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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA AS VEIAS ABERTAS DA CIDADE DE JOÃO ANTÔNIO: OS CONTOS DE ABRAÇADO AO MEU RANCOR Eugênia Maria Ferreira Abrahão Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrade São Paulo 2006

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA

E LITERATURA COMPARADA

AS VEIAS ABERTAS DA CIDADE DE JOÃO ANTÔNIO:

OS CONTOS DE ABRAÇADO AO MEU RANCOR

Eugênia Maria Ferreira Abrahão

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Teoria Literária e

Literatura Comparada, do Departamento de

Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, para obtenção

do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Fábio Rigatto de Souza Andrad e

São Paulo

2006

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A João Antônio,

que descerrou os meandros

da realidade brasileira

como poucos.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr Fábio Rigatto de Souza Andrade, meu orientador, pela atenção, correção e competência com que me conduziu durante o desenvolvimento deste trabalho;

Ao professor Joaquim Alves Aguiar, pela ajuda prestimosa e sugestões pertinentes, todas de absoluta relevância, feitas quando de meu exame de qualificação;

À Profa. Dra. Tania Macêdo, membro da Banca de Qualificação, pela colaboração atenciosa, pela contribuição inestimável para a definição dos caminhos a serem seguidos na pesquisa, mesmo quando este trabalho ainda estava no esboço de seu projeto.

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Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance-reportagem-depoimento.

Ainda pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E será

bom. Perto da mosca. A mosca – é quase certo – está no corpo-a-corpo com a vida. Escrever é sangrar. Sempre,

desde a Bíblia. Se não sangra, é escrever?

João Antônio

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RESUMO

A proposta do presente estudo é uma análise geral do livro Abraçado ao meu rancor,

gravitando ao redor de conceitos-chave como ironia, a figura do malandro em

diferentes culturas, e as resultantes do encontro de tais conceitos. Mas

principalmente o conceito de espaço, seja espaço social ou psicológico, que é

abordado segundo diversas concepções, e serve de eixo teórico principal. Ademais,

para a completude analítica, são abordados a figura do autor e o estilo do mesmo.

Cinco seções são dedicadas à leitura crítica dos contos, agrupados por critérios

flutuantes, definidos pela autora do estudo. São, a saber, ''As Ruas do Meretrício'',

''Jacarandás, Um Quarteto'', ''A Solidão do Andarilho Urbano'', ''A Fuga'' e ''O Espaço

Como Personagem''. A última também se dedica ao conceito de espaço. As seções

restantes valem-se do instrumental da teoria literária e de áreas afins para investigar,

no livro, a presença da ironia (''A Cena da Ironia''), do malandro, a escolha do seu

título (''Os Nomes do Malandro e o Nome do Livro”), e demais conceitos

supracitados, além de uma análise do próprio autor (''A Face Humana de João

Antônio''). Os principais autores em quem o estudo se apóia são Alfredo Bosi, Walter

Benjamin, Linda Hutcheon, Roberto DaMatta, Georges Poulet, Mikhail Bakhtin,

Osman Lins e Antônio Candido. Percebe-se que o foco central do livro é o conceito

de espaço, e através da dicotomia entre espaço interior e espaço físico ou social as

duas grandes virtudes do autor se revelam: prosa lírica e análise social. Ambas, por

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sua vez, também confluem, gerando o misto de crítica social e obra romanesca de

teor lírico que desponta como principal característica do livro.

Palavras-chave : João Antônio, Abraçado ao meu rancor, espaço social, espaço

psicológico, ironia, malandro, lirismo, análise social.

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ABSTRACT

This study aims at an overall analysis of the collection of short stories Abracado ao meu rancor, by Joao Antonio, structured around key conpcepts such asirony, different cultural representations of the "malandro", and the results that stem from the encounter of such concepts, with a particular emphasis on the concept of space, be it social or psychological. For analytical integrity, the author and his style were further approached. Five sections (namely "As Ruas do Meretrício", "Jacarandás, Um Quarteto", "A Solidão do Andarilho Urbano", "A Fuga" and "O Espaço como Personagem") are devoted to a critical reading of the featured short stories, grouped by the author of this paper according to morphing criteria. The last section addresses the concept of space. The earlier sections draw on literary theory and adjacent studies to investigate, in the book, the presence of irony, of the "malandro", and the aforementioned notions, in addition to an analysis of the author himself and the title of the book. The main authors in whom the study finds support are A. Bosi, Walter Benjamin, Linda Hutchen, Roberto DaMatta, Georges Poulet, Osmar Lins and Antonio Candido. It was found that the crux of the book is the concept of space, and that through the dychotomy between internal and physical or social space the two great virtues of the author are revealed: lyrical prose and social criticism.

Key-words : João Antônio, Abraçado ao meu rancor, social space, psychological

space, irony, ''malandro'', lyrism, social analysis.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ..............................................................................................

ix

INTRODUÇÃO ....................................................................................................

1

Capítulo 1: UM GUIA DE RUAS LÍRICO: OS CONTOS DE ABRAÇADO

AO MEU RANCOR ..........................................................................

4

1.1 AS RUAS DO MERETRÍCIO: “MARIA DE JESUS DE SOUZA”

E “AMSTERDÃ, AI” ..................................................................................

5

1.2 OS NOMES DO MALANDRO E O NOME DO LIVRO ............................. 12

1.3 JACARANDÁS, UM QUARTETO: “GUARDADOR”, PUBLICITÁRIO DO ANO”, “TELEVISÃO” E “SUFOCO” ....................................................

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1.4 A SOLIDÃO DO ANDARILHO URBANO: “ABRAÇADO AO MEU RANCOR”, “UMA FORÇA” E “TATIANA PEQUENA” ...............................

28

1.5 A FUGA: “EGUNS” ....................................................................................

45

1.6 O ESPAÇO COMO PERSONAGEM: UMA ANÁLISE DE

“GUARDADOR” .........................................................................................

47

1.7 ESPAÇO E AMBIENTAÇÃO .....................................................................

51

1.8 O OLHAR OBLÍQUO DA MALANDRAGEM .............................................. 62

1.9 A CENA DA IRONIA .................................................................................. 72

1.10 A FACE HUMANA DE JOÃO ANTÔNIO ...................................................

81

Capítulo 2: O GERAL, O PARTICULAR, E A CONCLUSÃO ........................... 85

Referências Bibliográficas ...............................................................................

93

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APRESENTAÇÃO

João Antônio dedicou quase todos os seus livros a Lima Barreto, a quem

sempre atribuía o epíteto “pioneiro”. Tive a oportunidade de primeiro conhecer o

pioneiro e, através dele, cheguei ao seu epígono. Muitos devem ter feito o mesmo

percurso, já que os dois autores representam uma espécie de irmandade literária. As

ruas que Lima Barreto percorreu, as de um Rio de Janeiro pré-urbano, ainda não

eram as artérias inquietas, ruidosas e caóticas do sucessor. Eram, contudo, tão

errantes e sinuosas quanto as que João Antônio percorreu, flanando de boteco em

boteco. É como se um tivesse atualizado a cartografia da cidade que o primeiro

diagramou.

