Upload
phambao
View
217
Download
0
Embed Size (px)
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NAS QUESTÕES DE CIÊNCIAS DA NATUREZA
DO ENEM 2015
Viviana da Cruz Vicente 1
Gustavo Isaac Killner 2
Resumo: A gênese deste estudo está na análise realizada a partir do Exame Nacional do Ensino Médio 2015 (ENEM).
Por intermédio das questões de Ciências da Natureza do referido exame, foi possível verificar como é abordada a
representação de gênero em relação às profissões. Os resultados iniciais indicam que o ENEM se estrutura numa
concepção binária e opressora, na qual a concepção de gênero se restringe a homens e mulheres. A mulher, quando não
é invisibilizada, constantemente carrega a influência dos pensamentos patriarcais reforçados por Rousseau e Hegel,
segundo os quais elas devem ser educadas para casar, ter filhos e também para ser subordinadas aos homens. Em suma,
não devem trabalhar em ambientes externos ao lar e muito menos discordar de uma decisão masculina. No século atual,
por exemplo, o estereótipo de que os indivíduos possuem papéis a serem ocupados na sociedade parecem ainda ter
vestígios desse pensamento, embora a inserção no mercado de trabalho tenha ocorrido para elas. Com os estudos
curriculares (em específico o surgimento das teorias pós-críticas), transformações no método de como e o que ensinar
passaram a corroborar com discussões acerca das desigualdades de gênero, raciais e culturais, entre outras. A partir
desta pesquisa documental e bibliográfica, esperamos que o presente trabalho motive pesquisadores (as) a prosseguir
estudos na área de gênero, ciência e currículo.
Palavras-chave: Ciências da Natureza. Gênero. Currículo.
Introdução
A partir da década de 70, após as discussões acerca da perspectiva crítica de currículo,
emergiu nos Estados Unidos uma forma inédita de pensar o desenvolvimento dos conteúdos
escolares: a concepção pós-crítica (Silva, 1999, p. 111). Esta, com grande influência do pós-
modernismo, pós-estruturalismo e pós-colonialismo contribuiu para que a sociedade refletisse em
torno das desigualdades de gênero, raça, etnia, cultura e outros temas que se posicionassem contra
os estereótipos.
Sob o viés da pedagogia pós crítica, com o desenvolvimento das novas formas de produção,
a globalização trouxe à tona a pluralidade cultural e os currículos tiveram que ser repensados de
acordo com as novas demandas (Sacristán, 2007, p. 27-8). Esperava-se, assim, que os materiais
didáticos e avaliações escolares, internas e externas, incorporassem o multiculturalismo e também
as discussões sobre as concepções de gênero.
Em particular a respeito das investigações associadas ao tema gênero, elas ampliaram o
conceito de diversidade sexual e ajudaram a identificar novas formas de identidade de gênero. Além
1 Mestranda em Ensino de Ciências no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo,
Brasil. 2 Professor Doutor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, Brasil.
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
da tradicional representação binária, na qual a sociedade divide as pessoas apenas em duas
categorias (homens e mulheres) e determina para elas papeis sociais bem definidos, em geral numa
perspectiva chauvinista, as novas concepções de gênero incluem transexuais, travestis,
crossdressers, transgêneros, cisgêneros e entre outras (São Paulo, 2014, p. 15-16). Apesar disto,
reconhecimento de novas identidades, esta análise das questões do ENEM foi elaborada a partir da
descrição binária. Silveira destaca que o binarismo (composto apenas pelos gêneros masculinos e
femininos) constitui o padrão dominante para normatizar um modelo de comportamento de base
religiosa, científica, educativa, jurídica e política, segundo o qual homens e mulheres deveriam se
pautar (Silveira, 2008, p. 48).
