcanço

5 Referência a obra naturalista Germinal, de Émile Zola.

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realizar essa ideia, que glória também! Enorme, extraordinária e – quem sabe? – uma fama europeia. Dirão que é um negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade simplesmente das coisas turbará todos os espíritos em meu desfavor, e eu pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado? (...) Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço. Tentarei e seguirei adiante. (VASCONCELOS, 2002, p. 1247 – destaque do autor).

Sabemos que Lima não conseguiu seu ―germinal‖. No entanto, não parou, fez

a segunda versão desse texto em 1920, em conto, que se publicou no livro

Histórias e sonhos (1920). Nota-se, desde logo, que o autor não se contentou em

produzir apenas o conto; ele quis, mais talvez, preencher as lacunas desse não dito.

Assim, seu projeto se torna um romance acabado e intitulado em 1922, com o

mesmo nome do primeiro texto, e será publicado depois da sua morte. Clara dos

Anjos, enquanto gênero romance torna-se um legado que propõe ao leitor uma

perspectiva para pensar as mazelas humanas vividas pelos afrodescendentes,

promovendo, por meio da ficção, a discussão das adversidades vividas pelo negro

de outrora.

4.2 Gênero midiático: a telenovela Fera ferida

Para discorremos sobre telenovela, faz-se relevante entendermos que se trata

de um gênero inscrito e atuante em um veículo de comunicação de massa, diferente

da proporção que a literatura alcança.

O espaço televisivo determina-se a partir das dimensões do vídeo e pela

especificidade das câmaras televisivas, tendo uma dinâmica própria. Apresenta,

ainda, um tempo que pode ser o real (como a transmissão direta de algum evento).

(ECO, 1991, p. 181). Salles acredita que

é possível afirmar, sem medo de erro, que a televisão é a mídia brasileira mais importante. Em menos de quatro décadas, o vídeo transformou a face do país, modificou hábitos diários do povo, revolucionou a política, impôs profundamente alterações na cultura, estabeleceu parâmetros de comportamento, afetou a fala e inovou a língua dos brasileiros. Na economia, a televisão, como veículo publicitário, firmou-se como a mais

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atuante ferramenta de venda de bens e serviços (...) (SALLES, apud SOUZA, 2004, p. 24).

Nesse sentido, o gênero telenovelístico, como algo que subjaz a televisão ao

se exteriorizar por meio do contexto de mass media, se torna um negócio

extremamente rentável, uma forma de entretenimento que propicia a grandes

marcas e empresas venderem seus produtos através da publicidade que propaga,

por exemplo, no espaço do intervalo da novela.

A telenovela no Brasil se constitui como um produto cultural significante para

o setor econômico (gera empregos, modismo etc.), além de

estabelecer/salientar/mostrar aspectos culturais da sociedade brasileira. Baccega

explica que a telenovela se estabelece em nossa sociedade como um ―produto

transclassista‖ (as novelas são assistidas por pessoas distintas, seja pela

escolaridade, posição social, status etc.), permitindo a construção do debate sobre a

temática pautada pela teledramaturgia do momento. Contudo, as temáticas eleitas

nem sempre são exploradas adequadamente, compreendendo que o universo

ficcional não é a realidade, o que a isenta de conotações panfletárias, dado avesso à

produção artística. (BACCEGA, 2003, p. 08).

A telenovela e a ficção televisiva em geral (minissérie, seriado, caso especial, também chamado unitário) estão aí e, pelo próprio formato do gênero – figurativo por excelência -, conseguem, de maneira muito mais ágil, expor conceitos e caminhar com êxito no sentido da persuasão da população em geral. (BACCEGA, 2003, p. 08).

O contexto telenovelístico propõe uma narratividade a fim de informar,

persuadir, entreter, etc. A tendência maniqueísta é forte na telenovela, cuja base é a

luta entre o bem e o mal. A ficção televisiva desenvolve sua história de acordo com a

aceitação do público, a temática abordada pela trama da telenovela só ficará no ar,

se a audiência permitir. Ela pode ser pensada como uma espécie de obra aberta,

não somente pela participação do público, via redes sociais etc., mas também pela

possibilidade ―de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração

de sua irreproduzível singularidade.‖ (ECO, 1991, p. 40).

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As raízes históricas da telenovela se baseiam nos aspectos do romance-

folhetim oriundo da França, por volta do século XIX. A partir desse modelo construiu-

se o gênero telenovela, que a nosso ver transgride6 a forma do folhetim, indo muito

além.

O folhetim apresenta a composição de um texto literário, seja romance ou

novela, realiza-se em capítulos e pode ser representada pelo teatro e pelo rádio em

capítulos:

A grande popularidade do folhetim influenciou os demais gêneros da literatura e os meios de comunicação. No rádio, o folhetim também deixou sua marca nos programas de ficção. Na década de 1940, os Estados Unidos levaram as histórias seriadas ao rádio, mas foi em Cuba, por volta de 1935, que começaram a surgir as radionovelas. (SOUZA, 2004, p. 122).

Nos EUA, o sucesso da radionovela propiciou a aparição das séries

televisivas, uma dramaturgia voltada para uma linguagem própria da TV, a soap

opera. A designação para esse nome advém das indústrias de sabão (soap) com

seu patrocínio. No Brasil o sucesso das radionovelas acontece em 1941. A primeira

telenovela estreará em 1951, na antiga TV Tupi. (SOUZA, 2004, p. 122).

A telenovela brasileira e a soap opera se diferem quanto à média de duração:

a novela brasileira pode ter entre 150 a 180 capítulos, enquanto a soap opera pode

durar anos. A novela apresenta uma programação diária, a soap opera, por sua vez,

tem maior periodicidade. No Brasil, a novela está muito próxima do cotidiano das

pessoas e apresenta uma dose alta de realismo. (SOUZA, 2004, p. 122).

O formato da telenovela acontece por meio de episódios diários, com duração

de 30 a 40 minutos e neles há sempre uma sequência narrativa. As redes brasileiras

modelaram sua grade de horário há décadas, por exemplo, o horário nobre ocorre

entre às 20:00 e 22:00 horas, tendo um índice de audiência considerável, fato que

propicia a maior veiculação de publicidade.

6 Tomamos a transgressão do gênero segundo Machado: ―um gênero é transgressivo quando ele

‗ousa‘ amalgamar em si diferentes tipos de discursos que tinham, em suas respectivas origens, um objetivo diferente daquele que vão assumir quando reunidos em um só‖. (MACHADO, 2004, p. 78 – destaques da autora).

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Esse gênero assume um formato imposto por seu veículo comunicacional – a

televisão, com extrema meticulosidade e uma composição singular que gira em

torno de uma trama, elenco, personagens de caráter variados, diálogos, locações,

cenários, música, figurino, maquiagem, planos de câmara, horários, edição etc.

Logo, ela apresenta elementos de produção que se organizam em torno de um único

objetivo, seduzir o telespectador.

Assim, a telenovela, nos permite (re) organizar os sentidos, perceber a

dimensão sociocultural, política e econômica vivida no mundo moderno. Estudar

esse tipo de mídia, como aponta Silverstone (2002), nos faz verificar o seu modo

onipresente e a sua complexidade. Além disso, permite-nos apreender que esse

meio comunicacional contribui para a capacidade de compreensão do mundo em

sua produção e compartilhamento de significados.

A telenovela representa um repertório de representações identitárias compartilhado por produtores e consumidores, construído no Brasil ao longo de 35 anos, e por meio dela é possível estudar a recepção não como um momento em si, mas uma perspectiva a partir da qual se pode estudar todo o processo de comunicação, a partir da qual a vertente latino-americana das mediações aparece explicitamente ligada ao reposicionamento que o estudo sobre as culturas populares produz no campo da comunicação. (LOPES, BORELLI & RESENDE, 2002, p. 12-13).

A mídia telenovelística, nesse contexto, favorece a compreensão identitária e

cultural da sociedade brasileira, em decorrência de sua possibilidade de integração

social – trata-se de um gênero que se inscreve em um veículo que é assistido por

todas as classes sociais e tenta refletir projeções cotidianas da vida dos brasileiros.

A telenovela nos permite, assim, considerar as possibilidades raciais que se

inscrevem em nosso objeto midiático.

Ainda, ressaltamos que a telenovela tem sintetizado problemáticas amplas em

figuras pontuais. Contudo, percebemos que a construção da narrativa telenovelística

se pauta por uma lógica ficcional que tem por base o referente cultural de uma dada

sociedade. Mas, não podemos nos esquecer de que a função social da telenovela se

constitui pelo entretenimento. (LOPES, 2003). A ficção televisiva

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tem limites para além dos quais a ação passa para o poder público e para a sociedade, que não podem delegar a ela a solução dos problemas concretos que a ineficiência dos sucessivos projetos políticos brasileiros não conseguiu resolver. (MOTTER, 2003, p. 79).

Sob tais considerações, percebemos que a telenovela tem a capacidade de ditar

moda, tocar no imaginário social, nortear comportamentos, enfim, por meio da

televisão ela entra na vida dos brasileiros diariamente, através de seu formato

singular.

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5. O CONFLITO CONTRATUAL EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA

Para depreender o processo enunciativo do romance Clara dos Anjos e da

telenovela Fera ferida, tomaremos de empréstimo as ideias de Charaudeau (2001)

a respeito da noção de semiolinguística, concepção, a nosso ver, pertinente para

direcionarmos nossa investigação acerca do conflito contratual racial presente nos

objetos.

Sob essa perspectiva, consideramos que somente a linguagem compreendida

como produção, e principalmente, como interação verbal, é que nos permite ficar a

par de conhecimentos adquiridos e transmitidos para os outros através dos atos

linguageiros.

A comunicação, segundo a teoria semiolinguística, definiu-se a partir da

relação contratual entre sujeitos do discurso, que se estabelece, e se restringe, em

função dos componentes: (a) comunicacional – quadro físico da situação

interacional; (b) psicossocial – estatuto sócio-institucional dos interlocutores; e (c)

intencional – expectativas recíprocas estabelecidas entre os interlocutores em

função das estratégias planejadas. Logo, determinadas normas comunicacionais

não podem ser infringidas, sob pena de impossibilitar a comunicação, e certas

escolhas têm que ser feitas para que o sujeito comunicante alcance seu objetivo,

que é estabelecer o processo interacional entre interpretante e destinatário.

Nessa perspectiva, a enunciação surge como encenação do ato de linguagem

(mise-em-scène), que depende de um dispositivo compreendido por dois circuitos:

(i) o circuito externo – situacional (lugar do fazer psicossocial), lugar no

qual se localizam as circunstâncias de produção do discurso, assim

como os sujeitos responsáveis por essa produção;

(ii) circuito interno – discursivo (lugar da organização do dizer), local de

materialização discursiva.

Esses circuitos vislumbram quatro sujeitos que se distribuem da seguinte

maneira:

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No Circuito do fazer estão o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito

interpretante (TUi), seres reais historicamente determinados, parceiros do

ato comunicativo, enunciando e co-enunciando.

No circuito do dizer encontram-se o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito

destinatário idealizado (TUd), denominados por Charaudeau (2001) como

seres de fala, por apresentarem-se no nível discursivo.

É interessante elucidar que, para Charaudeau (2001), o sujeito é o lugar de

produção da significação linguageira, não se constituindo por um indivíduo preciso,

tampouco um ser coletivo, e sendo, então, uma abstração, o lugar da

produção/interpretação da significação.

Recuperando a noção de linguagem a partir da relação contratual proposta

pela teoria semiolinguística, pode-se verificar que o contrato comunicacional se

organiza sob três níveis:

(i) nível situacional – diz respeito à estrutura do contrato e envolve

questões como o reconhecimento da identidade dos interlocutores, as

finalidades (fazer fazer, fazer saber, fazer crer, fazer sentir), o domínio

temático e o suporte material do ato de comunicação;

(ii) nível comunicacional – se relaciona com a dinâmica e o funcionamento

do contrato e diz respeito às estratégias possíveis, como, por exemplo,

as relativas à legitimidade, à credibilidade e à captação;

(iii) nível discursivo – considera o desempenho linguístico-enunciativo dos

interlocutores, ou seja, as estratégias efetivas, ou ainda, o ―como

dizer?‖.

Buscando situar as referidas hipóteses, reproduzimos, abaixo, o quadro

comunicacional proposto por Charaudeau (2001):

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Quadro 01: Contrato Comunicacional

Diante dessas considerações, a noção contratual de Charaudeau (2001) diz

respeito a toda situação de comunicação regida por um contrato, que geralmente é

implícito a essa situação, se constituindo:

por meio dos sujeitos que depreendem a finalidade do ato comunicacional

(qual a pretensão do dizer do sujeito comunicante nessa instância?);

pela identidade dos parceiros do ato de comunicação (que papéis são

assumidos por esses sujeitos na troca interacional?); e

pela discursivização – instância de intervenção do sujeito falante, projeção

do sujeito enunciador, o qual deve atender a certas condições de interação

como, legitimidade, credibilidade e captação.

O sujeito comunicante, segundo esta concepção, institui um EUe que

representa o seu projeto de fala. Este EUc idealiza seu TUi – que em nossos objetos

se estabelece através da projeção do leitor destinátario e/ou telespectador, evocado

através das estratégias:

Circuito externo – Fazer EUc TUi

Relação Contratual

Circuito interno – Dizer

EUe ←___________________→ TUd

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Comunicacional: lugar da troca enunciativa, o autor e/ou escritor escreve

em função de um TUi, sujeitos empíricos projetados pelo corpus em

questão);

Intencional: o apelo nessa estratégia se dá através dos saberes

partilhados, o EUc, a partir de seu EUe e TUd, idealiza seu TUi em função

de crenças que circulam por uma dada sociedade – em nosso caso, o

contexto dos valores instituídos pela coletividade social brasileira;

Psicossocial: que se estabelece a partir da situação externa, ou seja, o

estatuto de escritor e/ou autor de um dado gênero, nesse caso as

narrativas em questão. Assim, esse circuito do fazer interage diretamente

com o nível do dizer por meio de seus projetos de fala – EUc,

pressupondo um EUe e TUd, visando a alcançar um determinado TUi.

Assim, a concepção Semiolinguística nos propicia depreender o conflito

presente na relação contratual de comunicação estabelecida pelo discurso literário e

midiático, nos quais se inscrevem os parceiros/sujeitos e seus protagonistas

comunicacionais.

Nas seções a seguir analisaremos os contextos externo e interno das

narrativas em questão.

5.1 Os circuitos externo e interno de Clara dos Anjos

Neste capítulo trataremos da relação contratual presente nos componentes

internos e externos da obra de Lima Barreto. Ao adequarmos o quadro

comunicacional, primeirante, à narrativa barretiana, encontramos:

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Circuito externo - Fazer

Circuito interno – Dizer

EUc

Autor

EUe

Personagens

Individuais

TUd

Personagens

Individuais

TUi

Conjunto de Leitores

Mundo das palavras

Relação contratual

Mundo sócio-histórico

Quadro 02: Contrato comunicacional adaptado.

Na instância do circuito do fazer, o processo comunicacional inicia-se com o

EUc projetado pelo autor Lima Barreto que constrói sua estória tendo em vista um

leitor empírico (TUi). O estatuto de escritor lhe confere a capacidade de perceber de

modo sagaz a sociedade carioca do início do século XX. Como um flanêur, caminha

pela cidade, e sob um olhar perspicaz, capta, ao seu modo, as nuances de um Rio

de Janeiro que se modifica para atender ao projeto republicano de modernidade. Na

visão desse autor, os problemas da cidade centravam-se no advento da

modernidade, que atuava no empobrecimento das massas, observe:

Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário. (BARRETO, 1998, p. 75).

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A escrita crítica barretiana nos fornece uma excelente ferramenta de análise

dessa sociedade, na medida em que foi produzida por ele na condição de vivente do

cotidiano carioca. Barreto encena, através de seu discurso, o caos em que se

encontra a sociedade brasileira, a urbanização desordenada do Rio de Janeiro, o

descaso político, a condição dos pobres e negros no Brasil:

Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. (...) Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato. (...) A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente;(...) Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro. (BARRETO, 1998, p. 72-73).

Faz-se pertinente pontuar que essa foi uma época na qual esta cidade passou

por uma brusca transformação econômica, política e social. Esse cenário propiciou

e/ou estimulou os principais autores desse tempo a retratarem esses fatos em suas

obras.

Lima Barreto, entre outros escritores de origem afro, segundo Bernd, constitui

―a periferia do sistema discursivo‖ do século passado. Esses autores fundam ―um

antagonismo explícito ao pensamento hegemônico dominante, sendo que o valor

das suas obras só será resgatado muitos anos depois‖. (BERND, 1992, p. 79).

Através dos textos de Barreto reconhecemos o lugar dos pobres, da baixa camada

social carioca do século passado, daqueles que sofrem discriminação e fracasso:

Mulato e alcoólatra, ocupando ele próprio enquanto indivíduo o espaço da margem, ele produziu seguramente a obra mais corrosiva de seu tempo. Sua timidez e sua aversão às luzes da academia, bem como as teses dissonantes que ele defendia ao contrário da formidável doxa do início do século, são as principais razões da rejeição e da incompreensão crítica a seu respeito durante um longo período. (BERND, 1992, p. 79).

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Assim se constitui o EUc Lima Barreto, detentor da iniciativa do processo

comunicacional. Enquanto participante desse momento interacional, Barreto é um

EUc que escreve para um TUi (um sujeito imaginado pelo EUc). A comunicação

entre esses parceiros acontecerá através da materizalização escrita do texto

barretiano.

Contudo, o TUi que se inscrevia na sociedade da Belle Époque (a elite

letrada) não considerou digna a escrita barretiana, pois ela buscava sempre captar a

realidade local, até mesmo quando era projetada de forma caricatural e irônica. Em

seu diário íntimo, Barreto confessa o desprezo por essa crítica infundada.

Sem data

Eu tenho notado nas rodas que hei frequentado, exceto a do Alcides, uma nefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e menores.

Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os cacoetes, a estrutura da frase, não há dentre eles um que conscienciosamente procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de epopéia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos, mortes de parentes e coisas assim. A pouco e pouco vou deixando de os frequentar, abomino-lhes a ignorância deles, a maldade intencional, a lassidão, a covardia dos seus ataques. (BARRETO, 2006, p. 41).

O EUc Lima Barreto só alcançará a credibilidade de escritor por volta de

trinta anos após a sua morte, sendo Francisco de Assis Barbosa o organizador das

obras barretianas. Logo, a crítica literária brasileira irá não só reavaliar a posição do

autor na história da literatura do país, como construirá um projeto para avaliar esse

período literário, até então, obscuro para a contemporaneidade. (SANTOS, 2011, p.

03). Desse modo, Barreto assume o contrato de escritor-romancista e seu discurso

demonstra legitimidade, o TUi contemporâneo reconhece o saber e o poder que o

EUc Lima Barreto exerce ao desempenhar a escritura do gênero romance.

Para Adorno (1983) as narrativas acompanham as experiências humanas na

diversidade dos momentos. Nesse sentido, parece que a escrita de Lima Barreto

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revela a prática da vida – o autor nos dá a impressão de conhecer bem o convívio

com a miséria humana, observe:

Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade a parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. (BARRETO, 1998, p. 115-116).

É sob dadas circunstâncias da degeneração humana que a narrativa Clara

dos Anjos discorrerá. O ―saber fazer‖, barretiano expressa a realidade nacional do

século XIX, o embate social dessa época se projeta na escrita do autor.

Lima Barreto é um EUc que tem a iniciativa do processo da escrita. Ao

produzir seu texto ele aciona um EUe, que em sua ficção corresponderá, ao

narrador.

Para constituir sua obra, pressupomos que o autor contou com certos saberes

partilhados, como a questão racial no âmbito social. Nesse ritual linguageiro, Barreto

deixa subentendidos, em sua enunciação, aspectos marcantes que projetam,

possivelmente, as vivências singulares de outrora, veja:

inconformidade: ―O espectro da escravidão, com todo o seu cotejo de

infâmias, causa-lhe secretas revoltas.‖ (BARRETO, 1998, p. 36);

indignação: ―O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os

dos romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo

para o pequeno povo; o autor nada.‖ (BARRETO, 1998, p. 51);

pobreza: ―Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante

da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro

flagelo.‖ (BARRETO, 1998, p. 72);

denúncia: ―Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no

abandono em que os poderes públicos o deixam. (...) O subúrbio é o

refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que

faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal

vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de

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amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o

sustento seu e dos filhos.‖ (BARRETO, 1998, p. 74); dentre outros.

Barreto, enquanto EUc, idealiza um TUi contemporâneo a ele, que irá

interagir com sua escritura, de função social, já que ―nunca, um minuto só da sua

vida, pôs a sua pena a serviço de nenhuma causa iníqua‖. (LINS, 1976, p. 175). Já o

TUi (leitor empírico) extemporâneo deve reconhecer que esse autor escreveu em

determinada época (século passado), a qual contextualiza certos aspectos próprios

daquele tempo, como a escravidão, as inovações republicanas etc. Ao TUi, o leitor

real, portanto, cabe realizar a interpretação do texto.

Observamos, agora, em Clara dos Anjos, o espaço onde se encontram os

seres de fala, isto é, o nível do dizer que corresponde aos sujeitos enunciadores e

destinatários, que nesse momento são representados pelo narrador e por certos

personagens como Cassi Jones, Inês, Salustiana, Joaquim e Margarida, de Clara

dos Anjos. Apresentamos, então, inicialmente, a possibilidade de desdobramento

do quadro enunciativo no âmbito do dizer. Assim encontraremos:

EUe: narrador/personagens

EÃO

EDO: Registros discursivos/Estruturação linguística do significado

TUd: leitor idealizado/personagens

Quadro 03: Processo enunciativo – circuito interno.

Sob essa óptica elegemos algumas passagens da narrativa barretiana para

demonstrar tais ocorrências, conforme se observará a seguir.

Os trechos seguintes dizem respeito a Salustiana, mãe de Cassi Jones:

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EUe Narrador:

(...) não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.

(BARRETO, 1998, p. 24-25)

Essa construção de linguagem se faz pelo ato de enunciação proferido pelo

sujeito comunicante, inscrevendo o sujeito enunciador a partir de seu próprio modo

de dizer/falar, ou ainda, na mise-em-scène (encenação) de seu discurso, produzido

pela projeção do EUc tendo em vista o EUe. Na escrita barretina, os parceiros

interacionais se constituem sob a voz do EUe (narrrador), que pressupõe seu

TUd/TUi (leitor), que nessa circunstância comunicacional apresentará Salustiana.

A personagem é retratada como uma mulher de poucos amigos, arrogante.

Ela se estabelece sob uma identidade superior à dos demais sujeitos de seu

convívio, pois segundo seu julgamento, ―ter um irmão médico do Exército, com o

posto de capitão‖ e ―ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade‖ a faz melhor do

que seus concidadãos. Nesse nível, o intencional, o EUe partilha com o TUd/TUi

determinadas particularizações acerca do modo de ser e agir de Salustiana.

Através do componente psicossocial, apreendemos a posição hierárquica de

Salustiana, que se apresenta como uma mulher branca e nobre: ―A mãe, nas crises

de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lorde Jones, que fora cônsul da

Inglaterra, em Santa Catarina...‖ (BARRETO, 1998, p. 23).

Esclarecemos que nosso interesse se faz sob as relações racializantes que o

corpus expõe. No entanto, em alguns momentos, acreditamos que a apresentação

de certos aspectos de determinados personagens se faz pertinente, como essa

caracterização de Salustiana, mãe do anti-herói Cassi Jones, tendo em vista uma

melhor compreensão das cenas que serão analisadas.

Para demonstrar uma das relações raciais presentes na obra Clara dos

Anjos, trouxemos uma cena de Salustiana na qual ela se mostra conivente com as

investidas amorosas do filho Cassi Jones. Nesse episódio, a mãe da jovem Nair

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tenta a reparação para a desonra sofrida pela filha e imputada por Cassi Jones.

Veja:

Nessa cena deparamo-nos com a seguinte troca enunciativa: ora fala o EUe

narrador, que pressupõe o TUd/Tui (leitor); ora o EUe (Salustiana) fala, visando o

TUd (Nair); e em outro momento Nair se assume com EUe, que tem em vista

Salustiana como seu TUd. Nesse âmbito comunicacional as personagens se veem e

dialogam.

No nível psicossocial, a mãe de Nair reconhece sua posição de inferioridade:

ela se assume como uma viúva, pobre, com uma filha para criar – ―Mas, se a

senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma

coisa. Tenha piedade de mim (...)‖. Já Salustiana se coloca altiva, não demonstra ―o

mínimo de enternecimento‖ (BARRETO, 1998, p. 26), pelo infortúnio que seu filho,

Cassi, havia causada a Nair. A pobre viúva faz um apelo a Salustiana: ―Tenha

piedade de mim e da minha, minha senhora.‖ (BARRETO, 1998, p. 26). No entanto,

EUe Narrador:

Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:

EUeSalustiana:

- Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior.