Moro no entorno da Praça Serzedelo Correia e, da minha janela, posso ver o

prédio onde João Antônio passou seus últimos anos. No início do século XX, a

Praça Serzedelo Correia era a Estação Malvino Reis, ponto final dos bondes de

eletricidade, grande novidade da época. Apesar do Centro, com a Rua do Ouvidor,

ser o ambiente privilegiado das personagens de Lima Barreto, ele foi um dos

primeiros escritores a descrever, como no conto “Um e Outro”, a parte sul da cidade,

os bairros de Botafogo e Copacabana. Neles a protagonista Lola, a prostituta da

belle époque do Rio de Janeiro, encontra o cenário de parte de suas desilusões.

Assim, é difícil conter a imaginação e não visualizar Lima Barreto atravessando de

bonde o túnel que hoje chamamos Túnel Velho, mas que então era o Túnel de

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Copacabana, e saltando na Malvino Reis (ou Serzedelo Correia), onde hoje eu vivo,

onde João Antônio morreu há quase dez anos. Talvez o próprio João Antônio tenha

feito estes mesmos exercícios de imaginação.

João Antônio é o escritor dos espaços urbanos múltiplos e unos ao mesmo

tempo. Seja o Rio de Janeiro do conto “Maria de Jesus de Souza (Perfume de

Gardênia)”, no qual a prostituta Mimi Fumeta deambula, cambaleante pela Lapa,

seja “Amsterdã, ai”, com o Distrito da Luz Vermelha, onde as Fumetas de lá se

exibem em vitrines. Ainda assim, Amsterdã é carioca e tem “um quê de samba

langoroso de Noel” (ANTÔNIO, 2001a, p.161). Estes são dois dos contos do livro

que escolhi como objeto da minha dissertação: Abraçado ao Meu Rancor. Publicado

em 1986, é obra de um João Antônio maduro, cuja idade, estreitando seus

horizontes do futuro, só permite a desilusão e, ampliando os do passado, só dá lugar

a uma nostalgia amarga. Como diz Alfredo Bosi em sua introdução ao livro, o

vagamundo de João Antônio “chora um tempo em que era fácil misturar

espontaneamente arte, boêmia e vida popular (...) em que os pobres ainda podiam

mergulhar dando-se o luxo divino de não ter pressa”. É como se a cidade de Lima

Barreto, de vilas e cortiços, tivesse, ao se verticalizar em arranha-céus com

cabeças-de-porco, eliminado o ponto de fuga do horizonte. Assim, o espaço urbano,

signo do espaço social, ao estreitar-se, amplia a opressão e encurta a esperança. da

cidade joaoantoniana, a descrição de uma praça em Copacabana, muito

provavelmente a já citada Serzedelo Correia:

A praça aninhava um miserê feio, ruim de se ver. A praça em Copacabana tinha de um tudo. De igreja à viração rampeira de mulheres desbocadas, de ponto de jogo de bicho a parque infantil nas tardes e nas manhãs. Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos bancos escangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores. (ANTÔNIO, 2001a, p.27)

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Os espaços urbanos descritos e explorados por João Antônio expressam o

que podemos chamar de cartografia poética, ou um guia de ruas lírico, no qual as

personagens se entremeiam e se confundem com o concreto que as cerca de cima e

o “asfalto selvagem” em que pisam, para usar a expressão de Nelson Rodrigues,

uma admiração do nosso autor. Não é o realismo, para dar um exemplo, de um

Machado de Assis, que assume invariavelmente um distanciamento irônico do

mundo social que descreve. O de João Antônio é lírico porque mergulha nesse

mundo, vive-o pelos olhos das personagens.

Mesmo quando narra em terceira pessoa, como em “Televisão”, o foco

narrativo é a interioridade das personagens, que reflete dialeticamente o mundo

social que as rodeia. No já mencionado “Maria de Jesus de Souza (Perfume de

Gardênia)”, temos na voz da prostituta “Mimi Fumeta”, como a chamam, ou “Maria

de Jesus de Souza”, como ela gostaria que a chamassem, um monólogo interior de

fluxo inestancável e hipnótico. Isto, todavia, não impede que o exterior – os meios-

fios e botecos da Lapa, a pivetada do Aterro do Flamengo, a vista do Outeiro da

Glória – insinue-se constantemente neste monólogo, constituindo-o de fora para

dentro. É por isso que podemos falar em realismo lírico para descrever a prosa de

João Antônio, ou na relação dialética entre a interioridade e exterioridade de sua voz

narrativa. Uma voz que sempre se transmite através de certo hibridismo, esteja na

primeira ou terceira pessoa. Ainda há o dado importante da opção pelo

coloquialismo da linguagem de João Antônio. Opção que não é arbitrária, mas

recurso literário. O coloquialismo se coaduna com a voz interior das personagens e é

mais eficiente na descrição dos espaços sociais de suas vivências.

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Em Abraçado ao meu rancor, os espaços multiplicam-se como em um

turismo literário, uma ficção guiada por cartografia exata, em que, embora haja

pontes e conectores entre os espaços dos diversos contos (sendo a voz narrativa o

maior deles), o elemento principal é de mudança, dando ao livro a impressão de um

grande périplo, pelo Brasil, sem esquecer, claro, da escala feita em Amsterdã, ainda

que uma Amsterdã bem brasileira. Eis o itinerário dos dez contos do livro:

“Guardador” – Rio de Janeiro;

“Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)” – Rio de Janeiro;

“Publicitário do Ano” – São Paulo;

“Televisão” – Londrina;

“Abraçado ao meu rancor” – São Paulo;

“Sufoco” – Londrina;

“Uma força” – São Paulo;

“Eguns” – Itaparica;

“Amsterdã, ai” – Amsterdã;

“Tatiana Pequena” – Rio de Janeiro.

A diversidade geográfica não deve esconder a unidade temática. Com a

exceção de “Eguns”, todos têm a ambiência de um grande centro urbano. E, em

todos, mesmo em “Eguns”, o foco do autor recai sobre os periféricos, seres

marginais, as pessoas que estão na rabeira da “cadeia produtiva”. É verdade que

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“Publicitário do Ano” apresenta-nos um protagonista à primeira vista “bem-sucedido”;

entretanto o conto é narrado em tom de paródia, uma paródia aguerrida e

direcionada ao protagonista, e a verdade é que o publicitário nos é apresentado

como um signo cruel da sociedade que o projetou.

