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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NAS QUESTÕES DE CIÊNCIAS DA NATUREZA DO ENEM 2015 Viviana da Cruz Vicente 1 Gustavo Isaac Killner 2 Resumo: A gênese deste estudo está na análise realizada a partir do Exame Nacional do Ensino Médio 2015 (ENEM). Por intermédio das questões de Ciências da Natureza do referido exame, foi possível verificar como é abordada a representação de gênero em relação às profissões. Os resultados iniciais indicam que o ENEM se estrutura numa concepção binária e opressora, na qual a concepção de gênero se restringe a homens e mulheres. A mulher, quando não é invisibilizada, constantemente carrega a influência dos pensamentos patriarcais reforçados por Rousseau e Hegel, segundo os quais elas devem ser educadas para casar, ter filhos e também para ser subordinadas aos homens. Em suma, não devem trabalhar em ambientes externos ao lar e muito menos discordar de uma decisão masculina. No século atual, por exemplo, o estereótipo de que os indivíduos possuem papéis a serem ocupados na sociedade parecem ainda ter vestígios desse pensamento, embora a inserção no mercado de trabalho tenha ocorrido para elas. Com os estudos curriculares (em específico o surgimento das teorias pós-críticas), transformações no método de como e o que ensinar passaram a corroborar com discussões acerca das desigualdades de gênero, raciais e culturais, entre outras. A partir desta pesquisa documental e bibliográfica, esperamos que o presente trabalho motive pesquisadores (as) a prosseguir estudos na área de gênero, ciência e currículo. Palavras-chave: Ciências da Natureza. Gênero. Currículo. Introdução A partir da década de 70, após as discussões acerca da perspectiva crítica de currículo, emergiu nos Estados Unidos uma forma inédita de pensar o desenvolvimento dos conteúdos escolares: a concepção pós-crítica (Silva, 1999, p. 111). Esta, com grande influência do pós- modernismo, pós-estruturalismo e pós-colonialismo contribuiu para que a sociedade refletisse em torno das desigualdades de gênero, raça, etnia, cultura e outros temas que se posicionassem contra os estereótipos. Sob o viés da pedagogia pós crítica, com o desenvolvimento das novas formas de produção, a globalização trouxe à tona a pluralidade cultural e os currículos tiveram que ser repensados de acordo com as novas demandas (Sacristán, 2007, p. 27-8). Esperava-se, assim, que os materiais didáticos e avaliações escolares, internas e externas, incorporassem o multiculturalismo e também as discussões sobre as concepções de gênero. Em particular a respeito das investigações associadas ao tema gênero, elas ampliaram o conceito de diversidade sexual e ajudaram a identificar novas formas de identidade de gênero. Além 1 Mestranda em Ensino de Ciências no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, Brasil. 2 Professor Doutor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, Brasil.

AS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NAS QUESTÕES DE … · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN

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    Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),

    Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X

    AS REPRESENTAES DE GNERO NAS QUESTES DE CINCIAS DA NATUREZA

    DO ENEM 2015

    Viviana da Cruz Vicente 1

    Gustavo Isaac Killner 2

    Resumo: A gnese deste estudo est na anlise realizada a partir do Exame Nacional do Ensino Mdio 2015 (ENEM).

    Por intermdio das questes de Cincias da Natureza do referido exame, foi possvel verificar como abordada a

    representao de gnero em relao s profisses. Os resultados iniciais indicam que o ENEM se estrutura numa

    concepo binria e opressora, na qual a concepo de gnero se restringe a homens e mulheres. A mulher, quando no

    invisibilizada, constantemente carrega a influncia dos pensamentos patriarcais reforados por Rousseau e Hegel,

    segundo os quais elas devem ser educadas para casar, ter filhos e tambm para ser subordinadas aos homens. Em suma,

    no devem trabalhar em ambientes externos ao lar e muito menos discordar de uma deciso masculina. No sculo atual,

    por exemplo, o esteretipo de que os indivduos possuem papis a serem ocupados na sociedade parecem ainda ter

    vestgios desse pensamento, embora a insero no mercado de trabalho tenha ocorrido para elas. Com os estudos

    curriculares (em especfico o surgimento das teorias ps-crticas), transformaes no mtodo de como e o que ensinar

    passaram a corroborar com discusses acerca das desigualdades de gnero, raciais e culturais, entre outras. A partir

    desta pesquisa documental e bibliogrfica, esperamos que o presente trabalho motive pesquisadores (as) a prosseguir

    estudos na rea de gnero, cincia e currculo.

