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As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico. Marcelo Duprat Pereira 2018 Publicado pela ULisboa Faculdade de Belas Artes - ULBAM7567 Resumo O estudo da relação entre a forma e o conteúdo, segue sendo fundamental para o desenvolvi- mento do pensamento visual nas artes. Os conceitos de ideia plástica e conteúdo formal, de- rivados deste estudo, têm um significado bastante preciso para os artistas, mas permanecem obscuros para a grande maioria dos observadores, que normalmente associam o conteúdo de uma obra somente ao tema e a representação. A análise que desenvolveremos da gravura de Rembrandt, intitulada As três Cruzes”, ofere- ce um excelente estudo desta relação, pois através dela podemos indicar com clareza e obje- tividade como o conteúdo plástico e abstrato das obras de arte, ou seja, os conteúdos que emanam da própria forma, dialogam com os conteúdos semânticos ou narrativos, estes sim ligados ao tema da obras e a seus significados. Abstract The study of the relationship between form and content remains fundamental for the deve- lopment of visual thinking in the arts. The concepts of plastic idea and formal content, deri- ved from this study, have a very precise meaning for artists, but they remain obscure for the great most of the observers, who usually associate the content of a work only with the theme and the representation. The analysis of Rembrandt's engraving entitled "The Three Crosses" offers an excellent stu- dy of this relation, for through it we can clearly and objectively indicate how the plastic and abstract content of works of art, that is, the contents that emanate in their own way, dialogue with the semantic or narrative contents, these linked to the theme of works and their mea- nings.

As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico

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Page 1: As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico

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As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico.

Marcelo Duprat Pereira 2018

Publicado pela ULisboa Faculdade de Belas Artes - ULBAM7567

Resumo

O estudo da relação entre a forma e o conteúdo, segue sendo fundamental para o desenvolvi-

mento do pensamento visual nas artes. Os conceitos de ideia plástica e conteúdo formal, de-

rivados deste estudo, têm um significado bastante preciso para os artistas, mas permanecem

obscuros para a grande maioria dos observadores, que normalmente associam o conteúdo de

uma obra somente ao tema e a representação.

A análise que desenvolveremos da gravura de Rembrandt, intitulada “As três Cruzes”, ofere-

ce um excelente estudo desta relação, pois através dela podemos indicar com clareza e obje-

tividade como o conteúdo plástico e abstrato das obras de arte, ou seja, os conteúdos que

emanam da própria forma, dialogam com os conteúdos semânticos ou narrativos, estes sim

ligados ao tema da obras e a seus significados.

Abstract

The study of the relationship between form and content remains fundamental for the deve-

lopment of visual thinking in the arts. The concepts of plastic idea and formal content, deri-

ved from this study, have a very precise meaning for artists, but they remain obscure for the

great most of the observers, who usually associate the content of a work only with the theme

and the representation.

The analysis of Rembrandt's engraving entitled "The Three Crosses" offers an excellent stu-

dy of this relation, for through it we can clearly and objectively indicate how the plastic and

abstract content of works of art, that is, the contents that emanate in their own way, dialogue

with the semantic or narrative contents, these linked to the theme of works and their mea-

nings.

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AS TRÊS CRUZES A FORMA, O CONTEÚDO PLÁSTICO E O SEMÂNTICO.

Historicamente o pensamento do homem moderno, sua perspectiva e compreensão, é

marcado por uma visão singular das obras de arte. Com a proliferação e consolidação dos

grandes museus da Europa no séc. XIX, o público passou a ter acesso a obras de diversas cul-

turas e épocas, muitas delas desenvolvidas com base nos mesmos temas. Ao contrapor tais

obras, os estilos e soluções plásticos particulares de cada pintor adquiriram um contorno que

antes se mostrava vago e difuso. Como parte desta mudança de leitura, tornou-se possível per-

ceber como os artistas animam suas formas com um forte poder expressivo, utilizando com