Na dissertação que apresento, terei como diretriz principal mostrar a inter-

relação entre estes dois espaços: o do mundo social, com a crueldade de concreto

de suas cidades – Londrina, Rio de Janeiro, São Paulo etc.; e o mundo psicológico

das personagens que as percorrem. Mostrar como são sombra do espaço exterior

em que vivem e que sua interioridade reflete a hostilidade deste exterior. Esta

distinção é semelhante a uma segunda: a dicotomia casa-rua, tal como concebida

por Roberto DaMatta em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis. Diz DaMatta:

A oposição entre rua e casa é básica, podendo servir como poderoso instrumento de análise do mundo social brasileiro, sobretudo quando se deseja estudar sua ritualização.1

Para DaMatta a rua é o lugar do anonimato, onde o sujeito, desgarrado da

família e dos seus laços morais, se lança sozinho, com indivíduo, em um mundo

impessoal.2 Todavia, as personagens de Abraçado ao meu rancor em geral só

possuem a rua como cenário de suas vivências atribuladas e sofridas. A família e a

casa, nas poucas ocasiões em que aparecem, não se mostram como lugar de

proteção. Não há stricto sensu o domínio da vida privada nos contos do livro. Ou, se

há, ele se mostra confundido com o espaço público. Nas raras ocasiões em que a

vida doméstica é descrita, por exemplo, no conto “Televisão”, a família é mostrada

1 DaMatta (1997: 90) 2 Cf. Ibid.(120)

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de maneira anódina, como um pano de fundo de indiferença a contrastar com as

angústias do protagonista. Este é um agricultor, Jacarandá, nome, aliás, que batiza

outras personagens de vários outros contos de nosso autor. Jacarandá sai à rua

todos os dias para tentar obter financiamento porque ficou com a obsessão de que

terá muito lucro se plantar menta para a próxima safra. Contudo, sempre fracassa

em suas empreitadas e volta para casa amargando o desdém de gerentes de

bancos e encontrando no espaço doméstico uma recepção fria. Com as constantes

saídas de Jacarandá, que não compartilha com a esposa seus sonhos e anseios,

esta fica enciumada:

A mulher desconfiou de uma rival dos lados do Cambé, adotou uma manobra hostil e indiferente. Passou a servir comida fria e foi carinhosa, como nunca, com os quatro filhos. (p.62)3

Portanto, o domus como espaço acolhedor não existe em Abraçado ao meu

rancor. Mesmo nas poucas vezes em que é descrito, ele apenas repete a indiferença

e a solidão do espaço público. A frieza dos gerentes de banco que Jacarandá

encontra na rua, ele reencontra em casa com a sua esposa. Por isso é importante

reafirmar a validade da asserção anteriormente feita de que João Antônio escreve

uma ficção que é um guia de ruas, o guia de ruas um flâneur lírico. A casa é a rua, a

rua é a casa.

A cidade brasileira que João Antônio conheceu já era diferente da do seu

grande mestre, Lima Barreto. Hoje em dia, nove anos depois de sua morte, ler João

Antônio aguça-nos o olhar crítico para relevantes questões sociais do nosso

3 Os números de página entre parênteses referem-se todos a João Antônio (2001a).

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cotidiano urbano. A visão que nos foi legada pelo escritor paulista é privilegiada

porque mostra como o espaço urbano afeta as pessoas. Vê-se a cidade nos olhos

vermelhos destas personagens. E, por outro lado, basta olhar para a Praça

Serzedelo Correia para ver a ficção de J. A.: mais viva e real do que nunca.

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INTRODUÇÃO

João Antônio, autor paulista, no início de sua carreira literária como contista,

dedicou especial atenção aos tipos do submundo da cidade de São Paulo. Logo da

publicação de seu primeiro livro, Malagueta, Perus e Bacanaço, em 1963, recebeu o

reconhecimento da crítica. Nesses seus contos surgem heróis pouco familiares à

literatura brasileira. Ele impõe ao leitor uma ótica dos espaços e personagens nada

costumaz, aproximando-o da realidade de um centro urbano, um novo retrato

desvairado da Paulicéia. Malandros, prostitutas, operários, meninos de rua, todos os

tipos marginais e excluídos são apresentados, nesta primeira fase de sua obra, com

simpatia pelo autor, mas sem mitificações. Os “merdunchos”, como os tratava João

Antônio, não pedem compaixão, são como são, mostram-se por inteiro. Não há

qualquer idealização, nem distanciamento estético que procure mascarar a crua e

cotidiana realidade urbana.

Não é só no retrato das personagens e ambientes que João Antônio se

diferencia, o tratamento dado à linguagem em seus contos é bastante singular. Ele é

exímio articulador não só do léxico, da criativa forma de expressão de toda essa

gente do submundo, como também das estruturas sintáticas mais sofisticadas de

nossa língua. Esse contraste em nada quebra o ritmo natural de seu texto, pelo

contrário sublinha a intencionalidade de desmascaramento dessa divisão social de

classes que também se evidencia lingüisticamente.

Eis algumas palavras da professora Tania C. Macêdo sobre este aspecto da

singular linguagem do autor:

Assim, encontramos, ao lado de gírias e palavras de baixo calão, estruturas gramaticais (sobretudo no que se refere às orações

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subordinadas) que apenas grandes mestres do idioma utilizam. E isso sem que ocorra um estranhamento, pois existe um intenso trabalho de dar um ritmo certo à frase, de procura de elegância vocabular.4

A proposta da dissertação é considerar sobretudo o modo como a prosa de

J.A. trata o espaço. Sua ambientação é quase que invariavelmente a dos grandes

centros urbanos, pelos quais deambulam suas personagens. Pretendemos mostrar,

através do uso de dicotomias como casa-rua e interior-exterior, como o espaço

urbano se relaciona dialeticamente com o espaço mental das personagens que

transitam por ele. Para isso, reservamos o primeiro capítulo para apresentar cada

um dos contos em seus aspectos essenciais. Os contos são agrupados por critérios

de afinidade. Estes critérios, contudo, não se pretendem precisos e inflexíveis.

Outras classificações teriam sido igualmente legítimas. Não obstante, ao dividi-los

em seções temáticas, temos como objetivo realçar em cada uma delas, por meio da

análise dos contos, as idéias e aspectos literários que consideramos fundamentais

em Abraçado ao meu rancor.

Já a parte posterior à analise atenta dos contos, individualmente, retoma

estes contos agora com a finalidade de apresentar o universo conceitual que

acreditamos existir neste livro de João Antônio. Para isso empregamos o

instrumental técnico da teoria da literatura e de outras disciplinas próximas. Usamos,

por exemplo, certos conceitos-chave de Teoria e Política da Ironia de Linda

Hutcheon, e de outros trabalhos, para examinar e articular os dez contos do livro.

4 Macêdo, Tania. “João Antônio, esse (des)conhecido”. Disponível em: <http://www.umacoisaeoutra.com.br/literatura/jantonio.htm>

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CAPÍTULO 1

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CAPÍTULO 1

UM GUIA DE RUAS LÍRICO:

os contos de Abraçado ao meu rancor

1.1. As Ruas do Meretrício: “Maria de Jesus de Souz a” e “Amsterdã, ai”

Embora seja tarefa relativamente fácil encontrar textos sobre a teoria do

romance escritos por autores consagrados como G. Luckács, W. Benjamin, M.