EUe Mãe de Nair:

- Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.

EUe Narrador:

E pôs-se a chorar e a soluçar.

Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:

EUeSalustiana:

- Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio. (...)

EUe Narrador:

No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol.

(BARRETO, 1998, p. 26)

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esta não admite a culpa de seu filho e não se sensibiliza com o defloramento

cometido por Cassi.

Diante da cena apresentada, o componente intencional demonstra o

conhecimento a priori de que o sujeito de cor ou pobre é sempre inferior àquele de

boa situação financeira, e claro, branco. Assim, Salustiana não aceita que o filho se

relacione com mulheres pobres e/ou negras/mulatas. O modo de ser dessa

personagem demonstra a relação conflituosa que esta mantém com as pessoas

negras e pobres.

O contrato comunicacional estabelecido entre Salustiana e a mãe de Nair

produz um efeito interacional catastrófico. A mãe de Cassi Jones diz à outra mulher

que, se ela quiser algum reparo moral do filho, que recorra à polícia. Entretanto, a

mãe de Nair não segue essa ação, o contrato comunicacional não se estabelece, e

ela (a progenitora de Nair) tira a própria vida. A manobra realizada por essa

personagem se faz sob uma ação desesperadora, afinal, ela não vê uma ―saída‖

para o fato ocorrido com sua filha.

O próximo desdobramento enunciativo ocorre a partir do modo de ser de

Joaquim dos Anjos, mulato e pai da protagonista dessa trama, Clara.

Nessa instância o EUe, narrador, através do âmbito comunicacional, revela ao

TUd/TUi leitor a identidade assumida por Joaquim e o pensamento europeizado que

esse apresentava.

Através do nível psicossocial, Joaquim se estabelece sob a condição de

mulato que tem um trabalho público de carteiro. Ele se apresenta como um sujeito

subalterno, isto é, subordinado a alguém, pois não era ―louro‖ e nem tinha ―olhos da

cor do mar‖, estando sempre à margem da sociedade.

EUe Narrador:

Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes.

(BARRETO, 1998, p. 47)

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O componente intencional se apoia em certos saberes partilhados

apresentados pelo personagem narrador. Um deles diz respeito à inferioridade

―adquirida‖ pelo negro: ―Para o negro há apenas um destino, e ele é branco‖

(FANON, 2009, p. 28). A visão histórica e ideológica construída acerca do

negro/mestiço não associa esse sujeito a funções de poder.

Aliás, achando-se inscrita a servidão na natureza do colonizado e a dominação na sua, não haverá problema. Às delícias da virtude recompensada, acrescenta a necessidade das leis naturais. A colonização é eterna, pode encarar seu futuro sem nenhuma inquietação. Após o que, tudo tornar-se-ia possível e assumiria novo sentido. O colonialista poderia permitir-se viver quase descansado, benevolente e mesmo benfeitor. O colonizado só lhe poderia ser reconhecido pelo abatimento que recebe naquilo que lhe é devido. Inscreve-se aqui a surpreendente atitude mental chamada paternalista. O paternalista é aquele que quer ampliar ainda mais, uma vez admitido, o racismo e a desigualdade. (MEMMI, 1977, p. 72 – destaques do autor).

Percebe-se, pelo contexto apresentado, que a imposição do branco sobre o

negro é algo antigo, que condiz com a retórica apresentada pelo período colonialista.

O negro, nessa circunstância, está fadado à subordinação e submissão.

Segundo o EUe (narrador), Joaquim não admite seu valor enquanto homem

de cor, mas historicamente ele está impossibilitado de associar sua própria imagem

ao poder. A concepção da superioridade branca prevalece no imaginário vivido por

esse personagem: ―Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que

não eram chefes.‖ (BARRETO, 1998, p. 47). Joaquim parece ter consciência da

realidade do homem de cor, e assim surge a ―verdadeira desalienação do negro‖ sob

sua realidade econômica e social, onde ―só há complexo de inferioridade após um

duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor,

pela epidermização dessa inferioridade.‖ (FANON, 2009, p. 28).

A visão conflituosa vivida por esse personagem perante a condição do negro

tem uma razão de ser: o mundo que ele conhece se concebeu sob os pilares

ideológicos da sociedade branca – observe o posicionamento de Memmi acerca do

movimento da colonização:

Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesma dinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colonizador que nela faz às vezes

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da lógica, comanda e explica cada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo, são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles que à primeira vista, ser-lhe-iam prejudiciais. (MEMMI, 1977, p. 80 – destaques do autor).

Ao colonizado não resta nada, o colonizador lhe tirou o direito da

humanidade, e também o de ter liberdade, e esse parece ser o destino que Joaquim

acaba por idealizar: o da inferioridade.

O lobo, o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, Selvagem, são sempre representados por um preto ou um índio, e como sempre há identificação com o vencedor, o menino preto torna-se explorador, aventureiro, missionário ―que corre o risco de ser comido pelos prestos malvados‖, tão facilmente quanto o menino branco. (FANON, 2009, p. 130-131 – destaques do autor).

Em outro trecho, trazemos mais alguns aspectos que demonstram o embate

da racialização no romance barretiano. Esse episódio acontece a partir de uma das

andanças de Cassi Jones pela cidade. Nesse circuito ele irá deparar-se com Inês,

uma ex-empregada negra de sua casa que ele havia engravidado:

EUe Inês: - Então, você não me conhece mais, ―seu canaia‖? Então você não ―si‖ lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você... (...)

EUe Narrador: Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. (...)

EUe Senhor que se reporta a Inês:

- O que te fez esse moço?

EUe Inês: - É o ―home qui mi‖ fez mal; que ―mi‖ desonrou, ―mi pois‖ nesta ―disgraça‖. (...)

EUe Narrador:

Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castan‘os, em que se viam lêndeas, comentou:

EUe Senhora que se

- É sempre assim. Esses ―nhonhôs gostosos‖ desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente...

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Temos nessa passagem um EUe Inês que se dirige a um TUd Cassi Jones.

Contudo, percebem-se ainda certas trocas de turno de fala, como a de um senhor

que pergunta para Inês o que Cassi lhe havia feito; e ainda, a entrada de uma

mulher dando palpite na discussão de Inês com Cassi, além do narrador, como EUe.

Os parceiros dessa troca enunciativa se reconhecem pela miséria humana,

eles ―haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da

sociedade‖, o lugar onde Inês vivia sendo visto, na perspectiva do EUe narrador,

como um território de ―deserdados de tudo deste mundo‖. (BARRETO, 1998, 114).

Os saberes partilhados nesse momento demonstram a relação inferiorizante

de um negro para com o branco. Esse componente intencional ainda revela a

estratégia de Inês, que é a de humilhar Cassi Jones. Ela, nesse momento, está em

território seguro: a rua é seu espaço e ali Cassi não poderia mais fazer mal algum a

ela.

A expectativa do ato de linguagem se faz pelo conflito das relações entre

negros, mulatos e brancos, determinadas pelas ofensas e pela ridicularização

sofridas pelos parceiros da comunicação, especificamente, as vividas pela negra

Inês.

Assim, o contrato de comunicação acontece, porém, o reconhecimento da

palavra do outro, ou da atitude para com o outro, como a de Cassi Jones, se faz de

modo inescrupuloso. A aceitação do fato relatado pelos sujeitos destinatários não

ocorre de maneira tranquila, e sim de modo desabonador, pois os sujeitos que se

assumem como EUe revelam as infâmias cometidas por Cassi Jones. Nessa

perspectiva, Inês incorpora o seguinte quadro de comportamento definido por

reporta a Inês:

Malvados! (...)

EUe Inês: - Você sabe onde ―tá‖ teu ―fio‖? ―Tá‖ na detenção, fique você sabendo, ―Si‖ meteu com ladrão, é ―pivete‖ e foi ―pra chac'ra‖. Eis aí que você fez, ―seu marvado‖, ―home mardiçoado‖. Pior do que você só aquela galinha-d'angola de ―tua‖ mãe, ―seu‖ sem-vergonha!

(BARRETO, 1998, p. 115-116)

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Fanon: de ―preto inferiorizado passa da insegurança humilhante à auto-acusação

levada até o desespero‖. (FANON, 2009, p. 66).

Segundo Fanon (2009, p. 95) à medida que o branco estabelece sua

superioridade social ele subsume o negro à sua inferioridade. E ainda, consegue

criar uma situação de neurose nesse indivíduo. O negro acaba por ser levado a

contestar sua humanidade: ―começo a sofrer por não ser branco, na medida em que

o homem branco me impõe uma discriminação faz de mim um colonizado, me

extirpa qualquer valor (...).‖ (FANON, 2009, p. 94).

Inês, como uma mulher negra, se deixa enganar pela armadilha da sedução

em que Cassi a envolve, e ela parece se esquecer do fardo de sua cor,

Todas essas mulheres de cor, desgrenhadas, à caça do branco, esperam. E certamente um dia desses se surpreenderão não querendo mais se atormentar, mas pensarão ―em uma noite maravilhosa, um amante maravilhoso, um branco‖. Porém também elas talvez compreendam um dia "que os brancos não se casam com uma mulher negra." Mas aceitam [elas] correr o risco, porque precisam da brancura a qualquer preço. (FANON, 2009, p. 58 – destaques do autor).

O próximo recorte presentifica Margarida Weber, filha de um alemão com uma

mulher russa. Essa personagem veio para o Brasil ainda jovem. Sobre essa

estrangeira o narrador aponta que:

EUe Narrador:

Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

(BARRETO, 1998, p. 128-129)

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Observa-se que o EUe comunga a ideia de que há uma raça superior: ―(...) o

seu inconsciente misticismo humanitário (...) fê-la logo se identificar com a estranha

gente que aqui veio encontrar (...)― (BARRETO, 1998, p. 128-129). Esse saber

partilhado se estabelece a partir do etnocentrismo, isto é, a concepção da

supremacia branca sobre os povos não pertencentes a essa etnia. O termo

etnocêntrico pressupõe que exista superioridade de uma cultura sobre outras,

atribuindo o valor de universalidade a essa cultura, e as restantes têm que usufruir

dessa noção, ou se tornam as diferentes. (GOMES, 2005, p. 53).

Diante disso, são perceptíveis, nesse trecho, a elevação intelectual, moral e

cultural de Margarida em relação aos demais concidadãos brasileiros, inclusive para

com seus amigos, a família de Joaquim dos Anjos. O fato de ser estrangeira e

branca denota um modo de ser superior diante das mulatas e/ou outras mulheres

que o EUe pressupõe em sua trama.

Sobre isso, Vasconcellos (1999) explica que Margarida escapa ao protótipo

da construção feminina de sua época. Ser europeia lhe confere um modo de ser

altivo perante a sociedade vigente. E isso ocorre devido ao pensamento etnocêntrico

que permeia a construção dessa personagem. A concepção da superioridade branca

explicita as diferenças culturais concretas desde o Iluminismo (séc. XVIII), cujo

princípio era baseado na ciência como fonte da razão. Segundo Sodré, para ser ter

noção desse pressuposto acerca das diferenças raciais, o filosofo Kant (1724-1804)

refere-se aos negros africanos como seres que:

não possuem, por natureza nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo (...) O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos [...] os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores que se deve dispersá-los a pauladas. (KANT apud SODRÉ, 1999, p. 26).

Conde Gobineau (1816-82), por sua vez, afirma que a população brasileira é

―totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia‖.

(RAEDERS apud SCHWARCZ, 1994, p. 13).

Através dessas concepções, Schwarcz (1997) explica que modelos teóricos

surgem nessa época como tentativa para se estabelecer contrapontos com a teoria

de Charles Darwin, no que se refere às sociedades. Tais modelos levaram os

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teóricos a concluírem que pelas ciências naturais se poderiam explicar as diferenças

humanas, já que a sociedade passara a ser pensada pela adaptação ao meio, numa

proposta de darwinismo social. Logo, a superioridade branca se comprovaria pela

hegemonia sociopolítica, assim como a capacidade física e moral do indivíduo

branco em relação, por exemplo, ao negro, se explicaria pelo fato de que o segundo

era dado à debilidade. Nessa perspectiva, a disseminação do darwinismo social na

intelectualidade brasileira circunda a construção de Margarida Weber e a coloca em

um lugar privilegiado na sociedade oriunda da trama ficcional barretiana.

Por conseguinte, percebe-se que o processo interacional existente entre os

parceiros e protagonistas se engaja de maneira recíproca, porém assimétrica, nada

garante que o contrato seja cumprido. O sentido aqui é sobredeterminado pelas

restrições da situação de troca e pela singularidade própria do projeto linguageiro.

Nesse sentido, em Clara dos Anjos o preceito hegemônico de uma ideologia

de superioridade racial contribuiu para a segregação entre as raças. O imaginário

social brasileiro inscrito na obra de Barreto não permitia a mobilidade social dos

sujeitos negros/mulatos e/ou pobres. A desigualdade em relação a esses indivíduos

é incisiva. Entretanto, Lima Barreto mesmo reconhecendo a pressão do discurso

racial de sua época, promove uma subversão e provoca o questionamento sobre o

racismo ao colocar, na cena literária, personagens negros.

5.2 Os circuitos externo e interno de Fera ferida

Em Fera Ferida não existe narrador. Esse circuito do fazer apresenta a

projeção de um EUc que se constitui pelo autor, direção, roteirista, câmara, etc.

(conjunto de seres empíricos necessários para a construção das cenas ficcionais),

visando um EUe (personagem-ator-enunciador) que interage com o TUd (outro

sujeito ficcional-destinatário), que almeja um TUi (o telespectador idealizado pela

trama assistida- indivíduo real). Observe o quadro abaixo:

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Circuito externo - Fazer

Circuito interno – Dizer

EUc

Autor

EUe

Personagens

Individuais

Atores

TUd

Personagens

Individuais

Atores

TUi

Conjunto de Telespectadores,

Elenco etc.

Mundo das palavras

Relação contratual

Mundo sócio-histórico

Quadro 04: Contrato comunicacional adaptado.

O contrato telenovelístico apresenta um EUc (autor, que a princípio, constrói o

projeto ficcional); após isso, conjeturamos, a priori, o que poderíamos chamar de

scriptor um sujeito que fará uma ponte para movimentar a ficção no âmbito

discursivo, textual e imagético (RODRIGUES & MELLO, 2005), sendo ele a projeção

também do autor, assim como da direção, do roteirista, do câmara, dentre outros

(aqui temos um caso complicado de desdobramento, pois há vários sujeitos

envolvidos nesse processo). Esse sujeito (ou sujeitos), na perspectiva de Rodrigues

& Mello, ―é fonte da enunciação na instância produtora‖ (RODRIGUES & MELLO,

2005, p. 107); ele que irá transpor a escritura textual para o nível discursivo

apresentado pelo quadro Contratual.

Scriptor Diretor Roteirista etc.

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O EUc Aguinaldo Silva é conhecido como ―Senhor das Oito‖7, considerando o

número de telenovelas que ele escreveu para esse horário. Mas esse EUc, na

produção de Fera ferida, teve a parceria de mais dois sujeitos comunicantes: Ana

Maria Moretszohn e Ricardo Linhares e como dissemos anteriormente, os outros

parceiros que em conjunto irão elaborar a trama televisiva .

Como participantes da troca enunciativa esses EUc‘s se revelarão através

das marcas discursivas presentes nos vários EU-comunicantes que se voltam para o

projeto de fala criado por Silva, Moretszohn e Linhares. Esses sujeitos estão

inscritos em um veículo comunicacional que, em prática, atuam na produção das

relações sociais, as quais se estabelecem por meio da articulação das formas de

conteúdos e expressões, permeando o imaginário dos cidadãos brasileiros.

Os autores de Fera ferida, como EUc‘s, assumem a função de escritores

telenovelísticos e, dessa forma, assumem a legitimidade sobre a escrita desse

gênero, tendo, é claro, a cooperação de uma série de parceiros os quais

consideramos como o scriptor, e todos eles com um único propósito: o

entretenimento.

Os efeitos de sentido possíveis são muitos, levando em consideração que,

nessa leitura telenovelística, múltiplos contratos comunicacionais podem surgir, tanto

pela trama central da novela quanto pelas tramas paralelas, revestindo o espectador

(TUi) do poder do ato interpretativo, pois esse na medida em que decorre a trama

ele pode intervir, dando sua opinião, por exemplo, a partir do IBOPE - que é o

Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística, um medidor da audiência televisiva.

Tendo como foco, nesse momento, o circuito do dizer, contemplamos, para

análises, os seguintes protagonistas dessa estória: Ilka Tibiriçá, Engrácia,

Salustiana, Terezinha e Joaquim. Observe a seguir a possibilidade de

desdobramento do circuito do dizer.

7 Cfe. Portal Globo. Disponível em: <http://ego.globo.com/famosos/tudo-sobre/aguinaldo-silva.html>

Acesso em: 20 jan. 2014.

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Quadro 05: Processo enunciativo – circuito interno.

Deparamo-nos, nesse âmbito, com algumas cenas protagonizadas por Ilka

Tibiriçá, uma mulher branca, da sociedade de Tubiacanga e cunhada de

Demóstenes, o prefeito dessa cidade.

Nesse episódio, Joaquim dos Anjos, pai de Clara e carteiro da cidade de

Tubiacanga, entrega as correspondências para Ilka, que está na prefeitura. Ela

pergunta sobre a filha do carteiro, Clara, e Joaquim responde:

Joaquim: - Inteligente como ela só... as freiras sempre a elogiam!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Após essa fala, Ilka faz o seguinte comentário, porém sem que Joaquim a

escute:

Ilka: - Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... Ela devia era aprender a lavar... passar... cozinhar... limpar o banheiro...ai, quase perdi a conta!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

Temos, nessa instância, o EUe Ilka que se dirige ao TUd Joaquim. Em um

segundo momento os papéis se invertem: o EUe será Joaquim e o TUd será Ilka. No

EUe: personagens/atores/atrizes

EÃO

EDO: Registros discursivos/Estruturação linguística do significado

TUd: personagens/atores/atrizes/telespectador idealizado

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desfecho dessa cena, o EUe, novamente, será Ilka, pressupondo um TUd/TUi agora

não mais Joaquim, e sim o telespectador. A partir desse ato de linguagem, os

parceiros se reconhecem, conversam e se apresentam sob a representação

midiática, a telenovela.

Ilka é uma mulher branca da sociedade de Tubiacanga, tem o ofício de

secretária da Prefeitura dessa cidade. Já seu parceiro de troca interacional é um

negro, Joaquim dos Anjos, indivíduo subalterno, que trabalha como carteiro e não

apresenta nenhum status social. Essa personagem, quando assume o projeto de

fala e se direciona ao TUd/TUi telespectador, parece querer se elevar moralmente.

O componente intencional nos permite apreender que Ilka é uma mulher

preconceituosa, a ponto de acreditar que Clara, por ser mulata, deveria aprender os

ofícios de doméstica, ao invés de estudar.

Cria-se nessa cena um momento que tende ao cômico, pois Ilka fala muito

rápido, e Joaquim não escuta o dizer dela. Ele continua a fazer seu trabalho sem

notar o desdém que Ilka sente quanto a sua filha Clara. Essa contraposição entre

uma branca e um negro se apresenta de maneira caricatural, tendo em vista que a

personagem Ilka se constrói sob a ótica do ridículo, a partir da ligeireza de sua fala e

de suas maneiras precipitadas ao agir. Além disso, ela é uma pessoa considerada,

pelos próprios parentes, como desajustada.

O EUe projetado sob Ilka parece acreditar na inferioridade do negro em

relação ao branco ao expressar seu desejo de colocar a ―pretinha‖ para lavar,

passar etc. Nessa fala da personagem subentende-se o seu desejo pelo retorno da

condição escravagista, na qual o lugar do negro era na cozinha, na senzala, enfim,

fazendo o serviço braçal.

Ainda sobre as peripécias de Ilka, em outra ocasião, em sua casa, ela revela

ser nada amistosa com a empregada negra Cleonice. Observe:

Ilka: - Este café está ralo demais sua imprestável... vai lá dentro e passe um mais forte para mim....vai!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

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Através desse circuito, Ilka surge como um EUe que se dirige a Cleonice, que

se assume como um TUd. A personagem Cleonice é negra, doméstica da casa onde

Ilka mora com seu cunhado Demóstenes e a sobrinha Linda Inês. Já Ilka é a branca

que se porta como patroa, e mesmo não sendo dona da casa se posiciona como tal.

Ilka trata Cleonice de maneira hostil e parece fazer isso com prazer – ―sua

imprestável... vai lá dentro e passe um mais forte para mim...‖ (SILVA, LINHARES e

MORETZSOHN, 1993). Sua atitude revela sua malícia no tratamento para com o

Outro negro, desvelando certo sadismo da personagem. Nessa instância há uma

relação contratual insatisfatória, pois apenas o EUe, Ilka, exerce o direito à fala e a

negra Cleonice se cala e sai de cena, não tendo direto a réplica.

Em mais uma cena inusitada, Ilka Tibiriçá vai até a casa de dona Engrácia,

mãe de Clara dos Anjos e esposa do carteiro Joaquim, no intuito de lhe pedir ajuda

para encontrar uma beberagem que ―anime‖ um homem. No meio dessa conversa,

Terezinha, sobrinha de Orestes e amiga de Clara, aparece na casa de Engrácia

pedindo ajuda, pois na residência de seu tio está acontecendo uma desgraça: o

delegado está lá para prender Orestes. Engrácia sai às pressas deixando Ilka

sozinha, esta começa a mexer nos objetos ali presentes e aprecia uma santa que

adorna a casa de Engrácia, dizendo:

Ilka: - Quanta heresia... devem ter roubado de alguma igreja...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

O EUe Ilka, nesse instante, expressa em seu dizer a dúvida sobre a

possibilidade de um negro adquirir pertences como os que estavam dentro daquela

casa. Esse sujeito de fala aparece divagando, não há nenhum TUd (personagem)

compartilhando a troca enunciativa, assim Ilka se assume enquanto um EUc/EUe

pressupondo um TUi telespectador.

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Ilka novamente provoca uma comicidade cênica, zomba do sujeito de cor e o

vincula a um ser degenerado, associando-o à marginalidade: ―(...) devem ter

roubado de alguma igreja...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Instantes depois dessa cena, Engrácia volta à casa e Ilka começa a falar

sobre a erva que procura. Só que a mãe de Clara diz não poder ajudá-la e Ilka, não

satisfeita, fala:

Ilka: - Vou procurar outra macumbeira sim! O que não falta nessa cidade é quem pratique o catimbó...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Quando Engrácia se nega a ajudar Ilka, esta a chama de macumbeira e

praticante do ―catimbó‖, isto é, de magia negra, propondo um sentido pejorativo para

o fato de Engrácia participar de uma irmandade negra na cidade de Tubiacanga.

A relação entre o EUe projetado por llka pressupondo o TUd Engrácia se faz

sob um contexto de desavença, e os dizeres proferidos por Ilka demonstram tal

ocorrência. Esse ato comunicacional se apóia em saberes discriminatórios

partilhados pelo EUe e reconhecidos pelo TUd/TUi. Há, nesse âmbito, uma maneira

preconceituosa de falar que se projeta sobre o negro e sua descendência, como

também sobre suas crenças. Nessa circunstância, é interessante lembrarmo-nos de

que vivenciamos atitudes semelhantes de discriminação em nossa sociedade. É

comum, no cotidiano brasileiro, as pessoas denominarem de macumbeiros, por

exemplo, os praticantes e/ou os adeptos da religiosidade africana, desconhecendo

totalmente a crença. ―Negão‖ é outra palavra comum no linguajar brasileiro para

denominar um sujeito de cor. Enfim, tudo o que diz respeito à tradição africana, a

essa cultura e à cor do indivíduo tornou-se clichê e estigma negativo e circula no

imaginário social do Brasil.

Nessas circunstâncias, Ilka se posiciona sobre o ideário pautado na

degenerescência do negro, isto é, o sujeito de cor é, e sempre será, um ser inferior.

A ideia do colonizador soberano que acredita plenamente em sua superioridade e

age como tal rege o modo de pensar e agir dessa personagem, tanto que ela só se

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refere aos negros a partir de termos infamantes, desabonadores, como ―negrinha,

―macumbeira‖, ―imprestável‖. Isso nos remete, também, ao pensamento que alguns

têm de que o negro é preguiçoso (no sentido de imprestável, inútil). Sobre isso

Memmi explica que o pensamento do colonizador era de que: ―seja qual for a função

que assuma, seja qual for o zelo que manifeste, [o negro] nunca seria nada mais do

que um preguiçoso‖. (MEMMI, 1977, p. 79). Essa foi uma das representações com

as quais o negro colonizado teve que conviver e que são recuperadas no contexto

da telenovela.

Ilka, diante dessas exposições, parece se comportar como uma colonizadora,

ela acredita ter para si a virtude e a beleza, o conhecimento intelectual, o poder por

ser da elite, enquanto aos negros que com ela convivem cabem apenas a

primitivização e seu aprisionamento pela sociedade branca. (FANON, 2009, p. 45).

