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As sete vidas do amor - Trecho

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Faltam sete dias para o Natal e, enquanto confessa seus pecados e insatisfações ao padre, Ada depara com o olhar ambíguo de um persa preto aos pés do sacerdote. Sem que ela saiba o real motivo, nota-se roubando o felino e levando-o para casa. Assim, Bemot, o gato surrupiado na sacristia, está fadado a assistir ao desenrolar das tramas da história, enquanto as protagonistas passam por situações difíceis e se veem forçadas a enfrentar um novo começo.

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Page 1: As sete vidas do amor - Trecho

TraduçãoMario Fondelli

Rio de Janeiro | 2013

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É a sua vez, Nina, mexa-se.

Com passo arrastado, cabelo fino muito curto e despenteado,

olhar e rosto sombrios, avança ao longo da piscina. Para diante de

um banco, livra-se dos chinelos de borracha, sacode dos ombros o

roupão branco, deixando à mostra as pernas saradas e bronzeadas.

Descalça, de ombros largos que mal cabem no maiô de competição,

segura uma touca na mão e se encaminha ao trampolim mais alto.

Está segurando a gente, não podemos ficar todas esperando atrás

de você. Vamos lá, Nina.

Nina olha em volta: o quadro luminoso acima das arquiban-

cadas não indica o horário, está apagado. Ninguém à vista.

Enfrenta decidida a escadinha.

Um degrau após o outro, mas um murmúrio longínquo con-

tinua a zunir na sua cabeça, transforma-se na voz cada vez mais

nítida da sua primeira treinadora de natação.

Ou você pula, Nina, ou amanhã nem precisa voltar. Falarei com

a sua mãe.

Ao chegar lá em cima, a segurança já não é a mesma, e Nina

perdeu 25 anos subindo aquela escadinha, agora só está com cinco.

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O plástico áspero belisca a planta dos pés, as pernas parecem

virar geleia e Nina aperta os olhos.

Inspira.

É água, Nina, não pode ter medo dela.

Expira.

A treinadora berra que tem de cortar o cabelo. Que comprido

daquele jeito, como Maria Madalena, não dá, só pode atrapalhar.

Avisa mais uma vez que é a sua última chance. Se não botar de vez

aquela sua cabeça embaixo d’água, desta vez está fora.

Nina arregala os olhos, enfia o novelo dentro da touca, impul-

siona-se com os pés e os braços, cabeça baixa e lá vai.

O azul se quebra, rasgado pelo impacto do corpo malhado. Lá

embaixo é diferente, outro mundo, os ladrilhos da piscina são extre-

mamente brancos. Aliás, nem existem mais.

Dentro d’água Nina volta a ter 30 anos e já não ouve voz alguma

na cabeça. Os cabelos esvoaçam fluidos e ela nada entre bancos de

algas e fundos rochosos.

Das frestas, mil peixes coloridos aparecem, com as costas listradas

de amarelo. Mais adiante, um polvo solitário está enroscado em seus

tentáculos rosados. Enquanto isso, os dorsos morenos dos chernes,

os cinzentos dos robalos, os azulados dos dourados deslizam ao seu

lado. E mais: estrelas pulsantes e grandes anêmonas que parecem

escovas. Paredes esponjosas de corais. E mil brilhantes lantejoulas

transparentes de cavalos-marinhos, dragões-do-mar, águas-vivas.

Através das quais Nina passa e desaparece.

Um bonito gato persa, preto, descansa na terra de um vaso, numa

sacristia. Afasta a folha do fícus meio ressecado que o hospeda e

espia os movimentos de um homem claudicante.

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Logo que o coxo sai do aposento, o gato galga rápido a planta,

espicha-se com as patas sobre uma pequena prateleira e aperta o

“play” do gravador que dá a partida ao som dos sinos.

Duas horas antes de quando os alto-falantes deveriam anunciar

a missa.

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Segunda-feira

— Hoje o dia está realmente sem graça. Só espero que Van Gogh, da

sua nuvenzinha, esboce um horizonte de trigo para nos presentear.

Com uma mão protegendo os olhos e o nariz apontando para

cima, Ada perscruta o céu desmaiado: no mínimo, alguém lá em

cima deve ter errado o programa da máquina de lavar, para pen-

durar no varal um azul tão sem graça, só pode ser isso.