Bakhtin entre outros, o mesmo não ocorre em relação a outras formas de narrativas

curtas. Julio Cortázar é um dos poucos autores, sendo ele próprio um renomado

contista, a tentar teorizar sobre esta matéria. Dentre as peculiaridades do conto

realçadas por Cortázar encontram-se a intensidade da ação, a tensão na narrativa, a

significação temática. Ele também ressalta a importância da brevidade como um dos

pontos significativos para se ter um conto de qualidade. Em uma análise

comparativa entre conto e romance, Cortázar estabelece o seguinte paralelo:

... o romance e o conto se deixam comparar analogicamente com o cinema e a fotografia, na medida em que um filme é em princípio uma “ordem aberta”, romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação... Fotógrafos da categoria de um Cartier-Bresson ou de um Brassai definem sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que

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esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara.5

O conto de João Antônio é refratário a análises que tomem como paradigma

o conto clássico. A maioria dos seus contos é desprovida de desenvolvimento e de

dénouement. Este é o caso do segundo conto do livro: “Maria de Jesus de Souza

(Perfume de Gardênia)”. Nele não há uma preocupação por parte do autor de criar

uma narrativa ascendente, na qual se tenha um clímax ou mudanças quando do

desfecho. Pelo contrário, o que se narra é um cotidiano nada excepcional, marcado

pela tensão e expectativa de mudança, que nunca ocorre. É a característica

fotográfica referida por Cortázar.

A personagem central é uma prostituta adulta, mas já demonstrando um

certo cansaço, chegando a se considerar “um caco, prejudicadinha”. A ação

transcorre nas ruas da Lapa, Centro do Rio de Janeiro, em breve espaço de tempo

cronológico. O conto é narrado basicamente em primeira pessoa e, em alguns

momentos, transforma-se quase em monólogo interior. As poucas ocorrências do

discurso direto servem para realçar as ofensas e agressões sociais sofridas pela

personagem marginal. Maria de Jesus repassa situações vividas e projeta

mudanças, possibilidades de sair de seu mundo de miséria, decadência, pobreza,

estampado nas ruas da Lapa, para alçar vôo em sua carreira na prostituição de

Copacabana até os motéis mais refinados da Barra da Tijuca.

É importante observar que em nenhum momento os sonhos de Maria de

Jesus se mostram factíveis ao leitor. Isto indica uma característica cardinal do conto

5 Cortázar (2004: 151)

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joaoantoniano. Por que, apesar de estarmos enclausurados na perspectiva da

protagonista, o leitor sabe, ao passo que ela própria ignora, que os projetos dela são

natimortos e irrealizáveis? Só para termos um ponto de contraste, a técnica narrativa

empregada por João Antônio não é a de Machado de Assis em Dom Casmurro, no

qual a descrição dos espaços nunca nos revela nada além do que o narrador,

Bentinho, sabe. Isto porque os espaços exteriores estão de acordo com o espaço

interior da personagem. Mas em “Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)”

ocorre o oposto. Ainda que estejamos presos à perspectiva de Maria de Jesus, seu

monólogo interior é transmitido não de maneira inteiramente fluente, mas é

constantemente interrompido. Assim como Pascal dizia que “a dor é feita de

pequenos alívios”, a realidade de Maria de Jesus é feita de ralas esperanças. É pela

interferência da realidade sobre seus desejos que o leitor capta a certeza de que

serão frustrados. Encontramos um exemplo disso na seguinte passagem:

O sol na Praça Paris bate feito uma lua. A pivetada miúda, lambida, escorrida das cabeças-de-porco ganha a praça e já dispara rumo ao Aterro do Flamengo. Lá em cima, à direita, entre as palmeiras, o Outeiro da Glória, beleza, que espia sempre . A pivetada está me encarnando. (p.37, grifo nosso)

“Dá-lhe, Mimi Fumeta!”, grita uma das crianças para ela, retirando-a de seu

breve transe. Veja-se como a parte grifada intercala dois blocos de realidade. O

trecho começa com uma descrição com grau razoável de objetividade (Praça Paris,

pivetada saindo dos prédios e indo em direção ao Aterro) que depois é suspensa

para dar lugar a um breve interlúdio lírico, que é o alívio e a fuga que a personagem

encontra na visão das palmeiras e do Outeiro da Glória (“beleza, que espia

sempre”). Porém, em seguida os devaneios são perturbados pelos gritos jocosos

das crianças. E é assim que o leitor pode identificá-los como devaneios, sonhos sem

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conteúdo. Este contraste de espaços, recurso narrativo que podemos chamar de

choque de espaços, cujo efeito é atingido através da circularidade de um ambiente a

outro antinômico ao anterior, é utilizado de modo recorrente e essencial neste conto.

O ambiente interno, o mundo de Maria de Jesus, é o porto seguro do sonho, do

futuro indecidido; o ambiente externo, o ambiente de Mimi Fumeta, é a realidade

degradante e por vezes tragicômica que ela vivencia nas ruas da Lapa, entre o

escárnio do menino pobre e a surra imerecida do policial malandro. O mundo interior

da personagem é um mundo perturbado, confuso, exatamente por causa do conflito

existente entre ela e o mundo exterior.

É por isso que a personagem tem dois nomes, o verdadeiro, ideal, e a

alcunha, real. Esta duplicidade onomástica é sintomática do processo dissociativo

(exterior-interior) que ocorre com a protagonista de João Antônio. "Maria de Jesus” é

o nome de batismo, nome que, supomos, já que isto não é explicitado no texto, sua

mãe lhe deu, o nome da mãe de Deus. “Pureza”, “imaculada concepção”, “virgem”,

“Virgem Maria” é o que rapidamente associamos a tal nome. Entretanto, a rua, o

espaço exterior e talvez sua verdadeira casa, batizou-a "Mimi Fumeta" em

decorrência de um "flagrante de maconha". Desde o início do conto este conflito já é

ostensivo:

Essa cambada vai ficar sabendo que Mimi Fumeta é o cacete. Meu nome, desde que me entendo, é Maria de Jesus de Sou za. E, meu Deus, preciso fazer um ganho. (p.36, grifo nosso)

Na parte destacada, a parte da idealidade, ela proclama seu nome

verdadeiro, por extenso, de um modo orgulhoso, quase hierático. Em seguida lembra

que precisa "fazer um ganho". Os pequenos alívios de Mimi Fumeta estão

concentrados em Maria de Jesus. E entre "Maria” e "Mimi” há um jogo de luz e

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sombra do qual sobressai o efeito de uma ironia seca, a ironia da prostituta batizada

"Maria de Jesus". Assim como nas obras de Caravaggio as figuras definem-se sem

uma linha de contorno, os limites entre o interior e o exterior nas personagens do

conto joaoantoniano também são imprecisos.

O tema da prostituição feminina é recorrente na obra de J.A., tendo como

um dos destaques “Mariazinha tiro a esmo”6, do livro Malhação do Judas Carioca.

Ela é uma prostituta bem mais jovem que Maria de Jesus, mas também demonstra

uma larga experiência de vida conquistada no submundo da prostituição. Entretanto,

por tratar-se de uma menina, seus sonhos têm o vigor característico da idade. A

Maria de Jesus falta justamente este ânimo. Um outro conto de Abraçado ao meu

rancor que também retrata a prostituição é “Amsterdã, ai”. O narrador é um flâneur

que, ao percorrer as ruas de Amsterdã aproveita para tecer comentários críticos

sobre a cidade, cidade que em determinados momentos surge mesmo como

personagem, que ganha formas de mulher e o narrador dedica-lhe quase um poema

em prosa de teor lúbrico: “Então eu te olho cidade, como se olhasse uma mulher

esguia. Toda posta em dengo e prestes. Sequiosa. A um fio do cio. E já molhada.”