Assim, pelas cenas enunciativas, percebe-se que o EUe apresentado por Ilka

Tibiriçá revela, em seu constructo de linguagem, uma aversão pelos sujeitos negros

e/ou mestiços, além de pobres, mostrando-se um sujeito extremamente

preconceituoso.

Passando a outro episódio, Joaquim dos Anjos vai até a delegacia tentar

buscar notícias de Orestes, o coveiro, que havia sido preso. Temos o seguinte

processo interacional: Joaquim, um EUe, dizendo para o delegado, seu TUd, que o

coveiro não havia feito nada de grave. Contudo, o sujeito destinatário assume agora

o projeto de fala, se tornando um EUe, e se irrita com Joaquim (TUd) dizendo:

Delegado: - Você desacata minha autoridade que eu lhe enquadro como cúmplice, seu crioulo safado!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaque meu)

Em tal instante comunicacional, o EUe não admite a intervenção de Joaquim.

Como um sujeito de cor poderia questionar a autoridade de um delegado branco:

―Você desacata minha autoridade (...)‖(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Sobre esse posicionamento, Fanon explica que o destino do negro é branco, a

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sociedade colonialista não aceita que um indivíduo de epidermização escura

intervenha num mundo do qual ele não faz parte, onde ele é um estranho.

A realidade econômica e social é outro fator que afeta diretamente a

consciência do negro. Ele entende que não pode competir na sociedade branca,

pois a sua falta de dinheiro e a sua pele o colocam em desvantagem no percurso

ditado pela ordem capitalista e branca.

A posição social e a cor, nesse contexto, parecem ser preponderantes para

definir a identidade do ser negro como subalterno, sem direito à palavra, e a do

branco como altivo, ditando as regras e governando todas as instâncias sociais do

mundo que ele diz ser seu.

Quando o filho de Orestes, Vivaldo, sabe da prisão do pai, ele diz para a mãe,

que está rezando:

Vivaldo: - E adiantou... adiantou por caso? A gente não vale nada pra eles mãe ...nem meu pai que é branco... o que... que vai servir pra essa santa....

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Nesse momento enunciativo, o jovem Vivaldo, enquanto EUe, percebe que,

mesmo sendo branco, o pai não tinha como lutar por sua liberdade, pois era um

homem pobre: ―A gente não vale nada pra eles mãe ... nem meu pai que é branco...

o que... que vai servir pra essa santa.....‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN,

1993)

Desse contexto podemos aludir as desigualdades fundadas sob o universo

capitalista brasileiro. Guimarães (2002) discute que a noção de classe social

capitalista surge através de processos de análises que se referem a um tipo de

exploração, materializados sob as práticas sociais do mundo real, cujas

manifestações acontecem sob a ordem da hierarquia, gênero, raça, etnia etc.

Sob esse ângulo, a classe se mistura aos conceitos que traduzem as

desigualdades entre os homens e mostra a fragilidade do indivíduo enquanto uma

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categoria da negação social, apontada por dualidades do tipo branco/preto,

pobre/rico, superior/inferior.

Diante disso, não só a cor está em julgamento, mas também a condição

financeira, intelectual, já que o status do indivíduo enquanto um membro da

sociedade tem que estar numa situação favorável. Assim, Vivaldo não acredita,

tampouco, na intervenção da Santa para ajudar um pobre – se o mundo dos homens

não o faz, algum ser mítico o faria? O universo de crenças compartilhadas nessa

instância se apóia no preconceito e na discriminação para com o outro, o pobre, o

negro/mulato.

Na próxima relação interacional apresentamos Terezinha e Engrácia, ambas

mulatas e pertencentes à irmandade:

Engrácia: - O que é justo ou não... quem dita sou eu... que sou a rainha menina... são as regras da irmandade...

Terezinha: - Eu nunca vi nada mais antigo... mais quadrado do que isso...a senhora acha que pode mandar nas pessoas por quê? Será que vocês não ficaram satisfeitos com a abolição da escravatura e resolveram criar essa irmandade pra aprisionar as pessoas...

((Neste instante Orestes entra na conversa e manda Terezinha ir para o quarto dela.))

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Engrácia se posiciona como um EUe, enquanto Terezinha se mantém como

um TUd. Entretanto, quando Terezinha assume a fala, esta se torna o EUe e

Engrácia um TUd.

Verifica-se, nesse instante, uma intenção crítica por parte de Terezinha:

mesmo praticante dos preceitos da irmandade, ela se volta contra as regras

estabelecidas por essa associação religiosa, que permite a sua líder atuar de

maneira autoritária. A expectativa que se cria nesse momento é a de que Terezinha,

como membro da irmandade, aceitaria as condições vigentes. Mas não é isso o que

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acontece. A jovem questiona o posicionamento de Engrácia como rainha, – ―Será

que vocês não ficaram satisfeitos com a abolição da escravatura e resolveram criar

essa irmandade pra aprisionar as pessoas...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN,

1993) –, e aponta uma falha na conduta dessa confraria, a ponto de compará-la

àquilo que é abominado por todos dessa associação negra: a escravatura, lugar que

aprisiona e retira a liberdade do sujeito de cor.

Os parceiros comunicacionais Engrácia e Terezinha reconhecem seus

lugares sociais – esta como seguidora da ordem religiosa negra e aquela como

autoridade máxima dentro desse grupo. No entanto, Terezinha desafia e questiona a

rainha da irmandade. A relação contratual se faz sob o conflito do autoritarismo do

negro em relação ao próprio negro, reforçando o discurso que circula na sociedade,

de que o próprio negro é racista. Esse fato pode ser explicado pela negação do

negro ao seu semelhante. Segundo Fanon, o sentido das ações do indivíduo de cor

só têm valor no mundo dos brancos, afinal, esse é o lugar que ele conhece: ―só o

Outro pode valorizá-lo‖, diz Fanon. (FANON, 2009, p. 136). Logo, quando o negro

adquire algum poder, ele se compara ou encarna atitudes praticadas pela soberania

do indivíduo branco, conforme encenado pela personagem Engrácia.

Sob essa perspectiva, Memmi (1977) atribui ao colonizador sua parcela de

culpa, pois este nega ao colonizado o direito a liberdade. O colonizado é destituído

de sua humanidade e, assim, acaba se familiarizando com sua inaptidão e perde a

esperança em se tornar um cidadão da colônia. ―A agressão ideológica, que tende a

desumanizá-lo, depois a mitificá-lo, correspondem em suma a situações concretas

que visam ao mesmo resultado.‖ (MEMMI, 1977, p. 86). O colonizado é posto para

fora da história e da vida da colônia, afirma o autor.

O colonizado, diante de tais brutalidades, assimila a cultura e o modo de vida

do colonizador – a sociedade que o colonizado acaba por reconhecer se faz sob o

âmbito colonial. (MEMMI, 1977).

O fato verificável é que a colonização reduz o colonizado à privação e que todas as carências se entretêm e se alimentam umas as outras. (...) Tudo no colonizado, enfim, é privação, tudo contribui para torná-lo um ser de carência. (MEMMI, 1977, p. 107).

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Dessa forma, o colonizado adota os valores do colonizador, sendo esse o

modo de vida reconhecido pelo sujeito de cor. Engrácia, nesse contexto, parece ter

assimilado o comportamento do branco (colonizador) e a base autoritária que este

aplica ao lidar com a subalternidade. Nessa instância, portanto, parece-nos haver a

troca interacional. Porém, isso ocorre como um embate, uma desavença entre

parceiros da comunicação.

Na situação enunciativa que virá deparamo-nos com uma discussão entre

Engrácia e Salustiana:

Engrácia: - A senhora vai me desculpar, mas a parte ofendida aqui sou EU!

Salustiana: - A parte ofendida vai ser sempre você na vida, nunca eu! É inevitável! É inevitável, sabe por que, por causa da desigualdade inata que existe entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia!

Engrácia: - Eu não vim aqui pra ser insultada!

Salustiana: - Quem tá sendo insultada sou eu que tô sendo obrigada a ficar olhando pra sua cara. Ah! vai se daqui... vai! Vai embora!

((Engrácia deixa a casa do Major e Salustiana diz)):

Salustiana: - Ah! Cassi Jones você não toma jeito hein... e elas também não! É sempre a mesma história, entram cheias de empáfia e saem com o rabinho entre as pernas...

((Salustiana dá gargalhadas))

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Temos, aqui, mais um conflito entre branco e negro/mulato, respectivamente

Salustiana e Engrácia, que se posicionam em dados momentos como EUe e TUd, e

em outros fazem a troca dessas instâncias.

Percebe-se, nessas circunstâncias, a posição de superioridade de Salustiana

em relação a Engrácia: a primeira se assume como uma dama da sociedade

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tubiacanguense, enquanto a outra surge como uma simples tecelã, e ainda, carrega

o estigma de sua cor, é uma negra.

Essa cena enunciativa se constrói por meio de uma determinada

intencionalidade, que é a de mostrar a discriminação contundente realizada por

Salustiana em relação a negros e pobres, além de demonstrar sua certeza de que a

inferioridade do negro é inevitável na sociedade na qual vive. Observe sua fala: ―(...)

por causa da desigualdade nata que existe entre pessoas da minha linhagem e

gentinha da sua laia!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Parece-nos que o senso comum que permeia o imaginário da personagem

Salustiana se constitui através da internalização dos modelos cientificistas

introduzidos no Brasil por volta de 1870, sob um ―um novo ideário positivo-

evolucionista‖ (SCHWARCZ, 1993, p14), os quais serviram como base para a

construção do ideário racializante.

Os ―homens de sciencia‖, como denomina Schwarcz (1994), no final do

século XIX, tentaram explicar o que seria o processo de miscigenação brasileira, e

questionaram os motivos para as diferenças entre os homens.

Adeptos, em sua maior parte, dos modelos poligenistas de análise – que entendiam as raças como fenômenos essenciais e ontológicos, resultantes de centros de criação diversos – concluíam, esses teóricos dos museus, não só que ―a evolução encontrada na natureza era exatamente igual àquela esperada para os homens‖ (Boletim do Museu Paraense E. Goeldi), como supunham que ―os grupos inferiores constituíam barreiras frente ao progresso da civilização‖. (SCHWARCZ, 1994, p. 03 – destaques da autora).

―Os grupos inferiores‖ a quem os cientistas se referem dizem respeito aos

negros, que, nesse período, no Brasil, saem de um processo de escravidão e não

têm nenhum amparo social. Contudo, a desatenção com a população negra era

explicada por sua inferioridade. As classes dominantes, assim, continuam com sua

mão de obra de baixo custo, e o negro, predestinado à pobreza, à degeneração

humana.

Assim, esse episódio denota que as personagens se reconhecem tal como

outrora, época em que as teorias estabeleciam a superioridade das raças e a

hierarquia social instituía o branco como superior e o negro como inferior. Nessa

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instância surge a reprodução desse ideário preconceituoso e Engrácia representa o

negro fadado à submissão, mesmo sendo rainha da irmandade, ou seja, mesmo

ocupando, em relação aos próprios negros, uma posição superior. O problema do

negro, como se vê, se instaura no plano social, pois o discurso preconizado pela

sociedade ainda permanece sob a voz do capitalismo colonialista, que se fez por

uma soberania acidentalmente branca. (FANON, 2009, p. 170).

Salustiana evoca, portanto, um imaginário racial preconceituoso: ―A parte

ofendida vai ser sempre você na vida, nunca eu! É inevitável! É inevitável, sabe por

que, por causa da desigualdade inata que existe entre pessoas da minha linhagem e

gentinha da sua laia!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Ao negro cabem

todas as formas de humilhação e exploração, sua vida miserável é um fardo que se

explica até mesmo por decretos bíblicos, o mundo branco, único modelo de

humanidade rejeita o negro: ―O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado,

o preto é feio (...)‖ (FANON, 2009, p. 106).

Assim também é a construção do imaginário a respeito do negro brasileiro e

Engrácia, como um representante desse grupo, perde o embate argumentativo.

Salutiana, enquanto EUe, detém o projeto de fala. O contrato de comunicação se

constrói sob o julgamento do negro versus o branco e, claro, sob a ideologia da

supremacia branca, que sobressai nessa situação.

A telenovela, portanto, apresentou o debate sobre o racismo a partir de

desvios promovidos por discursos que circulam na sociedade, como aquele que

atribui ao próprio negro características racistas, sem se preocupar em explorar o

porquê disso. Ela também mostrou aspectos conflituosos em relação à interação

negro/mulato e branco, manifestados de forma nada sutil, observe:

―... eu lhe enquadro como cúmplice seu crioulo safado!‖ (Delegado);

Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... (Ilka);

É inevitável, sabe por que, por causa da desigualdade nata que existe

entre pessoas da minha linhagem e gentinha da sua laia! (Salustiana).

Diante do tratamento dado à questão racial na telenovela, tem-se a impressão

de que, no contexto social brasileiro, a distância temporal não apagou a

discriminação, ela promoveu a ―cordialidade‖ à condição de marca do preconceito

racial.

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A nossa intenção nessas primeiras análises, foi mostrar que as relações

conflituosas entre brancos, negros e mulatos existem no Brasil. Mesmo perante o

fator tempo e as mudanças de épocas, a desigualdade parece não ter se

modificado, prevalecem os mesmos preceitos, porém em contextos distintos e com

finalidades também diferenciadas.

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6. AS FORMAÇÕES DISCURSIVAS EM CLARA DOS ANJOS E FERA FERIDA

Para constituir o aporte teórico estabelecido nesse estudo, utilizaremos a

noção de formação discursiva segundo Michel Pêcheux (1997).

A base do pensamento de Pêcheux se constitui sob a interpelação do sujeito

pela ideologia. As formações discursivas nesse contexto se compõem pelos diversos

interdiscursos e, assim, possuem ideologias distintas no seu interior.

De acordo com esse autor, a ideologia indica, através do ―hábito‖ e do ―uso‖,

―o que é‖ e ―o que deve ser‖ e isso, em alguns casos, por intermédio de desvios

linguisticamente assinalados em meio do preceito e da constatação, funcionando

como dispositivo de ―retomada do jogo‖. As evidências pelas quais ―todo mundo

sabe‖ o que é, por exemplo, um soldado, um operário, uma fábrica, uma greve, etc.

são geradas pela ideologia. Essas certezas manifestas fazem que um

enunciado/palavra diga o que realmente deseja dizer, sendo mascarado sob a

―opacidade da linguagem‖, isto é, a materialidade do sentido contido nos léxicos e

enunciados. (PECHEUX, 1997, p. 159).

Nesse sentido, o autor considera, que o caráter material do sentido,

mascarado por sua evidência transparente para o sujeito, consiste na sua

dependência constitutiva daquilo que chamamos ―o todo complexo das formações

ideológicas.‖ (PECHEUX, 1997, p. 160). Diante dessa afirmação o autor busca

especificar essa espécie de subordinação do sentido através do seguinte princípio: o

sentido de uma palavra, expressão, proposição etc. não existe por si, isto é, em sua

correspondência com a literalidade significante na qual é introduzido, sendo , então,

estabelecido pelas posições ideológicas inscritas no jogo do processo social e

histórico com os quais essas palavras, expressões, proposições etc. são

confrontadas.

Em linhas gerais, os vocábulos, frases, expressões adquirem sentido segundo

as posições mantidas por aqueles que as empregam. Isso quer dizer que a

aquisição de sentido, por parte desses termos/expressões, se dá em referência às

formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. Essa perspectiva

demonstra uma dimensão do sentido pressuposta pela concepção da análise do

discurso; no entanto, existem outras noções que tratam o significado como resultado

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da atividade perceptiva, ficando mais atrelado a condições cognitivas mais

fundamentais.

Reconhecemos, então, uma formação discursiva, segundo Pêcheux, a partir

de sua constituição que se estabelece por

aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). (PECHEUX, 1997, p. 160).

As Formações Discursivas – doravante denominadas FD – são, nessas

circunstâncias, projeções, na linguagem, de certas formações ideológicas vigentes.

Logo, o sentido de um estado de coisas só é adquirido a partir do posicionamento

daqueles que o empregam, inscritos sob uma dada ideologia.

Para Pêcheux (1997), qualquer formação discursiva dissimula, pela

diafaneidade do sentido constituído por ela, sua dependência ao ―todo complexo

com dominante‖ das formações discursivas, enredado no complexo das formações

ideológicas. A esse ―todo complexo com dominante‖ das formações discursivas

atribui-se o nome de interdiscurso:

Diremos, nessas contradições, que é próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que ―algo fala‖ (ça parle) sempre ―antes, em outro lugar e independentemente‖, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas. (PECHEUX, 1997, p. 162 – destaques do autor).

Pode-se compreender essa passagem como algo relativo a uma memória

discursiva constituída por um esquecimento determinante, com base no princípio de

que todo discurso se manifesta na relação com a sua alteridade/exterioridade ou,

ainda, numa interação constitutiva com outros discursos.

O interdiscurso assinala o espaço discursivo e ideológico no qual se

desenvolvem as formações discursivas sob as relações de subordinação,

dominação e contradições existentes no âmbito enunciativo.

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A partir dessas considerações, Pêcheux (1997) aponta dois tipos de

discrepâncias para essa questão apresentada: o efeito de encadeamento do pré-

construído (ilusão da existência de uma realidade dada como tal e representável

pelo discurso) e a articulação (ilusão da existência de uma relação explicativa entre

os sentidos que funcionaria como processo de sustentação do discurso). Essas

discrepâncias são determinadas na própria estrutura do interdiscurso.

A noção de formação discursiva, desse modo, é concebida, pelo referido

autor, em termos de regularidades distintivas de posições sociais determinadas em

função das lutas ideológicas constitutivas de uma conjuntura histórica e política.

Orlandi (2010) afirma que pelo funcionamento das formações discursivas e do

interdiscurso, podemos apreender os mecanismos ideológicos para a constituição do

sujeito e do sentido. A formação discursiva, enquanto conceito torna possível que

sujeitos empíricos apreendam sentido de certas palavras, expressões etc. em um

determinado período histórico.

Uma FD é, portanto, heterogênea a ela própria: o fechamento de uma FD é fundamentalmente instável, ela não consiste em um limite traçado de forma definitiva, separando um exterior e um interior, mas se inscreve entre diversas FDs como uma fronteira que se desloca em função dos embates da luta ideológica. (COURTINE & MARANDIN, 1981, p. 41).

Assim, uma formação discursiva pressupõe ser uma unidade heterogênea,

indispensável àquilo que deve e pode ser dito em um dado momento da vida social

humana.

Valemo-nos, nessa pesquisa, do conceito de FD, buscando apreender, como

a macro e a microesturação enunciativa dos objetos Clara dos Anjos e Fera ferida

se articulam através da perspectiva do dizer racial brasileiro.

Conduziremos a investigação a partir do lugar social/empírico que cada um

dos sujeitos comunicantes assume no discurso racializante brasileiro. Iniciamos com

Lima Barreto, seguidamente, do posicionamento ideológico televisivo e a autoria

telenovelística. Logo, passamos ao circuito da ficção, primeiro abarcando análises

sobre a obra barretiana, e depois o foco se volta para a ficcionalização de Fera

ferida.

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Para discorrer sobre o lugar social em que Lima Barreto se inscreve e as

relações de classe presentes no contexto vivido por ele, faz importante entendermos

que as relações sociais se baseiam em determinados preceitos hierárquicos (status,

situação econômica, cultural etc.), e o Brasil, no que diz respeito às hierarquias,

revela algumas combinações que estão intimamente ligadas ao processo de

formação das diferenças sociais brasileiras como a raça, classe ou a cor do

indivíduo (lembremo-nos que Barreto é um mulato).

O discurso racial brasileiro possui, em sua base, um pilar escravagista,

sustentado pelo pensamento eugênico e eurocêntrico. Esse contexto se apropriou

de uma de configuração liberal-escravista, instituindo uma ideologia que perdurou

anos, que só começou a ser contestada com a escassez da mão de obra negra,

após extinção do tráfico negreiro. (BOSI, 1995).

A ascensão do negro/mulato/afrodescendente ocorreu nessa ‗nação‘ sob um

processo de concessão de regalias ao sujeito branco, deixando o negro à margem, –

a civilidade brasileira em relação aos homens de cor se fez sob os segmentos

privilegiados da raça dominante. (FERNANDES, 1972).

(...) as posições desvantajosas dos estoques negro e mulato na estrutura socioeconômica condiciona formas de participação cultural e de integração ao sistema de classes que favorecem a sua perpetuação crônica naquelas posições, em vez de estimularem a ruptura com o passado e as sua superação. (FERNANDES, 1972, p. 49).

Os padrões deformadores da condição negra no Brasil perpetuam ainda no

contexto brasileiro. A herança escravagista pode ser observada por meio de formas

discriminatórias utilizadas discursivamente para lidar com o sujeito de cor. Esses

indivíduos formam ―uma espécie de escória da grande cidade‖ e se veem

condenados a uma miséria social que os degrada terrivelmente. (FERNANDES,

1972, p. 42).

Lima Barreto nasceu em 1881 e cresceu sob panorama político e social

marcado pela Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889).

Presenciou a sucessão de vários presidentes, como Afonso Pena (1909), Nilo

Peçanha (1909-1910), entre outros. Ainda, assistiu um período de crise no Brasil,

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com desempregos, reivindicações políticas, e tudo isso, concomitante a primeira

Guerra Mundial, tornando a situação brasileira ainda pior.

Esse é o cenário no qual o Barreto se faz escritor, sua obra se constitui em

um período evidenciado por momentos de saudosismos, de reforma, mas,

apresentando, também, a irreverência das vanguardas, da psicanálise, da

relatividade de Einstein, da Revolução Russa, da anarquia espanhola e dos

sindicatos fascistas. (BOSI, 1970, p. 342-343). Enquanto jovem, Barreto, estudou na

Politécnica, ali sofreu preconceitos de seus colegas, era o estranho no meio de

jovens abastados. Já adulto, de forma muito comum, chamavam-no de negro, ás

vezes era tomado como bandido. Lima misturava-se com todo o tipo de pessoa,

prostituta, viciados etc. (PRADO, 1999). O escritor era consciente da situação

brasileira, ele a vivia; combatendo a desigualdade do país através de sua escritura,

se tornando a voz dos ―infelizes‖.

Encontraremos, em suas páginas íntimas, expressões de desalento, mas não de autocomiseração. Mesmo as alusões constantes ao problema da cor ou à adoração nacional pelos doutores, embora ligadas a experiências pessoais, voltam-se para fora, para a sociedade que conhece e sobre a qual testemunha. (LINS, 1976, p. 24).

Lima Barreto é um indivíduo descontente com a sociedade, a literatura que

ele cria fornece pistas para tal apreensão, veja: ―a vida cara, enquanto os salários

eram mais ou menos os mesmos anteriores. O descontentamento se fez e os pobres

começaram a ver que, enquanto eles ficavam mais pobres, os ricos ficavam mais

ricos‖ (BARRETO, 1956, p. 54). O autor em sua incursão literária busca promover

reflexões sócio-raciais e políticas. Ele ironiza e escarnece de uma sociedade nada

convencional e democrática, mas, a elite de sua época não o perdoa por tal fato.

,

As classes dominantes (e, com elas, amplos setores das classes dominadas, que refletem em grande parte a visão conservadora) são particularmente sensíveis no Brasil aos que as renegam de maneira ostensiva. Pareceu-me sofrer Lima Barreto, e creio não enganar-me, o efeito de uma ação difusa, um processo disfarçado, surdo, de sonegação (muito semelhante, por sinal, ao que entre nós marginaliza o negro). Acresce que os povos mostram-se sensíveis às idealizações. E Lima Barreto é talvez o autor brasileiro que nos viu até hoje com maior verdade e lucidez. (LINS, 1976, p. 12).

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110

Nesse sentido, Barreto toma a literatura não como expressão, mas,

principalmente, como ―comunicação militante‖, palavra empregada pelo autor que

―se engaja, tão ostensivamente quanto possível, com suas palavras e o que elas

transportam, a mover, demover, comover, remover e promover.‖ (LINS, 1976, p. 18).

Lima através de sua escrita confronta a sociedade brasileira e é ignorado por ela.

O âmbito social e histórico vivido por Barreto, como vemos, advém do

domínio dos grandes latifúndios – os senhores de escravo. A formação social, nesse

contexto, presentifica um processo de produção no qual as forças produtivas são

movidas pelas leis escravagistas. Sob esse aspecto Althusser (1983, p. 10),

considera que uma formação social ―releva de um modo de produção dominante,

podemos dizer que o processo de produção põe em movimento forças produtivas

existentes em (dans et sous) relações de produção definidas‖. Logo, a relação de

produção subsistente na nação brasileira defendia a coisificação do negro,

determinante para um ideário racista.

Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negro jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração. Assim é que, em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de capitão-mor a um índio, porque ―se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando o seu sangue com esta aliança, e tornando-se assim indigno de exercer o referido posto‖. (HOLANDA, 1995, p. 56 – destaques do autor).