    Palavras-chave: Cincias da Natureza. Gnero. Currculo.

    Introduo

    A partir da dcada de 70, aps as discusses acerca da perspectiva crtica de currculo,

    emergiu nos Estados Unidos uma forma indita de pensar o desenvolvimento dos contedos

    escolares: a concepo ps-crtica (Silva, 1999, p. 111). Esta, com grande influncia do ps-

    modernismo, ps-estruturalismo e ps-colonialismo contribuiu para que a sociedade refletisse em

    torno das desigualdades de gnero, raa, etnia, cultura e outros temas que se posicionassem contra

    os esteretipos.

    Sob o vis da pedagogia ps crtica, com o desenvolvimento das novas formas de produo,

    a globalizao trouxe tona a pluralidade cultural e os currculos tiveram que ser repensados de

    acordo com as novas demandas (Sacristn, 2007, p. 27-8). Esperava-se, assim, que os materiais

    didticos e avaliaes escolares, internas e externas, incorporassem o multiculturalismo e tambm

    as discusses sobre as concepes de gnero.

    Em particular a respeito das investigaes associadas ao tema gnero, elas ampliaram o

    conceito de diversidade sexual e ajudaram a identificar novas formas de identidade de gnero. Alm

    1 Mestranda em Ensino de Cincias no Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de So Paulo, So Paulo,

    Brasil. 2 Professor Doutor no Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de So Paulo, So Paulo, Brasil.

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    da tradicional representao binria, na qual a sociedade divide as pessoas apenas em duas

    categorias (homens e mulheres) e determina para elas papeis sociais bem definidos, em geral numa

    perspectiva chauvinista, as novas concepes de gnero incluem transexuais, travestis,

    crossdressers, transgneros, cisgneros e entre outras (So Paulo, 2014, p. 15-16). Apesar disto,

    reconhecimento de novas identidades, esta anlise das questes do ENEM foi elaborada a partir da

    descrio binria. Silveira destaca que o binarismo (composto apenas pelos gneros masculinos e

    femininos) constitui o padro dominante para normatizar um modelo de comportamento de base

    religiosa, cientfica, educativa, jurdica e poltica, segundo o qual homens e mulheres deveriam se

    pautar (Silveira, 2008, p. 48).

    O filsofo francs Rosseau (1712-1778), que viveu no sculo das Luzes (iluminismo) e se

    dedicou pesquisa sobre a origem das desigualdades, destacou a existncia de dois elementos

    (relacionados s diferenas) que foram estudados: o natural (que consiste em pesquisar aspectos

    associados com a idade, sade, foras do corpo e qualidades de esprito) e o outro moral (que

    autorizado pelo consentimento dos homens). Ao considerar que a figura feminina tem um modelo

    de conduta que deve ser seguido, e que reforado pelos homens, Rosseau fez a seguinte afirmao

    sobre a figura feminina:

    Da boa constituio das mes depende inicialmente a dos filhos; do seio das mulheres

    depende a primeira educao dos homens; das mulheres dependem ainda os costumes

    destes, suas paixes, seus gostos, seus prazeres, e at sua felicidade. (...) Serem teis, serem

    agradveis a eles e honradas, educ-los jovens, cuidar deles grandes, aconselh-los,

    consol- los, tornar-lhes a vida mais agradvel e doce; eis os deveres das mulheres em

    todos os tempos e o que devemos lhes ensinar j na sua infncia (ROSSEAU, 2004, p.433).

    Esse pensamento, associado s aes que dele decorrem, naturalizam o papel subserviente

    da mulher, que foi e ainda vem sendo fortemente moldada apenas para ser me e esposa

    (Rosemberg, 1994, p. 27-62). Contudo, o questionamento do papel natural delas na sociedade,

    promovido principalmente pelos movimentos feminista e GLBT (Gays, Lsbicas, Bissexuais e

    Transexuais), incorporou elementos que contemplam as desigualdades de oportunidades dadas aos

    homens, s mulheres e aos demais gneros sexuais (Saffioti,2001, p.157-163).