(p.161)

“Amsterdã, ai” é, portanto, narrado do ponto de vista deste turista, sem

nome, brasileiro, que vê a cidade com os olhos predatórios e curiosos de quem está

ali temporariamente. Ele percorre as ruas do famoso Distrito da Luz Vermelha, local

que a Administração Pública reserva para o meretrício. Deslumbra-se diante das

vitrinas expondo mulheres de diversas nacionalidades e raças como mercadoria.

6 Diferente de “Maria de Jesus de Souza”, “Mariazinha tiro a esmo” é uma narrativa predominantemente em terceira pessoa, na qual o narrador tece comentários críticos à sociedade.

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Aqui o tema da prostituição, considerado através do viés de lubricidade e

encanto do narrador, recebe tratamento bem diverso do encontrado no conto

analisado anteriormente, “Maria de Jesus de Souza”. O foco narrativo não é mais a

interioridade de uma prostituta, no caso de Maria de Jesus, uma prostituta triste e

decadente, carregando pelas ruas sonhos frustrados. Agora o ponto de vista é

externo e a prostituição é vista de fora, e quem deambula é o narrador, a carregar

pelas ruas de Amsterdã seu desejo e sua solidão. Ele projeta na cidade sua

concupiscência de solitário, quer que a cidade-mulher o ame:

Afinal, toma meus suspiros e minha falta de ar, toma os frios do meu corpo, me agasalha no vórtice de tuas pernas e satisfaze meu tesão, és Amsterdã. E me ama, muito, qu’eu preciso. (p.163)

Explora os subterrâneos da capital holandesa, com seus drogaditos, junkies

e traficantes. Encontra por acaso a prostituta Odete, uma compatriota, do Ceará, que

aluga a sua casa de vitrinas para outras três prostitutas, duas brasileiras e outra de

Curaçao. O encontro é vivaz e amistoso, revelando a cumplicidade feliz de

brasileiros que se encontram em terras distantes. Odete lhe conta a trajetória difícil e

conturbada que teve até chegar àquele estágio de sua vida, ali em Amsterdã. E não

é uma prostituta que ele encontra em Odete. Ficam amigos e ele vira habitué da

casa.

Considerando como contraponto Maria de Jesus, Odete é uma meretriz

bem-sucedida. Tem inclusive uma casa, mesmo que seja uma casa de vitrinas: “e

depois subimos as escadas para o primeiro andar e o apartamento de Odete, ah, o

apartamento espaçoso, vistoso, atapetado, um bar reluzente como os das putas,

luxo para Amsterdã (...)”. (p.177)

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Uma casa híbrida, lar e local de trabalho. Lembra, inclusive, um outro conto,

“Uma força”, no qual um solitário se afeiçoa a um cágado. O cágado, na rua, mas

carregando nas costas sua casa, pode ser tomado como o emblema de todos os

contos de Abraçado ao meu rancor. A casa de Odete também reflete a alegoria do

cágado: no andar de cima o apartamento luxuoso, no pavimento de baixo a cabine

envidraçada. É uma casa que é rua. A diferença com relação a Maria de Jesus é

sutil apenas superficialmente, pois a rua é a casa de Mimi Fumeta, e não o contrário.

Contudo, a metáfora do cágado serve para ambas. O narrador do conto sente-se em

casa com Odete e as amigas, “feito família”, como diz. Saiu de sua casa, o Brasil

das ruas do miserê feio, para sentir-se em casa, na casa de uma prostituta brasileira

em Amsterdã.

Amsterdã, ai tem um tom vivo, expansivo e solar que é pouco freqüente na

obra de João Antônio. Ele é encerrado com a mesma personagem que o inicia: a

octogenária Nel, moradora do Zeedijk, bairro em cujas cercanias estão as Walletjes

(“paredinhas”), que é como os holandeses se referem à zona de prostituição. Nel, no

início do conto, é apresentada como uma senhora circunspeta e moralista, que

chama a todos do bairro sórdido de "ladrão". Ela oferece uma resistência de secura

e rigor moral ao ambiente degenerado onde vive, reduto do sexo e das drogas. É,

evidenciada neste aspecto, uma personagem antitética ao narrador, cuja observação

da cidade é eivada de grande lascívia e voyeurismo. Onde o narrador é repuxado

pelo campo magnético da cidade liberal, Nel finca-se como resistência moral,

através do exemplo e personalidade. Por isso nos surpreende vê-la no final do conto

oferecendo o pão ao viciado que, trêmulo, andava pelo Zeedijk. Este gesto de

amparo e cuidado com o outro, a fechar a narrativa, empresta ao conto um sentido

otimista, algo raro na obra de João Antônio.

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1.2. Os Nomes do Malandro e o Nome do Livro

‘’Abraçado ao meu rancor’’ destoa do conjunto por seu tamanho e pela

importância óbvia indicada pela homonímia com o título do livro, e merece análise

individual, além de suscitar diversas questões centrais para o livro como um todo.

Abraçado ao meu rancor, o título, além de qualquer impacto que tenha sob o leitor

em virtude de sua força estética, deve chamar-lhe a atenção por causa dessa ênfase

do autor ao repeti-lo em um dos contos do livro, não por acaso o maior dentre todos.

A origem do título, segundo o próprio narrador do conto referido é:

Estou me lembrando de uma letra de tangaço. Carregada. E em que o osso, o buraco e o nervo da coisa ficam mais embaixo. Diz, corta, rasga, que me quero morrer abraçado ao meu rancor. (p.86)

Abaixo explicitaremos qual é o tango mencionado. Mas insistimos neste

ponto não apenas para elucidar o título, mas porque seu uso sugere um método

investigativo interessante. Para fins de cotejo, é importante investigarmos a figura do

cantor de tango, não apenas por se tratar de uma figura análoga àquele ‘’tipo’’

sempre presente nos contos, através do narrador, ou dentro da narrativa, o malandro

brasileiro; mas também porque a analogia é sugerida pelo conto, na figura de

Germano Matias. O narrador de ‘’Abraçado...’’, ao citar a letra do samba (p.83),

imediatamente evoca um trecho de outro livro, de onde possivelmente João Antônio

foi beber para nomear seu livro. É Ernesto Sábato, em Sobre Heróis e Tumbas, no

qual o personagem Humberto d’Arcangelo faz outro ouvir um tango:

Ouve só que letra – diz d’Arcangelo:

Yo quiero morir conmigo sin confesión y sin Dios, crucificado en mis penas como abrazado a un rencor.

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É um tango de Antonio Podestá e Rafael Rossi, e o trecho citado aparece

em duas versões: ‘’Como abrazado a um rencor II’’, de 1930, e ‘’Como abrazado a

um rencor III’’, de 1931. Além do samba de Germano Matias, a recordação de João

Antônio do tango, citada anteriormente, até mesmo lembra o trecho de Sábato. A

associação de João Antônio segue a seguinte forma: O sambista – o malandro – o

cantor de tango. Fazer uma análise de cada um dos ‘’tipos’’ iluminará nossa visão do

malandro brasileiro e sua função dentro do livro; além do título, cuja importância e

significação são comprovadas pelo reaparecimento no conto homônimo.