criatividade e simultaneamente os dois conteúdos que compõe as imagens; o formal, plástico,

abstrato, e o conteúdo iconográfico, também chamado de conteúdo semântico ou narrativo. O

conteúdo formal é do tipo que percebemos quando comparamos a suavidade feminina de uma

linha sinuosa e ondulante, por exemplo, com o conteúdo mais rígido e masculino que emana

de uma linha reta, com mudanças de direção bruscas. Já o conteúdo iconográfico está ligado

ao tema da obra e ao que nela está representado, como no caso da gravura que analisaremos,

que representa o tema da Crucificação.

Rembrandt –As três cruzes – Gravura em metal, 38 cm x 45 cm , 1653.

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Estas duas possibilidades básicas de manifestação do conteúdo sempre mantiveram

uma estreita relação nas obras antigas. Elas sempre formaram uma unidade. Separar tais con-

teúdos de uma imagem, tal como a perspectiva moderna propõe, nos oferece um acesso ao

que os pintores costumam chamar de ideia plástica, isto é, um conteúdo relacionado a forma

em si mesma, independente do tema escolhido.

Para percebermos objetivamente as características e a relação entre os conteúdos for-

mais e iconográficos, escolhemos analisar não uma obra moderna (onde esta relação é me-

nos equilibrada), mas uma gravura de Rembrandt, intitulada As três cruzes. Nela podemos

verificar não só até que ponto estes conteúdos estabeleciam um diálogo íntimo, como tam-

bém o caráter próprio de cada um deles.

Ao analisarmos a estrutura abstrata sugerida pelo tema da crucificação desde sua

origem, percebemos que a cruz central, além do interesse intrínseco relacionado ao tema,

estabelece um ponto estático de grande peso visual. Rembrandt dinamiza a estabilidade deste

ponto através da articulação de um triângulo de luz que envolve praticamente toda a

composição, e cujo ápice encontra-se fora do campo visual. Este triângulo se relaciona

intimamente com o tema da obra, pois sugere um movimento de elevação da luz (o espírito

de Cristo) em direção ao céu invisível (local fora das vistas e do campo visual).

A base do triângulo é articulada por uma

faixa horizontal de tons escuros, localizados

na borda inferior da gravura. Formalmente,

além de fechar e assentar o triângulo, esta

faixa relaciona-se com o eixo horizontal da

cruz. Do ponto de vista iconográfico ela

sugere que a terra (o chão, a base), durante o

acontecimento, é gradativamente dominada

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pelas trevas, e que o único local por onde a luz pode fluir é justamente a parte superior da

gravura.

A clareza explícita do triângulo, entretanto, é quebrada por dois acontecimentos que

lhe emprestam mais naturalidade. Em primeiro lugar os cantos da base são quebrados pelos

pretos. Em seguida o ápice é quebrado pela luz, que forma um triângulo invertido,

aproveitando as direções compositivas dos braços de Cristo.

Agora observemos o grupo de figuras

da esquerda, que está representado em

contraluz. As personagens conversam entre si

e estão posicionadas de costas para a cena,

como se dela não fizessem parte. A

independência deste grupo em relação à cena

sugere, assim, a indiferença dos homens que

assassinaram o Cristo, como também seu

caráter obscuro (figuras em contraluz).

Plasticamente este caráter é enfatizado pelo

fato do grupo estar rompendo uma das arestas

do triângulo - forma quê, como vimos,

representa o próprio acontecimento de

elevação que fundamenta o tema.

No primeiro plano são apresentados

duas personagens que caminham para fora da

cena. Estas personagens, mesmo não sendo

tão escuras quanto o grupo da esquerda,

também são representadas em contra luz e

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também estão posicionadas de costas para a

cena. Parecem ser as personagens mais

indiferentes ao acontecimento. Elas saem da

cena, encaminham-se para a ponte da

extrema direita, mas, pelo fato de estarem

assentadas em linhas que se dirigem para o

buraco sob a ponte, são para lá conduzidas e

somente com muito esforço podemos

imaginá-las se desviando deste destino

obscuro.