    Em particular, a partir dos problemas enfrentados pelas mulheres tanto nos estudos quanto

    no mercado profissional, as feministas realizaram reinvindicaes sobre os contedos que eram

    ministrados nas escolas (que, segundo elas, eram diferenciados conforme os gneros) e tambm das

    possveis consequncias que a ausncia destes proporcionariam no acesso a algumas carreiras.

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    A intensificao da diversidade sexual no cenrio escolar ganhou novos contornos a partir

    da dcada de 80, quando a ps-modernidade possibilitou conquistas aos questionamentos femininos

    e o avano nas concepes de gnero (Buttler, 1999, p.11-28). Entretanto, como aponta Stearns, as

    vitrias construdas no reduziram o preconceito de gnero e muito menos eliminaram a concepo

    de que existem papis sexuais determinados conforme os sexos (Stearns, 2007, p. 250).

    Nesse mesmo perodo, a reorganizao do mundo do trabalho e a globalizao das formas de

    produo, consumo e controle de qualidade, levaram adoo de padres externos de avaliao

    escolar e impuseram a criao de um Estado Avaliador (Afonso, 2000, p. 49). Esse foi capaz de

    produzir um sistema nacional de avaliao do rendimento escolar que, no Brasil, consubstanciou-se

    na Prova Brasil, no extinto Provo (atual ENADE) e no ENEM (Exame Nacional do Ensino

    Mdio), objeto desta pesquisa. A verso inicial desse exame, mais ligada s habilidades e

    competncias, foi produzida em 1998 e persistiu at 2008. Entretanto, a partir de 2009 um novo

    formato foi criado, mais conteudista e menos abstrato, que tem vigorado at os dias atuais. O

    ENEM realizado anualmente por mais de 5 milhes de estudantes, muitos dos quais dedicam boa

    parte de seu tempo de estudo resolvendo questes dos anos anteriores. Partindo da hiptese de que

    as representaes de sociedade e do papel da mulher nessa sociedade podem ser veiculados e

    inculcadas pelas questes do ENEM, esta pesquisa se prope a verificar como a mulher retratada

    em tais questes e problematizar a representao de gnero nas carreiras, a partir do exame 2015.

    Um histrico a partir do ENEM

    Com a emergncia de se criar uma certificao para um currculo baseado em competncias

    e habilidades, conforme definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) e Parmetros

    Curriculares Nacionais (PCNs), a sugesto de um instrumento de avaliao externa veio tona.

    A primeira verso do exame ocorreu em 1998 e esta consistia em uma avaliao individual,

    na qual as pessoas submetidas ao processo se candidatavam voluntariamente. O propsito do exame

    era possibilitar uma referncia para auto avaliao a partir das competncias e habilidades que o

    estruturaram (Brasil, 2008, p.14). Conforme o Documento Bsico inicial do ENEM, a inteno,

    alm de avaliar o desempenho do aluno, era de mensurar o desenvolvimento de competncias

    fundamentais ao exerccio pleno da cidadania (MEC/INEP, 1998, p.5).

    Cada vez mais, com o aumento das desigualdades e diferenas no ambiente escolar, as

    exigncias e caractersticas da ps-modernidade contriburam para que o exame fosse reformulado.

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    O ENEM, inicialmente usado apenas como forma de anlise da etapa final da Educao Bsica,

    passou a ser empregado pelas Instituies Federais como mtodo de acesso ao Ensino Superior.

    Este, por sua vez, ocorria por meio de um cadastro em uma plataforma virtual denominada SiSU

    (Sistema de Seleo Unificada). Deste modo, aps 2008, o ENEM teve mudanas significativas

    envolvendo desde o aumento da quantidade de questes (de 63 para 180 itens) quanto o enfoque

    delas e o tempo de durao de prova que duplicou.

    Descrio do trabalho desenvolvido

    A investigao consistiu em pesquisa documental, a partir do bloco de questes de Cincias

    da Natureza, propiciada por meio da verso 2015 (1 e 2 aplicaes) do caderno. Por intermdio das

    observaes, 88 enunciados compuseram a investigao e, em especial, essa se caracterizou pela

    anlise textual discursiva (Moraes e Galiazzi, 2006, p. 117-128).