O filósofo francês Rosseau (1712-1778), que viveu no século das Luzes (iluminismo) e se
dedicou à pesquisa sobre a origem das desigualdades, destacou a existência de dois elementos
(relacionados às diferenças) que foram estudados: o natural (que consiste em pesquisar aspectos
associados com a idade, saúde, forças do corpo e qualidades de espírito) e o outro moral (que é
autorizado pelo consentimento dos homens). Ao considerar que a figura feminina tem um modelo
de conduta que deve ser seguido, e que é reforçado pelos homens, Rosseau fez a seguinte afirmação
sobre a figura feminina:
Da boa constituição das mães depende inicialmente a dos filhos; do seio das mulheres
depende a primeira educação dos homens; das mulheres dependem ainda os costumes
destes, suas paixões, seus gostos, seus prazeres, e até sua felicidade. (...) Serem úteis, serem
agradáveis a eles e honradas, educá-los jovens, cuidar deles grandes, aconselhá-los,
consolá- los, tornar-lhes a vida mais agradável e doce; eis os deveres das mulheres em
todos os tempos e o que devemos lhes ensinar já na sua infância (ROSSEAU, 2004, p.433).
Esse pensamento, associado às ações que dele decorrem, naturalizam o papel subserviente
da mulher, que foi e ainda vem sendo fortemente moldada apenas para ser mãe e esposa
(Rosemberg, 1994, p. 27-62). Contudo, o questionamento do papel “natural” delas na sociedade,
promovido principalmente pelos movimentos feminista e GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e
Transexuais), incorporou elementos que contemplam as desigualdades de oportunidades dadas aos
homens, às mulheres e aos demais gêneros sexuais (Saffioti,2001, p.157-163).
Em particular, a partir dos problemas enfrentados pelas mulheres tanto nos estudos quanto
no mercado profissional, as feministas realizaram reinvindicações sobre os conteúdos que eram
ministrados nas escolas (que, segundo elas, eram diferenciados conforme os gêneros) e também das
possíveis consequências que a ausência destes proporcionariam no acesso a algumas carreiras.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A intensificação da diversidade sexual no cenário escolar ganhou novos contornos a partir
da década de 80, quando a pós-modernidade possibilitou conquistas aos questionamentos femininos
e o avanço nas concepções de gênero (Buttler, 1999, p.11-28). Entretanto, como aponta Stearns, as
vitórias construídas não reduziram o preconceito de gênero e muito menos eliminaram a concepção
de que existem papéis sexuais determinados conforme os sexos (Stearns, 2007, p. 250).
Nesse mesmo período, a reorganização do mundo do trabalho e a globalização das formas de
produção, consumo e controle de qualidade, levaram à adoção de padrões externos de avaliação
escolar e impuseram a criação de um “Estado Avaliador” (Afonso, 2000, p. 49). Esse foi capaz de
produzir um sistema nacional de avaliação do rendimento escolar que, no Brasil, consubstanciou-se
na Prova Brasil, no extinto Provão (atual ENADE) e no ENEM (Exame Nacional do Ensino
Médio), objeto desta pesquisa. A versão inicial desse exame, mais ligada às habilidades e
competências, foi produzida em 1998 e persistiu até 2008. Entretanto, a partir de 2009 um novo
formato foi criado, mais conteudista e menos abstrato, que tem vigorado até os dias atuais. O
ENEM é realizado anualmente por mais de 5 milhões de estudantes, muitos dos quais dedicam boa
parte de seu tempo de estudo resolvendo questões dos anos anteriores. Partindo da hipótese de que
as representações de sociedade e do papel da mulher nessa sociedade podem ser veiculados e
inculcadas pelas questões do ENEM, esta pesquisa se propõe a verificar como a mulher é retratada
em tais questões e problematizar a representação de gênero nas carreiras, a partir do exame 2015.
Um histórico a partir do ENEM
Com a emergência de se criar uma certificação para um currículo baseado em competências
e habilidades, conforme definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), a sugestão de um instrumento de avaliação externa veio à tona.
A primeira versão do exame ocorreu em 1998 e esta consistia em uma avaliação individual,
na qual as pessoas submetidas ao processo se candidatavam voluntariamente. O propósito do exame
era possibilitar uma referência para auto avaliação a partir das competências e habilidades que o
estruturaram (Brasil, 2008, p.14). Conforme o Documento Básico inicial do ENEM, a intenção,
além de avaliar o desempenho do aluno, era de mensurar o desenvolvimento de competências
fundamentais ao exercício pleno da cidadania (MEC/INEP, 1998, p.5).