Nota-se, desde logo, que a formação ideológica que perpetua no espaço o

qual Lima transitou evidenciou crenças da inferioridade do negro, ―sem a ideia de

que o negro seja ―inferior‖ e necessariamente ―subordinado‖‘ ao ―branco‖, a

escravidão não seria possível num país cristão‖. (FERNANDES, 1972, p. 42). Por

essa forma, condicionam o indivíduo africano a crer em sua debilidade; e o europeu

consegue o respaldo da escravatura.

O racismo representa todas as forças antidemocráticas, formada pela

vantagem econômica, ou seja, ser bem nascido, ter herança etc. É uma maneira de

querer ser melhor que o outro, e isso, sem esforços. Com o racismo forma-se

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monopólio de classes e/ou governos cujo poder é exercido apenas por indivíduos

privilegiados. (ROSENFELD, 1993).

Diante disso, podemos dizer que a filiação discursiva de Lima Barreto se

apoia, é claro, em várias FD‘s de diversos valores, mas a que trata da racialidade,

em especial, foco desse trabalho, é demonstrada pela interdiscursividade

racializante – o bom combate do escritor. Essa ocorrência direciona para uma FD

antirracial constituinte do padrão comportamental do autor.

Assim, tendo em vista, que uma formação discursiva se estabelece por um

sistema de relações linguísticas e interdiscursivas no qual acontecem os processos

discursivos efetivos, as evidências intertextuais corroboram as diferenças entre os

indivíduos. O período discriminatório vivido por Barreto demonstra, sem dúvida, a

iniquidade da relação branco-negro.

Nesta sequência, observamos o padrão discursivo e social de Fera ferida. O

discurso telenovelístico exterioriza por meio de um trabalho coletivo, implicado em

um conjunto de elementos que se articulam a partir do ―padrão Globo de qualidade‖

(símbolo da TV Globo, líder de audiência do Brasil e a emissora de televisão que

veiculou a telenovela eleita para a pesquisa em questão). Segundo Motter &

Mungioli (2007), a máxima da Rede globo não se traduz apenas por um slogan, a

grade da programação, a produção de programas, além da organização da empresa

sofreu uma reestruturação, buscando tal excelência.

No entanto há quem conteste tal pensamento, como Eugênio Bucci8 em seu

artigo O mau gosto e o desgosto, copyright Folha de S. Paulo, 5/5/029:

Tenho insistido, e volto a insistir, que o padrão Globo de qualidade não era simplesmente uma escolha intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime autoritário. Não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu autodenominado padrão de qualidade; era antes o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha de condições prévias, o monopólio entre elas. O Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e inibindo a concorrência. Houve competência da Globo? (...) O que foi o padrão Globo de qualidade senão a face da integração nacional sob a ditadura? Claro que houve aí momentos de mal-estar, houve censura às

8 Bucci é Jornalista, tem o título de Doutor em Ciências da Comunicação, área de Jornalismo,

pela Escola de Comunicações e Artes da USP. 9 Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/asp080520029.htm>.

Acesso em: 24 nov. 2013.

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novelas, houve arestas, mas nada disso foi definidor. O que definiu o padrão Globo de qualidade foi a necessidade imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara do Brasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros nas novelas, sem evangélicos no horário nobre, sem excluídos desdentados no auditório. (...). O padrão Globo de qualidade era a expressão do bom gosto da classe média (bom gosto não é nada além do gosto médio da classe média). E não tinha concorrência, só por isso que reinava, mandão, pacífico e ordeiro. Ainda bem que ele já era. O que acabou não foi o padrão Globo, mas a sua sustentação histórica.

Percebe-se que a essência do poder incutido sobre o veículo televisivo

consiste em seu estatuto de significação, que requer o controle do processo de

significantes culturais por meio de uma entidade empresarial ou ―tecnoburocrática‖

(SODRÉ, 1987, p. 10). Isto é, um moderno sistema tecnológico que rege indivíduos,

economia etc.

Nesse campo de interação, defrontamos com o que Thompson (1995)

denomina de instituições sociais, ou conjuntos exclusivos e possivelmente estáveis

de recursos e regras que manifestam ao mesmo tempo com as relações sociais. A

Rede Globo de Televisão, nesse sentido, pode ser caracterizada como uma

organização que se constitui sob esse foco. Afinal, trata-se de uma empresa que

apresenta certos tipos e quantidades de recursos constituídos a partir de regras

próprias, normas de ação e com uma flexibilidade esquemática a qual administra os

recursos e os sujeitos dentro dessa organização. Sob esse contexto, ainda,

encontramos a possibilidade das relações hierarquizadas entre os indivíduos e/ou as

posições ocupadas por esses (fato comum nas organizações Globo de Televisão).

Esse processo interacional estruturante da Rede Globo apresenta aspectos os quais

Thompson (1995, p. 198) nomeia de ―assimetrias e diferenças relativamente

estáveis em termos de distribuição de, e acesso a, recursos de vários tipos, poder,

oportunidades e chances na vida.‖

Consoante a essas questões, a televisão torna-se um veículo eficaz para gerir

um país, transformando-se em uma corporação que difunde de maneira maciça

conhecimento, diversão, publicidade, informações etc. Na ordem dessa instituição

prevalece a hegemonia e a ideologia capitalista. Através de tal aspecto, Sodré

afirma que,

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Os media vinculam estreitamente à organização monopolista do mercado – oligopólios e multinacionais controla os diferentes níveis de captação e receitas publicitárias e em ativos centros geradores de informações ideológicas dependentes do capitalismo ou do status quo. (SODRÉ, 1987, p. 32).

Destarte, o padrão estrutural da televisão, e claro, sua mediação pela

telenovela se constitui sob o discurso advindo de um sistema econômico e social

que se baseia na propriedade privada dos meios de produção, ou seja, assume uma

FD capitalista.

No entanto, a conjuntura discursiva que nos interessa é da racialidade, e isso,

só será exposto se houver algum interesse capitalista em jogo. A visibilidade no

negro na televisão, e em particular na telenovela, é ínfima, tal fato corrobora-se

através do estudo de Araújo. Observe:

Examinamos 512 telenovelas e a constatação foi chocante:

Identificamos que:

- em um terço das telenovelas produzidas até 1997 não havia nenhum

personagem afrodescendente.

- Apenas em outro terço o número de atores negros contratados conseguiu

ultrapassar levemente a marca de 10% do total do elenco.

- E, 90% dos personagens criados representavam a subalternidade do negro na sociedade brasileira. Ou seja, traziam os negros em estereótipos de si mesmos.

(...) somente as duas últimas décadas do século XX, os anos 80 e 90, um período de ouro da telenovela, marcado por autores progressistas como Dias Gomes:

- de 98 novelas produzidas pela Rede Globo não foi encontrado nenhum personagem afro-descendente em 28 delas.

- Apenas em 29 telenovelas o número de atores negros contratados conseguiu ultrapassar a marca de dez por cento do total do elenco.

- E em nenhuma delas o total de negros e pardos chegou a ser metade, ou mesmo 40% de todo o elenco. (ARAÚJO, 2012, p. 02).

A consequência desse discurso se traduz pela negação do negro brasileiro,

emergindo a FD racial, alimentada pelo discurso dominante, acessível apenas pela

elite simbólica (de raça branca) e colaboradora da difusão desigual entre os seres.

Conjecturamos nessa perspectiva, ainda, que a filiação discursiva de

Aguinaldo Silva e coautores, também, situa-se no âmbito de uma FD capitalista,

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114

observe o trecho abaixo extraído do blog de Aguinaldo que nos possibilita pensar tal

hipótese.

Quando você adapta um livro para uma novela, minissérie ou filme de longa metragem, a liberdade de criação é decisiva, assim como deve ser absoluta a fidelidade do adaptador à essência da obra original. Lembra daquela frase? Quem ama não mata? Eu diria: quem adapta não trai. Aguinaldo diz que só não fez mais cinema porque em comparação com o que se paga na TV é muito pouco.

10

Parece-nos, assim, que a filiação discursiva dos autores têm a capacidade de

reproduzir a veleidade racial brasileira, legitimando o mito da democracia racial e o

posicionamento imposto pela classe dirigente, que preza o domínio de vida

capitalista.

A partir de tais constatações, identificamos posições singulares que delimitam

o que se pode e o que se deve dizer acerca do Outro

negro/mulato/pardo/afrodescendente. A FD de caráter antirracial trazida pelo

posicionamento de Lima Barreto, assim como, a FD capitalista vinculada à televisão

e o seu gênero telenovela se articulam como um complexo dominante que pode

orientar para outras FD‘s, e nesse caso, segundo o recorte desse trabalho, pode

direcionar-se a uma a FD racial, alimentado-a. Aquela por seu caráter contraditório,

como forma de ratificar a existência racial, e esta pela possibilidade da associação

do discurso capitalista que se aproveita de seu modo dominante para corroborar as

práticas raciais a partir das relações de exploração.

Sob tais circunstâncias, postulamos algumas FDs que julgamos recorrentes

nos nossos processos sociais e sobre as quais pretendemos desenvolver as

análises no âmbito das enunciações ficcionais.

FD1: superioridade racial (não apenas de reconhecimento do lugar de

superioridade, mas também de atribuição do lugar de inferioridade ao

outro, e/ou autoafirmação enquanto um ser social);

10

Cfe. <http://asdigital.tv.br/portal/?p=7465>. Acesso em: 15 jan. 2014.

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FD1.1: discriminação de cor (o reconhecimento e a atribuição de

papeis subalternos a pessoas de cor negra e/ou suas variantes

cromáticas);

FD1.2: discriminação sexual (reconhecimento e atribuição de papeis

secundários e subalternos a mulheres de cor negra);

FD2: inferioridade racial (é a partir dela que discursos de submissão, de

conformismo, de aceitação de papeis subalternos difundidos numa

sociedade);

A noção de FD segundo a base proposta por Pêcheux se realiza sob as

regularidades particulares de posições de classes definidas em função de embates

ideológicos constitutivos de uma situação histórica, política e social. O autor postula

que todo discurso se inscreve em certa FD, que é dominante a esse discurso;

entretanto essa FD só se estabelece em relação a sua exterioridade, ou seja,

através de outras FD‘s determinantes para esse mesmo discurso. Nessa

perspectiva, encontra-se o interdiscurso, delimitando as vinculações possíveis entre

as FD‘s, possibilidade que se instaura pela reconfiguração que as FD‘s sofrem em

função das condições históricos, sociais e ideológicas particulares.

O nível da constituição do sentido, nessas circunstâncias, é evocado através

de termos, léxicos etc., que surgem por meio de outros; são as posições ideológicas

sob um contexto sócio-histórico que definem o que dizer, ou ao menos, aquilo que

se pretende dizer. (PECHEUX, 1997). É, então, a partir dessa noção, que

apreendemos certos posicionamentos ideológicos, como os que circundam o

preconceito e a discriminação para com o Outro, temática desse estudo. A

problemática racial e, consequentemente, o aparecimento das diferenças entre as

pessoas no Brasil emergem da associação existente entre classe social e raça,

demonstradas pelos embates racializantes presentes no contexto sócio-histórico

desse país.

A partir desse viés, então, conjecturamos as FD‘s raciais, tendo em vista as

várias possibilidades interpretativas acerca da racialidade que circundam o meio

social brasileiro. Logo, pressupomos que algumas das FDs elencadas podem

identificar melhor o posicionamento discursivo dos sujeitos ficcionais estabelecidos

por esse estudo.

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116

Nas próximas seções apresentaremos as caracterizações das personagens

Clara dos Anjos, Engrácia, Joaquim e Cassi Jones das narrativas Clara dos Anjos e

Fera ferida e as respectivas análises sobre as FD‘s que as circunscrevem.

Apreendemos que as FD‘s são produto de padrões ideológicos que

determinam certos comportamentos sociais que os sujeitos históricos vivem. No

caso do texto ficcional, as FD‘s se tornam uma projeção de comportamentos que

cada autor faz para a construção de seus personagens.

Assim, investigaremos a seguir a reprodução desses padrões pelas narrativas

em questão.

6.1 Clara dos Anjos: caracterização

Neste momento, contemplar-se-ão as peculiaridades da personagem Clara

dos Anjos, presente na obra de Barreto, em contraposição à personagem presente

na telenovela Fera ferida.

O quadro abaixo busca mostrar, de um modo geral, a condição de Clara na

obra barretiana:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Clara dos Anjos Mulata Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral /

Amorfa11

Subúrbio do Rio de Janeiro

Principal/Heroína

Quadro 06: Caracterização de Clara (Romance)

11

O narrador se refere à Clara como portadora de uma natureza ―amorfa, pastosa que precisava mãos fortes que modelassem e fixassem.‖ (BARRETO, 1998, p. 90).

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Clara dos Anjos, nesse contexto, é de uma família humilde, sem posses,

porém honesta e trabalhadora. Trata-se de uma jovem prendada. Fora criada de

uma maneira reclusa, saia de casa somente com a mãe ou com alguém de

confiança da família.

Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.

A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara. (BARRETO, 1998, p. 54).

Diante de tantos desvelos, Clara não adquire experiências sobre a vida, fato

que a aliena dos dissabores do mundo, acentuando sua ingenuidade perante as

atitudes humanas.

A personagem12 teve um pouco de estudo, mas isso não foi o suficiente para

se tornar uma pessoa independente, ou até mesmo crítica diante das atribulações

que a vida lhe proporcionou. Nesse sentido, o narrador aponta que: ―A idade, o sexo

e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de

individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida.‖ (BARRETO, 1998, p.

90).

Fisicamente, Clara, tinha a pele pardo-clara e cabelos lisos. Crescera em um

ambiente em que a predominância musical era efervescente: seu pai era habituado

às modinhas, tanto que ―enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor

com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas

populares‖. (BARRETO, 1998, p. 42).

12 Clara é descrita pelo narrador como possuidora de uma natureza ―amorfa‖, que necessitava de

―mãos fortes que a modelassem e fixassem‖ e seus pais não tinham condições para tal atuação. Acerca dessas considerações, veja o ponto de vista do narrador: ―A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para fazê-lo; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela.‖ (BARRRETO, 1998, p. 90).

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A vida que Clara conhecia advinha das canções que ela crescerá ouvindo nas

modinhas cantadas por seu pai e os amigos deste: ―O mundo se lhe representava

como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.‖

(BARRRETO, 1998, p. 90).

Faltavam-lhe maturidade e entendimento acerca de sua condição feminina

perante a sociedade patriarcal e machista na qual ela vivia. Diante disso, a moça se

torna uma presa fácil na presença de qualquer pessoa de índole duvidosa.

Agora, trazemos a personagem Clara da narrativa telenovelística Fera ferida,

como se pode verificar:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Clara dos Anjos Mulata Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral/

opaca13

Cidade de Tubiacanga

Coadjuvante

Quadro 07: Caracterização da personagem Clara (Novela)

Nessa novela, Clara dos Anjos é representada pela atriz Érica Rosa. A moça

fora criada com muito desvelo por seus pais. Estudou em um colégio de freiras até

seus dezesseis anos, de onde saiu para ser a próxima rainha da irmandade de

mulheres negras existentes em Tubiacanga, que, nesse momento, é liderada por

sua mãe Engrácia. Essa personagem vive sob os mandados de sua mãe.

Clara é uma moça ingênua, que acredita na bondade humana, fora criada em

convento, não sabe da maldade e tampouco da vilania humana, acredita nas

pessoas e segue fielmente seu coração de jovem apaixonada.

13

No sentido de ser apagada, sem atitude e/ou iniciativas próprias.

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6.2 Clara dos Anjos: análise

O lugar da constituição do sentido é a formação discursiva, isso implica defini-

la em função de sua dependência constitutiva do ―todo complexo com dominante‖,

ou seja, do interdiscurso (PÊCHEUX, 1997, p. 162). Desse espaço apreende-se o

efeito de pré-construído ―sempre-já-aí da interpelação ideológica‖ e a articulação

constituída pelo ―sujeito em relação com o sentido‖, que são evocados através do

processo da interdiscursividade (PÊCHEUX, 1997, p. 164). O pré-construído faz

alusão a determinadas certezas manifestadas pelo sujeito através de sua

enunciação, isto é, ―o que cada um sabe e simultaneamente o que cada um pode

ver‖ (BRANDÃO, 2004, p. 49).

Diante dessa perspectiva, observaremos, nesse momento, a formação

discursiva que envolve a personagem Clara dos Anjos, inscrita no romance de Lima

Barreto, tendo em vista o lugar assumido por esse sujeito ficcional em um dado

momento histórico e social da narrativa barretiana.

A circunstância histórica do contexto expresso por Clara remete aos idos de

1900. A personagem se projeta sob uma classe social baixa, um estado de pobreza,

e ainda, apresenta a condição física de mulata. Sob esse espaço discursivo

apresentaremos, a seguir, alguns recortes, visando demonstrar o posicionamento

socioinstitucional e ideológico conferido a Clara, como se pode observar abaixo:

EUe Narrador:

Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.

(BARRETO, 1998, p. 42 – destaques meus)

Nessa passagem o narrador revela o pensamento de Marramaque em relação

às moças de cor, como é o caso de Clara, e nela estão contidos os primeiros

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aspectos da FD1 que assinala aquilo que se pode dizer em relação a esses

indivíduos: ―(...) atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da

cor de sua afilhada (...)‖ (BARRETO, 1988, p. 42); bem como a FD1.1, assinalando o

teor discricionário sobre a mulher negra – ―(...) o mau conceito em que se têm as

suas virtudes de mulher (...)‖(BARRETO, 1988, p. 42) . Por fim, a sentença final

desse episódio: ‖A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os

seus esforços (...)‖ (BARRETO, 1988, p. 42) revela-nos o caráter determinista

desenhado pela FD1.

O inusitado do tratamento de superioridade racial configurado acima, se pauta

pela reflexão advinda de Marramaque, um mulato, padrinho da jovem Clara;

demonstrando o assujeitamento e/ou a interpelação sofrida por esse indivíduo

perante um discurso discriminatório presentificado por uma formação ideológica

racializante, que ele reproduz, mesmo sendo um representante da classe que sofre

o preconceito.

Marramaque viveu no meio de ―rodas de gente fina‖ (BARRETO, 1988, p. 40);

apesar de pouca instrução e apresentando uma saúde debilitada, esse personagem

presenciou um período de:

Plena escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco. (BARRETO, 1998, p. 36).

Diante disso, percebe-se que Marramaque, enquanto um sujeito de cor,

reproduz a ideologia da supremacia branca, e igualmente a FD1, como se observa

pelo enunciado: ―(...) raparigas do nascimento e da cor (...) A priori, estão

condenadas (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 42). Essa possibilidade enunciativa, segundo

Fanon, corrobora-se à medida que entendemos que o negro se autoescraviza, após

ter sofrido como escravo do branco. ―O preto é na máxima acepção do termo, uma

vítima da civilização branca.‖ (FANON, 2008, p. 162). Sendo assim, ele não tem seu

próprio lugar e discurso, reproduz o padrão social em que vive.

É interessante pensar, também, que esse contexto social expressa a riqueza

brasileira que se constrói sobre o trabalho escravo, o que pressupõe uma ideologia

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racista, se constituindo a partir de uma prática social que tem como base a

dissimetria entre a relação branco-negro, perpetuado sob a desigualdade da

estrutura social.

A condição de produção discursiva se faz sob a égide racializante, como se

verifica pela presença das FDs no texto, levando em consideração que a

organização enunciativa se realiza a partir dos valores negativos em relação ao

negro, e nesse âmbito em especial, à ―atmosfera de corrupção que cerca as

raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada‖ (BARRETO, 1988, p. 42), afinal,

Clara é uma mulata.

Observa-se que, desse espaço, surge uma avaliação depreciativa a respeito

das mulheres, principalmente, das afrodescendentes e pobres. O mundo projetado

pela história ficcional de Clara desenvolve padrões discriminantes, revelando uma

sociedade cujas relações sociais de seus membros se estabelecem de maneira

restrita, na qual – as ideias da classe dominante são preponderantes e projetam: a

inferioridade do negro, do pobre, a submissão feminina etc.

No próximo trecho acentua-se, novamente, a desvalorização quanto à cor de

Clara, a condição social e psicológica da jovem. Essa construção discursiva

acontece a partir da crença inferiorizante estabelecida pelo ideário de Engrácia em

relação à filha, o que reproduz um discurso previsto pela FD1 – ―(...) pela sua

condição, já pela sua cor (...) (BARRETO, 1998, p. 54). Enfim, por mais que

tenhamos um discurso flexibilizado – ―(...) fustigava lhe a curiosidade em descobrir

(...)‖ (BARRETO, 1998, p. 54), o teor da FD1 se faz aqui presente como algo da

ordem de dever dizer. É possível concessões, mas o teor imperativo da FD1

continua se fazendo presente. Vejamos os textos que representam essas

considerações:

EUe Narrador:

Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.

(BARRETO, 1998, p. 54 – destaques meus)

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Assim, por aquilo que é imposto pela FD1, a mãe de Clara reproduz a

preeminência ideológica branca que se constrói sob a base da diferença entre seus

participantes. Desse modo, infere-se, pelo contexto, o motivo de Engrácia para tal

vigilância em torno da filha.

Clara, nesse próximo excerto, parece começar a entender sua posição na

sociedade revelada pela narrativa barretiana, observe:

EUe Narrador:

Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar.

(BARRETO, 1998, p. 56 – destaques meus)

No entanto, o entendimento revelado pela jovem Clara está longe de

representar uma ruptura da FD1, quando muito reproduz a extensão daquilo que é

dito (ou imaginado) acerca do discurso racial: ―Uma dúvida lhe veio: ele era branco;

e ela, mulata (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 56). Há nesse contexto certo conformismo

diante da incerteza colocada pelo posicionamento da cor do sujeito, que se traduz

pelo enunciado: ―(...) já recolhida, ofegava, suspirava, chorava (...)‖ (BARRETO,

1998, p. 56).

Esse âmbito narrativo evoca o efeito do encadeamento do pré-construído

àquilo que todos já conhecem acerca da história social/cultural brasileira: a relação

escravocrata implicou o processo racializante, estabelecendo a segregação entre

brancos e negros. A personagem se ilude ao pensar que poderia ter um

relacionamento normal com um homem branco, as determinações históricas no

Brasil nos confirmam esses dados: ―E é porque há essa ligação que as filiações

históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de

significantes.‖ (PÊCHEUX, 1997, p. 54).

Nesse sentido, Memmi nos lembra que o sujeito acaba por reproduzir os

padrões de dominação em que vive, traduzidos aqui, em termos das FDs que

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apontamos mais acima, já que é através delas que os sujeitos exteriorizam as

marcas profundas da discriminação. Nesse caso, Clara, ao tentar ignorar a

separação social estabelecida pela diferença de cor entre ela e Cassi Jones, se

convence da superioridade branca e busca viver dentro dos padrões dessa

sociedade, como destacamos pela força de FD2, como ratificado nas palavras de

Memmi:

O colonizado se perde no ―outro‖, se aliena. Tentará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levar a alienação às últimas consequências, tornando-se ele próprio um colonialista, casando-se entre os representantes da metrópole, por exemplo. (MEMMI, 1977, p. 08 – destaque do autor).

A personagem Clara demonstra, então, não ter forças para lutar contra seu

destino. A condição de sujeito dominado, segundo o complexo dominante dos

interdiscursos, materializados, neste caso, na FD2, pode ser observada pelo trecho

abaixo:

EUe Narrador:

Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação.

(BARRETO, 1998, p. 90 – destaques meus)

Acerca de tal contexto, nos parece que o padrão ideológico da superioridade

branca, o qual envolve o discurso circunscrito por Clara, revela a inércia e o

desconsolo dela perante um destino que não seria modificado, cabendo a ela aceitar

sua mísera condição social e cultural. Essa postura aparece circunscrita na

determinação da FD2 que caracteriza a imposição desse lugar subalterno, conforme

destacado no trecho abaixo.

EUe Narrador:

A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A

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idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida.

(BARRETO, 1998, p. 90 – destaques meus)

Assim, ―‗(...) um poder reduzido de pensar (...) não lhe permitia meditar (...)

sobre o destino (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 90), nem ao menos ―(...) observar fatos e

tirar ilações e conclusões.‖ (BARRETO, 1998, p. 90), são expressões que ocupam

lugares de opressão racial numa sociedade. E são elas que condenam Clara a um

lugar de submissão, à condição de que ela não dava conta de perceber e

compreender as coisas mundanas, a sua educação pressupunha apenas as

seguintes obrigações: cuidar da casa e dos filhos.

A pouca maturidade, além da escassa capacidade de refletir acerca das

ações e intenções experienciadas pelo ser humano, associadas à condição de

pobreza e de cor, demonstram a fragilidade de Clara diante do circuito social

mostrado pela narrativa barretiana, como se observa pelo trecho a seguir:

EUe Narrador:

Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata.