Uma pitada de amarelo desponta por trás dos pequenos morros

e finalmente a obriga a apertar os olhos cor de avelã, estampando

um meio sorriso em seus lábios. Está com 60 anos, aquela careta.

E é pura doçura avoada. A mesma coisa o rosto: cansado mas de pele

bem lisa, de creme Nívea. Quanto às olheiras, nada a fazer, são de

nascença. Uma vida antes, no quinto ano supletivo da escola normal,

Nunzia Esposito comparou-a a Patti Smith.

Giulio nem teria pensado nisso. O marido, naquela época, ainda

ouvia Mal, matuta a dama consigo mesma, enquanto avança deci-

dida para chegar ao Aviário.

Sempre chamou assim a igreja do bairro, associando-a a uma

enorme gaiola de pássaros. Parecida com aquelas normalmente

penduradas num pau, de cúpula circular e barras bem distantes

umas das outras.

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Mas pendurados por lá como quem não quer nada, hoje de

manhã, só há mesmo uns garotos que vivem arrastando os pés pelo

adro.

Depois de quarenta anos de profissão, desde que ela virou gente,

em resumo, o ano escolar sempre continuou até 21 de dezembro;

hoje é apenas o 17, e além do mais o colégio fica bem em frente.

Ada prefere nem perguntar por que estão na rua, e não lá dentro.

Dá uma lida rápida num anúncio fúnebre colado na parede, para

perto da entrada e passa rapidamente os olhos nos avisos afixados no

quadro. Viagens de ônibus para Pompeia e San Giovanni Rotondo.

Comunicações de rotina, horários das missas, calendário dos casa-

mentos, primeiras comunhões...

— Dona Ada!

André, um varapau desengonçado na casa dos trinta, aperta a

mão dela com força e revela, baixinho, que perdeu mais de meia

hora numa interminável conversa com o padre, só para marcar a

data do batismo do primeiro filho.

— Dom Giuseppe? — estranha Ada. — Mas se ele mal consegue

falar!

— Dom Giuseppe está num retiro espiritual, para preparar-se

para o Natal. Foi dom Luigi... ele e o seu sentido da ablução: não

parava mais de encher a minha cabeça — diz André, agitando os

braços. — E a senhora já sabia que, com a água benta, o batizado se

transforma em filho da luz?

— Já me falaram a respeito.

— Eu nem desconfiava. E nem consegui mais prestar atenção,

depois de “filho da luz”, a minha cuca virou um verdadeiro

carrossel.

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Ficaram conversando algum tempo sobre os nomes e sobre

como os apelidos, às vezes, só conseguem deturpá-los. Ada acaba

prometendo que irá visitá-lo, o pequeno Pasquale (inteirinho, nada

de Paco, nem Pascoalzinho ou coisa parecida).

Não vai contar a Nina que encontrou o seu amiguinho do

ginásio. A filha está ocupada com outras imersões, sacramentadas

exclusivamente por ela mesma.

E com indiferença responderia certamente algo assim: “Mãe,

nem lembro o que comi hoje, acha mesmo que vou me lembrar do

André?”

Ou então, com cínica desforra: “Quer dizer que André, aquele

carrapato que nem me deixava treinar, conseguiu reproduzir-se?

Darwin bem que dizia: a evolução leva um bom tempo para se

extinguir.”

Não, não, melhor não contar nada, conclui Ada entrando na

igreja. A nau central, no entanto, está barrada por uma rede de fitas

coloridas que prende os bancos uns aos outros.

Um homem coxo — o mesmo que perambula com a cestinha

das esmolas durante as funções religiosas — arrasta-se até ela e

entrega um papel e um lápis.

— Hoje vai haver a purificação pré-natalina — explica. — Escreva

aqui os seus pecados, depois dobre o papel, queime-o no círio diante

do altar e aí jogue no balde ali embaixo. Não esqueça o sinal da cruz

na pia da água benta lá no fundo. Eu vou controlar daqui.

Ada fita-o atônita:

— Mas eu só vim aqui para me confessar.

— Pois é. O processo é justamente este. Só quando a coisa for

muito séria vai precisar falar com dom Luigi.

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— E dom Giuseppe, quando é que ele volta?

— Não faço ideia.