Note-se ainda a relação articulada

entre o conteúdo formal e iconográfico nos

outros dois crucificados, claramente

inspirada no diálogo travado entre Jesus e os

dois malfeitores no calvário. Sabemos pela

Bíblia que um deles duvida que Jesus seja de fato o filho de Deus, enquanto o outro nele

acredita. Na gravura o personagem da direita

tem o corpo arqueado em direção à luz,

como se, em sua redenção, por ela fosse

tragado. O outro tem o corpo entregue ao

abandono da descrença. O movimento de

queda desta segunda personagem é enfatizado pela articulação tonal. Uma mancha negra o

atravessa, desce pela lança da personagem a sua frente, que levanta a esponja, escorrega

como uma serpente pelas costas desta personagem, e acaba por se ligar ao grupo do primeiro

plano.Vê-se assim que em uma obra como a de Rembrandt, o conteúdo formal e o

iconográfico têm um vínculo estreito.

Rembrandt não conduz a expressão dramática da obra representando o Cristo com

um rosto sofredor, ou os soldados com gestos e rostos agressivos. Através das formas, i.e dos

elementos plástico-abstratos, é que Rembrandt expressa o conteúdo da cena. Portanto,

convém lembrar que o modernismo ao se afastar da representação naturalista, rompendo com

a função narrativa, nada mais fez do que silenciar o conteúdo iconográfico a fim de

evidenciar o conteúdo “formal” (já trabalhado por todos os bons pintores mais antigos). A

iconografia e a narrativa, pouco a pouco, foram reduzidas em prol de temas neutros, como

naturezas mortas e figuras isoladas, onde o conteúdo da imagem provém, sobretudo, de sua

articulação formal.

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Entretanto, a possibilidade de separação destes dois conteúdos não é, na maior parte

das vezes, tão clara e simples como parece à primeira vista. Antes de tudo devemos ressaltar,

que escolhe-se deliberadamente a gravura de Rembrandt por se tratar de uma obra onde esta

relação se mostra objetiva, e na qual cada conteúdo contribui e justifica o outro. Mas, ao

considerar uma obra consagrada à supremacia do conteúdo formal, uma obra moderna que

minimize o conteúdo narrativo, como uma natureza morta por exemplo, ou mesmo uma obra

antiga onde esta relação não se mostre tão literária, como em um retrato, percebe-se logo que

tudo se complica. O conteúdo formal tem um significado intraduzível que na falta de termo

melhor chamamos precariamente de “abstrato”. Ao se tentar definir o que ele expressa

através das palavras, violenta-se o seu caráter próprio e irredutível.

Kandinsky, um dos pioneiros da arte abstrata, analisa a diferença entre o conteúdo

formal e o narrativo. Tomando as letras como exemplo, ele observa que o efeito que a letra

produz no observador é duplo: por um lado tem o efeito de um sinal que possui uma

finalidade – “a designação de um determinado som” (Kandinsky, Wassily. Um olhar sobre o

passado. P.125) – e, por outro, o efeito causado pela forma da letra em sim mesma, ou seja,

pelas linhas isoladas, curvadas desta ou daquela maneira. Neste sentido o efeito da letra é

duplo. Kandinsky observa:

1. Ela age enquanto signo dotado de uma finalidade.2. Ela age primeiro enquanto forma, depois enquanto ressonância interior desta for-ma, por si mesma e de maneira totalmente independente. ( Idem, p.126)

Ao retirar da letra sua função de significação ela continua transmitindo determinada

sensação. É justamente este poder expressivo da configuração em si mesma que o

abstracionismo tentava evidenciar. Ao retirar da forma-letra seu significado, a abstração evi-

ta enfraquecer a forma com uma finalidade prática. Mas o que é uma “finalidade prática”?