Comecemos pelo cantor de tango. A entrada no universo do tango passa,

inescapavelmente, pelo nome de Carlos Gardel. Este que é, sem dúvida, o maior

representante do gênero, veio se tornar parte indelével da identidade cultural

Argentina. O escritor Jorge Luís Borges chegou a dizer que sua música contribuiu

para entristecer o povo argentino. É a culminância e ao mesmo tempo o modelo

desse ‘’tipo’’, o cantor de tango. Nascido na França ou no Uruguai (há animada

controvérsia), foi trazido à Argentina, aos dois anos de idade, pela mãe, solteira.

Passou a infância em Buenos Aires. A cidade, cenário da maior parte de sua curta

vida, assistiu ao começo de sua carreira no, início da década de 1910. Aos 44 anos,

conhecido mundialmente, consagrado em Hollywood e freqüentador do meio

artístico e intelectual argentino, morre em um acidente de avião no Uruguai. Sua

morte trágica e precoce, durante o auge de sua carreira, foi o marco definitivo de sua

entrada, com estatuto de lenda, no imaginário popular argentino.

Traços da personalidade, e aspectos de sua vida boêmia, foram

incorporados definitivamente pela representação, na cultura popular argentina, da

figura do "cantor de tango". É reveladora, neste sentido, a tradição em Buenos Aires

de colocar um cigarro aceso na mão da estátua em tamanho real que marca seu

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túmulo: a impressão que ficou do cantor foi a de um Gardel boêmio, habitante da

agitada vida noturna da cidade, capaz de transmitir pela música o âmago de uma

sentimentalidade que ficaria marcada como genuinamente portenha.

A invenção do tango-canción, que revolucionou a história do tango

argentino, é provavelmente a maior realização artística de Gardel. De fato, a

aceitação de Gardel na Europa parece ter sido decisiva para sua acolhida pela elite

argentina, que olhara com desconfiança o apelo profundamente popular da

sensualidade explícita do tango. (Acrescente-se que, sem dúvida alguma, a

desconfiança está ligada a um preconceito de classe: antes que Gardel lhe

emprestasse o devido glamour, a burguesia encontrava dificuldade em esquecer as

origens humildes do tango, ligado à tradição africana e ao submundo de Buenos

Aires.) O surgimento das canções de tango permitiu a expressão, por meio de um

gênero musical já enraizado na tragédia da exclusão social, de uma poética

verdadeiramente popular.

São aspectos aqui relevantes dessa poética: a valorização das emoções, o

cenário urbano, e o painel social que se forma como pano de fundo de pequenos e

grandes dramas. Sobretudo o painel social, que é irmão do samba brasileiro, fonte

de inspiração de João Antônio. Muitos tangos são dedicados a bairros,

freqüentemente de Buenos Aires; o próprio Gardel guardava uma relação estreita

com o bairro de onde nasceu. Neste contexto, o termo espanhol arrabal merece

atenção: designa um bairro da periferia, tendo adquirido conotações negativas que

parecem ter-se acentuado com o decorrer do século — pela operação,

indubitavelmente, de mecanismos de coloração ideológica, no sentido marxista, da

linguagem, exatamente como o morro, ou periferia, brasileiros. O arrabal é o locus

por excelência dos dramas do tango, em que figuram os conhecidos produtos da

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violenta apartação social que divide a América Latina. O arrabal de Gardel é

“amargo” (Arrabal Amargo, letrado por Alfredo Le Pera), o labirinto em que o sujeito

lírico se perde em busca de um amor que não voltará, e cuja presença havia evitado,

até agora, que ele percebesse as tristezas e misérias que o cercavam. É a operação

que já notamos nos contos de João Antônio. Vejamos os seguintes trechos, de

‘’Guardador’’:

Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria - ninguém espere outro motivo – dá esmola por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público – são uns duros, uns tesos. (p.23)

Os ‘’otários da classe média’’ estão antepostos ao narrador socialmente

arguto, cuja sabedoria é a do homem das ruas, do cantor de tango, do sambista:

Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões lá de cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade disfarçada para receber turistas e visitantes ilustres. Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não sabiam se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. (p.26)

A cena de pobreza é pincelada indiscretamente, enquanto nos tangos há

mais delicadeza, mas neles a simplicidade mesma da descrição é o suficiente para

que a identifiquemos com outras, mais concretas, e dolorosamente mais familiares.

Como as de João Antônio. Importante notar os sentimentos, superficialmente

contrastantes, que dirige o tangueiro ao arrabal, onde suas raízes pessoais e

culturais estão fixadas: o apego é ubíquo, mas não impede o distanciamento crítico

e o lamento engajado das condições em que lá se vive. É o mesmo caso do narrador

joaontoniano presente no conto ‘’Abraçado ao meu Rancor’’, já analisado, e,

certamente do sambista. Embora certamente tenha ocorrido um distanciamento

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progressivo do samba carioca de sua forma outrora lírica, pessoal, às vezes suave,

em direção à sátira, e depois aos ritmos pujantes e divertimento popular, em

momento algum o sambista brasileiro abandonou o falar do morro, o cantar o morro

e suas agruras. Agudo observador social, ouvinte de tangos e sambas, João

Antônio, com sua linguagem popular, conquanto trabalhada, se aproxima de ambos

os estilos na temática, na escrita mesma, e no sentimento. Germano Matias,

sambista, no conto em que figura, torna-se como um vulto emblemático do próprio

autor, como se o narrador invocasse alguém que, por antecedê-lo, seria uma

espécie de precursor. Por isso o apelo insistente: Germano Matias é alguém que

compreenderia sua busca e lamento urbanos.

Um dos músicos brasileiros que mais iluminam a figura do malandro, na sua

acepção antiga, sem conotações negativas, é Cartola. João Antônio abre o livro com

um conto dedicado a Cartola, chamado de mestre. A influência, vinda de um músico,

é assumida pelo próprio autor. É também especial para nossos propósitos, por estar

afinado com aquela lírica da dor, de matizes sociais, do tango e de João Antônio.

Em uma história popularesca, contada oralmente por muitos do meio do samba,

aparentemente Cartola disse o seguinte sobre o malandro:

Malandro é quem gosta de briga, farra, mulher e bebida. Isso é natural. Ladrão, maconheiro ou jogador é bandido. Disso eu tenho vergonha.7

7 Retirado da Revista Semear Número 6, ''Tradições do banditismo urbano no Rio: invenção ou acumulação social?'' , por Michel Misse, citação por sua vez retirada de Última Hora, Rio de Janeiro, 11 de outubro 1976, citado em Barbosa da Silva & Oliveira Filho, 1989, p.84. Disponível em http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/6Sem_15.html

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É, evidentemente, Germano Matias, o precursor figurado no conto, quem faz

a ponte entre o malandro (sambista) e o tangueiro. E o real significado das

associações reside no seguinte: toda as tipologias explicitadas acima, do malandro,

do sambista, do cantor de tango, fazem parte da persona do João Antônio escritor. É

o narrador assombrado e fascinado pela figura feminina, no conto Tatiana Pequena;

o que persegue a prostituta marginalizada pelas ruas sujas da lapa, no conto “‘Maria

de Jesus de Souza”; o que faz troça do seu antípoda (por tratar-se de uma espécie

de malandro bastante diferente) em “Publicitário do Ano”; e sobretudo aquele que

escreve seu pranto pela cidade perdida, em “Abraçado ao meu Rancor”. Cantava

Gardel, em ‘’Corrientes’’:

La ciudad dormía majestuosamente

en la quietud de la noche,

como una agonía, como un reproche,

un alma en pena cantaba así:

maté mis alegrías, mi único edén.