Ada, com um sorrisinho entre o cínico e o maroto, pula por

cima da primeira fita e, num banco, encontra um pequeno cartaz

com a palavra: “pretensão”.

Hesita, às vezes é de fato meio arrogante, bem sabe disso. Mas

quem alardeia não ser pretensioso não peca, por isso mesmo, de

pretensão?

Sem tomar nota de coisa alguma, vai em frente e deixa para trás

a “intolerância”.

Não, intolerante nunca. Se eu tivesse sido intolerante, nunca

teria aguentado a impassível pachorra de Giulio.

Passa decididamente por cima da “arrogância”. Voa além do

“orgulho” e da “prepotência”. Então, para.

— Esta sim, esta tem realmente a ver comigo.

Alcança o altar, entrega às chamas a “indiferença”, vê o papel

consumir-se num balde cheio até a borda de cinzas e continua

adiante, em busca do padre.

— O sinal da cruz — grita o coxo, que vigiou o tempo todo o

progresso dela da sua posição perto da entrada.

Ada obedece, lança um olhar de desaprovação à gruta de papelão

amassado do presépio e bate à porta da sacristia.

— Dom Luigi, hoje ainda está confessando do jeito antigo?

— Minha senhora, se o labirinto não a deixou satisfeita, pode

entrar e sentar — responde o sacerdote, indicando uma cadeira

diante da sua escrivaninha.

Não está usando a batina. Calças e suéter de gola rulê, escuros.

Olhar severo e cabelos mais ralos do que da última vez que o viu.

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Um anel de ouro maciço brilha no dedo e aparece entre os pelos

de um gato persa branco aninhado em suas pernas. Ali perto, numa

poltrona, mais um felino, também persa, mas muito mais gordo que

o primeiro e preto como breu.

— Vamos ficar aqui? — Ada pergunta, meio insegura.

— Optei pela confissão cara a cara.

A mulher decide sentar. Mas aquele gato preto a incomoda

demais. Fica ali, esparramado, de cabeça levemente para trás, e a fita

com dois vítreos olhos verdes.

Finge ignorá-lo e resmunga:

— Meu Deus, estou arrependida porque pequei...

— Não, nada de Ato de Contrição — interrompe o padre. —

Continue.

Ada se cala, constrangida, não está acostumada a todas essas

novidades. A sua religiosidade é pura liturgia. A sua autêntica fé

é meramente estética. A ela, as igrejas interessam principalmente

como edifícios, pelas obras de arte que guardam. Mas é claro que

não pode contar isso a dom Luigi.

— Pelo menos uma vez por ano, temos a obrigação de con-

fessar nossos pecados, como a senhora já deve saber — admoesta-a

o padre. — Quanto aos veniais, podemos até passar por cima, pois já

enfrentou o labirinto, mas se veio até aqui, quer dizer que teremos

de analisar os mais graves.

Ada continua calada, mas agora amuada.

— A confissão — continua dom Luigi, pedante — reforça

o liame com o Senhor e ajuda a formar a consciência para que

possamos evitar escolher maus caminhos.

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— Dom Luigi, eu me confesso amiúde com Deus, isto também

vale, não vale? — rebate Ada, não tolerando ser repreendida como

uma menina na escola e, por um momento, esquecendo o gato. —

Quanto à consciência, acho que a minha já está formada, pois tenho

idade para isso.

— A consciência nunca para de formar-se, minha cara senhora.

E Deus não pode ser incomodado por razões particulares.

O gato branco no colo parece estar dormindo, entorpecido pelos

carinhos, com uma pálpebra completamente fechada e a outra en-

treaberta. O preto, por sua vez, está imóvel, com o corpo esparra-

mado ao comprido e de cabeça erguida, fitando-a muito concen-

trado.

— O senhor gosta de gatos, padre?

— São criaturas de Deus, como nós.

— Quer dizer que têm alma?

Desde que entrou, Ada tem o nome daquele gato na ponta da

língua. Mas não consegue lembrar. Sabe que, em algum livro, era o

companheiro do Diabo, um dos seus guarda-costas. E lembra prin-

cipalmente uma cena em que o felino pula num lampadário, puxa

um revólver e desencadeia um tiroteio.

— Ninguém tem alma, ela pertence ao Senhor.

Aí o gato branco boceja e o preto mia, ressabiado.