Na letra vimos que é o “designar de determinado som”. No caso de uma gravura, pintura ou

desenho, esta finalidade é usualmente designada como sendo a representação (designação)

de um objeto ou ícone, que funciona como agente de uma narrativa – isto é, utilizar a dinâ-

mica abstrata das linhas, tons e cores, não por si ou em si, mas para uma representação deter-

minada.

Em sua reflexão, entretanto, Kandinsky não rejeita a representação do objeto, como

seria de se esperar. Pelo contrário, ele adverte que a possibilidade de desdobramento da ima-

gem em conteúdos distintos - o formal e o iconográfico - por um lado liberta a forma abstrata

de qualquer função estranha a própria formulação estética (ele a chama “artística”), mas, por

outro lado, liberta também a representação do objeto de qualquer preocupação formal. A re-

presentação do objeto, que muitas vezes servia de mero pretexto para a criação formal, ga-

nha assim uma nova autonomia. Isto está indicado no mesmo texto anteriormente citado. O

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trecho é um pouco longo, mas devido a sua importância visionária em relação a muitos dos

movimentos que viriam depois, vale a pena transcrevê-lo.

O realismo máximo, que por enquanto só faz despontar, porfia em eliminar do quadro o elemento estético exterior afim de expressar o conteúdo da obra pela simples(inestética) reprodução do objeto em sua singeleza e nudez. O invólucro exterior do objeto - assim concebido e fixado no quadro - assim como a concomitante eliminação da importuna beleza convencional, liberam mais seguramente a ressonância interior das coisas. Quando o elemento ‘estético’ se vê reduzido ao mínimo, é precisamente por intermédio deste invólucro que a alma do objeto se manifesta com mais vigor; então, a beleza externa e lisonjeira já não vem desviar dele o espírito. É isso só é possível pois somos cada vez mais capazes de entender o mundo como ele é, portanto sem acrescentar-lhe qualquer interpretação embelezadora. O elemento es-tético reduzido ao mínimo deve ser reconhecido como o mais poderoso elemento abs-trato. A este realismo opõe-se a abstração máxima, que porfia em eliminar de uma maneira aparentemente total o elemento objetivo (real) e procura reduzir o conteúdo da obra em formas ‘imateriais’. Assim concebida e fixada num quadro, a vida abstrata das formas objetivas reduzidas ao mínimo, com a predominância evidente das formas abstratas, revela o mais seguramente possível a ressonância interior da obra. Assim como o realismo reforça a ressonância interior pela eliminação do abstrato, a abstra-ção reforça essa ressonância pela eliminação do real. (Idem, P.124)

As palavras de Kandinsky esclarecem a ruptura que ocorreu no modernismo entre a

abstração e a representação dos objetos, assim como entre os conteúdos plásticos (abstratos)

e semânticos (provenientes do objeto).

Não há regras para a conquista ou o emprego destes conteúdos da imagem. Um pin-

tor, gravador ou desenhista, pode negar um ou outro (como no modernismo), pode adaptar

um conteúdo ao outro (como no caso da gravura de Rembrandt), ou ainda estabelecer contra-

dições entre estes conteúdos - por exemplo construindo a cena dramática de uma batalha,

com tons suaves, ou uma cena campestre e suave com cores gritantes, cheia de contrastes

tonais, portanto agressiva em termos plástico-abstratos. O que importa aqui, não é tanto o

domínio dos meios de expressão no sentido de os orientar para um determinado resultado,

mas sim a clareza e criatividade com que o artista lida com estes conteúdos, próprios da

linguagem do desenho, da gravura e da pintura.

Portanto, a nossa leitura não visou induzir ao uso de relações racionais e metódicas

entre os dois conteúdos da imagem, relação por sinal rara na história das artes plásticas. Nos-

sa análise visou somente, pautar as diferenças entre estes dois conteúdos a fim de esclarecer

o poder expressivo do conteúdo formal nas artes, tornando mais acessível e concreto o que

os pintores costumam chamar de “idéia plástica”.