    Inicialmente foi efetuada uma leitura dos itens, com a finalidade de identificar quais deles

    envolviam pessoas vinculadas s atividades profissionais ou com estudos. Apenas dezoito

    elementos se enquadraram nas caractersticas procuradas. Na sequncia, com base nesses dezoito

    itens, houve uma nova categorizao, que consistiu em verificar o gnero presente, masculino ou

    feminino. Os demais itens que no atendiam as demandas do trabalho foram desconsiderados.

    Com base na anlise das questes de cincias da natureza dos cadernos investigados, as

    seguintes categorias foram identificadas:

    Quadro 01: Categorias profissionais identificadas em questes do ENEM 2015

    questo Pgina e

    verso descritor Gnero

    46

    16- 1

    aplicao Por essa razo, muitos atletas masculino

    51

    18- 1

    aplicao Um grupo de pesquisadores desenvolveu masculino

    55

    20- 1

    aplicao Suponha que um produtor de rcula hidropnica masculino

    64

    22- 1

    aplicao apesar de ser o ltimo dos corredores masculino

    67

    23- 1

    aplicao os estudantes passaram a sentir cada vez mais sede masculino

    68 24- 1 Um estudante, precisando instalar um computador masculino

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    aplicao

    70

    25- 1

    aplicao Um garoto ... masculino

    74

    26- 1

    aplicao "biotecnologia" surgiu no sculo XX, quando o cientista masculino

    75

    26- 1

    aplicao O fenmeno tico que, segundo os pesquisadores masculino

    82

    28- 1

    aplicao um professor levou para a sala de aula um saco de arroz masculino

    85

    29- 1

    aplicao Entre os anos de 1028 e 1038, Alhazen masculino

    47

    16- 2

    aplicao Durante a aula, um professor apresentou masculino

    49

    17- 2

    aplicao Um eletricista projeta um circuito com trs lmpadas masculino

    54

    18- 2

    aplicao Um estudante resolveu simular essa situao masculino

    60

    21- 2

    aplicao o processo de recuperao dessas reas, pesquisadores masculino

    83

    29- 2

    aplicao O homem, observando esse processo, masculino

    85

    30- 2

    aplicao Para irrigar sua plantao, um produtor rural masculino

    89

    31- 2

    aplicao Durante uma aula experimental de fsica, os estudantes masculino

    Resultados Obtidos

    Dentro do contedo discursivo das dezoito questes que se mostraram vinculadas s

    carreiras mencionadas no quadro 01, no foram encontradas referncias a trabalho feminino em

    nenhuma delas, o que indica que o exame destacou em sua totalidade a participao profissional

    masculina, invisibilizando a mulher como trabalhadora.

    Ainda que a investigao documental no tenha demonstrado a mulher vinculada s

    carreiras encontradas, isto no significa que em outras pesquisas elas no se apresentaram

    exercendo estas ou outras atividades profissionais. Segundo Abramo entre as dcadas de 60 e 90, o

    nmero de mulheres que ingressaram no mercado de trabalho cresceu de modo bastante

    significativo. No perodo analisado por ela, foi possvel constatar que a participao feminina em

    atividades profissionais aumentou de dezoito para cinqenta e sete (Abramo, 2000, p. 77).

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    Apesar do contexto social da dcada de 80 ter favorecido aspectos relacionados com a

    pluralidade e tambm a ampliao da participao da mulher em postos de trabalhos que eram

    inacessveis para elas, a entrada de mulheres em profisses, cargos e espaos de trabalho que

    anteriormente eram ocupados apenas por homens, abre a possibilidade para que os indivduos

    envolvidos se questionem sobre a validade de um modelo de diviso sexual do trabalho calcado em

    habilidades ditas naturais (Daniel, 2011, p.335). A cultura, que passou a ser incorporada nos

    estudos curriculares com a concepo crtica e tambm no ENEM, apresenta indcios de uma

    concepo machista em que o lugar das mulheres no no mercado profissional e, principalmente,

    nas atribuies que envolvam fora ou maior uso da razo. A ausncia das personagens femininas

    em questes vinculadas s carreiras, e tambm em itens vinculados aos estudos, mostra que a

    invisibilidade delas reforada tanto como alunas quanto trabalhadoras. Esse fato, que foi

    percebido nas questes, contrrio aos dados apresentados por Abramo (2000, p. 77).