— Está vendo? Até falam — comenta o padre, rindo.

— Quer saber mesmo? Eu prefiro o Evangelho à Bíblia. E só fico

contente com a existência do Vaticano porque encomendou várias

obras de Michelangelo.

— São pensamentos provocados pela confusão da atualidade —

dom Luigi meneia a cabeça, desconsolado. — É uma época apres-

sada, vazia. Sem valores.

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— E se, no entanto, dependesse do meu egoísmo? Não consigo

perdoar a minha filha, por exemplo.

— Pelo quê?

— Por não sentir a minha falta. O seu presépio lá fora, aliás, já

tem uma criança, e ela ainda nem nasceu.

O gato preto pula na escrivaninha e Ada também dá um pulo

para trás na cadeira. O felino se espreguiça. Aproxima-se e escancara

a boca. Tem longos dentes, finos, e uma língua roxa.

— O menino já está na gruta por uma razão puramente logís-

tica — explica dom Luigi. — Não podemos colocá-lo ali na noite

de Natal, encenando uma peça como no teatro...

Ada se cala. O gato começou a roçar-se numa pilha de certi-

dões à direita do pároco, mas continua de olho nela. Está de tocaia,

pronto para atacar.

— Minha senhora, o renascimento do Natal tem de acontecer

por dentro.

Ada levanta-se de repente, continua desafiando o olhar do gato,

fica ali estática, hipnotizada, de bolsa na mão e de joelhos levemente

dobrados. Um sopro chega à sua boca e a única palavra que sai é:

— Be-mot.

O felino abana o rabo, feliz por ter sido finalmente reconhe-

cido.

Leve-me, parece dizer.

Dom Luigi só consegue gaguejar:

— Não, o gato nããão.

Mas Ada, com uma manobra repentina e envolvente, já está

levantando-o, decidida, com ambas as mãos, pela barriga, e Bemot

se segura direitinho em seus ombros com as garras. Formando uma

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coisa só, lançam-se para a porta. Ao chegar ao altar, a mulher sus-

pira e para diante do labirinto que impede a fuga; o gato, além

do mais, é bem pesado. Aí, ajeitando-o melhor, ela se enfia na

maranha e derruba um banco, superando os obstáculos com pulos

ágeis, cada vez mais ritmados à medida que se aproxima da saída.

O sacristão, ouvindo os “pega ladrão, pega ladrão” de dom Luigi, foi

logo pensando em alguma coisa séria, como o roubo de um quadro

da Virgem ou de um crucifixo; quando percebe que quem foge é

a mulher, tenta uma desesperada perseguição: arrasta-se ofegante,

coxeia, tropeça e fica emaranhado na rede de pecados veniais que

ele mesmo, pessoalmente, jamais enfrentou. Ada ri consigo mesma,

não sabia que despistar as pessoas era tão divertido e libertador na

vida. Ultrapassa o adro, expedita, acelera as passadas e se afasta com

Bemot embaixo do braço.

O gato não se mostra assim tão satisfeito, se agita, mia zangado,

mas é preguiçoso e, depois de alguns metros, já fica mais tranquilo.

— Gosta de ser afagado, não é? — pergunta Ada, seguindo em

frente.

De repente se dá conta de que o roubou e pensa em voltar para

devolvê-lo. Mas como aguentar as ladainhas do padre? Vai ver que

dali a alguns dias irá aparecer lá em casa. E Giulio?

O marido certamente dirá: “O que deu em você, Ada? O que

passou pela sua cabeça? Se precisava de um neurologista, era só

dizer, ora essa.”

Giulio é assim mesmo, sempre racional, sempre encontrando a

chave para todo tipo de fechadura. Sai logo procurando e aí, a pri-

meira que encontra, se arruma com ela.

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É verdade que desde setembro, isto é, desde que se aposentou,

Ada não consegue parar um minuto e se esforça ao máximo para

se manter ocupada. Lê todos os livros e vê todos os DVDs que Nina

deixou no seu quarto, cozinha em versão “light” todas as receitas

dos programas da TV, limpa e arruma a casa de cabo a rabo, cuida de

Giulio do melhor jeito possível, liga para as amigas. Mesmo assim,

no entanto, e apesar de tanto esforço, desde que parou de ensinar

perdeu tudo. Ou melhor: percebeu que não guardou coisa alguma

para si.