E Cartola, em ‘’Sala de Recepção’’:

Habitada por gente simples e tão pobre

Que só tem o sol que a todos cobre

Como podes, mangueira, cantar?

E escreveu João Antônio:

Não tripudie, pois, que este viver nesta cidade é tão ruim, que as pessoas trabalham continuamente até para esquecer que vivem nela. E, terrível, não esquecem. (p.115)

Em todas está a figura do malandro, do homem das ruas, com seu dom lírico

de transmutar a situação social em poesia dolorosa. Na nota 16 nos reportamos a

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Roberto DaMatta como guia para o mundo dos malandros. E o exemplo que ensejou

a referência era justamente o do Jacarandá do conto Guardador, malandro brasileiro

típico, e personagem que nos leva à próxima investigação.

1.3. Jacarandás, um quarteto: “Guardador”, “Publici tário do Ano”,

“Televisão” e “Sufoco”

Além do quarteto que vamos analisar na presente seção, encontramos

alguns outros Jacarandás distribuídos pela obra de João Antônio.8 Porém, a fim de

não nos desviarmos dos objetivos deste trabalho, limitar-nos-emos aos quatro de

Abraçado ao meu rancor. “Jacarandá”, à primeira vista, surge como a obsessão

onomástica de J. A. Realmente, se não pudéssemos encontrar um núcleo de traços

relevantes compartilhados entre os diversos Jacarandás, poderíamos entender a

repetição do nome como um capricho do autor. Não obstante, “Jacarandá”, mais do

que um nome, é um emblema, mais do que uma obsessão, é uma escolha

consciente. A homonímia dos protagonistas dos quatro contos não é arbitrária ou

casual, mas atua para estabelecer um pano de fundo comum. Com efeito, no artigo

“O Parto” o autor descreve o nascimento e rastreia a genealogia de Jacarandá:

Nasceu do meu medo e da minha necessidade e eu não o pari na hora, pari com dor e ele sempre existiu em mim. Jacarandá me existiu muito antes do parto, quando via Cantinflas, Charles Chaplin, o Gordo e o Magro. Só depois Macunaíma, Pedro Belazarte e os heróis pingentes do meu amado Afonso Henriques de Lima Barreto. (...) Para mim não existe coisa paulista, carioca, baiana ou londrinense, apenas a cor local. 0 lance é outro. Ivan Illitch é profundamente russo e por isso mesmo nitidamente universal.

8 Mais tarde o autor reuniria todos os Jacarandás, a não ser o juiz de futebol de “Sufoco”, em Antônio, João (1993).

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Carlitos é universal, Cantinflas também e Policarpo Quaresma também. (...) Não acredito que até hoje eu tenha feito personagens grandes. Jacarandá é grande. (...) Ele é sobrinho de Mark Twin (sic), contraparente de Cristovão Colombo, descendente direto de Ptolomeu, filho ilegítimo de Lampião, concunhado de AI Capone, discípulo de Fídias, ajudante de limpeza de pincéis de El Greco, afilhado de Isaias Caminha, Quincas Borba e Policarpo Quaresma, além de bisneto de Juca Pato, Jeca Tatu e Noel Rosa. 0 herói é de boa e andeja familia.9

O Quarteto, portanto, constitui-se organicamente e compõe um universo de

sentido autônomo dentro do universo mais amplo dos dez contos do livro.

A começar por “Guardador”, todos os Jacarandás, ainda que cada um com

sua própria máscara, servem de veículo para os projéteis certeiros da crítica social

de João Antônio. O Brasil, país miscigenado e contraditório, terra da diversidade e

dos contrastes, não poderia estar mais bem representado do que em uma

personagem múltipla e que está sempre situada no núcleo dos conflitos sociais.

Assim, o guardador de automóveis do primeiro conto do livro encontra-se no olho do

furacão: bêbado, pobre e velho, vive no limite da sociedade.

Este lugar limítrofe é o seu ofício e a sua existência ao mesmo tempo. Para

conseguir a subsistência Jacarandá guarda os carros dos que, ao contrário dele,

estão inseridos na cadeia produtiva. O espaço social no Brasil é estreito, muito se

concentra nas mãos de poucos, o que sobra é a sobra. Jacarandá-Guardador é um

dos que sobram e o que lhe resta é o sobejo que os que estão "dentro" lhe oferecem

através da janela de seus carros. "Chefe, hoje estou sem trocado" (p.22), lhe diz um

deles que ia saindo sorrateiro do estacionamento em frente à igreja. Muitas vezes

nem sobra há ou, se há, é recusada.

9 Antônio, João (1975) apud Ribeiro (2005).

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O guardador encontra abrigo na rua, ele mora na rua, dorme protegido pelo

tronco oco de uma figueira velha. A casa é a rua, a rua é a casa. Já escrevemos isto

antes, mas nunca é demais repeti-lo, pois este é o mote da ficção de J.A., seu

emblema, o do cágado. Chegaremos ao cágado mais adiante. O fato de ser narrado

em terceira pessoa não impede que em “Guardador” (como a casa é a rua e a rua, a

casa) a narração assuma o ponto de vista da personagem. Mesmo com o foco

narrativo na terceira pessoa, o espaço exterior é descrito a partir do mundo mental

de Jacarandá. Não é, desta maneira, a terceira pessoa da onisciência e da

objetividade: a voz narrativa é modulada de forma a emular no discurso literário o

cruzamento dos espaços, entre a casa e a rua, o externo e o interno.

Jacarandá não é um velho malandro, mas um malandro velho. Sua idade já

é avançada o suficiente tanto para que saiba os segredos de sua arte quanto para

que lhe faltem os meios físicos para pô-los em prática. Não tem mais o ânimo e a

energia de outros tempos. Já não consegue resistir ao alcoolismo. E, assim, sua vida

encontra-se em espiral descendente. Ele não sustenta mais a vitalidade dos

guardadores. (cf. p.25). Quando o malandro envelhece, a malandragem também

perde o viço.

Isto, entretanto, não impede que, mesmo quando bêbado, Jacarandá tenha

momentos de clarividência. Como na ocasião em que nos oferece precisa taxonomia

dos que dão esmolas:

1º) os que dão porque entendem a situação de miséria do pedinte são minoria;

2º) os que querem se desembaraçar do pedinte são a maior parte e,

3º) por fim, o grupo dos bem-comportados, que dão apenas para que não pegue mal

para eles, para que não fiquem com a imagem maculada pela avareza e pelo

desprezo que, em realidade, são seus sentimentos diante dos pedintes.