    Por meio dos dados obtidos com a anlise realizada a partir da categorizao apresentada no

    quadro 01, foi possvel construir o Grfico 01.

    Grfico 01: Distribuio de carreiras ocupadas por homens nas questes analisadas.

    O grfico acima mostra que o maior setor corresponde ao percentual de estudantes

    masculinos que so descritos nos fragmentos. O resultado apresentado pelo grfico, em que a

    palavra estudantes est acompanhada do artigo os e portanto se refere ao sexo masculino, pode

    estar vinculada ao fato de que nem sempre as mulheres tiveram acesso aos estudos. No Brasil foi

    somente a partir de uma lei promulgada em 15 de outubro em 1827 que as protagonistas femininas

    tiveram direito ao ensino formal. Durante o Imprio, a Escola Normal foi uma das poucas

    oportunidades, seno a nica, de as mulheres prosseguirem seus estudos alm do primrio

    (Demartini e Antunes, 1993, p.6). Ao contrrio dos homens brancos, criados para serem os chefes

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    da casa, que foram detentores de vrias oportunidades. Verifica-se que os discursos produzidos nas

    questes analisadas, ainda refletem as desigualdades historicamente construdas.

    Em razo da transformao presente no campo dos estudos, Abramo refora aspectos que

    mencionam a relao da instruo com o acesso ao mercado de trabalho. Segundo a autora, o nvel

    mdio de instruo feminino (daquelas que esto presentes no mercado de trabalho), atualmente se

    apresenta como sendo maior que os ndices dos homens (Abramo, 2000, p.79). Portanto, o trecho do

    discurso encontrado no documento em que a palavra estudantes foi acompanhada do artigo os ou

    um passvel de discusso e reformulao.

    Na concepo de Portinari a linguagem, alm de expressar relaes de poder, tambm

    produz e pretende fixar as diferenas. Segundo ela A linguagem um turbilho e nos usa muito

    mais do que ns a usamos. Ela nos carrega, molda, fixa, modifica, esmaga (Portinari,1989, p.18).

    De acordo com Louro, a partir da problematizao da frase de uma professora ao dizer que

    os alunos que acabarem a tarefa podem ir ao recreio, ns devemos nos auto questionar se houve a

    incluso das meninas ou no em tal discurso. A partir deste exemplo, as feministas defendem que

    formas de tratamento sejam incorporadas no ambiente escolar (Louro, 2014, p.69). Spender enfatiza

    que: ao utilizar a expresso genrica a referncia na verdade uma espcie constituda por

    homens (Spender, 1993, p.202). Consequentemente, pode se dizer que a linguagem promove a

    ocultao das mulheres nos diversos discursos que encontramos na sociedade. Resgatando o excerto

    estudantes, presente no ENEM 2015 acompanhado pelo artigo os ou um (representado no

    Grfico 01 pelo maior setor), podemos consider-lo similar ao exemplo fornecido por Louro.

    Ao relacionar as possibilidades que o grau de instruo pode proporcionar ao mercado de

    trabalho, temos que, a partir dos dados fornecidos por Valds e Gomriz (1995), citado em Abramo

    (2000), com base em investigaes produzidas nas zonas urbanas da Amrica Latina, as mulheres

    economicamente ativas possuem nove anos de instruo. Na mesma regio os homens, com um

    tempo menor, se encontram com oito anos. Quando comparadas as dificuldades dos homens com

    um nvel educacional mais baixo, as mulheres em uma situao similar suportam mais barreiras

    ocasionadas pelas desigualdades de gnero (Abramo, 2000, p. 79). Em suma, podemos considerar

    que elas necessitam de maior instruo para atingir os mesmos postos que eles e, portanto,

    considerar apenas os estudantes em vez de as tambm um item no condizente com a

    realidade em que o ENEM foi produzido. Com base nas discusses construdas, pode se defender a

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    ideia de que as mulheres possuem a mesma capacidade que os homens de serem consideradas como

    estudiosas. No entanto, parece que o padro da linguagem ainda coloca o homem em uma posio

    superior a elas.