Cada vez mais, com o aumento das desigualdades e diferenças no ambiente escolar, as
exigências e características da pós-modernidade contribuíram para que o exame fosse reformulado.
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O ENEM, inicialmente usado apenas como forma de análise da etapa final da Educação Básica,
passou a ser empregado pelas Instituições Federais como método de acesso ao Ensino Superior.
Este, por sua vez, ocorria por meio de um cadastro em uma plataforma virtual denominada SiSU
(Sistema de Seleção Unificada). Deste modo, após 2008, o ENEM teve mudanças significativas
envolvendo desde o aumento da quantidade de questões (de 63 para 180 itens) quanto o enfoque
delas e o tempo de duração de prova que duplicou.
Descrição do trabalho desenvolvido
A investigação consistiu em pesquisa documental, a partir do bloco de questões de Ciências
da Natureza, propiciada por meio da versão 2015 (1 ͣ e 2 ͣ aplicações) do caderno. Por intermédio das
observações, 88 enunciados compuseram a investigação e, em especial, essa se caracterizou pela
análise textual discursiva (Moraes e Galiazzi, 2006, p. 117-128).
Inicialmente foi efetuada uma leitura dos itens, com a finalidade de identificar quais deles
envolviam pessoas vinculadas às atividades profissionais ou com estudos. Apenas dezoito
elementos se enquadraram nas características procuradas. Na sequência, com base nesses dezoito
itens, houve uma nova categorização, que consistiu em verificar o gênero presente, masculino ou
feminino. Os demais itens que não atendiam as demandas do trabalho foram desconsiderados.
Com base na análise das questões de ciências da natureza dos cadernos investigados, as
seguintes categorias foram identificadas:
Quadro 01: Categorias profissionais identificadas em questões do ENEM 2015
questão Página e
versão descritor Gênero
46
16- 1 ͣ
aplicação Por essa razão, muitos atletas masculino
51
18- 1 ͣ
aplicação Um grupo de pesquisadores desenvolveu masculino
55
20- 1 ͣ
aplicação Suponha que um produtor de rúcula hidropônica masculino
64
22- 1 ͣ
aplicação apesar de ser o último dos corredores masculino
67
23- 1 ͣ
aplicação os estudantes passaram a sentir cada vez mais sede masculino
68 24- 1 ͣ Um estudante, precisando instalar um computador masculino
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
aplicação
70
25- 1 ͣ
aplicação Um garoto ... masculino
74
26- 1 ͣ
aplicação "biotecnologia" surgiu no século XX, quando o cientista masculino
75
26- 1 ͣ
aplicação O fenômeno ótico que, segundo os pesquisadores masculino
82
28- 1 ͣ
aplicação um professor levou para a sala de aula um saco de arroz masculino
85
29- 1 ͣ
aplicação Entre os anos de 1028 e 1038, Alhazen masculino
47
16- 2 ͣ
aplicação Durante a aula, um professor apresentou masculino
49
17- 2 ͣ
aplicação Um eletricista projeta um circuito com três lâmpadas masculino
54
18- 2 ͣ
aplicação Um estudante resolveu simular essa situação masculino
60
21- 2 ͣ
aplicação o processo de recuperação dessas áreas, pesquisadores masculino
83
29- 2 ͣ
aplicação O homem, observando esse processo, masculino
85
30- 2 ͣ
aplicação Para irrigar sua plantação, um produtor rural masculino
89
31- 2 ͣ
aplicação Durante uma aula experimental de física, os estudantes masculino
Resultados Obtidos
Dentro do conteúdo discursivo das dezoito questões que se mostraram vinculadas às
carreiras mencionadas no quadro 01, não foram encontradas referências a trabalho feminino em
nenhuma delas, o que indica que o exame destacou em sua totalidade a participação profissional
masculina, invisibilizando a mulher como trabalhadora.
Ainda que a investigação documental não tenha demonstrado a mulher vinculada às
carreiras encontradas, isto não significa que em outras pesquisas elas não se apresentaram
exercendo estas ou outras atividades profissionais. Segundo Abramo entre as décadas de 60 e 90, o
número de mulheres que ingressaram no mercado de trabalho cresceu de modo bastante
significativo. No período analisado por ela, foi possível constatar que a participação feminina em
atividades profissionais aumentou de dezoito para cinqüenta e sete (Abramo, 2000, p. 77).