Cabe aqui, adiantar uma questão usual. É comum a quem acompanha este tipo de

análise formal levantar a seguinte objeção. Será que o pintor pensou mesmo nesta estrutura

plástica ou abstrata? Não estaríamos forçando uma interpretação, uma leitura moderna?

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Questionar se o artista pensou ou não em uma estrutura de composição para elaborar

uma gravura ou um quadro, é uma atitude corriqueira. Tal questão é natural quando se parte

do pressuposto de que o fazer na pintura é uma atividade estritamente racional (neste caso o

pintor pensou) ou, de outra ordem, uma ação intuitiva, emocional (neste caso o pintor não

pensou). Entretanto, a pergunta traz consigo um pré-conceito velado. Pressupõe que, no

primeiro caso, o artista racional, antes de iniciar seu trabalho, constrói em sua mente uma

imagem da forma que irá realizar (o fazer fica, deste modo, relegado à realização técnica

desta imagem). Por outro lado, no caso do artista emocional, credita-se um fazer puramente

casual, intuitivo, desatento a estrutura abstrata da imagem (como se esta fosse uma mera cas-

ca, em si mesma mero indicador de um sentido ou expressão). A pergunta não deixa margem

para compreender o fazer de outra maneira.

No nosso exemplo é relativamente claro que Rembrandt tinha como ponto de partida

da idéia plástica a estrutura de um triângulo de luz. Mas, se a gravura de Rembrandt se limi-

tasse à realização desta idéia, ela não passaria de uma tosca ilustração. Entretanto, ela é mais

do que a realização de um esquema racional pré-estabelecido, assim como mais do que uma

estrutura casualmente encontrada. Como, então, podemos superar uma oposição que apenas

nos impede o acesso ao pensamento próprio do fazer criativo?

Para pensarmos o fundamento da gênese de uma imagem, não há melhor acesso do

que a palavra dos próprios artistas. No texto de Paul Klee, intitulado Filosofia da criação,

encontramos uma passagem esclarecedora. Klee observa.

[...]a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade in-terior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orienta-ção determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e e, em consequência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma e resultado adquiri-do, acabamento, remate, fim conclusão. Ha que concebe-la como gênese, como mo-vimento, seu ser e o devir, e a forma como aparência não e mais do que uma maligna aparição, um fantasma perigoso. Boa e, portanto, a forma como movimento, como fazer; boa e a forma em ação. Má e a forma como inercia fechada, como detenção terminal. Má e a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumpri-do. A forma é fim morte. A formação é vida. (Klee, Paul. Theorie de l’art moderne. p.60).

Klee pensa o fazer como uma gênese, um acontecimento, em meio ao qual a sensibi-

lidade do artista se desdobra e elabora. Conceber a forma como gênese implica em negar a

idéia como algo pronto e acabado na mente do pintor, negar que a forma seja imaginada pre-

viamente antes do artista desencadear o processo de formação. Tal indicação esclarece que a

composição das relações plásticas, forma-se durante o caminhar do pintor.

Pelas observações anteriores percebemos que não se trata nem de imaginar que o

artista meramente realiza uma imagem previamente formada em sua mente, nem, por outro

lado, de supor que em seu fazer não há nenhum pensamento. O artista inicia seu trabalho

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com uma idéia que lhe serve de ponto de partida, mas durante a gênese da imagem ele conti-

nua atento, escutando as relações plásticas de cada elemento acrescentado. O essencial não é

estabelecer uma composição harmônica e bem equilibrada, como imaginam muitas vezes os

iniciantes, mas perceber como estas relações que compõe o corpo da obra, a animam com

determinado sentido. A palavra "sentido", deve ser compreendida aqui, em seu significado

preciso. É um intento, orientação, direção, rumo. Nesta acepção se fundamenta precisamen-

te naquilo que ela não é, ou seja, no que almeja, procura. Trata-se, portanto, de uma atitude,

que procura pela expressão e sentido da obra a cada momento de sua formação.