    De acordo com o Retrato das Desigualdades de Gnero e Raa, publicado pelo IPEA (2017),

    ainda que alteraes no mercado de trabalho tenham ocorrido, e tambm mudanas nos aspectos

    culturais da sociedade tenham se instaurado, as desigualdades permanecem. Acerca destas,

    podemos citar as diferenas presentes nos desnveis salariais, na taxa de desemprego (a das

    mulheres acaba sendo maior que a dos homens) e nas ocupaes de trabalho.

    Referente segunda parte do grfico 01, de maior destaque, verificamos a carreira de

    cientista. De acordo com o filsofo Georg Hegel (1770 1831): "A mulher pode ser educada, mas

    sua mente no adequada s cincias mais elevadas, filosofia e algumas das artes" (Silva, 2011,

    p.1).

    Para Abramo as imagens de gnero so importantes no processo de constituio das

    categorias que vo estruturar a construo dos postos de trabalho e tambm os perfis de

    qualificao e competncia a eles associados (Abramo, 2000, p. 90). As imagens que se tem da

    mulher, embutida culturalmente na sociedade, tem os reflexos da dona do lar e me. essa a

    representao que se superpe a personagem trabalhadora e, portanto, a possibilidade da

    personagem feminina se envolver com pesquisas cientficas (estando envolvidas com atribuies

    domsticas) acaba sendo classificada como nula. Ainda que atualmente o contexto tenha se

    alterado, a predominncia nas carreiras cientficas (em particular das cincias exatas) continua

    sendo do pblico masculino.

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    Ao retomar a anlise do grfico 01, interessante notar que trs carreiras tiveram um

    empate: a de professor, atleta e agricultor. De maneira antagnica, em comparao com a figura

    masculina, as mulheres no foram citadas e, no era de se estranhar, nas profisses que demandam

    esforos fsicos a invisibilidade continuou.

    Conforme as pesquisas da Abramo, as atividades profissionais do setor urbano so as que

    incorporam mais mulheres do que as desenvolvidas no setor rural. Entretanto, apesar de tal dado,

    isto no significa que em outros pases uma nova realidade seja encontrada como, por exemplo, a

    centralizao de mulheres em atividades rurais em vez de urbanas. Neste ltimo caso, temos pases

    como Bolvia, Colmbia e Paraguai, entre outros (Abramo, 2000, p. 77).

    Apesar de uma elevao significativa da presena feminina no mercado de trabalho, as

    desigualdades no foram amenizadas ou reduzidas. A maior parte dos empregos femininos continua

    centrada em alguns setores de atividade e agrupada em um pequeno nmero de profisses, e essa

    segmentao continua estando na base das desigualdades existentes entre homens e mulheres no

    mercado de trabalho, incluindo as salariais (Abramo, 2000, p.78).

    Podemos verificar que, alm das profisses que incorporam esforo fsico, nas atividades

    que demandam a utilizao de ferramentas ou maquinrios com mais tecnologias, so os homens

    que marcam presena. No grfico 01 notvel, mesmo com um percentual menor, que a figura

    masculina foi apresentada vinculada carreira de eletricista (atividade que demanda conhecimento

    tcnico, habilidades e um certo esforo fsico).

    Considerando que as indstrias absorvem muitos profissionais para trabalhar no setor

    eltrico e tambm nos maquinrios, ainda que a segmentao ocupacional dos gneros persista no

    mercado de trabalho, parece que a presena das mulheres nos servios da indstria no

    considerada. Entre os anos 70 e 80, a industrializao era concebida como alternativa para expulsar

    a fora de trabalho feminina dos setores mais modernizados da economia (Abramo, 2000, p. 86).

    Por meio de uma pesquisa efetuada no Chile, em particular no setor industrial, foi verificada

    uma maior participao das mulheres nos trabalhos que envolviam o manuseio de mquinas

    convencionais. Em contrapartida, naqueles maquinrios com mais tecnologia (programveis), os

    nmeros encontrados foram menores. Segundo Abramo: a maquinaria tendia a ser incorporada nas

    sees chaves do processo produtivo, no qual os postos de trabalho (mais qualificados) eram

    ocupados principalmente por homens (Abramo,2000, p. 87)

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    Nas industrias, medida que os maquinrios de alta tecnologia eram incorporados, a

    operao destes era dada aos homens. Consequentemente, a masculinao dos trabalhos foi

    favorecida em razo dos executivos considerarem que os homens eram mais indicados para tal

    tarefa. A partir dos comentrios tecidos, podemos supor que as mulheres no foram favorecidas no

    ambiente industrial que demandava a habilidade com recursos tecnolgicos.