(BARRETO, 1998, p. 126 – destaques meus)

A ideologia da classe dominante impõe a Clara uma pré-condição para que

ela aceite seu modo de viver: ―(...) era pobre e, além de pobre, mulata‖ (BARRETO,

1998, p. 126), evidenciando a realidade da jovem Clara sob a FD2.

O narrador no plano narrativo a seguir, expõe a infeliz condição social e moral

da personagem Clara:

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EUe Narrador:

O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...

(...)

Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe. (...) Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

EUe Clara: - Mamãe! Mamãe!

(...)

- Nós não somos nada nesta vida!

(BARRETO, 1998, p. 133 – destaques meus)

Clara percebe, no final de sua história, não ter valor, nenhuma perspectiva de

vida adequada a aguardava na sociedade preconceituosa na qual se inscrevia.

Ainda que a visão da personagem possa ter o teor de uma avaliação crítica da

sociedade em que vivia, o seu posicionamento diante da situação reflete o que

estamos caracterizando pela FD2, que implica a inferioridade, o sujeito sob a

condição de negro torna-se rejeitado perante a outra classe social (branca), a qual

representa os padrões culturais vigentes.

Clara, ao dizer que ―(...) não somos nada nessa vida!‖ (BARRETO, 1998, p.

133), revela que sua condição econômica e de cor eram algo determinante na

sociedade vigente da época. Esse fato reforça a ideia da imobilidade social de Clara,

dado que se torna preponderante na construção de um modelo comportamental de

inferioridade, de conformismo por parte dessa personagem, confirmando a FD2.

A partir desses apontamentos, percebemos que os atos enunciativos que

circunscrevem Clara adquirem uma estabilidade referencial a partir de certa

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conjuntura histórica e social, e se apoiam em saberes instituídos e legitimados no

circuito social brasileiro, revelados pelas posições discriminatórias em relação ao

Outro (negro/mulato/afrodescendente).

Um problema que é bastante evidente no Brasil, (...) é das relações entre negros puros e mulatos. Muitas vezes o negro se ressente do que os mulatos têm de sangue branco, vendo-os, pelo menos em parte, como membros da raça que oprimiu o negro. Um outro sentimento (...) é o da vergonha por parte do negro, reconhecendo que os primeiros mulatos foram fruto de violentações dos brancos contra as mulheres escravas, geralmente à força ou sem consentimento delas. (...) o mulato permanece como símbolo de traição forçada imposta ao macho africano. (...) Seu sangue negro o impede de ascender a uma posição de igualdade social com brancos, enquanto seu sangue branco o separa dos negros, o que muitas vezes o infelicita. (RABASSA, 1965, p. 440).

O contexto social brasileiro atribui um caráter depreciativo ao ser negro(a)

e/ou mulato(a), dado que corrobora para a violência simbólica que envolve esses

sujeitos. Há uma construção estereotipada em relação à mestiçagem brasileira.

Contudo, a condição da origem escrava do negro, além do contexto da

superioridade branca, propicia a legitimação desse discurso degenerativo.

As passagens acima indicam a sujeição social e moral à qual a personagem

Clara é compelida, dados que nos autorizam a deduzir, por meio do imaginário

brasileiro, traduzido pelo romance, as formações discursivas que apontamos acima

e que estão implicadas nas relações sociais presentes na sociedade brasileira.

A personagem Clara dos Anjos se constitui sob uma configuração negativa à

qual os negros e/ou mulatos se associam no contexto ideológico brasileiro. Por isso,

o discurso a partir do qual Clara se apresenta, emerge em relação a certo domínio

da memória marcado pela ideia da inferioridade do negro perante o branco e mostra

a posição dessa personagem se estabelecendo enquanto sujeito, revelando

formações discursivas que reiteram não só o seu reconhecimento da inferioridade

racial do negro, como os processos de discriminação a que é submetido na

sociedade. Numa dimensão estrutural, podemos descrever de forma mais completa

as FD‘s incorporando os seus elementos constitutivos.

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→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD

FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro/ FD1.1 discriminação de cor/ FD2: Inferioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Logo, nesse contexto, as FD1, FD1.1 e FD.2 subjacentes a uma ideologia

racista e estabelecidas por estruturas e posicionamentos sócio-culturais, além de

avaliações depreciativas que circulam no meio brasileiro acerca do sujeito de cor,

nos permitem configurar a condição de vida de Clara e a relação inferiorizante que

esta estabelece com a sociedade de sua época. Clara carrega fisicamente o estigma

do preconceito, sendo ainda descrita como ―amorfa‖ e/ou apagada, apática, por não

ter expressividade, o que direciona para um pré-construído que fornece uma

realidade legitimadora para as FD‘s sob as quais ela se acha vinculada. Essa

problemática em torno do negro se apóia nos modelos evolucionistas e social-

darwinistas que são introduzidos no Brasil em meados de 1870, como forma de

justificar teoricamente as práticas imperialistas de dominação. (SCHWARCZ, 1993,

p. 30). Os conceitos da obra de Darwin servem de análises para o comportamento

humano, assim como para questões acerca da seleção humana e social.

Conceitos como ―competição‖, ―seleção do mais forte‖, ―evolução‖ e ―hereditariedade‖ passavam a ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento: na psicologia, com H. Magnus e sua teoria sobre as cores, que supunha uma hierarquia natural na organização dos matizes de cor (1877); na linguística, com Franz Bopp e sua procura das raízes comuns da linguagem (1867); na pedagogia, com os estudos do desenvolvimento infantil; na literatura naturalista, com a introdução de personagens e enredos condicionados pelas máximas deterministas da época, para não falar da sociologia evolutiva de Spencer e da história determinista de Buckle. No que se refere à esfera política, o darwinismo significou uma base de sustentação teórica para práticas de cunho bastante conservador. (SCHWARCZ, 1993, p. 56 – destaques da autora).

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Passamos, então, à Clara dos Anjos de Fera ferida. Esta é representada pela

atriz Érica Rosa. Nessa trama, Clara vive em um colégio de freiras até seus

dezesseis anos. Ela volta para a cidade de Tubiacanga para assumir seu legado: ser

a nova rainha da irmandade, posto passado de geração a geração (Engrácia, mãe

dessa jovem passaria seu governo de rainha à filha).

Assim, a partir de determinadas enunciações tomaremos o padrão

racializante que envolve a personagem Clara da trama telenovelística, observe:

Recordamos que a passagem acima se constitui pela enunciação de Ilka,

como foi visto no subtópico 5.2 ―O circuito externo e interno de Fera ferida‖, do

capítulo 5. Nele, Ilka se apresenta como uma personagem branca, da sociedade de

Tubiacanga e cunhada do prefeito dessa cidade, Demóstenes. O discurso dela se

realiza por meio uma conversa informal com Joaquim dos Anjos, pai de Clara. Ela

pergunta a Joaquim sobre a filha, mas sem que ele perceba, essa personagem

expõe o que pensa a respeito de Clara. A opinião de Ilka nos remete a FD1.1, além

da FD1 que determina a exterioridade preconceituosa dessa personagem, assim

como assegura o seu lugar de soberania social. Ao pronunciar que Clara devia era

―lavar... passar... cozinhar‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993), Ilka atribui,

através desses significantes, que à força do trabalho doméstico é algo imanente ao

destino do negro.

Em outro momento, Ilka vai até a casa de Clara, e lá, essa personagem, mais

uma vez, revela seu modo discriminante de pensar por meio da FD1.1, ao pegar o

portaretrato de Clara e dizer:

Ika: - Não sei pra que colocar aquela pretinha no colégio de freiras... ela devia era aprender a lavar... passar... cozinhar... limpar o banheiro ...ai quase perdi a conta!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

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Ika: - Ah!!...Clara dos Anjos... isso é nome que dê a uma negrinha dessas...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Por esse contexto, percebe-se uma associação negativa relativa à cor negra,

significando o mal, fato que leva a alteridade africana a ser conotada com debilidade

moral, física e social. A personagem Clara não é clara, como quer Ilka, dado que

externa o preconceito dessa mulher, supondo, nessa situação, a transparência de

significado das palavras. Para Ilka a palavra ―clara‖ deveria ser algo que só cabe a

um significante que tenha tais atributos; claro(a) denota o branco, o alvo, e Clara dos

Anjos não apresenta essas características fisicamente, (é uma ―negrinha‖ segundo a

personagem), fato que, para Ilka, contraria o bom senso, evidenciando a FD1.1.

Ainda sobre a significação do nome de Clara, convém esclarecer que o seu

sobrenome manifesta a concepção da pureza e inocência com que é vista apenas

pelos pais, dado que será posto em objeção a partir do momento em que ela se

deixa seduzir por Cassi Jones:

A contradição do nome também serve para reafirmar a crítica à fatalidade sociorracial na obra. Dessa forma, o nome Clara dos Anjos e as referências evocadas assumem o papel de polo contraditório da denúncia. (FURTADO, 2003, p. 82)

O trecho a seguir diz respeito a uma cena em que Engrácia busca esclarecer

a relação amorosa entre Cassi e a sua filha Clara. Nessa situação, Engrácia aparece

na casa do Major Bentes, discutindo com Cassi, como veremos pela análise do

subtítulo 6.8 – ―Cassi Jones: análise‖, do capítulo 6. Em um dado momento, surge

Salustiana, conforme mostrado pela situação abaixo:

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Salustiana: - Ah... Cassi Jones! Meu filho:::... Não me diga que você andou se metendo novamente com essas mocinhas de cor....eu já te disse que não vale a pena...E você? Você por acaso veio aqui exigir alguma reparação? Passa aí nessa sua cabeça de pensamento curto obrigar meu filho a se casar?

Engrácia: - Deus me livre! Eu amo a minha filha e juntar a vida dela à desse cafajeste seria o pior dos castigos!

Salustiana: - Bom... então você veio pegar um dinheirinho... só pode ser isto!

Engrácia: - Claro que não! Graças a nossa Senhora do Bonfim e a Deus! Eu e os meus parentes não precisamos...

Salustiana: - Indigente não tem parente, principalmente, na hora do aperto. Ah! Olha... eu se fosse você engolia esse orgulho e aceitava esse dinheirinho... vai ser bom... ela pode comprar um vestido... um... um brochinho, uma jóia ... vai ajudar ela a se conformar... difícil mesmo vai ser ela esquecer do meu filho.... engraçado... NÉ Cassi, como essas meninas se apegam....também não é pra menos... chegam a pensar que são gente!! Quando um rapaz assim de boa família... bonito... papa fina, dá o prazer a elas de dividir um pouco da sua intimidade... Ah! Ah! Ah!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Nessas circunstâncias, Salustiana insulta Engrácia ao vociferar: ―Indigente

não tem parente (...)‖ e ―(...) como essas meninas se apegam... também não é pra

menos... chegam a pensar que são gente!!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN,

1993). A personagem busca demarcar seu lugar social através de uma postura

intolerante com aqueles de posição inferior (pobre, e de cor como Engrácia e sua

família), fato que a projeta sob uma FD1. É bom lembrar que Salustiana pertence à

elite de Tubiacanga e acredita na superioridade desse meio social, dado que

acentua a reprodução da FD1. Diante disso, ela alimenta as diferenças entre

brancos, negros e pobres; Engrácia, juntamente com a filha e o marido representam,

nesse instante, esse desafeto, ou seja, a classe desfavorecida.

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A condição social e de cor da jovem Clara e de sua mãe acabam por

colocarem-nas numa situação de desvantagem perante essa sociedade,

manifestando a intolerância de Salustiana: ―Não me diga que você andou se

metendo novamente com essas mocinhas de cor... (SILVA, LINHARES e

MORETZSOHN, 1993), ocorrência que assinala a FD1.1.

A FD1.2 também condiciona o modo de ser de Salustiana na a fala: ―(...)

essas meninas se apegam.... também não é pra menos... chegam a pensar que são

gente!! Quando um rapaz assim de boa família... bonito... papa fina, dá o prazer a

elas de dividir um pouco da sua intimidade...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN,

1993). Nessa fala a personagem manifesta o preconceito em relação aos

relacionamentos afetivos entre etnias diferentes.

Para a maioria dos brancos o negro representa o instinto sexual (não educado). O preto encarna a potencia genital acima da moral e das interdições. (...) a realidade desmente todas essas crenças. Mas tudo isso se acha no plano do imaginário (...). (FANON, 2008, p. 152).

Nota-se, que a mulata é reduzida ao corpóreo e à sexualidade que pode

oferecer. Essa herança advém do processo escravagista brasileiro. Sobre isso,

Freyre explica que: ―(...) a animalidade dos negros, essa falta de freio nos instintos,

essa desbragada prostituição dentro de casa, animavam-na os senhores brancos.‖

(FREYRE, 2002, p. 402). Nesse sentido, o personagem Cassi, como um membro da

elite tubiacanguense branca, apenas desfruta e/ou se diverte com as jovens

desafortunadas, mas uma relação duradoura com elas seria insustentável para ele,

ratificando a FD1.2.

A construção discursiva de Aguinaldo Silva e Linhares e Moretzsohn (1993),

mesmo sendo contemporânea, ainda carrega consigo os estigmas sociais da

discriminação. As representações em torno de Clara corroboram para esse dado e

se manifestam sob a FD2.

Existe, nesse contexto, uma ideologia racial presentificando a questão

apontada, como vimos nos discursos racistas de Ilka e Salustiana, representações

que se traduzem pela FD1. Nesse sentido, apreende-se que ―em qualquer dos

disfarces, os negros desfrutam de uma posição subordinada no sistema dualista que

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reproduz a dominação da brancura‖. (GILROY, 2001, p. 109). A mãe de Clara, ao

constatar que a filha envolveu-se com Cassi, chega à seguinte conclusão:

Engrácia: - Não! Eu... vou conversar com a minha filha sobre é::.. as coisas da vida. Não a vida como ela sonha, mas a vida como ela é. E depois ela vai voltar logo pro colégio, não vai? Cê concorda com isso, não é?

Joaquim: - Claro, Engrácia. É o que ela quer! A Clara sempre foi muito estudiosa, muito esforçada... ela vai se formar, ser professora... fazer uma faculdade, ser até doutora, Engrácia!

Engrácia: - Hum! Ser alguma coisa! Ser alguém! É, Joaquim, eu acabei de descobrir que a gente não vale nada nessa vida!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Engrácia, nesse momento, reflete sobre o peso que a cor negra parece

exercer em sua família: ―- Hum! Ser alguma coisa! Ser alguém! É Joaquim eu acabei

de descobrir que a gente não vale nada nessa vida!‖ (SILVA, LINHARES e

MORETZSOHN, 1993). A proposição em destaque, assim, exterioriza a ocorrência

da FD2 nesse âmbito.

Como se pode verificar, a personagem Clara vive em uma sociedade branca,

que dita as regras, as quais estigmatizam as pessoas de cor. Assim, a identidade

discursiva dessa jovem se constrói na relação com o Outro branco, que estabelece o

lugar dela perante a sociedade de Tubiacanga, o que nos leva a presumir que tal

personagem se assume por um FD de inferioridade racial, isto é, a FD2.

De maneira estrutural, representamos abaixo as FD‘s produzidas pela

exterioridade discursiva que permeia o padrão comportamental de Clara:

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→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD

FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro/ FD1.1 discriminação de cor/ FD2: Inferioridade racial/FD1.2 discriminação sexual

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Percebe-se que Fera ferida, mesmo sendo uma construção dos anos

noventa, ainda tem como base o discurso escravagista como pilar para a

racialização apresentada.

Clara se insere em um contexto discriminante, mas que se faz por uma ótica

restrita. Nessa telenovela, o preconceito emerge através de um contexto particular,

no qual se inserem apenas alguns personagens, como Ilka, Salustiana, Rubra Rosa

(esposa de Numa), o delegado da cidade (que tem um caso com Salustiana), enfim,

um pequeno grupo de pessoas. Não há maiores preocupações voltadas para o

debate racial.

Contudo, percebe-se que a modernidade, aos poucos, começa a fazer parte

do contexto vivido pela jovem Clara. Observe a fala de seu pai, Joaquim: ―Claro,

Engrácia. É o que ela quer! A Clara sempre foi muito estudiosa, muito esforçada...

ela vai se formar, ser professora... fazer uma faculdade, ser até doutora, Engrácia!‖

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Essa Clara, de Fera ferida, diferente

da Clara, de Lima Barreto, que não tem outra perspectiva social a não ser a

desonra, pode recorrer ao estudo e tentar modificar seu padrão de vida

inferiorizante.

A Clara de Lima Barreto reproduz a racialização por meio do coletivo. Toda a

obra apresenta ou conduz para uma perspectiva coletiva acerca de raça. Diferente

da telenovela, que concentra essa problemática em apenas um núcleo. Nesse

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sentido, o modo de produção social inscrito nesse âmbito demonstra a

subalternidade do negro, conforme nos explica Muniz Sodré:

[a] elite branca fazia o trânsito histórico do racismo de dominação para o de exclusão: o homem concreto, o povo, seria socialmente discriminado (...) a ideia de nação confundia-se com a de uma comunidade baseada em laços de sangue ou território. Mais tarde no século dezenove, a comunidade ―sanguínea‖ tornou-se comunidade de ―raça‖, isto é, uma unidade política garantida tanto pelo ordenamento estatal quanto pela ideia de uma diferença biológica a nível humano. A manipulação de diferenças servia a propósitos coloniais: manter o outro, o colonizado, em posições subalternas. (SODRÉ, 1999, p. 79 – destaques do autor).

A discriminação sociorracial vivenciada por Clara reproduz um ideário

pautado nos valores do homem branco do início do século XX, aquele que detém o

poder, a riqueza e a influência em relação às classes baixas, que acabam

suplantadas e subjugadas nesse contexto de dominação etnocêntrica.

O coletivo apresentado pela novela Fera ferida mascara a racialidade. O

preconceito surge em posições individuais, que fantasiam um espaço de

superioridade em relação aos pobres e negros presentes nessa narrativa.

A contemporaneidade da narrativa de Aguinaldo Silva e coautores talvez

pudesse repensar a história da Clara barretiana, mas não o faz. Reproduz a situação

de Clara com brandura, própria de sua função social, enquanto gênero de

entretenimento. E assim, diverge da literatura barretiana em seu tom de

transformação, reflexão e/ou a discussão acerca da racialidade brasileira.

Outro aspecto em desarmonia com obra Barreto é a conformidade da

situação discriminante da jovem Clara sob o ponto de vista de Engrácia, ao dizer

que não vale nada nessa vida, diferente do acontece na obra de Barreto, pois nela a

perspectiva do não ser nada na vida parte da própria Clara.

No Brasil, como não se toca mais publicamente na ―questão nacional‖ (levantada em 1822, 1888, e 1930), a temática identitária foi abandonada pelas elites dirigentes e retomada por ―comunidades‖ setoriais (negros, índios, mulheres, homossexuais etc.). Na imprensa, apenas eventualmente o problema da discriminação é aflorado, mas sem compromisso de causa, daí as acusações de conivência na reprodução de formas discriminatórias. (SODRÉ, 1999, p.134-135 – destaques do autor).

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Nesse sentido, a telenovela também não está preocupada em discutir a

racialidade, apenas reproduz o social como ele sempre foi retratado: o branco em

lugar de poder e de dominação e o negro em seu estado de dominado.

Assim, as proposições analisadas nos direcionam, em ambas as narrativas,

para FD2 de inferioridade racial, assim como, aquela que denota a superioridade

racial, FD1. Os discursos de aceitação da subalternidade e submissão que são

impostos à personagem Clara, tanto na construção de Barreto quanto na de

Aguinaldo Silva e outros se corroboram pela FD2, enquanto a hegemonia branca e a

discriminação de cor e sexual se exprimem pela FD1, FD1.1 e FD 1.2, que atribuem

ao sujeito de cor um não-lugar social, dado que o mantém à margem e o exclui

perante uma sociedade de preceitos racistas.

6.3 Engrácia: Caracterização

Este subtópico se constrói a partir das peculiaridades de Engrácia presente

na obra barretiana e sua releitura pela telenovela Fera ferida. Observe

primeiramente, no quadro a seguir, a caracterização de Engrácia de Clara dos

Anjos:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Engrácia Mulata Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral /

Inerte14

Subúrbio do Rio de Janeiro

Secundária

Quadro 08: Caracterização de Engrácia (Romance)

14

―Era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência‖ (BARRETO, 1998, p. 52).

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A Engrácia construída por Lima Barreto era uma mulher do lar, dedicada à

família. Apresentava um tom de pele escuro e cabelos lisos. Trazia em seus

atributos físicos uma estatura mediana: ―Não era muito baixa, escapava a media de

nossas mulheres em geral. Tinha uma fisionomia medida, de traços leves, mas

regular‖. (BARRETO, 1998, p. 18).

Aceitava tudo o que a vida tinha a lhe oferecer de maneira passiva, era

dependente do marido e quase não saía de casa, exceto em feriados santos ou para

ir à mercearia.

Já a Engrácia de Silva, Linhares e Moretzsohn, apresenta outros traços, veja:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Engrácia Mulata Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral /

Forte/Decidida

Cidade de Tubiacanga

Coadjuvante

Quadro 09: Caracterização de Engrácia (Novela)

O papel de Engrácia é desempenhado por Maria Ceiça. A personagem é uma

mulher decidida, de temperamento forte, que trabalha fora, numa tecelagem, e ainda

atua como rainha da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, confraria de

negros existente em Tubiacanga. Essa personagem é a guardiã das jóias da

Irmandade. Sua condição de rainha se constitui por sua descendência a uma

linhagem de príncipes africanos, fato que lhe confere um poder soberano entre os

negros e a faz ser respeitada pela sociedade branca tubiacanguense.

Diante disso, Engrácia tem muito cuidado com a filha Clara, pois esta será

sua substituta na Irmandade, perpetuando a tradição africana.

Em casa, Engrácia também lidera sua família com certa imposição: a filha tem

que seguir o caminho que ela escolheu, e seu marido pouco opina em suas

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decisões. A relação de Engrácia e Joaquim é de puro respeito. As mulheres da

Irmandade não devem se envolver sexualmente com seus maridos.

6.4 Engrácia: análise

Nesta seção se contemplará, a partir de uma determinada posição e

conjuntura, como se estabelece a FD na qual se inscrevem as personagens

Engrácia da narrativa Clara dos Anjos e da telenovela Fera ferida.

Segundo a obra de Barreto, Engrácia, apresentada pela voz do narrador,

exibe um comportamento inerte, sem muita atitude.

Engrácia nos é apresentada sob um padrão social verossimilhante ao da

década brasileira de 1920. Nessa ocasião, os preceitos patriarcais vigoram,

denotando que o lugar da mulher era de submissão. A idealização do sexo feminino

estabelecida por Barreto demonstra que a mulher deveria servir ao pai antes do

casamento, e após, ao marido: ―(...) constituir função do pai, enquanto solteira, e do

marido, quando casada. (BARRETO, 1998, p. 89). Sob essa perspectiva, ―Gilberto

Freyre, acentua a submissão da mulher, repetindo a famosa frase de Capistrano

para definir a família colonial: ―pai taciturno, mulher submissa, filhos

aterrorizados‖...‖. (CORREA, 1981, p. 12 – destaques do autor).

Um dado curioso nessa situação era que, essa mesma mulher, quando negra

e/ou mestiça, além da subserviência física, deveria tê-la também no plano espiritual

e em tudo mais que fosse contra a ordem eurocêntrica, dado que possibilita a

inscrição desse indivíduo sob a FD2, caracterização exibida por Engrácia da

narrativa barretiana, como veremos adiante.

EUe Narrador:

Era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa.

(BARRETO, 1998, p. 52 – destaques meus)

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Para melhor entender essa concepção de cunho religioso, trouxemos a

reflexão de Abdias do Nascimento, apontando que

Para manter uma completa submissão do africano, o sistema escravista necessitava acorrentar não apenas o corpo físico do escravo, mas acorrentar também seu espírito. Para atingir este objetivo se batizava compulsoriamente o escravo e a Igreja Católica exercia sua catequese e proselitismo à sombra do poder armado. (...) hoje, em vez do batismo compulsório, temos a ―democracia racial‖ compulsória cujos mandamentos são impostos pela ameaça policial, pela Lei de Segurança Nacional, e todo um cortejo de instrumentos legais e ilegais para amedrontar e dissuadir aqueles que não querem rezar pelo catecismo oficial(...) (NASCIMENTO, 1978, p. 109 – destaque do autor).

Na obra de Barreto não há indícios de alguma matriz religiosa africana, o que

existe é uma completa assimilação da religião cristã e sua presentificação, dado que

nos leva a perceber a presença da FD1 relativamente ao caráter da auto-afirmação,

como verificaremos pelos textos abaixo:

Engrácia, nesse âmbito, segue incisivamente os preceitos da religião Católica

Romana – ―Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano:

batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana.‖ (BARRETO,

EUe

Narrador: Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se confessava.

(BARRETO, 1998, p. 53 – destaques meus)

EUe

Narrador: Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os

filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi

assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido.