O conceito de ritmo é, neste ponto, a pedra de toque para se compreender o pensa-

mento desencadeado durante o fazer. Toda arte instaura um ritmo de elementos concretos,

reais, racionalizáveis, que, em si, não têm expressividade alguma. A literatura e a poesia

utilizam palavras cujos significados estão empilhados nos dicionários. Mas, somente ao

engendrá-las no ritmo da narrativa ou no ritmo poético elas podem ultrapassar seu signi-

ficado estrito. A música utiliza notas musicais, a arquitetura volumes e espaços, a dança os

gestos, a escultura volumes, a pintura e o desenho os elementos formais, linha, tom e cor.

Nenhum destes elementos tem em si mesmo um valor artístico. É somente a partir da instau-

ração de um ritmo que estes elementos concretos se animam com algo que os ultrapassa. O

ritmo é uma correnteza que nos envolve, nos conduz e mantém em suspenso, na expectativa

do que ainda está por vir. Nem totalmente casuais, nem tampouco racionais, os ritmos são

como as pulsações vivas de cada linguagem. A estrutura plástica, é uma articulação de ritmos que expressam um sentido na maio-

ria das vezes só traduzível visualmente. A imagem na arte expressa mais que um deter-

minado conteúdo. Ela é um símbolo, ou seja, algo cujo significado não é unívoco. A rigor a

idéia plástica não vem antes do ritmo, nem este precede aquela. Ambos são uma e a mesma

coisa.

Nosso objetivo foi, portanto, desenvolver uma leitura do processo de criação das

obras a fim de resgatar a sua abertura e não no sentido de tentar obter algum método de con-

trole técnico do fazer, da expressão ou da leitura. Trata-se simplesmente de perceber as rela-

ções articuladas e, com isso, resgatar a mesma atitude de escuta atenta própria do criador

diante do processo de formação de sua obra.

Com esta ressalva, podemos voltar à gravura de Rembrandt e verificar como esta

obra ultrapassa uma estrutura previamente imaginada ao instaurar um complexo de ritmos, e

logo de sentidos, que na falta de melhor conceito podemos caracterizar como transcendente.

Levando mais a fundo a nossa análise percebemos que nada nesta gravura é casual. Bus-

cando estabelecer relações rítmicas Rembrandt dá sentido a cada elemento acrescentado.

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Observe-se que há um ritmo

descendente que comanda o grupo da direita.

Vários recursos são utilizados para obter este

fluxo, tais como cinzas médios que quebram a

luminosidade do grupo, ou como diversas

direções lineares. É provável que Rembrandt

estivesse buscando um contra-ritmo ao

triângulo regente, similar ao desenvolvido

pelos braços de cristo que, como vimos,

formam um triângulo invertido.

Neste caso, se nossa suposição está

correta, devemos buscar o outro lado do

triângulo sugerido. De fato, encontramos

alguns elementos que se projetam no sentido

buscado, que acabam por criar um contra-

ritmo ao triângulo principal de luz. No todo

sente-se que há um sentido geral que converge

para as duas personagens do primeiro plano,

emprestando-lhes um peso visual equivalente

ao de Jesus, ou dos outros crucificados.

O destaque destas personagens ocorre, em parte, devido as forças visuais que

convergem para elas, mas também pelo fato delas manterem certo contraste com o contexto

na maior parte de seu contorno. Elas se fundem somente com o chão, mantendo certo

contraste com o fundo luminoso.