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Apesar do contexto social da década de 80 ter favorecido aspectos relacionados com a
pluralidade e também a ampliação da participação da mulher em postos de trabalhos que eram
inacessíveis para elas, “a entrada de mulheres em profissões, cargos e espaços de trabalho que
anteriormente eram ocupados apenas por homens, abre a possibilidade para que os indivíduos
envolvidos se questionem sobre a validade de um modelo de divisão sexual do trabalho calcado em
habilidades ditas naturais” (Daniel, 2011, p.335). A cultura, que passou a ser incorporada nos
estudos curriculares com a concepção crítica e também no ENEM, apresenta indícios de uma
concepção machista em que o lugar das mulheres não é no mercado profissional e, principalmente,
nas atribuições que envolvam força ou maior uso da razão. A ausência das personagens femininas
em questões vinculadas às carreiras, e também em itens vinculados aos estudos, mostra que a
invisibilidade delas é reforçada tanto como alunas quanto trabalhadoras. Esse fato, que foi
percebido nas questões, é contrário aos dados apresentados por Abramo (2000, p. 77).
Por meio dos dados obtidos com a análise realizada a partir da categorização apresentada no
quadro 01, foi possível construir o Gráfico 01.
Gráfico 01: Distribuição de carreiras ocupadas por homens nas questões analisadas.
O gráfico acima mostra que o maior setor corresponde ao percentual de estudantes
masculinos que são descritos nos fragmentos. O resultado apresentado pelo gráfico, em que a
palavra estudantes está acompanhada do artigo “os” e portanto se refere ao sexo masculino, pode
estar vinculada ao fato de que nem sempre as mulheres tiveram acesso aos estudos. No Brasil foi
somente a partir de uma lei promulgada em 15 de outubro em 1827 que as protagonistas femininas
tiveram direito ao ensino formal. Durante o Império, a Escola Normal foi “uma das poucas
oportunidades, senão a única, de as mulheres prosseguirem seus estudos além do primário”
(Demartini e Antunes, 1993, p.6). Ao contrário dos homens brancos, criados para serem os chefes
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
da casa, que foram detentores de várias oportunidades. Verifica-se que os discursos produzidos nas
questões analisadas, ainda refletem as desigualdades historicamente construídas.
Em razão da transformação presente no campo dos estudos, Abramo reforça aspectos que
mencionam a relação da instrução com o acesso ao mercado de trabalho. Segundo a autora, o nível
médio de instrução feminino (daquelas que estão presentes no mercado de trabalho), atualmente se
apresenta como sendo maior que os índices dos homens (Abramo, 2000, p.79). Portanto, o trecho do
discurso encontrado no documento em que a palavra estudantes foi acompanhada do artigo “os” ou
“um” é passível de discussão e reformulação.
Na concepção de Portinari a linguagem, além de expressar relações de poder, também
produz e pretende fixar as diferenças. Segundo ela “A linguagem é um turbilhão e nos usa muito
mais do que nós a usamos. Ela nos carrega, molda, fixa, modifica, esmaga” (Portinari,1989, p.18).
De acordo com Louro, a partir da problematização da frase de uma professora ao dizer que
“os alunos que acabarem a tarefa podem ir ao recreio”, nós devemos nos auto questionar se houve a
inclusão das meninas ou não em tal discurso. A partir deste exemplo, as feministas defendem que
formas de tratamento sejam incorporadas no ambiente escolar (Louro, 2014, p.69). Spender enfatiza
que: “ao utilizar a expressão genérica a referência é na verdade uma espécie constituída por
homens” (Spender, 1993, p.202). Consequentemente, pode se dizer que a linguagem promove a
ocultação das mulheres nos diversos discursos que encontramos na sociedade. Resgatando o excerto
“estudantes”, presente no ENEM 2015 acompanhado pelo artigo “os” ou “um” (representado no
Gráfico 01 pelo maior setor), podemos considerá-lo similar ao exemplo fornecido por Louro.