(BARRETO, 1998, p. 18 – destaques meus)

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1998, p. 18). Ao se estabelecer sob a posição ideológica dessa classe, Engrácia

aceita o condicionamento dessa ordem que se inscreve sob a FD1 e institui para o

outro um não-luqar dentro de uma comunidade cuja religião, que é a católica, se

constituiu num poderoso instrumento de dominação sociocultural e político na nossa

sociedade.

Levantamos a questão de caráter religioso no intuito de contextualizar o

posicionamento alienado da personagem: ―(...) não era animado de grande fervor

religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era ao extremo (...)‖ (BARRETO,

1998, p. 18) e ―A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos

mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara.‖ (BARRETO, 1998, p.

54). Engrácia, nessa ocasião, parece reconhecer e/ou assimilar, novamente, o lugar

de superioridade estabelecido pela instituição Igreja, exteriorizado sob a FD1.

Sabe-se, pela voz do narrador, que Engrácia apresentava cabelos lisos e pele

escura. Ela era neta de escravos e filha de algum de seus ―protetores‖, antigos

senhores de sua avó. Sob essa caracterização, o padrão da FD1.1 torna-se

possível, como se pode observar pelo destaque abaixo:

EUe

Narrador: O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

(BARRETO, 1998, p. 53 – destaques meus)

Engrácia fora criada em uma família abastada e tratada por eles como filha,

teve babá e uma boa educação. Contudo, seu biótipo mestiço a colocava em

situação de desvantagem social, assegurado o padrão discursivo imposto pela

FD1.1, conforme nos mostra expressão: ―aquela espécie de ingênuos‖ (BARRETO,

1998, p. 53). Esse poder de atribuição de submissão às pessoas, de julgá-las

inferiores, predestinadas a tarefas menores numa sociedade, tem na FD1.1 a sua

fundamentação. Acerca dessa questão, Fanon afirma que, para o negro, existe

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somente um futuro, e este está em mãos da sociedade branca, (FANON, 2008, p.

28), máxima que se torna um registro decisivo no interior da FD1.1.

Logo, deparamos com uma personagem inexpressiva, sem voz ativa,

dependente do marido: ―Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar

punha-a tonta e desvairada.‖ (BARRETO, 1998, p. 53). Além disso, essa

personagem interioriza bem as normas sociais ditadas às mulheres do século

passado: ―(...) mas logo se casou – como geral acontece com as nossas moças –

, tratou de esquecer o que tinha estudado.‖ (BARRETO, 1998, p. 53 – destaques

meus).

A discursivização que se constrói em torno de Engrácia no romance se revela

através do fenômeno da intertextualidade, afinal ―nenhum campo discursivo existe

isoladamente, havendo intensa circulação de uma região a outra do universo

discursivo‖ (MAINGUENEAU, 1993, p. 117). Ao mesmo tempo, ela revela a incursão

dessa personagem na FD2, já que a condição em que vive se faz pelo

reconhecimento da superioridade do branco em relação à submissão do negro.

Sob uma dimensão estrutural, as FD‘s elencadas acima podem ser

reconhecidas como:

→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD

FD2: Inferioridade racial/FD1: superioridade racial FD1.1/discriminação de cor

→ Interdiscurso: darwnista social (escravocrata)/patriarcal

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Engrácia está fadada a um sistema de representação patriarcal e racista

próprio do início do século XX, que segue a ordem do darwinismo social 15. Ela

experimenta o mundo em que vive através dessa óptica, se restringindo a cuidar do

lar e carregando o estigma da cor negra, padrões externalizados sob as FD1, FD2 e

FD1.1.

Por sua vez, Engrácia da telenovela Fera ferida é representada por Maria

Ceiça, uma mulata. Essa personagem, ao contrário daquela construída por Lima

Barreto, não é do lar, trabalha em uma tecelagem. Trata-se de uma mulher forte e

decidida, não inerte como aquela idealizada por Barreto. Observe, por exemplo, a

posição desta ao descobrir que o rapaz prometido a casar-se com sua filha Clara

estava a se enamorar de outra:

Engrácia, aqui, se instaura sob um espaço de prestígio: ela é a rainha da

irmandade negra existente na cidade ficcional de Tubiacanga. O discurso dessa

personagem se revela sob um lugar de autoridade, legitimado pela soberania e pelo

poder que ela aparenta ter. Nessa situação, percebe-se que os padrões discursivos

engendrados a partir de uma FD1, condizente com a elite, são apropriados pelos

negros, quando ocupam uma posição de poder, como no caso de Engrácia, fato que

nos autoriza a postular que a personagem se inscreve, inicialmente, em uma FD1,

―O que é justo ou não... quem dita sou eu (...)‖ (SILVA, LINHARES e

MORETZSOHN, 1993).

Através desse posicionamento, Engrácia demonstra uma condição real para a

existência da irmandade, propiciando a exaltação de sua cultura negra, embora isso

se realize de forma exagerada e dogmática, como veremos a seguir. Ela, por ser a

15

Baseia-se sob conceitos que serviram de base para selecionar, classificar a humanidade – em raças e etnias, assim como sua organização social. Nessa perspectiva, a escravidão, e, por conseguinte, a inferioridade do negro tornou-se a partir da seleção natural, uma argumentação biologizante que se apoiou sob as teorias raciais, permitindo a naturalização das desigualdades sociais.

EUe Personagem Engrácia:

- O que é justo ou não... quem dita sou eu... que sou a rainha, menina... são as regras da irmandade!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

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―rainha‖, se fixa através de um padrão comportamental de superioridade diante

aqueles que seguem os preceitos desse grupo.

Para melhor apreendermos o comportamento apresentado por Engrácia

percebemos a necessidade de evidenciar as regras dessa doutrina, como se pode

observar abaixo:

Sob o ponto de vista do Orestes (um personagem branco, de baixa condição

social – ele é o coveiro da cidade de Tubiacanga), esse trecho revela a realidade da

irmandade, a concepção de mundo desse grupo. O autor, ao introduzir esse dado

em sua narrativa, parece reconhecer a importância do sincretismo religioso como

alvo de um debate social que assegura a identidade do indivíduo negro, afinal, uma

maneira de conservar uma cultura é propiciar que os segmentos sociais envolvidos

com ela expressem-na e pratiquem suas crenças.

Contudo, a promoção dessa discussão se esvai, à medida que a narrativa se

fixa apenas em mostrar o comportamento arbitrário de Engrácia em relação aos

membros da irmandade, situação que evoca uma FD1. Diante de tal situação,

percebe-se que o dado de preservação de uma tradição cristã de origem negra que

seria levantando como mecanismo de reafirmação e/ou conhecimento das questões

socioculturais africanas pelo sincretismo religioso é deixado de lado, nesse contexto,

perdendo a importância diante as intrigas que a trama proporciona.

Assim, a irmandade, ao invés de ser tratada como espaço de preservação de

uma expressão cultural da tradição negra, ganhará a conotação negativa desse

EUe Personagem Orestes:

(...) um povo só sobrevive quando consegue fincar suas raízes... e mostrar o quanto elas são profundas ... A irmandade existe pra que todo negro não se esqueça de suas origens ...suas raízes e se você cortar essas raízes... o caule apodrece... os galhos caem ...a vida acaba... por isso é que se passam séculos e séculos e as tradições têm que continuar como são... (Fala pertencente ao personagem Orestes)

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

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lugar, estigmatizando uma cultura que, por intolerância, se nega ao convício e às

trocas sociais.

A construção da personagem Engrácia, a princípio, se faz num tom de loucura

e obsessão: ―Ao traidor a morte... a indiferença... ninguém poderá tocar em qualquer

coisa em que você toque, principalmente, nos alimentos! (SILVA, LINHARES e

MORETZSOHN, 1993). Ou seja, é como se a personagem se apegasse

demasiadamente ao lugar de poder que ocupa na irmandade, incorporando os

padrões discursivos da FD1, aquela usada para discriminar os sujeitos de sua raça,

fato que conduz Engrácia a segregar o seu próprio grupo étnico.

Nessa perspectiva, para manter esse lugar soberano, Engrácia é capaz de

sacrificar a filha, Clara, forçando-a a um casamento indesejado. Sua atitude acaba

denotando uma imagem negativa para seu respeito e para o do grupo que lidera,

como poderemos ver pela passagem abaixo:

Pelo contexto mostrado, a personagem é apresentada de forma bem

elaborada e resolvida. Seu lado enérgico nos legitima a fazer essa leitura: ―A partir

dessa noite, Terezinha,... é isso que você será para nós... nada!‖ (SILVA,

LINHARES e MORETZSOHN, 1993). E ainda, ela ―reina‖ como líder de uma

irmandade religiosa, assinalando a ocorrência da FD1.

EUe Personagem Engrácia:

Ao traidor a morte... àqueles que descumprem as nossas leis, a indiferença.... a marginalidade....a miséria... o desalento... a aflição... nada! A partir dessa noite Terezinha... é isso que você será para nós... nada! A partir de agora, ninguém de nossa irmandade poderá olhar para você... falar com você, ou tocar em qualquer coisa em que você toque, principalmente, nos alimentos! Você acabou!... Morreu! E o que restou foi isso...

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

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Outro exemplo desse comportamento ―rigoroso‖, calcado sob uma FD1,

acontece em um contexto de insubordinação de Wotan16, personagem que não quer

cumprir com a promessa de casamento com a filha de Engrácia, Clara. Nessa

situação, Engrácia é incisiva e o trata duramente por não acatar os seus deveres,

dizendo que Wotan não é digno de sua raça, tampouco, de seus antepassados e de

sua filha Clara.

Contudo, não podemos nos esquecer de que esse fato de superioridade

ocorre apenas quando Engrácia está diante do grupo da irmandade e de sua família

(entre as pessoas de cor). Nessas circunstâncias ela assume uma FD1. Já na

interlocução branco-negro, a constituição autônoma do discurso de Engrácia se

extingue (ou melhor, parece não existir) e retorna a condição da submissão da

personagem, como vimos pelo embate discursivo realizado entre Salustiana e

Engrácia no subtítulo 6.2, ―Clara dos Anjos: análise‖, do capítulo 6, ou mesmo entre

Ilka e Engrácia, quando aquela diz: ―Vou procurar outra macumbeira sim! (...)‖

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993), estabelecendo para esta um lugar

discriminante. Engrácia, nesse interstício, deixa de assumir a FD1 e se fixa numa

FD2, tanto é que, no fim da trama telenovelística, será Engrácia que dirá: ―(...) nós

não somos nada nesta vida.‖

Logo, a posição de soberania dessa personagem expressa valor no momento

em que ela lidera religiosamente a irmandade de negros, fato que a faz reproduzir o

padrão da FD1. No entanto, ao sair dessa posição e retomar seu lugar de mestiça

perante a sociedade tubiacanguense, a FD2 se torna sua realidade.

Para uma personagem altiva como ela foi, no decorrer da novela, sua fala

pode ser lida como uma punição, ou seja, no final da novela ela é posta em seu

lugar, o da sujeição social diante do domínio branco, fato que a inscreve numa FD2.

Através desses posicionamentos deparamos com uma personagem que, a

princípio, se enquadraria numa formação discursiva de reconhecimento do lugar de

superioridade, FD1, que se autoafirma enquanto indivíduo/ser humano. Mas que,

também, se revela sob uma forma libertária de expressão cujo teor sugere uma FD

feminista. Porém, esse não é o centro de nossa análise. No entanto, torna-se

interessante apreender que a dispersão de certos enunciados nos propicia um

16

Norton Nascimento é o ator que representa Wotan na trama de Aguinaldo Silva e outros.

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diálogo com determinados acontecimentos, e estes nos remetem a um jogo

interdiscursivo. Observe o plano histórico acerca da ascensão feminina brasileira:

Nos anos 1980 o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em que estavam em jogo as relações de gênero. As ideias feministas difundiram-se no cenário social do país, produto não só da atuação de suas porta-vozes diretas, mas também do clima receptivo das demandas de uma sociedade que se modernizava como a brasileira. Os grupos feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração do movimento feminista em associações profissionais, partidos, sindicatos, legitimando a mulher como sujeito social particular. (SARTI, 2004, p. 42).

A circunstância histórica acima decorre do mesmo período temporal próximo

ao da criação da telenovela, fato que nos permite inferir que a novela viabiliza certos

assuntos em voga na atualidade, como as drogas (novela O Clone, 2001), a

corrupção (novela A favorita, 2008), o feminismo dos anos 80 (novela Fera ferida,

1993) etc.

A telenovela, assim, se estrutura sob representações que singularizam a

formação social brasileira contemporânea. Entretanto, no que se refere à questão

racial, isso fica muito aquém. Engrácia, no final dessa trama, recebe uma punição

pela ―insolência‖ de ser altiva e desejar o poder (os padrões sociais acerca da raça

reforçam as raízes da supremacia branca, o agenciamento formativo midiático não

permite a desmistificação do sujeito de cor e esse Outro acaba por ser sempre o

inferior).

Sob os aspectos levantados, Engrácia, primeiro, apresenta um discurso que a

enquadra em um momento de soberania, dado sustentado pela FD1. Agora, no que

diz respeito a ela como negra, na interação com os brancos, o processo é outro, já

que prevalece o discurso empregado pela FD2, a igualdade de direitos dessa

senhora desaparece. Os valores do sujeito de cor só têm importância entre eles,

nisso o branco não interfere, como no caso da irmandade. Contudo, a classe

dominante não deixa que o discurso do outro (negro) se propague, e se o faz, o

estereotipa, como vemos no discurso de Ilka quando se rebela contra Engrácia no

momento em que esta lhe nega ajuda: ―(...) o que não falta nessa cidade é quem

pratique o catimbó...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993)

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Por esses indícios, percebemos que essa personagem se posiciona sob uma

FD1 e uma FD2; logo, de modo estrutural trazemos a forma composicional dessas

FD‘s.

→ Pré-construído: inferioridade racial/superioridade branca e/ou do outro

FD

FD2: Inferioridade racial/FD1: superioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Engrácia, em um dado momento da trama, retoma o seu lugar de

inferioridade, assumindo a FD2, através de um mundo controlado pelos preceitos da

cultura e identidade colonialista. O sujeito discriminado e/ou inferiorizado, nesse

âmbito, não é qualquer um; são precisamente os afrodescendentes que participam

de um contexto específico, o da irmandade, e têm como líder Engrácia que, a partir

desse plano social, dirige e exibe essa congregação como um gueto – lugar onde

são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais.

Diante desses apontamentos, percebe-se que a personagem Engrácia, de

Lima Barreto, se constrói sob a mansidão e a submissão perante os homens,

retratando uma época retrógrada, com uma representação da mulher passiva,

destinada a satisfazer o marido, dado que valida o posicionamento dela em uma

FD2.

Por sua vez, a Engrácia de Fera ferida surge mostrando outra face, atuando

fortemente sobre o grupo de negros que a rodeia; porém, a representação

hegemônica da cultura branca apaga as raízes da africanidade propostas pela

narrativa e estereotipa negativamente a retratação que a irmandade negra poderia

vir a ter nesse contexto ao transformá-la num gueto, propiciando a ocorrências das

FD1 e FD2.

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Lembramos que, quando algo da ordem da identidade negra surge na

telenovela, como a Irmandade de negros de Tubiacanga, isso aparece como

reivindicação de lugar de poder, e não de identidade de um povo. O comportamento

da personagem Engrácia nos direciona para essa projeção negativa acerca de um

fato que mereceria uma melhor abordagem. Assim, torna-se interessante pontuar

que a telenovela surge como um suporte que serve ao entretenimento, típico da

cultura de massa, que não se preocupa em despertar a consciência crítica do

espectador.

6.5 Joaquim dos Anjos: caracterização

Voltamos, agora, o olhar para Joaquim, pai de Clara, da narrativa de Barreto,

como se pode verificar:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Joaquim pardo-claro

Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral /

Simpático

Subúrbio do Rio de Janeiro

Secundária

Quadro 10: Caracterização de Joaquim (Romance)

Joaquim dos Anjos, pai de Clara, era um homem simples, nascido nos

arredores de Diamantina. Tinha em seus traços uma pele mais clara; era alto,

ombros quadrados e musculatura forte: ―Apresentava um nariz grosso, quase chato

e a maçã do rosto saliente.‖ (BARRETO, 1998, p. 42). Ele se considerava músico.

Era tocador de flauta, e ainda, arriscava-se compondo valsas, tangos e

acompanhamentos de modinhas17.

17

Modinhas – trata-se de um estilo musical romântico que surgiu pelos idos do século XVIII na Europa, contudo toma feição própria em terras brasileiras.

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Ainda jovem foi para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, tornou-

se carteiro e casou-se com Engrácia, com quem teve a filha Clara.

Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. (BARRETO, 1998, p. 88 – destaques do autor).

Joaquim, com os seus cinquenta anos de vida, acreditava na bondade

humana, tinha pouca instrução, embora algum conhecimento sobre as coisas do

mundo. Não era, também, um homem religioso, entretanto, não dispensava o

batismo dos filhos na igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procedeu

com Clara e os demais filhos que haviam falecido.

Joaquim carregava consigo a ―artinha‖ de música, isto é, sabia noções

elementares dessa arte. Entretanto, não levou adiante os ensinamentos musicais da

filha Clara.

Esse personagem era um sujeito trabalhador e provedor do sustento da casa.

Era Joaquim, também, que tomava todas as decisões administrativas e/ou de outra

ordem que a família necessitava.

Já Joaquim de Fera ferida traz as seguintes singularidades, observe:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Joaquim Negro Nenhuma ascensão social/Boa conduta moral/

Simpático

Cidade de Tubiacanga

Coadjuvante

Quadro 11: Caracterização de Joaquim (Novela)

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149

É do ator Antônio Pompeo a responsabilidade de dar vida a Joaquim dos

Anjos. O personagem é um carteiro simpático e trabalhador, pai dedicado e marido

leal. O personagem não tem muito destaque, vive à sombra da esposa. Compartilha

com a esposa o destino de Clara, que será manter-se virgem como Nossa Senhora

e, assim, liderar a Irmandade.

Como Joaquim, de Lima Barreto, esse personagem toca flauta, além de

compor valsas e tangos. Na obra de Barreto, o melhor amigo de Joaquim é

Marramaque. Na novela criada por Aguinaldo Silva e outros, o sujeito que exerce

com Joaquim esse elo de amizade é Afonso Henriques, um poeta que vivia a

boemia intensamente, encenação realizada pelo ator Otávio Augusto. Eles algumas

vezes se arriscam a musicar os poemas de Henriques, e se divertem bebendo no

bar de Chico da Tirana. Outro amigo fiel é o coveiro Orestes, representação do ator

Claudio Marzo e, sempre que pode, Joaquim ajuda o companheiro.

6.6 Joaquim dos Anjos: análise

O foco, nesse instante, recai sobre o personagem Joaquim dos Anjos

presente na narrativa de Lima Barreto. Esse personagem é retratado pelo narrador

como um sujeito simpático e de boa fé. Não tinha ―malícia no coração‖ e ―não podia

desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência‖. (BARRETO, 1998,

p. 88).

Segundo Pêcheux, o sentido das palavras é determinado pelas posições

ideológicas numa certa conjuntura social e histórica. Diante disso, observe o trecho

abaixo, revelando o pensamento de Joaquim em relação ao modo de vida que ele

crê ser adequado para sua filha Clara.

EUe

Narrador: O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. (...). Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar

(BARRETO, 1998, p. 89)

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Para esse senhor sua filha deveria ‖(...) adquirir uma personalidade, não era

ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. (BARRETO, 1998, p. 89). Assim,

a jovem deveria servir, antes de tudo, ao pai e, depois, obedecer ao marido, ou seja,

a mulher nascera para servir ao lar, casar e ter filhos, fato que, implicitamente, se

funda sob o patriarcalismo e, talvez, sob o machismo, coisas normais para a época

vivida por esse personagem. A noção patriarcal se constitui por regras de

descendência que concedem ao lado masculino todo e qualquer poder sobre os

demais que o cercam. Sob essa concepção, o homem se instaura numa posição de

poder, é o ser da virilidade, e nessas circunstâncias, acaba por se fixar

discursivamente sob o padrão estabelecido pela FD1. Assim, tal posicionamento

discursivo, parece-nos ser assimilado por um negro, Joaquim, no que se refere à

autoafirmação do ser, mais precisamente, a do sujeito do sexo masculino, enquanto

membro de uma sociedade e chefe de família. Nessa situação, o negro acaba por

assimilar um ideário, que a princípio, caberia apenas à sociedade branca.

Contudo, Joaquim sabia que a condição do negro era desfavorável no meio

em que vivia, validando a ocorrência da FD2, como poderemos ver pelas

expressões, ‖(...) mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta (...)

admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras‖.‖ (BARRETO,

1998, p. 93), como mostrado abaixo:

EUe

Narrador: Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das "outras".

(BARRETO, 1998, p. 93 – destaques meus)

Joaquim se coloca vigilante em relação a sua filha Clara, e reconhece a

condição social da jovem, sob a evidência de uma FD2 ―(...) fadada ao destino das

"outras‖.‖ (BARRETO, 1998, p. 93). Dessa forma, o personagem deixa subentendido

o infortúnio que as moças de cor teriam em seu futuro, diante disso, Joaquim teme

pelo envolvimento de sua filha com Cassi Jones, um sujeito branco.

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151

No próximo segmento, através da voz do narrador, que expõe o pensamento

de D. Margarida, conheceremos o posicionamento dessa senhora acerca da família

de Joaquim:

EUe

Narrador: Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

(BARRETO, 1998, p. 129 – destaques meus)

A representação enunciativa acima expõe, implicitamente, que a

subserviência é algo imanente aos ascendentes de Joaquim dos Anjos,

evidenciando a FD2 como padrão comportamental desses indivíduos, conforme

indicado pelo enunciado: ―(...) julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal

armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.‖ (BARRETO, 1998,

p. 129). Margarida Weber por ser uma estrangeira evoca um discurso discricionário

em relação às outras etnias, como já mostrado no subtítulo 5.1 ―O circuito externo e

interno de Clara dos Anjos‖, do capitulo 5, que se enquadra sob a representação

proposta pela FD1 – ―Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o

seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avôs maternos, que andavam

sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha

gente que aqui veio encontrar.‖ (BARRETO, 1998, p. 128-129).

Ainda, no que diz respeito a Joaquim, o narrador revela que: ―Joaquim dos

Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto...‖ (BARRETO, 1998, p. 93) e

―Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu ―buraco‖,

como ele chamava a sua humilde casucha‖ (BARRETO, 1998, p. 15 – destaques do

autor). As considerações anteriores descrevem as circunstâncias vividas por

Joaquim, reiterando a inscrição deste na FD2, levando-nos a perceber que o

personagem se estabelece na narrativa à margem do social, e que sua

intelectualidade e posição social são extremamente modestas.

Esse personagem, então, aceita sua condição de subalternidade através das

regras ditadas por uma sociedade cujos preceitos são da ordem do colonialismo.

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A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Ora, toda ideologia de combate inclui como parte integrante dela mesma, uma concepção do adversário. Ao concordar com essa ideologia, as classes dominadas confirmam, de certa maneira, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, entre outras coisas, a relativa estabilidade das sociedades; a opressão é, por bem ou por mal, tolerada pelos próprios oprimidos. (MEMMI, 1977, p. 83).

Joaquim, nessa situação, consente, de maneira silenciosa, com os padrões

impostos pela sociedade na qual vive. Sob uma extensão estrutural, temos as FD‘s

analisadas a partir de seus elementos constitutivos.

→ Pré-construído: inferioridade do negro/superioridade branca

FD

FD2: Inferioridade racial/ FD1: Atribuição do lugar de inferioridade do outro e

superioridade racial

→ Interdiscurso: darwnista social (escravocrata)/patriarcal

A superioridade dos homens brancos, representada pela FD1 – e em algumas

ocasiões apropriada pelos negros, revela que a ordem social, naquele momento,

não proporciona ao homem de cor, como Joaquim, alguma possibilidade de

expansão, seja cultural, social etc., fato que situa esse sujeito sobre enunciações

instauradas sob a FD2. Diante disso, o personagem aceita o padrão imposto pela

FD1 como algo irrevogável, fazendo-o se inscrever, então, no pólo contrário a esse

discurso, sob a sujeição, a submissão social, devido a sua cor e condição social.

Em Fera ferida, Joaquim dos Anjos nos é apresentado pelo ator Antonio

Pompeo, sujeito de cor, simples e que esbanja simpatia por onde passa em seu

trabalho de carteiro. Esse personagem atua de maneira muito aquém as aparições

de sua esposa Engrácia e/ou as de sua filha Clara. Joaquim, geralmente, fica à

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sombra da esposa, mulher decidida, que trabalha fora de casa e, ainda, lidera uma

irmandade negra, conforme mostrado anteriormente.

A ―realidade‖ 18 fornecida a Joaquim enquanto sujeito de seu discurso pode

ser percebida pela subordinação, pela apatia em relação ao Outro, instituindo a FD2,

como mostrado pelas expressões, ―(...) homem não apita... eu sou forçado a aceitar

as decisões da Engrácia (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Observe o

trecho abaixo.