Nem mesmo quando Nina foi embora sentiu-se desse jeito.

Talvez porque, quando a filha ainda estava em casa, no fundo era

como se não estivesse.

O sinal de trânsito está vermelho para os pedestres, Ada se detém,

ofegante, espera o verde e acaricia o gato. O bicho não está com

medo, olha para ela como se a conhecesse desde sempre.

— Ada! Senhora Adaaa!

Uma jovem dirigindo um pequeno carro encosta do outro lado

da rua e agita o braço.

Ada abre-se num sorriso e murmura:

— Veja, Bemot, veja só quem apareceu. A nossa Mara.

Mara e Nina são irmãs por afinidade, devido a coincidências

temporais e espaciais nunca esquecidas. O mesmo pedaço de céu

sobre o hospital em que nasceram. Mesmo andar, mesma idade.

Mesmas escolas, mesmas primeiras festinhas nas tardes de sábado.

Mesmos atrasos nas noites de sábado. Mesmos shows.

No vocabulário e nas atitudes, principalmente se estiverem

juntas, são muito parecidas, mas dentro das roupas que partilhavam

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cresceram duas adultas opostas ou simplesmente duas meninas que

mantiveram intatos os matizes das diferenças: uma de cabelo cas-

tanho e pele morena, a outra de cabelo preto e pele mais clara; mas

se, em cores, Nina parecia friamente azul, Mara brilhava em tons

vermelhos.

— Que surpresa! — exclama Ada, mergulhando na janela aberta.

E Bemot fica espremido no abraço.

— E ele, de onde saiu? — pergunta Mara, roçando-lhe a cabeça.

— Ele? Um presente do padre. Mas conte-me de você, o que está

fazendo por aqui?

— Estava precisando de umas coisas da casa dos meus pais. Estou

morando em Nápoles, como você já deve saber. Mas no Natal Nina

também vai aparecer, vamos nos reunir.

— Acho difícil. Nem para o Ano-novo ela vai dar as caras.

— Nesse caso, pegamos um avião e nós mesmas vamos visitá-la.

Suba, vamos lá, lhe darei uma carona para casa.

Ada não se faz de rogada e dá a volta no carro. Ajeita-se no

assento do passageiro, mas a sua casa fica logo ali, na esquina, de

forma que pergunta:

— Se tiver um tempinho, poderia me acompanhar até um pet

shop? Bemot precisa de um lugar para dormir e merece uma porção

de petiscos.

O gato mantém distância, de olhos fixos nos cabelos de Mara.

Tanto que ela, por um momento, receia que o bichano planeje pular

num cacho em particular, agarrando-se na sua cabeça. E o nome

também é bastante improvável. Mas a mãe de Nina, é claro, nunca

ia chamá-lo com o nome de um bom cristão. A mulher sempre

foi um tanto sui generis. Muito mais que a filha, considera Mara

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enquanto a vê sair da loja, provida até de uma gaiola de viagem. Ada

então propõe uma pizza para levar e um banco no jardim da praça.

A pizza para elas, o jardim para Bemot, obviamente.

Que pula ao chão e responde com olhar atrevido a um yorkshire

preso na coleira pela dona.

— Então, advogada, como vai o trabalho? — pergunta Ada.

— Não posso me queixar. Até que eu gosto.

— O importante é que se sinta envolvida, interessada; as pessoas

pioram com o tempo. Imagine só se ainda tiverem de remar contra

a correnteza.

— Pioram mesmo? Puxa vida, mas que boa notícia — Mara rebate,

irônica, enquanto destampa a garrafa de Coca com o isqueiro.

— Onde aprendeu isso? — indaga Ada, curiosa.

— Acampando. Em Palinuro — revela Mara. — A noite em que

conseguimos, ficamos tão contentes que tomamos duas cervejas

cada, e caímos no sono.

— Mas que bonito! — resmunga a outra.

— Ora... tínhamos de festejar — tenta consertar a jovem, lem-

brando que está falando com a mãe da amiga, e não com a amiga.

— O cara da barraca ao lado tinha ido embora e levara o abridor.

— Uma verdadeira tragédia — comenta Ada, irônica. — Imagino

que quem ia incomodar o vizinho era você, sempre foi a mais des-

pachada.