Ao relacionar as possibilidades que o grau de instrução pode proporcionar ao mercado de
trabalho, temos que, a partir dos dados fornecidos por Valdés e Gomáriz (1995), citado em Abramo
(2000), com base em investigações produzidas nas zonas urbanas da América Latina, as mulheres
economicamente ativas possuem nove anos de instrução. Na mesma região os homens, com um
tempo menor, se encontram com oito anos. Quando comparadas as dificuldades dos homens com
um nível educacional mais baixo, as mulheres em uma situação similar suportam mais barreiras
ocasionadas pelas desigualdades de gênero (Abramo, 2000, p. 79). Em suma, podemos considerar
que elas necessitam de maior instrução para atingir os mesmos postos que eles e, portanto,
considerar apenas “os” estudantes em vez de “as” também é um item não condizente com a
realidade em que o ENEM foi produzido. Com base nas discussões construídas, pode se defender a
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ideia de que as mulheres possuem a mesma capacidade que os homens de serem consideradas como
“estudiosas”. No entanto, parece que o padrão da linguagem ainda coloca o homem em uma posição
superior a elas.
De acordo com o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, publicado pelo IPEA (2017),
ainda que alterações no mercado de trabalho tenham ocorrido, e também mudanças nos aspectos
culturais da sociedade tenham se instaurado, as desigualdades permanecem. Acerca destas,
podemos citar as diferenças presentes nos desníveis salariais, na taxa de desemprego (a das
mulheres acaba sendo maior que a dos homens) e nas ocupações de trabalho.
Referente à segunda parte do gráfico 01, de maior destaque, verificamos a carreira de
cientista. De acordo com o filósofo Georg Hegel (1770 – 1831): "A mulher pode ser educada, mas
sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e algumas das artes" (Silva, 2011,
p.1).
Para Abramo as imagens de gênero são importantes no processo de constituição das
“categorias que vão estruturar a construção dos postos de trabalho e também os perfis de
qualificação e competência a eles associados” (Abramo, 2000, p. 90). As imagens que se tem da
mulher, embutida culturalmente na sociedade, tem os reflexos da dona do lar e mãe. É essa a
representação que se superpõe a personagem trabalhadora e, portanto, a possibilidade da
personagem feminina se envolver com pesquisas científicas (estando envolvidas com atribuições
domésticas) acaba sendo classificada como nula. Ainda que atualmente o contexto tenha se
alterado, a predominância nas carreiras científicas (em particular das ciências exatas) continua
sendo do público masculino.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Ao retomar a análise do gráfico 01, é interessante notar que três carreiras tiveram um
empate: a de professor, atleta e agricultor. De maneira antagônica, em comparação com a figura
masculina, as mulheres não foram citadas e, não era de se estranhar, nas profissões que demandam
esforços físicos a invisibilidade continuou.
Conforme as pesquisas da Abramo, as atividades profissionais do setor urbano são as que
incorporam mais mulheres do que as desenvolvidas no setor rural. Entretanto, apesar de tal dado,
isto não significa que em outros países uma nova realidade seja encontrada como, por exemplo, a
centralização de mulheres em atividades rurais em vez de urbanas. Neste último caso, temos países
como Bolívia, Colômbia e Paraguai, entre outros (Abramo, 2000, p. 77).
Apesar de uma elevação significativa da presença feminina no mercado de trabalho, as
desigualdades não foram amenizadas ou reduzidas. A maior parte dos empregos femininos continua
centrada em alguns setores de atividade e agrupada em um pequeno número de profissões, e essa
segmentação continua estando na base das desigualdades existentes entre homens e mulheres no
mercado de trabalho, incluindo as salariais (Abramo, 2000, p.78).
Podemos verificar que, além das profissões que incorporam esforço físico, nas atividades
que demandam a utilização de ferramentas ou maquinários com mais tecnologias, são os homens
que marcam presença. No gráfico 01 é notável, mesmo com um percentual menor, que a figura
masculina foi apresentada vinculada à carreira de eletricista (atividade que demanda conhecimento
técnico, habilidades e um certo esforço físico).