((Joaquim dos Anjos está no bar de Chico da Tirana19 e parece preocupado. Dona Maria dos Remédios20 observa Joaquim e caminha até ele e lhe pergunta se já não é hora dele se arrumar (vestir) para o noivado de sua filha. Ele responde para Dona Maria dos Remédios)):

Joaquim: - Noivado da minha filha???... Será o noivado da minha filha ou o noivado da futura rainha da irmandade?

Maria dos Remédios:

- Nós estamos falando da mesma pessoa, né::... seu Joaquim? Quando a Clarinha casar ela vai ser coroada rainha da irmandade.

Joaquim: - Acontece o seguinte, Dona Remédios... é que no noivado da futura rainha da irmandade eu não posso me meter.. é uma irmandade só de mulheres... homem não apita... eu sou forçado a aceitar as decisões da Engrácia. Agora quanto ao futuro da minha filha eu posso me meter sim! Eu não posso admitir que esse casamento torne a Clara infeliz pelo resto da vida, dona Remédios!

Maria dos Remédios:

- Eu concordo com o senhor. Eu acho que é uma injustiça a Clarinha sacrificar a felicidade dela pra::... pra seguir essa tradição...

Joaquim: - Que pai seria eu, dona Remédios, se permitisse um sacrifício desses? Só eu sei... em nome da harmonia e a paz da família o quanto eu não aguentei da Engrácia... Eu fiz tudo pra não me aborrecer com ela... eu não sou uma pessoa de brigar, mas ela não entendeu... foi intransigente... fez pé firme nesta

18

Reconhecida como um sistema de evidências e de significações geralmente conhecida, aceita e experienciada. (PECHEUX, 1997, p. 162). 19

Chico da Tirana é vivido por Tonico Pereira. 20

Representação de Luiza Thomé.

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história desse noivado aí...

Maria dos Remédios:

- Mas noivado não é casamento... ainda tá em tempo de evitar o pior...

Joaquim: - A senhora tá certa, dona Remédios.... eu vou falar com a minha filha que vou ficar do lado dela...mesmo que isso signifique a desunião da nossa família... e tem uma coisa se ela não quiser levar esse noivado pra frente eu vou ficar do lado dela... (...)

((Dona Remédios vibra com a decisão do Joaquim)).

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

Joaquim pode ser reconhecido como um sujeito passivo, que acata a maioria

das decisões de sua mulher Engrácia – praticante extemporânea da FD1, como

demonstra a expressão: ―... Eu fiz tudo pra não me aborrecer com ela...‖ (SILVA,

LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Esse personagem se assume por atitudes

inertes, exceto ao se tratar da felicidade de sua filha; nessa ocasião, sua sujeição

desaparece – ―(...) com a minha filha que vou ficar do lado dela... mesmo que isso

signifique a desunião da nossa família...‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN,

1993).

O padrão comportamental de Joaquim se exterioriza sob a base da classe

dominante, dado que lhe confere um espaço de inferiorização, evocado pela FD2.

Lembremo-nos do episódio no qual o delegado de Tubiacanga não aceita a

intervenção de Joaquim na prisão de Orestes e diz: ―- Você desacata minha

autoridade que eu lhe enquadro como cúmplice, seu crioulo safado!‖ – uma

ilustração do poder da FD1.

Diante de tais apontamentos, arriscamo-nos a inferir que Joaquim se

estabelece sob a FD2 de inferioridade racial; afinal, ele se conforma com a

subalternidade que a sociedade de Tubiancaga lhe confere.

Estruturalmente, a FD2 a que o personagem se submete se constitui por:

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→ Pré-construído: inferioridade do negro e/ou pobre

FD

FD2: Inferioridade racial

→ Interdiscurso: darwinismo social (escravagista)

Pelo contexto apresentado, percebe-se uma inversão de papéis entre a

relação homem e mulher: quem dita as regras agora é a mulher, e não o homem,

fato que revela a superioridade feminina. Em outros termos, podemos dizer que a

mulher se vale de uma FD1, como circunscrita ao âmbito do poder, e o homem se

submete a uma FD2, como o reconhecimento do poder. Logo, a filiação discursiva

de Joaquim se constitui sob as bases impostas pela ideologia da classe dominada.

Em ambas narrativas, a de Barreto e a de Silva, Linhares e Moretzsohn,

Joaquim surge com um discurso resignado, passivo. No entanto, em Fera ferida há

um apagamento do sujeito enquanto chefe de família, fato decorrente, talvez, da

contemporaneidade da situação enunciativa e inexistente na narrativa barretiana,

momento em que o homem se estabelece enquanto provedor e líder no seio familiar.

A troca de posições entre homens e mulheres é explicitada nesse âmbito, no

qual a autonomia feminina aparece de forma destemida e nada ingênua. Enquanto

isso, os anos vinte do século passado, marcam a superioridade masculina, época da

escritura de Lima Barreto. Entretanto, a racialização ainda vigora nas duas

narrativas, mesmo que sob óticas distintas. Em Clara dos Anjos a discriminação

racial permeia toda a obra e em Fera ferida isso só aparece pela voz de alguns

sujeitos ficcionais.

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6.7 Cassi Jones: caracterização

Veremos nessa instância a caracterização de Cassi Jones, personagem da

obra barretiana, em contraposição ao personagem de Aguinaldo Silva e outros.

Vejamos, primeiro, a construção de Lima Barreto:

Romance: Clara dos Anjos

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Cassi Jones Branco Apresenta ascensão social/Baixa conduta

moral/Trapaceiro

Subúrbio e Centro do Rio

de Janeiro

Principal/Anti-herói

Quadro 12: Caracterização de Cassi Jones (Romance)

Cassi Jones era considerado o ―mestre suburbano do violão, o dedo da

modinha‖. (BARRETO, 1998, p. 42). Tinha por volta dos trinta anos, ―branco,

sardento, insignificante, de rosto e corpo‖. (BARRETO, 1998, p. 23).

Contava com dez defloramentos em seu currículo de galanteador. Ele tirava

proveito de suas vítimas, praticando o crime da sedução de forma implacável, ―(...)

simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer (...)‖

(BARRETO, 1998, p. 35). Porém, as moças que sucumbiam aos seus encantos

possuíam pouca ou quase nenhuma destreza mental: ―(...) a estreiteza de

inteligência e a reduzida instrução (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 35). Essa proposição

enuncia a alienação na qual as jovens seduzidas por Cassi se encontravam. Em

outros termos, podemos dizer do lugar de submissão à FD2 que as jovens

sustentavam.

Era o filho protegido de Dona Salustiana Baeta Azevedo. Esta sempre livrava

Cassi de suas encrencas. Seu pai, Manuel Borges de Azevedo, não aceitava as

trapalhadas do filho.

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O nome do rapaz era Cassi Jones de Azevedo. O sobrenome Jones ele

usava desde os vinte anos. Alguns diziam que era porque ele o achava bonito, mas

sua mãe, em certas crises de vaidade, se dizia descendente de um tal lorde Jones,

cônsul da Inglaterra em Santa Catarina. Cassi ainda tinha duas irmãs: Catarina e

Irene.

O narrador expõe esse personagem denominando-o como um ―tipo bem

brasileiro‖. Observe:

EUe Narrador:

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.

(BARRETO, 1998, p. 29 – destaques meus)

O narrador ironiza a tipicidade do caráter do brasileiro ao associá-lo a Cassi

Jones, além de sugerir que o brasileiro é um ser dado à vadiagem. Tendo em vista

que o sujeito brasileiro se constituiu pelo processo de mestiçagem entre os

portugueses, os negros e os indígenas, e a obra Clara dos Anjos foi escrita num

período pós-abolição, em cujo imaginário social vigente prevaleciam às leis

darwinistas sociais. A sociedade dessa época havia eliminado o escravo; no entanto,

a designação para negro e/ou preto ainda era algo que se pautava sob um valor

degenerativo, a ponto de estabelecer a legalidade a favor da ideia de ―vadiagem‖ a

fim de controlar esse sujeito, que não tinha para onde ir – ―o colonizado é obrigado,

para viver a aceitar-se se como colonizado‖ (MEMMI, 1977, p. 84). No entanto,

sabemos que Cassi não é descendente de negro. Contudo, carrega o estigma que é

próprio do negro, pois mesmo não sendo dessa descendência, ele envolve-se com

as negras, e parece extrair disso toda a peculiaridade do sujeito de cor, inclusive a

vadiagem, característica que a sociedade atribui ao negro.

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Já o Cassi Jones de Fera ferida se apresenta da seguinte maneira:

Novela: Fera ferida

Caracterização do sujeito de ficção

Personagem Cor (Etnia)

Ambiente Espaço Participação

Cassi Jones Branco Apresenta ascensão social/ Baixa conduta

moral/Trapaceiro

Cidade de Tubiacanga

Coadjuvante

Quadro 13: Caracterização de Cassi Jones (Novela)

A representação de Cassi Jones é desempenhada por Marcos Winter. O

personagem é um jovem que não gosta de trabalhar, mas é ávido por dinheiro. Ele

parece não ter amor por ninguém, exceto por sua mãe e por ele mesmo. Ao se

envolver com Clara dos Anjos, Cassi mostra seu lado sensível. Contudo, a ganância

do jovem é maior do que qualquer sentimento.

Cassi pertence a uma família renomada da cidade de Tubiacanga. Mesmo

sem posses e/ou dinheiro, continua tendo status, posição que Salustiana acredita

ser imprescindível para a continuidade de uma estirpe.

Esse personagem apresenta o caráter trapaceador (de Cassi), o que pode ser

notado em um dado momento da narrativa, quando ele para em frente à casa de

Clara e começa a rir ao olhar o número da casa da moça,171, e fala: ―- Logo esse

número... é coincidência demais!‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993).

Essa situação deixa subentendido, a partir do número em questão, a forma que

Cassi irá proceder em relação a Clara dos Anjos ao longo da trama, tendo em vista

que o artigo 171, segundo o código penal brasileiro, contido no Decreto Lei nº

2.848/40, implica em: ―Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo

alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer

outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.‖ 21. Cassi irá

21

Cf. Portal Jusbrasil. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/anotada/2333540/art-171-do-codigo-penal-decreto-lei-2848-40>. Acesso em: 23 jan. 2012.

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159

se aproveitar de Clara, conduzirá a jovem ao prazer e depois a abandonará,

mantendo a vantagem da relação havida para si.

6.8 Cassi Jones: análise

Essa última sessão contemplará as FD‘s que dizem respeito a Cassi Jones,

personagem inscrito na obra barretiana e na de Silva, Linhares e Moretzsohn.

Salustiana, mãe de Cassi, como veremos abaixo, apresenta em seu discurso

o ideário estabelecido pela superioridade entre raças, representação estabelecida

pela FD1 – ―A mãe (...) tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho

casado com uma criada preta (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 24).

EUe Narrador:

Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.

A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.

(BARRETO, 1998, p. 24 – destaques meus)

A expressão ―ter presunções fidalgas‖ assume a conotação de nobreza e

pertencimento a uma classe dominante. Tal reprodução por parte de Salustiana, se

apoia em algo que Memmi denomina como complexo de Nero do colonizador, ou o

―papel do usurpador‖ – ao aceitar-se como colonizador, este, assim como o Outro

(colonizado) consentem (mutuamente) que o privilégio e o mérito fazem parte da

essência do colonizador. (MEMMI, 1977, p. 56). Esse lugar social confere o poder ao

colonizador e com ele a opressão sob o colonizado. Nesse âmbito, o colonizador

alardeia suas próprias virtudes, as defende com demasiada obstinação, levando a

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acreditar que estas são dádivas heroicas, e consequentemente, esse é o fado da

fortuna. (MEMMI, 1977, p. 58).

À mãe de Cassi, Salustiana ―(...) repugnava-lhe ver o filho casado com uma

criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca

lavadeira (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 24). A frase em questão demonstra a

discriminação que Salustiana assume ter em relação às pessoas de cor,

direcionando a um conjunto de atitudes que reportam àquilo que se pode dizer a

partir de uma FD1.1.

Esse trecho, ainda, nos mostra o comportamento de Cassi: ―(...) as moças

que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores.‖ (BARRETO,

1998, p. 24). Essa conduta toma como base a discursivização presente na FD1.2,

pois esse sujeito não se importava em ultrajar o Outro, em geral algum desprovido,

para obter vantagens para o seu próprio bem, o que nesse caso se faz sob a ordem

da sexualidade.

Aparentemente, essas moças sonhavam com o grande amor, e claro,

geralmente não tinham ninguém para confortá-las, como se pode observar pelo

enunciado: ―A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de

vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.‖ (BARRETO, 1998, p.

24). A condição de subalternidade da mulher de cor negra, assim como o

desfavorecimento econômico, propicia a Cassi reproduzir o padrão discursivo

proposto pela FD1.2, pois o desamparo dessas jovens e/ou senhoras promove a sua

insegurança.

Tendo em vista, ainda, a FD1.2, posição que atribui a desqualificação das

negras e/ou pobres, permitindo o tratamento preconceituoso no que diz respeito à

sexualidade, trazemos o excerto abaixo, visando corroborar tal atitude enunciada por

Cassi. A construção frasal ―Escolhia bem a vítima‖ aponta para tal ocorrência.

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EUe Narrador:

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

(BARRETO, 1998, p. 35 – destaques meus)

As vítimas de Cassi nascem sob o caráter da marginalização devido à

condição da cor e da falta de recursos, como se nota pela proposição: ―(...) das

pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência

e a reduzida instrução (...)‖ (BARRETO, 1998, p. 35). Sabedor dessas

particularidades sobre as moças com quem se envolve, o comportamento de Cassi

difunde a FD1.2, demonstrada pela ingenuidade de suas vítimas, em contraponto à

sagacidade que este apresenta em seu caráter.

Cassi consuma o seu desejo em relação à mulata Clara, tem-na em seus

braços e, logo após isso, desaparece da vida da jovem deixando-a grávida. Nessa

situação, a FD1.2 se revela, mais uma vez, a partir da seguinte situação promovida

por Cassi: ―Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou

nenhum mal lhe poderiam fazer (...)‖. (BARRETO, 1998, p. 126). É o que

observaremos pelos trechos em realce:

EUe Narrador:

Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela.Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.

(BARRETO, 1998, p. 126 – destaques meus)

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A construção do personagem Cassi revela o caráter desprezível deste: ‖Além

de tudo, era covarde.‖ (BARRETO, 1998, p. 126). Esse sujeito busca mulheres

socialmente desamparadas, pois elas não tinham como denunciá-lo; assim, ele saía

impune de suas obscenidades, pronto para atuar novamente, garantindo seu prazer

e a motivação de sua autoestima, dado que legitima a FD1, assim como, a FD1.2: –

―Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer.‖

(BARRETO, 1998, p. 126). Contudo, Cassi não se atrevia a um envolvimento com

mulheres de uma classe superior à dele, visto que sua intelectualidade não permitia,

pois era ―mal-educado, bronco e analfabeto‖. (BARRETO, 1998, p. 112).

Parece-nos que aquilo que diz respeito ao personagem Cassi envolve a

ignomínia, como se observa no discurso do pai em relação ao jovem: ―Esse biltre

sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper

todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais

aqui, não o quero mais na minha mesa.‖ (BARRETO, 1998, p. 28).

Sendo assim, a partir da composição estrutural para as FD‘s elencadas,

observe seus constituintes:

A FD1 na qual Cassi se enquadra o constitui como um sujeito que se reveste

de superioridade racial. Ele não apenas tem o reconhecimento de seu lugar superior,

como sabe atribuir, com transparência, inferioridade às jovens as quais ele seduz.

Logo, Cassi se expõe sob um contexto que o exalta enquanto um ser social

representante da classe branca.

Entretanto, os dizeres acerca de Cassi nos levam a evidenciar outra formação

discursiva: a FD1.2, cujo teor envolve a discriminação sexual, que pode ser

→ Pré-construído: superioridade branca e inferioridade do negro e/ou pobre

FD

FD1: superioridade / FD1.2: discriminação sexual

→ Interdiscurso:darwinismo social (escravagista)

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explicada por aquele que atribui papeis secundários e subalternos às mulheres de

cor negra, fato que Cassi realiza em toda a trama.

O personagem Cassi Jones, portanto, é exposto a partir de atributos

disfóricos (elementos de valoração negativa), mas, por pertencer a uma classe mais

abastada e ser um sujeito branco dentro de um contexto que promove a

superioridade desse tipo de indivíduo, as conotações negativas a seu respeito

parecem se apagar.

Cassi Jones, de Fera ferida, também é um sujeito de pouco melindre, branco,

representado pelo ator Marcos Winter. Traremos brevemente o contexto pelo qual

Cassi é exposto, no intuito de situar melhor sua aparição na trama em questão.

Cassi retorna a Tubiacanga após sua mãe, Salustiana, desviar o dinheiro de

Demóstenes22 (prefeito dessa cidade e cunhado de Salustiana), para a conta

bancária dela, com o objetivo de pagar a fiança de Cassi. O rapaz e a mãe

venderam oitenta carros importados sem os possuir, dando um golpe fraudulento no

mercado.

Ao chegar à cidade, Cassi e Salustiana se hospedam na casa de

Demóstenes, mas logo arquitetam um plano para que Cassi fique na casa de

Emiliano Cerqueira Bentes, mais conhecido como Major Bentes, representado por

Lima Duarte, para assim lhe roubarem seu ouro. Salustiana diz a Cassi que ele irá

se passar por filho de Emiliano, mas no decorrer da trama o jovem descobre ser filho

legítimo do Major Bentes.

Para Cassi sair da casa de Demóstenes sem levantar maiores suspeitas

sobre o motivo dessa saída, o moço irá se envolver com Clara dos Anjos. Ele faz

isso buscando despertar a fúria de Linda Inês, juntamente com a de seu pai. A filha

de Demóstenes, Linda Inês, representada pela atriz Giulia Gam, tem muito apreço

pela família dos Anjos – a mãe de Clara, Engrácia, trabalha na tecelagem dessa

jovem. Observe:

Salustiana: - Eu vi como a Linda Inês ficou indignada, essa gente daqui é muito apegada aos pobres que os rodeiam... eles pensam que eles são gente

22

O ator que representa Demóstenes é Jose Wilker.

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também... esses camponeses, domésticos.... ahh... quando Demóstenes souber vai querer lhe dar uma lição de moral... vai ser duro... e aí você faz como eu mandei!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

É sob essas reflexões que começamos a entender a postura assumida por

Cassi e daqueles que o rodeiam, membros da sociedade de Tubiacanga. O contexto

evoca a presença da FD1 sob a voz de Salustiana ao dizer: ―(...) é muito apegada

aos pobres que os rodeiam... eles pensam que eles são gente também...‖ (SILVA,

LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Para a mãe de Cassi, ser pobre e/ou negro é

um fardo para o ser, ou melhor, torna-o não-humano.

Em um momento da trama, Cassi discute com a mãe sobre os

relacionamentos dela, e essa diz:

Salustiana: - Não seja hipócrita, Cassi Jones! Você não anda por aí com suas mulatinhas, pobres, suas vagabundinhas de beira de estrada... Não faz com essas bugras o que você bem entende? Alguma vez eu me meti? Dei palpite... te condenei? Então?

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha)

Salustiana, mais uma vez, admite seu preconceito de cor a partir da fala:

―Você não anda por aí com suas mulatinhas, pobres, suas vagabundinhas de beira

de estrada... Não faz com essas bugras, o que você bem entende? Alguma vez eu

me meti? (...)‖ (SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). Tal situação pressupõe

o descaso que Cassi demonstra ter com as mocinhas de cor com as quais se

envolve, evidenciando a FD1.2.

Sob essa questão, recordemo-nos que a preferência pela mulher negra no

imaginário brasileiro se constrói a partir do Brasil escravocrata, momento de

rigorosas proibições morais para a união interracial. Ela é uma forma de manter a

estabilidade do grupo dominante e favorecer o comércio sexual entre brancos e

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escravas. Coisifica-se a negra e a torna meio de fomento sexual entre jovens

rapazes do engenho, preservando assim a sexualidade das mulheres brancas.

(PRAVAZ, 2003). A concupiscência pela negra e/ou mulata, como se pode observar,

tornou-se uma apropriação consentida entre a classe dominante brasileira.

A família de Clara, nesse ínterim, descobre que ela se envolveu com Cassi,

como mencionado no subtítulo 6.2 ―Clara dos Anjos: análise‖, do capítulo 6. A mãe

da jovem, Engrácia, vai à procura do rapaz e o encontra na casa de Major Bentes,

observe:

Cassi: - O que é isso? Como é que você entrou aqui? Posso saber? Quem deu ordem pra você entrar aqui? ANIMAL!

((Cassi grita por Animal – o fiel escudeiro do Major Bentes, uma espécie de ―faz tudo‖))

Engrácia: - Ele não está! Eu fiquei lá fora vigiando para ter certeza que você estava sozinho. O que eu tenho pra te dizer é degradante demais! E acho que você não vai gostar de ter testemunhas...

Cassi: - Animal!

Engrácia: - Não adianta tentar escapulir. Você vai ouvir tudo que eu tenho pra te dizer... aqui ou lá na praça... tanto faz é só escolher... Eu vim aqui pra dizer tudo o que eu penso... você é ordinário, safado e desprezível!

Cassi: - Um momento! Um momento só! Se você veio até aqui pra falar da sua filha...

Engrácia: - Eu não vim aqui pra fala da Clara... ela foi apenas mais uma de suas vitimas! Eu vim aqui pra falar de sua vida! O que é que você faz rapaz? O que é que você constrói?

Cassi: - Olha aqui minha senhora...

Engrácia: - Não! Não responda! Não perca o seu tempo... você não faz nada! Álias! Álias você faz sim! Você espalha tudo de ruim que tem dentro de você por aí! Desonra, indecência, desonestidade e maldade! Você por acaso acha que isso faz de você homem? Não faz!? Isso faz de você o pior dos covardes porque suas vítimas são indefesas demais... são inocentes demais e decentes demais até pra descobrir o que tá por

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trás desse rosto seu bonitinho! A sorte é que um miserável como você não se contenta só com crime... e uma dia, você vai perder muito mais do que minha filha perdeu, do que tanta outras perderam! E eu vou ficar rezando... rezando sabe pra que? Pra você ter remorso! E pra esse remorso consumir sua paz o seu corpo e a sua vida! Essa vai ser a sua expiação! E você nem imagina quanto sofrimento isso vai lhe trazer!

Cassi: - A Clarinha...

Engrácia: - Você cala essa boca! E não pronuncia o nome da minha filha! Você pode ter tirado a pureza dela... a pureza do corpo dela, mas a alma dela... a alma dela continua casta e sem maldade! E a santa... a santa olha por ela! OLHA POR ELA e vai dar a ela um dia... um amor de verdade... um amor que vai fazer a minha filha esquecer essa imundície toda que foi ter conhecido você!

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993. Transcrição minha – destaques meus)

O personagem Cassi é construído a partir de certos emblemas desprezíveis

para a conduta humana e o dizer de Engrácia reitera isso: ―Isso faz de você o pior

dos covardes porque suas vítimas são indefesas demais... são inocentes demais e

decentes demais até pra descobrir o que tá por trás desse rosto seu bonitinho!‖

(SILVA, LINHARES e MORETZSOHN, 1993). A fala de Engrácia confirma o padrão

de comportamento de Cassi, determinado pela FD1.2, como já mostramos em outros

momentos. Suas atitudes se desenvolvem sobre o padrão dessa formação

discursiva, validando a intolerância e o abuso entre etnias diferentes, sobretudo em

relação às mulheres.

Nota-se, desde logo, que a exteriorização discursiva que envolve a

enunciação do personagem se faz através da superioridade social, ou seja, a FD1 e

suas ramificações FD1.1 e a FD1.2. Esse sujeito abusa da condição submissa de

Clara, a seduz e a abandona, já que Cassi vai embora de Tubiacanga com parte da

fortuna de Major Bentes, que ele subtrai de maneira fraudulenta.

Estruturalmente, as FDs que envolvem o comportamento de Cassi se

constituem a partir dos seguintes elementos:

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→ Pré-construído: superioridade branca e inferioridade do negro e/ou pobre

FD

FD1: superioridade / FD1.2: discriminação sexual

→ Interdiscurso: darwinista social, escravagista

Nesse jogo linguageiro, percebe-se que a ideologia da superioridade branca

ainda permeia o discurso vigente da atualidade retratada pelo contexto

telenovelístico, sendo ainda evidente o abuso contra as pessoas de cor e pobres.

O Cassi Jones construído por Lima Barreto buscava mulheres socialmente

desfavorecidas, frágeis, justamente por saber que elas não iriam puni-lo, tampouco a

sociedade, que acabava por ser conivente com seus atos, devido à sua condição

social. O personagem de Fera ferida também desfruta desses privilégios. O estigma

social da pobreza e da cor ainda vigora em ambas as tramas, a contemporaneidade

não apagou o sentimento negativo face aos negros.