Isso nos faz perceber que em relação à

tensão plástica entre a forma e o fundo das

figuras, existe uma hierarquia e um ritmo

muito elaborado. A imensa maioria das

personagens, funde-se total ou parcialmente

com o fundo, ou com as outras personagens

em seu entorno. São figuras claras sobre

fundo claro, e escuras sobre fundo escuro, que

criam uma tensão muito leve entre as formas

e o fundo. Percebe-se isto com mais clareza

quando se acompanha o contorno das

personagens. A exceção fica reservada ao

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próprio Jesus, que é representado integralmente como uma figura clara sobre um fundo

escuro, enfatizando o caráter ao mesmo tempo luminoso, destacado, e dramático, desta

personagem.

Vejamos agora, as direções que

convergem para a personagem ajoelhada.

Há um forte ritmo de pretos, fluindo para

dentro desta personagem. A perna do

cavalo, enfatizada devido ao contraste que

estabelece, rompe este fluxo tonal, de

claro escuro, ligando-se a personagem do

primeiro plano.

Este movimento de entrada dos

pretos na forma de uma cunha,

gradativamente se amplia pelo campo

compositivo. Estas formas são incisivas

como dentes, como setas. Empurram o olhar de um lado para o outro, de uma

forma para a outra, em uma agitação que

traduz plasticamente a angústia do

momento. Animam o todo da gravura e

quebram a simetria geral, estável, para a

qual tenderia a ideia inicial.

O leitor que acompanhou esta

análise até aqui, começa a perceber que as

dinâmicas e ritmos articulados, assim

como seus sentidos, parecem não ter fim.

Realmente, podem-se indicar certas idéias

plásticas regentes, mas uma obra como esta, uma obra de arte, alcança a estatura de uma

verdadeira matriz de ritmos plásticos que parecem se perpetuar ao infinito. Poderíamos

indagar: qual o sentido da personagem deitada de bruços sobre o chão iluminado? ou do

cachorro a seu lado? O que dizer das sombras com forma flamejante na ponte? Que

segredos se escondem no ziguezague das sombras do lado esquerdo da gravura?

Muitos dos ritmos que foram analisados, devem, de fato, ter sido deliberadamente

construídos por Rembrandt. É certo que outros surgiram espontaneamente da própria gênese

da imagem, sem nenhuma premeditação, casualmente gerados pela própria lógica interna da

obra. Mas, o fundamental é perceber que racional ou intuitivamente estas relações estão

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

DELACROIX, Eugène. Diário (extratos). Lisboa: Editorial Estampa, 1979.

KANDINSKY, Wassily. De lo espiritual en el Arte. Barcelona: Barral, 1978.

_________________ Olhar sobre o passado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

KLEE, Paul. La pensée créatrice. Paris: Dessain et Toira, 1980.

_________________. Theorie de l'arte moderne. Genéve: Gonthier, 1971.

concretamente instauradas na forma da obra, e isto não se deve a algum mérito do leitor, como bom intérprete, mas sim da própria obra. Só as obras de arte conquistam esta abertura.

Por fim, se nos aproximamos um pouco do local onde lastimavelmente a lógica da

análise se esvai, se chegamos perto de um delírio da razão, onde a palavra não dá mais conta

do sentido plástico, então, alcançamos nosso objetivo! Podemos mesmo concordar com o

pintor Eugene Delacroix quando este afirma:

Ticiano, se calhar, não sabia como iria acabar os seus quadros. Com Rembrandt devia suceder muitas vezes o mesmo. Os seus entusiasmos excessivos, resultam menos da determinação da vontade, do que dos seus constantes tateamentos. [...] (Eugène Dela-croix, Diário p.97)

Nesta perspectiva a construção de uma obra não se limita a determinação da vontade,

atitude racional e deliberada, ela se alimenta de um tatear em busca de um sentido que é

desconhecido, posto que procurado durante o processo de construção da imagem.

Paradoxalmente tal atitude é a da espera do inesperado. O criar uma ação, cri-ação, que ao ser

desencadeada permanece tateando ritmos, na esperança de que a imagem se abra e revele de

maneira surpreendente para o próprio feiticeiro que a está criando.