Considerando que as indústrias absorvem muitos profissionais para trabalhar no setor
elétrico e também nos maquinários, ainda que a segmentação ocupacional dos gêneros persista no
mercado de trabalho, parece que a presença das mulheres nos serviços da indústria não é
considerada. Entre os anos 70 e 80, a industrialização era concebida como alternativa para expulsar
a força de trabalho feminina dos setores mais modernizados da economia (Abramo, 2000, p. 86).
Por meio de uma pesquisa efetuada no Chile, em particular no setor industrial, foi verificada
uma maior participação das mulheres nos trabalhos que envolviam o manuseio de máquinas
convencionais. Em contrapartida, naqueles maquinários com mais tecnologia (programáveis), os
números encontrados foram menores. Segundo Abramo: “a maquinaria tendia a ser incorporada nas
seções chaves do processo produtivo, no qual os postos de trabalho (mais qualificados) eram
ocupados principalmente por homens” (Abramo,2000, p. 87)
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Nas industrias, à medida que os maquinários de alta tecnologia eram incorporados, a
operação destes era dada aos homens. Consequentemente, a masculinação dos trabalhos foi
favorecida em razão dos executivos considerarem que os homens eram mais indicados para tal
tarefa. A partir dos comentários tecidos, podemos supor que as mulheres não foram favorecidas no
ambiente industrial que demandava a habilidade com recursos tecnológicos.
Contraditoriamente, a ação vinculada ao esforço físico e trabalho industrial, temos a ligação
com a parte intelectual que foi destacada no gráfico 01 pela carreira do magistério. O ENEM ao
fazer menção do cargo Professor, coloca o personagem masculino como sendo da disciplina Física.
Não é de se estranhar, pois como aponta Giffin, há um caráter identitário do homem com qualidades
relacionadas à mente, à produção e à razão (Giffin, 2005, p. 48).
Acerca das imagens de gênero, elas podem ser definidas como “configurações de
identidades masculina e feminina produzidas social e culturalmente, que determinam em grande
parte, as oportunidades e a forma de inserção dos homens e mulheres no mundo do trabalho”
(Abramo, 2000, p.89). Segundo a autora, estas caracterizam os denominados territórios femininos
ou masculinos e, consequentemente, contribuem para os processos que estruturam a divisão sexual
do trabalho.
Considerações finais
Desde os primórdios da construção da humanidade, é notória a distinção presente entre os
afazeres designados às mulheres (meninas) e homens (meninos). Ainda que muitas conquistas
tenham sido em partes alcançadas (elevação da participação delas no mercado de trabalho, acesso
aos estudos e entre outras.), existe um longo caminho a ser trilhado.
Com as reflexões, possibilitadas por este trabalho, são perceptíveis os discursos
preconceituosos de gênero. Desta forma, podemos dizer que parte da sociedade continua
concordando com as afirmações sexistas dos filósofos citados.
De acordo com Louro, “currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem,
materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero,
sexualidade, etnia, classe- são constituídos por essas distinções e ao mesmo tempo, seus produtores”
(Louro, 2014, p. 68). O modo como o currículo é empregado no ensino, faz todo o sentido na
diminuição das diferenças de gênero, raciais, entre outras.
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
No contexto atual, as desigualdades persistem e são reforçadas pelos estereótipos de gênero
construídos ao longo da existência da humanidade. Entretanto, as condições se comparadas nas
décadas anteriores a 70, são bem diferentes. A partir da década de 70, com as lutas que foram
estabelecidas, direitos e uma nova realidade se formou: a da geração pós-crítica. Apesar do
surgimento desta nova realidade, os materiais e ambientes escolares necessitam ainda incorporar
mais ações que promovam a equidade nas diversas instâncias.
Referências
ABRAMO, Laís. A situação da mulher Latino-americana. In: Mulher e trabalho: experiências de
ação afirmativa. São Paulo, Boitempo, 1ª ed., 2000.
AFONSO, Almerindo Janela. Avaliação educacional: regulação e emancipação. São Paulo: Cortez,
2000.
BRASIL, Ministério da Educação. PDE: Plano de Desenvolvimento da Educação: SAEB: ensino
médio: matrizes de referência, tópicos e descritores. Brasília: MEC, SEB; Inep, 2008. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/saeb_matriz2.pdf>. Acesso em: 06 set. 2016.
BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”.
Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-28, 1998.
DANIEL, Camila. O trabalho e a questão de gênero: a participação das mulheres na dinâmica do
trabalho. O Social em Questão - Ano XIV - nº 25/26. Rio de Janeiro ,2011. Disponível em:
http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/17_OSQ_25_26_Daniel.pdf. Acesso em: 18 nov.
2016.
DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; ANTUNES, Fátima. Ferreira. Magistério primário: profissão
feminina, carreira masculina. Cadernos de Pesquisa, n. 86, São Paulo,1993. Disponível
em:<http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/cp/article/view/934/939>. Acesso em: 06 set. 2016.
GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito
histórico. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-57, jan./mar. 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n1/a05v10n1.pdf>. Acesso em: 06 set. 2016.
IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de gênero e raça.
Brasil, 2017. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/retrato/ >. Acesso em: 06 jun. 2017.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. 16
ed. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
MEC/INEP. ENEM. Documento Básico. MEC/INEP. Brasília, 1998. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ pme000115.pdf>. Acesso em: 06 set. 2016.
MORAES, Roque; GALIAZZI. Maria do Carmo. Análise textual discursiva: processo
reconstrutivo de múltiplas faces. Ciência & Educação, v. 12, n. 1, p. 117-128, 2006.
PORTINARI, Denise. O discurso da homossexualidade feminina. São Paulo: Brasiliense, 1989.
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ROSEMBERG, F. A educação de mulheres jovens e adultas no Brasil. In: H.I.B. Saffioti I. B. & M.
Munoz-Vargas(Orgs.). Mulher basileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
SACRISTÁN, José Gimeno. A educação que ainda é possível: ensaios sobre uma cultura para a
educação. Tradução de Valério Campos. Porto Alegre: Artmed, 2007.
SAFFIOTI, Heleieth. Primórdios do conceito de gênero. Cadernos Pagu (12). Campinas: Núcleo de
Estudos de Gênero. Pagu. Unicamp, 2001.
SILVA, Fabiane Ferreira; RIBEIRO, Paula Regina Costa. A participação das mulheres na ciência:
problematizações sobre as diferenças de gênero. Revista Labrys Estudos Feministas. Disponível
em:<http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys20/bresil/fabiene.htm>. n. 10, jul./dez.
2011. Acesso em :11 dez. 2016.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy da. Diversidade de Gênero – mulheres. In: ZENAIDE, Maria de
Nazaré Tavares et al. Direitos Humanos: capacitação de educadores. João Pessoa: Editora
Universitária UFPB, 2008.
SÃO PAULO. Governo do Estado. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania.Coordenação de
Políticas para a Diversidade Sexual. Diversidade sexual e cidadania LGBT. São Paulo: SJDC/SP,
2014.
SPENDER, Dale. “Instituciones educativas-Donde a la cooperacíon se lhama trampa”. In
SPENDER, D. & SARAH, E. (org). Aprender a prender. Buenos Aires: Paidós, 1993.
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2007.
The representatios of gender in questions about Natural Sciences in ENEM 2015
Abstract: The genesis of this study was based on the analysis carried out from the National High
School Examination 2015 (ENEM). Through the questions of Natural Sciences of this examination,
it was possible to verify how is gender representation in the professional aspects approached. The
conception of woman pointed out, constantly carries the influence of the patriarchal thoughts
reinforced by Rousseau and Hegel. According to the mentioned philosophers, men must be
educated to marry, have children and to be subordinate to man. In short, they should not work
outdoors; much less disagree with a male decision. In the present century, for example, the
stereotype that individuals have roles to play in society still seems to have traces of earlier
philosophers, although insertion into the labor market has occurred by them. With curricular studies
(specifically the emergence of post-critical theories), transformations in the method of how and
what to teach came to corroborate with discussions about gender, racial, cultural, and other
inequalities. From this documentary and bibliographical research, we hope that the present work
will motivate researchers to continue studies in the area of gender, science and curriculum.
Keywords: Natural Sciences. Gender. Curriculum.