A adaptação da obra barretiana para a novela de Aguinaldo Silva e outros

deveria/poderia subverter aquilo que foi dado como um retrato de época no

romance, tendo em vista que a telenovela, como produção cultural de massa, é

capaz de controlar, em determinados horários, as emoções, entre outras questões

relevantes para a vida social de milhares de telespectadores (MOTTER, 2003).

Diante disso, temas sociais recorrentes na sociedade brasileira, como racismo,

alcoolismo, droga etc., teriam a possibilidade de um tratamento não estereotipado

por parte desse gênero.

Motter, em seus estudos, traz a hipótese de que ―(...) a telenovela não é

neutra, alienada ou engajada enquanto gênero. Ela será uma coisa ou outra,

dependendo das propostas do autor, da emissora e do segmento de público

considerado.‖ (MOTTER, 2003, p. 34). Se assim fosse, teríamos um instrumento

comunicacional agindo de modo implacável na realidade brasileira, podendo ser um

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meio de intervenção poderoso para certos temas sociais, mas claro, se esse veículo

não tendesse a certos jogos de poder, e ainda, se mostrasse em suas tramas

telenovelísticas abordagens que favorecessem o debate e/ou desenvolvessem o

pensamento crítico acerca dos contextos delicados com os quais vivemos

socialmente, como alguns já mencionados.

No entanto, não é isso que acontece, nas narrativas de telenovelas;

geralmente, tratam insatisfatoriamente as temáticas sociais a que se propõem, como

a racialidade presente em Fera ferida, fato que nos leva a reiterar a difusão do

racismo velado no Brasil. Mas, sob esse aspecto, lembremos que a função social da

telenovela não é combater certos problemas sociais, ou mesmo educar; o

entretimento é seu objetivo principal.

6.9 Entrelaçamentos discursivos

Diante dessas tramas, seguidamente da temática eleita para tal estudo, a

racialidade, apreende-se que determinadas classes sociais acreditam em sua

superioridade, instaurando então certas crenças de que alguns nascem para

dominar, enquanto outros vêm ao mundo para servir. Nesse sentido, esse contexto

apresenta a histórica supremacia ideológica do sujeito branco em contraposição à

do negro.

Sob essa perspectiva, a personagem Clara dos Anjos, de Lima Barreto, é

reconhecidamente o estereótipo da mulata, pobre, com pouco estudo e sonhadora.

Já a Clara, de Aguinaldo Silva e coautores continua a se entregar a seus

devaneios. É mulata, mas não é tida como ignorante, afinal, estudou em colégio

interno; no entanto, é alheia às coisas do mundo. Observa-se, por esses contextos,

que a contemporaneidade contribuiu para a ascensão feminina, mas não para o

rompimento da discriminação para com a mulata.

Essa concepção preconceituosa se apoia em saberes coletivos advindos de

um tempo retrógrado, como se pode observar pelos estudos de Schwarcz:

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Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação [a concepção Poligenista do século XIX, cuja crença preconizava a existência de distintos centros de criação, estabelecendo as diferenças físicas e morais dos indivíduos], a diferença fundamental entre-as raças e personificavam a ―degeneração‖ que poderia advir do cruzamento de ―espécies diversas‖. Com respeito a essa noção, conviviam, inclusive, argumentos variados. Enquanto Broca defendia a ideia de que o mestiço, à semelhança da mula, não era fértil, teóricos deterministas como Gobineau e Le Bon advogavam interpretações opostas, lastimando a extrema fertilidade dessas populações que herdavam sempre as características mais negativas das raças em cruzamento. (SCHWARCZ, 1993, 56 – destaques da autora).

O mestiço, nessa instância, representa a degeneração social, sendo colocado

numa posição de objeto e/ou coisa, como no caso de Clara, um objeto sexual.

A mulher brasileira, no contexto da obra de Lima Barreto, é a encarnação da

submissão. A construção da personagem Engrácia legitima essa realidade e

demonstra o assujeitamento do discurso masculino sobre o feminino.

De maneira divergente, a mulher revelada por Aguinaldo Silva e coautores se

projeta rumo a novos posicionamentos sociais, a exemplo de Clara, tendo uma

educação formal. Já Engrácia trabalhava fora de casa, estava à frente de uma

irmandade, buscando legitimar/resgatar suas raízes, mesmo que de maneira

arbitrária e solitária, pois a irmandade apresentava regras muito rígidas: só

aceitavam a participação de negros e/ou seus descendentes. Isso parece gerar um

desconforto, fazendo que outros sujeitos de ficção discriminem esse grupo, até

mesmo o telespectador que assistiu a tal fato.

A condição do homem mostrada em Clara dos Anjos é a da soberania. O

branco se projetava como dominador, a exemplo Cassi Jones; já o negro, mesmo

com toda sua subalternidade, enquanto dono de seu lar era tido como altivo, ditando

as regras para a sua família, como mostrado pelo contexto apresentado por Joaquim

dos Anjos.

Em Fera ferida, a supremacia masculina fica aquém. Joaquim se revela de

forma resignada; contudo, Cassi ainda se mantém superior, mas não pela virilidade

de homem, e sim, por sua ascensão social.

Diante de todas essas menções, podemos dizer que a nossa projeção

analítica, de certa forma, pode acontecer devido à possibilidade interdiscursiva,

levando em consideração os campos externos discursivos.

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170

Nesse sentido, a noção de formação social, que converge para uma formação

ideológica e discursiva, nos levou a padrões discursivos materializados sob a

dissimulação da transparência da linguagem literária e telenovelística. E essa

possibilidade surgiu através da instituição de certos poderes, como a mídia, o estado

etc., que, por sua vez, determinam como o sujeito pode e deve atuar na sociedade.

Logo, a formação discursiva garantiu o lugar discursivo e sua forma-sujeito em suas

diversas posições-sujeito constituindo o funcionamento do discurso, além de nos

conduzir para a apreensão de certos sentidos e não outros. De forma estrutural,

adaptamos o quadro de Grigoletto (2005), tendo em vista essas considerações.

Observe:

FORMAÇÃO SOCIAL FORMAÇÃO DISCURSIVA

E

S

P

A

Ç

O

H

I

S

T

Ó

R

I

C

O

Formações ideológicas

Racista, Machista, Patriarcal...

Relações de poder institucionais

Literatura/Telenovela

Estado, Igreja, Mídia, (...)

Lugar social

Trabalho, Escola, Casa,(...)

E

S

P

A

Ç

O

D

I

S

C

U

R

S

I

V

O

Forma-sujeito

Carteiro, Doméstica, Do lar,

Burguês, Prefeito, Delegado, (...)

Processo Discursivo

Sistema de relações

(representações interdiscursivas)

Posições-sujeito

Personagens

Eu Superior/ Tu Inferior/

Ele preconceituoso e/ou

imparcial/inexistente

Quadro 14: Formação Social e Discursiva – Adaptação do quadro de Grigoletto (2005).

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171

No quadro acima, na dimensão do espaço histórico, percebe-se que a

formação social converge para certas formações ideológicas como o racismo, o

machismo, o patriarcalismo etc. Essas ideologias se fundam sob determinadas

relações de poder e se institucionalizam por meio dos veículos comunicacionais que,

nessa pesquisa, se revelam pela literatura e mídia televisiva. Assim, esses meios de

comunicação se inserem num lugar social que irá determinar a posição do sujeito na

sociedade a qual vive.

O espaço discursivo traduz a formação discursiva em que o sujeito se

inscreve, pressuposto por sua filiação discursiva e ideológica. Nesse momento, entra

em jogo o processo discursivo através de seu sistema de relação intradiscursivo e

interdiscursivo revelando as posições que o sujeito irá assumir, nesse caso,

especificamente, a condição de superioridade ou inferioridade racial, revelado pela

temática racial privilegiada pelos objetos em questão.

Destarte, as narrativas apresentadas nos permitem apreender a existência de

situações preconceituosas vividas pelos personagens eleitos nesse estudo. A

ideologia preconizadora, nesses contextos, retrata uma sociedade cujo coletivo

ainda mantém a prerrogativa inferiorizante em relação ao negro. A trama

contemporânea deveria reler essas questões, buscando desmitificar e/ou explicar o

motivo para tal racialização. Porém, a nosso ver, o tempo apenas descaracterizou a

contundência racial, estabelecendo a cordialidade com o outro de cor.

A linguagem aqui apresentada reproduz e difunde as relações de preconceito

com o negro/mulato/mestiço, ocorrendo apenas um ajustamento temporal e

circunstancial acerca do papel marginal desses sujeitos no contexto social. As

épocas mudam, mas o pensamento retrógado acerca das diferenças humanas, não.

Nesse sentido, percebe-se que ambas as narrativas expressam, em seus

contextos, uma divisão na linguagem, no sentido barthesiano:

É tempo de dar nome a essas linguagens sociais recortadas na massa idiomática e cuja estanqueidade, por mais que tenhamos sentido, de início, como existencial, acompanha, através de todas as trocas, todos os matizes e complicações que é licito conceber, a divisão e a oposição das classes; chamemos essas linguagens de socioletos (...) (BARTHES, 2004, p. 125).

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172

O autor explica que o campo socioletal se estabelece por meio da divisão, por

uma separação ―inexpiável‖, sendo que nesse âmbito deve ocorrer a

análise/pesquisa. (BARTHES, 2004, p. 126). Segundo Barthes, o trabalho com o

socioleto dispõe de um processo avaliativo, que desde embrião, se faz sob o conflito

dos grupos e das linguagens, pois ao confrontar esses aspectos o analista entende

que existe uma dualidade constituída através ―da contradição social e da fratura do

sujeito sábio‖ (―sujeito suposto saber‖ segundo os termos lacanianos) (BARTHES,

2004, p. 126)

Assim, para descrever cientificamente as linguagens sociais (socioletos), há

que se fazer uma ―avaliação política fundadora‖ (BARTHES, 2004, p. 127 –

destaque do autor), que se estabelece a partir de dois grupos socioletais: os

discursos ―no poder‖, considerados pelo autor como aqueles que se constituem à

―sombra‖ do poder – os discursos encráticos; e outros que ocorrem ―fora do poder‖,

nos quais o poder torna-se inexistente – os discursos acráticos. (BARTHES, 2004,

p. 127).

Para Barthes na atualidade, as sociedades se estabelecem pela ―divisão mais

simples da linguagem‖ que ―diz respeito à sua relação com o poder‖ (BARTHES,

2004, p. 135). Apropriando-nos de tal postulado, podemos traduzi-lo nessa instância

pelas FD‘s analisadas em nossa proposta de análise, a partir do contraste que estas

apresentam – FD1 e FD2, representado respectivamente pela linguagem encrática e

a linguagem acrática.

A FD1 de superioridade racial se enuncia sob a marca do poder, tendo como

instrumento transmissor o movimento da literatura e da mídia telenovelística,

denotando o discurso encrático. Já, a FD2, que surge na contramão discursiva, pois

se constitui fora do poder, pode ser demonstrada pelo discurso acrático, assumido

pelos grupos discriminados, ou a eles imposto. O discurso encrático, designado por

nós, nesse momento, como a FD1, ―age por opressão‖ (BARTHES, 2004, p. 130), e

nesse estudo perpetua a soberania do branco sobre os homens de cor. A linguagem

acrática opera pela ―sujeição‖ (BARTHES, 2004, p. 130), representada aqui pela

FD2. Esse discurso se destina a ―constranger‖ o outro, emergindo daí, por exemplo,

os estereótipos em relação ao negro.

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173

Um socioleto, de acordo com Barthes (2004, p. 131), não apresenta o teor de

intimidar somente o que dele se exclui (social e/ou culturalmente), ele coage

também aqueles que o partilham, fato que para nós se assemelha à referência de

interpelação/assujeitamento. Segundo o conceito de FD,

(...) os indivíduos são ―interpelados‖ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ―na linguagem‖ as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (PÊCHEUX, 1997, p. 162 – destaques do autor).

Estruturalmente, o socioleto, no âmbito discursivo, comporta ―rubricas

obrigatórias‖ que, segundo Barthes, são maneiras estigmatizadas pelas quais ―a

clientela do socioleto não pode falar (não pode pensar)‖. (BARTHES, 2004, p. 131).

Nesse sentido, ele tem uma perspectiva de língua que se constituiu não por aquilo

que lhe é permitido dizer, mas por aquilo que nos obrigam a dizer: ―Em outras

palavras, como toda língua, o socioleto implica o que Chomsky chama de

―competência‖, em cujo seio de variações de ―performance‖ tornam-se

estruturalmente insignificantes (...)‖ (BARTHES, 2004, p. 132 – destaques do autor).

Entendemos, sob essa perspectiva, que há uma linguagem sem/fora do poder

(FD2, discurso acrático) e aquela do poder (FD1, discurso encrático), surgido através

das relações intersubjetivas, implicando na construção positiva ou negativa acerca

das identidades, posicionamentos sociais e, até mesmo, sobre a noção de verdade,

ou de certo e errado, que se estabelecem sob o que pode e/ou aquilo que se será

dito sobre o negro no Brasil.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta tese, no que diz respeito a racialidade, as determinações de ordem

histórica apresentada pela obra de Lima Barreto inter-relacionam com as ideologias

presentes no contexto vivido pelo autor e, obviamente, em sua criação Clara dos

Anjos. No que concerne a releitura da narrativa barretiana pela telenovela,

constatamos que isso não acontece na mesma proporção, essa mídia reproduz

ideologias necessárias a ela em dado momento; as condições socioideológicas que

são reproduzidos nesse contexto, não se colocam a serviço de nenhuma causa,

podemos dizer que a telenovela, assim como outros formatos televisivos ―(...) será o

que quer ser, se conseguir se vender extraordinariamente‖. (SANTIAGO, 2008, p.

121).

Sob essa perspectiva a autoria de Barreto o eleva a uma condição de

autenticidade acerca da crítica histórica e cultural brasileira, afinal, ele não se dobra

ao arranjo das relações dominantes, e escreve com maestria acerca dos problemas

sociais e raciais brasileiros, fato que fica muito aquém na mídia televisiva.

No que se refere a literatura, entendemos que o envolvimento com esta se

torna pertinente e importante na construção do intelecto humano na medida em que

nos mostra as faces do desconhecido (algo passado, um possível futuro, ou outro

estado de coisas) através de sua relação ficção e realidade efetiva do leitor. Esse é

um processo que pode ser transformador na vida do indivíduo. Além disso, com sua

capacidade atemporal, a linguagem literária fornece elementos para entendermos as

construções históricas, sociais e culturais da humanidade, podendo, por exemplo, a

(re)criar arquétipo cultural de determinado tempo. A fim de corroborar esse

pensamento tomamos a reflexão de Silviano Santiago:

(...) a literatura oferece uma outra e alternativa compreensão da atualidade, buscando formas de conhecimento que escapam ao campo epistemológico comum aos seus contemporâneos. A obra literária começa a se realizar ao apontar para futuros leitores que tentarão – do patamar histórico onde estiverem – conhecer os alicerces desse patamar. (...) Todo texto literário, por mais alheio que seja aos valores do passado, movimenta direta ou indiretamente formas de tradição que são o palco onde se desenrolam os acontecimentos presentes que real e virtualmente se representam no temo anacrônico e no passado atópico da escrita. (SANTIAGO, 2008, p. 121-122).

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175

A óptica da ordem do intelecto, da história e ou outra fonte pedagógica, não é,

necessariamente, algo com o que a telenovela se comprometa; ela apresenta uma

função social própria do divertimento. Nesse sentido, em seu jogo intertextual, a

trama Fera ferida destitui a obra de Barreto de seu principal elemento axiológico – a

racialidade.

A perda de valor de culto de uma obra de arte, ao mesmo tempo em que dessacraliza, torna-a alheia à sua inscrição na tradição, ou seja, a perda de um lugar onde ela era te(le)ologicamente objeto de ritual. A obra de arte no momento em que passa a ser produzida tecnicamente perde algo, mas ganha, como consequência, os infinitos lugares e contextos da sua reprodução. E se perde o valor culto, também se refuncionaliza passando a ter uma práxis social leiga (...). (SANTIAGO, 2008, p. 114).

A narrativa barretiana constrói uma tese acerca da vida do negro, do pobre

e/ou sujeito periférico. Ainda crítica os costumes, observem como o autor mostra o

destino das mulheres de cor: ―(...) observou a atmosfera de corrupção que cerca as

raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que

se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas;‖ (BARRETO, 1998,

p. 42), ou dos que vivem no subúrbio e enfrentam a mudanças dos valores sociais

burgueses republicanos pelo qual transcorria a vida cotidiana – ―Mais ou menos é

assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o

deixam.‖ (BARRETO, 1998, p. 74). Nesse contexto, por exemplo, a mulher nasceu

para ser do lar. Assim, a literatura de Barreto de certa forma questiona e/ou mostra

as versões ―politicamente simplificadas de nacionalidade‖ (SANTIAGO, 2008, p.

177).

Já a telenovela não apresenta tal fato, ela joga com o assunto que lhe

interessa, no tempo e momento que são pertinentes, como o modismo que pode

tornar atraente o merchandising telenovelístico. Na época de Fera ferida a imagem

feminina remete a um contexto liberal, mostrando a mulher que trabalha fora,

independente, auto-suficiente etc. E pode comandar uma irmandade, como a

releitura que Aguinaldo e coautores propõem para a personagem Engrácia. Essa

personagem da atualidade não é submissa como a na versão barretiana, ela se

constrói exatamente de forma oposta, no entanto, quando se relaciona com os

brancos, a personagem retoma sua condição negra, pois alguns a discriminam,

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176

como Salustiana, e ela não o direito a réplica, tanto que será Engrácia e não Clara23

que dirá ―a gente não vale nada nessa vida!‖. Com tal assertiva a personagem

assinala seu destino e reforça o racismo imposto pela época colonial.

Os personagens barretianos aqui analisados fazem parte de um Brasil pós-

escravidão, e como mestiços e/ou descendentes africanos esses são tidos como

parias sociais. Na modernidade de Aguinaldo Silva e coautores vemos o

deslocamento das estruturas tradicionais modernas, a nação hoje se preocupa, não

com a cultura indígena, ou mestiça, mas com a cultura do rico, do pobre assalariado,

da burguesia etc. Sobre isso, Harris comenta que no Brasil não se discrimina um

brasileiro somente por sua cor. Segundo o autor, branco ou negro, sendo rico, com

boa educação, tem um lugar diferenciado na sociedade. Agora, se esse sujeito é

pobre, seja branco ou preto, sem educação, ele não é nada, está à margem do que

as instituições sociais preconizam como ideal.

O produto desta qualificação pela educação e pelos recursos financeiros determina a identidade de classe de alguém. É a classe e não a raça de uma pessoa que determina a adoção de atitudes subordinadas ou superordinadas entre indivíduos específicos, em relações face a face. Não há grupos raciais contra os quais ocorra discriminação. Há, ao contrário, grupos de classe. A cor é um dos critérios da identidade de classe; mas não é o único critério (HARRIS, 1967, p. 61).

Tal posicionamento conceberá o racismo atual em outra perspectiva, no

Brasil, por exemplo, sob o tom da cordialidade conjugado ao perfil sociofinanceiro do

indivíduo e o seu tom de pele, quanto mais branco, menos discriminação.

Ao discorrermos sobre o campo interacional, observamos que as máximas

discursivas acerca da racialização não permitem ao negro o direito a uma réplica,

ele não consegue negociar em prol de sua legitimidade, a sua imagem está sempre

ameaçada por um conjunto de aspectos que o coloca no patamar da iniquidade.

A priori, acreditamos que uma interação regida por contratos comunicacionais

deveria neutralizar qualquer tipo de conflito racial. Tendo em vista que o contrato,

segundo Mendes (2006, p. 242) ―constitui uma forma de regulação de conflitos em

função de um esforço de comunicabilidade e de preservação das divergências‖. O

23

Na obra barretiana será Clara dos Anjos que dirá: ―Nós não somos nada nesta vida!‖

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177

que se percebe nos objetos, a princípio, não é bem isso. A racialização presente

nesses contextos parece emergir a partir de (pre)conceitos que não são construídos

na interação, mas talvez, no campo ideológico, pois as premissas existentes sobre o

negro advêm de uma formação social e/ou de um espaço cultural específico,

endossado como vimos pelo ideário científico de 1800/1900. ―Quer como Louis

Althusser, digamos que somos culturalmente interpelados‖ (CULLER, 1999, p. 114),

isto é, por mais que o sujeito não queira reproduzir um estado de coisas, ele ainda

carrega uma memória discursiva produto do seu território social, cultural e histórico.

A fim de corroborar tal perspectiva Mendes explica que

(...) nenhum falante enuncia apenas em razão da sua própria individualidade, mas, sobretudo em função do lugar social que o determina, assim como nenhum ouvinte interpreta somente a partir de sua própria consciência individual, mas antes em razão de uma intencionalidade socializada. A dimensão histórica do vivido implica uma certa fragmentação da identidade do sujeito, cujo desdobramento configura um conjunto múltiplo de lugares enunciativo e de representações sociais que se relacionam, se contaminam e se contradizem. (MENDES, 2006, p. 271).

A ideologia racial alimenta uma formação discursa de tal caráter, e no Brasil,

essa rede de relações racializantes ainda acontece, não só na ficção, mas também

na realidade como as mortes de jovens negros, reportagem veiculada pelo Jornal

Hoje24 em 2012, a partir do levantamento realizado pela Secretaria de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em Brasília, mostrado pelo ―Mapa da Violência

- A cor dos homicídios‖ que expõe a diferença entre negros e brancos assassinados no

Brasil entre 2002 e 2010. E também, pela revista Trip25, que em abril de 2014 publicou:

―Não existe nada mais perigoso do que ser um jovem negro no Brasil – dos 52.198

mortos por homicídio em 2011 no país mais da metade eram jovens, 71,5% eram

negros e 93% eram homens.‖ Essas informações foram divulgadas pelo Sistema de

Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. Além disso, o mundo

presenciou o caso da banana jogada em um campo de futebol europeu para o

jogador brasileiro Daniel Alves. Segundo informações da Revista Veja: ―aquele era o

24 Cfe. Portal G1.GLOBO. http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2012/11/quase-35-mil-jovens-negros-foram-mortos-no-brasil-entre-2002-e-2010.html>. Acesso em: 14 mar. 2014. 25

Cfe. Portal Trip. <http://revistatrip.uol.com.br/revista/231/especial/ser-um-jovem-negro.html>. Acesso em: 04 mai. 2014.

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oitavo caso de racismo nos gramados espanhóis somente na temporada‖. (GAMA,

2014, p. 85).

E o interessante é que o discurso preconceituoso mantém o mesmo status

quo do início do século, ―a mulatinha‖, ―as mocinhas de cor‖, ―o macaco‖, entre

outros termos são utilizados desde outrora, mas soam com naturalidade na era

global. Hoje nos situamos num contexto de (pós)modernidade, mas com os

problemas que ainda temos a respeito de raça, por exemplo, vemos que na verdade,

não superamos as adversidades do colonialismo.

Na atualidade, encontramos paradigmas que deveriam colocar os sujeitos em

um patamar de igualdade, mas isso não acontece, a ideia do multiculturalismo de

uma comunidade imaginada isenta a classe dominante das exigências sociais

políticas e culturais que ―transbordam do círculo estreito da nacionalidade

econômica‖. (SANTIAGO, 2008, p. 57). Essa perspectiva, infelizmente subverte o

que se propõe para uma nação, e mantém o indivíduo numa situação de

interpelação pelo que delineia ser o multicultural, quer dizer, há nesse contexto uma

espécie de assujeitamento daquele que é de cor, imigrante pelo que prega esse

―pseudo-multiculturalismo‖ sobre aquilo que querem para a nação.

As diferenças étnicas, linguísticas religiosas e econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro foram escamoteadas a favor de um todo nacional íntegro, patriarcal e fraterno, republicano e disciplinado, aparentemente coeso, e às vezes democrático. (SANTIAGO, 2008, p. 57).

Se quisermos fazer a diferença para atenuar o racismo simbólico ou

discursivo, temos que começar a refletir sobre nosso processo histórico para

desmistificar a questão das diferenças, e pensar que ―o poder do nível ideológico se

elabora e se reforça à medida do desenvolvimento da luta, das manobras do

adversário, das vitórias e dos reverses‖. (FANON, 2005, p. 170). Novamente,

apropriaremos do dizer de Fanon para mostrar que as mudanças podem ocorrer,

mas ―só o engajamento maciço dos homens e das mulheres em tarefas esclarecidas

e fecundas dá conteúdo e densidade a uma consciência‖. (FANON, 2005, p. 234).

Talvez, com esses esclarecimentos possamos aceitar o multifacetado e suas

divergências, buscando uma convergência para a nação.

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Page 189: AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE … · RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão acerca dos conflitos raciais presentes no romance Clara dos Anjos, do escritor

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ANEXO

Fonte: Preti (2000).