— Nada disso. O tal sujeito ficou caidinho pela Nina. Até nos

levava à discoteca, deixava-nos lá na ida e vinha nos buscar na

volta.

— E Nina aguentava essas atenções?

— Odiava. Mas era cômodo demais ter um Ambrogio de férias.

E afinal, quem sempre insistia em dançar era a Nina.

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De repente Ada fica de cara amarrada, amarrota o papel gordu-

roso de pizza e procura abrigo no olhar devotado de Bemot, deitado

de barriga na grama.

— Algo errado? Sabíamos o que estávamos fazendo, não está-

vamos aceitando balas de desconhecidos — justifica-se Mara.

E completa: — Ambrogio, como o motorista do comercial dos

bombons Ferrero Rocher, está lembrada?

— Claro. Só que, por um instante, tive a impressão de que estava

falando de Nina como se estivesse morta.

Mara se cala, gelada. Mas só precisa de uns poucos segundos para

se recompor:

— Morta coisíssima nenhuma, Nina está melhor do que eu e

vós juntas. Está feliz como nunca, para ela basta estar na água, só

quer isso na vida.

— Ouça, Mara: Bemot quer saber por que continua me tratando

por “vós”. Normalmente deveria usar “a senhora”, mas trinta anos

de conhecimento recíproco deveriam ser suficientes para o “você”.

— É que sempre vi na senhora uma dama — a outra rebate

meio sem jeito. — No trabalho, no entanto, uso “o senhor” e “a

senhora”... O “vós”, eu sei, é dialetal.

— A primeira coisa que tem de aprender é a língua da pessoa

com quem fala. Um menino criado na rua não é o filho do médico.

Se não aprender, primeiro, como é que o garoto fala, nunca poderá

se comunicar direito com ele.

— É isso aí, eu também reparei. Com os clientes também acon-

tece o mesmo.

— E também com os filhos — acrescenta Ada. — O verdadeiro

problema, de fato, é saber se vale a pena passar a vida inteira nessa

luta.

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— E não vale?

— Já nem sei mais.

A antiga professora se levanta e vai afagar o pescoço de Bemot.

— Sabe lá como reagirá o senhor Giulio ao encontrar o novo

inquilino — ameniza Mara. — Até que gostaria de apreciar a cena.

— E o que irá dizer — diz Ada, sorrindo. — Já posso imaginar:

“E aí, Ada?” Pausa — coça o queixo e a observa com ar inquiridor.

— Uma pausa bem longa — Mara sugere.

— Claro, de uns dois minutos. O tempo de coçar todo o rosto

deste jeito — Ada fecha a boca, esfrega olhos e nariz até parar com a

mão na testa. Então, com o tom mais gutural que consegue, desem-

bucha: — E aí, Ada, hoje bateu a cabeça ao cair da cama?

As duas caem na gargalhada e Mara acrescenta:

— Logo depois esquece o assunto e liga a TV.

— Isso mesmo. As primeiras vezes que o vir passar na sala vai

inventar que é alérgico ao pelo. Depois será como se não existisse.

— Que figura — comenta Mara, novamente séria. E lembra uma

frase de Nina, de forma tão espontânea que a repete nua e crua, sem

avaliar as consequências: — Pois é, certa vez Nina disse que se as

duas fossem raptadas, o senhor Giulio só iria reparar depois de uma

semana.

O olhar de Ada volta a anuviar-se e Mara procura, na mesma

hora, amenizar:

— Mas falou por falar, quase de brincadeira, sabemos muito bem

que o senhor Giulio é avoado.

Então a jovem se cala, é inútil continuar, a outra ajeitou o gato

no colo e é como se já não a escutasse. Mas, ao contrário, vira-se,

amargurada:

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— Nina estava certa, ele nem ia reparar.

— Mas madame, isto é, Ada, Nina ainda era criança, falou só por

falar, não acreditava realmente naquilo.

— Você acha que o meu marido não está apaixonado por mim,

não é verdade?

— Claro que sim — se atrapalha Mara. — Isto é, não, não acho,

claro que está apaixonado.

— Bemot, você também acha que Giulio não me ama?

Ada segura a cabeça do gato sacudindo-a para cima e para baixo.

Aí conclui, saudosa:

— Vocês todos concordam: ele não me ama.