    Contraditoriamente, a ao vinculada ao esforo fsico e trabalho industrial, temos a ligao

    com a parte intelectual que foi destacada no grfico 01 pela carreira do magistrio. O ENEM ao

    fazer meno do cargo Professor, coloca o personagem masculino como sendo da disciplina Fsica.

    No de se estranhar, pois como aponta Giffin, h um carter identitrio do homem com qualidades

    relacionadas mente, produo e razo (Giffin, 2005, p. 48).

    Acerca das imagens de gnero, elas podem ser definidas como configuraes de

    identidades masculina e feminina produzidas social e culturalmente, que determinam em grande

    parte, as oportunidades e a forma de insero dos homens e mulheres no mundo do trabalho

    (Abramo, 2000, p.89). Segundo a autora, estas caracterizam os denominados territrios femininos

    ou masculinos e, consequentemente, contribuem para os processos que estruturam a diviso sexual

    do trabalho.

    Consideraes finais

    Desde os primrdios da construo da humanidade, notria a distino presente entre os

    afazeres designados s mulheres (meninas) e homens (meninos). Ainda que muitas conquistas

    tenham sido em partes alcanadas (elevao da participao delas no mercado de trabalho, acesso

    aos estudos e entre outras.), existe um longo caminho a ser trilhado.

    Com as reflexes, possibilitadas por este trabalho, so perceptveis os discursos

    preconceituosos de gnero. Desta forma, podemos dizer que parte da sociedade continua

    concordando com as afirmaes sexistas dos filsofos citados.

    De acordo com Louro, currculos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem,

    materiais didticos, processos de avaliao so, seguramente, loci das diferenas de gnero,

    sexualidade, etnia, classe- so constitudos por essas distines e ao mesmo tempo, seus produtores

    (Louro, 2014, p. 68). O modo como o currculo empregado no ensino, faz todo o sentido na

    diminuio das diferenas de gnero, raciais, entre outras.

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    Seminrio Internacional Fazendo Gnero 11 & 13th Womens Worlds Congress (Anais Eletrnicos),

    Florianpolis, 2017, ISSN 2179-510X

    No contexto atual, as desigualdades persistem e so reforadas pelos esteretipos de gnero

    construdos ao longo da existncia da humanidade. Entretanto, as condies se comparadas nas

    dcadas anteriores a 70, so bem diferentes. A partir da dcada de 70, com as lutas que foram

    estabelecidas, direitos e uma nova realidade se formou: a da gerao ps-crtica. Apesar do

    surgimento desta nova realidade, os materiais e ambientes escolares necessitam ainda incorporar

    mais aes que promovam a equidade nas diversas instncias.

    Referncias

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    The representatios of gender in questions about Natural Sciences in ENEM 2015

    Abstract: The genesis of this study was based on the analysis carried out from the National High School Examination 2015 (ENEM). Through the questions of Natural Sciences of this examination,

    it was possible to verify how is gender representation in the professional aspects approached. The

    conception of woman pointed out, constantly carries the influence of the patriarchal thoughts

    reinforced by Rousseau and Hegel. According to the mentioned philosophers, men must be

    educated to marry, have children and to be subordinate to man. In short, they should not work

    outdoors; much less disagree with a male decision. In the present century, for example, the

    stereotype that individuals have roles to play in society still seems to have traces of earlier

    philosophers, although insertion into the labor market has occurred by them. With curricular studies

    (specifically the emergence of post-critical theories), transformations in the method of how and

    what to teach came to corroborate with discussions about gender, racial, cultural, and other

    inequalities. From this documentary and bibliographical research, we hope that the present work

    will motivate researchers to continue studies in the area of gender, science and curriculum.

    Keywords: Natural Sciences. Gender. Curriculum.