Mara suspira exasperada e dá uma olhada no relógio: faltam dez

minutos para a uma. O primeiro cliente está marcado para as quatro,

e quanto àquelas duas que moram com ela, é melhor encontrá-las o

mais tarde possível, mas Ada também está alimentando a sua into-

lerância cósmica.

— Podemos ir, Marazinha? Afinal, não há nada que possamos

fazer se Giulio não me ama.

— Ora, Ada, isso não passa de uma mania repentina — desabafa

a jovem.

— É o que Nina também não se cansa de dizer.

— Não é verdade. Pode ser que o seu marido não seja lá um

homem muito ativo, mas vocês dois formam um casal sólido.

— Ainda assim, mesmo quando eu dou marcha à ré, ele nem

repara.

— Então vamos fazer uma aposta: venha para Nápoles comigo e

você vai ver como ele logo virá buscá-la.

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AS SETE VIDAS DO AMOR

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Ada deixa uma careta terna desenhar-se em seu rosto, parece

relutante. Mara está convencida de que a mãe da sua melhor amiga

nunca seria capaz de um atrevimento como aquele, mas aí a vê

mostrar o gato e perguntar:

— E poderia levar este menino comigo?

Enquanto isso, no sopé do Vesúvio as câmeras externas de vila

Macrì estão focalizando uma van amarela. É o pequeno ônibus

escolar de um colégio particular que todos os dias, àquela hora,

deixa ali o menino que mora em frente.

Os dois devotados rottweilers de Nando Macrì lançam-se pon-

tualmente contra a porteira e começam a latir como se estivessem

possessos. O anúncio cotidiano daquele regresso é, em absoluto,

a maior ofensa que poderiam fazer a Gilda Macrì.

Ela os observa e planeja uma vingança por trás das vidraças da

sala de estar. Aqueles dois ogros já arrebentaram um balanço, des-

truíram um anão e devastaram as plantas. Ela os odeia. Assim como

odeia o fato de o almoço estar na mesa enquanto Nando fica ali, no

seu escritório, de pés apoiados na mesa de trabalho, rindo com sabe

lá quem ao telefone. Assim como odiava, até umas poucas semanas

antes, a criada ucraniana que ele contratara.

Mas até que se livrar daquela Zoja havia sido fácil, bastara dizer

“é isso ou nada”, Gilda mente a si mesma, com o consolo tardio do

caso resolvido.

Depois de viver assim por dois anos, quando aquela peste de

eslava (e Gilda a chamava assim mesmo, na cara, toda vez que dei-

xava de lado o dialeto e falava italiano) pediu a carteira assinada,

Nando resolvera mandá-la embora.

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CARLA D’ALESSIO

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Quanto aos dois cães — que o marido, com muita imaginação,

batizara Rocky e Rambo — desta vez Gilda se havia prontamente

organizado.

Ambos têm o cabeção grande de um recém-nascido, os olhos

brilhantes e vermelhos. Obesos e agressivos, zombam dela e esperam

despedaçá-la assim que ela se atrever a dar um passo na pequena

alameda.

Mas ela vai ser mais rápida, Gilda diz a si mesma ao fechar as

cortinas sobre aquele panorama.

Do outro lado do Mediterrâneo — passando perto da Córsega e

da Sardenha, costeando as Baleares e fundeando no porto de Valença

— o despertador digital na mesinha de cabeceira de Nina lampeja:

“14:10, lunes, 17 diciembre”.

Ela está deitada de bruços, os cabelos arrepiados como uma

punk, as pálpebras fechadas, apertadas, fingindo dormir.

— Amor, yo me voy — grita Javier do corredor.

Nina se vira e suspira aliviada para o teto.

— ¿Nos vemos más tarde? — acrescenta o rapaz, aparecendo na porta

e pegando-a de olhos finalmente abertos.

Devia ter imaginado: o sujeito ainda nem se foi e já está reser-

vando a mesa para o jantar.

Nina limita-se a concordar. Livra-se dos cobertores, corre para

o cabide ao lado da porta e veste um robe espalhafatoso, todo cheio

de flores coloridas.

E ele tem uma ideia:

— Ahora te ato como si fueras um matambre — diz, enroscando duas

vezes o cinto em volta da cintura dela. Cutuca-a, mordisca-a por

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