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Jacarandá conclui que Domingo é pior: “Domingo é ruim para os bem-

comportados”. (p.23)

Virando algumas páginas, passamos do Rio de Janeiro para São Paulo, de

um guardador de carros para um publicitário de sucesso; o nome da personagem,

contudo, continua o mesmo:

A brisa dobra o cedro, mas não envergará o jacarandá. O jacarandá é mais duro que o jequitibá. Este homem, Jacarandá, reanima, reaviva e tonifica qualidades paulistanas esquecidas há mais de quatrocentos anos. (p.57)

É assim que, no penúltimo parágrafo de “Publicitário do Ano” um deputado

discursa. Dirige seus panegíricos a Jacarandá, nome do publicitário, protagonista do

conto. Em pouco mais de três páginas é narrada a trajetória vitoriosa de Jacarandá,

da vida fácil e preguiçosa da primeira juventude ao título de cidadão benemérito e

prêmio Publicitário do Ano. A campanha que lhe valeria as honrarias fora

encomendada pela prefeitura da cidade a fim de estimular o turismo de final de

semana na capital de São Paulo. Jacarandá aproveita a ocasião para fazer valer sua

vocação de comunicador e reverenciar, através do discurso hiperbólico e parcial

típico da publicidade, as comodidades, belezas e virtudes da cidade: “Passou por

cima dos defeitos da Rua Augusta e alertou leitores. A Augusta é a rua das butiques

elegantes e passarela do charme local”. (p.55)

A figura de linguagem que constitui o conto, percorrendo-o do início ao fim, é

a ironia. Para sermos mais precisos, a ironia aqui se apresenta para nós com dois

sentidos: um que podemos dizer interno à estrutura do conto, e outro, externo a ela.

No primeiro caso, a ironia determina o tom narrativo. Estando o tom modulado na

terceira pessoa, o leitor acompanha a personagem à distância, sem qualquer efeito

de empatia. Distância que é ampliada ainda mais pelo artifício da ironia. A empatia,

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esse pathos comum, triangulado entre a voz narrativa, personagem e leitor, e tão

familiar na obra de J.A., está ausente em “Publicitário do Ano”. A triangulação é

quebrada justamente pela interferência ironista. Assim, o protagonista é referido com

sarcasmo em diversas ocasiões como "o poeta do momento". E, seus versos,

deixando de lado o essencial e o verdadeiro, para servir aos modismos e às

oportunidades, capturam assim o sentido dos shopping centers paulistanos: “Você

faz a volta ao mundo em oitenta lojas”. (id.) Nem a feira dos hippies da Praça da

República escapa à sua pena: “Preços estipulados por Deus, com mensagens de

paz inteiramente de graça.” (id.) Uma pena ela própria cínica, já que, como é

revelado no final do conto, o dinheiro obtido das campanhas de divulgação do

turismo de final de semana em São Paulo é despendido em terras cariocas. Assim,

Jacarandá, o publicitário ironista e malandro, é ironizado pelo narrador: “Com a

glória e o dinheiro do prêmio, o tipo comprou férias , pegando o primeiro avião e indo

repousar do árduo trabalho nas areias de Copacabana.” (p.57)

É um modo de usar o feitiço contra o feiticeiro. A linguagem do discurso

publicitário faz uso, através de seus slogans ou frases de efeito, de uma ironia

dissimulada. Suas hipérboles, como "Encontro marcado com o futuro no Parque

Anhembi" e "Prove o lirismo de quem bebe olhando flores" (a respeito do Largo do

Arouche), ainda que encontrem uma audiência pré-disposta à credulidade, não são

críveis. A ironia, segundo sua definição técnica, é a figura de linguagem cujo efeito é

o de transmitir o sentido inverso do expresso literalmente. Ela se vale de um jogo de

espelhos semânticos no qual o sentido superficial, dado na letra do texto, é revertido

no seu sentido real e profundo através da pressuposição de informações

contextuais. No caso do discurso da publicidade, o mundo tal como descrito por ele

– brilhante, acolhedor, afetuoso e perfeito – entra em conflito com o que se sabe do

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mundo real. O contexto diz o inverso do texto. Entretanto, pelo condicionamento

social, esta ironia é escamoteada e o receptor fica cego a ela. A literatura de João

Antônio, explicitamente de denúncia social, usa no conto em tela espécie de contra-

ironia a fim de desmascarar a ironia original do discurso publicitário.

Porém, o que acabamos de descrever é apenas o primeiro tipo de ironia

utilizada em Abraçado ao meu rancor, a ironia interna, como escrevemos

anteriormente. O segundo é o da externa, do qual trataremos a partir deste ponto.

Ela é externa na medida em que se serve da referência a outros contos para

estabelecer seu contraste semântico. O nosso terceiro Jacarandá aparece em

“Televisão”, o conto que sucede a “Publicitário do Ano” na organização do livro. Ele é

um agricultor que, obcecado pela idéia de plantar menta, esforça-se em obter

financiamento de algum banco para o seu projeto. Já sabemos, desde o início, como

em "Maria de Jesus de Souza", que o sonho é quimérico e não se realizará. A

empatia, abandonada provisoriamente em "Publicitário do ano", sendo aqui

retomada, é, em parte, o que nos garante este conhecimento. Como no anterior,

neste o protagonista recebe o epíteto “o poeta do momento”. A conotação da

expressão, todavia, não é a mesma, posto que ao contrário do Jacarandá

Publicitário, e como o Jacarandá Guardador, este aqui trabalha e sofre: “Dia após

dia, agüentando na cabeça um sol sem refresco, de banco para banco”. (p.64)

Barba feita, roupa limpa, sério, sai de casa todos os dias sob o olhar

desconfiado da mulher. Sozinho na vida doméstica, não confia à esposa o objetivo

nem o destino de suas saídas. É regularmente desdenhado pelos gerentes de

banco. Volta para casa, espaço que deveria ser de intimidade e segurança, mas é

recebido com comida fria, uma impessoalidade e uma hostilidade não muito

diferentes da que encontra na rua. Ao final, Jacarandá, esgotado e desiludido,

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sentado na poltrona assiste à TV: “Diante do comercial do banco, tão cordial,

protetor, risonho e amigo, Jacarandá sacou seu 38 e disparou bem no meio da cara

do gerente.” (p.66)

A intertextualidade é ostensiva. Não dá para ignorar que a ironia dissimulada

da publicidade, que João Antônio desmascarara no Jacarandá Publicitário, é a

mesma que o Jacarandá Agricultor percebe com revolta ao ver o anúncio de banco

na televisão. Por ironia dissimulada entendamos o que já expliquei em termos

técnicos anteriormente e cujo efeito, voluntário ou não, revela algo que pode ser

visto como desdém da publicidade pelo conhecimento do público. Ela se vale de

uma hiperbolização pantagruélica, lembrando-nos do grotesco de Bakhtin, de

informações propugnadas; portanto, o receptor da mensagem que consiga enxergar

a hipérbole pode sentir-se enganado. O leitor, solidário com sua raiva, não pode

senão lhe dar razão neste ato de insânia, da mesma forma que lhe causava

repugnância moral o cinismo do Publicitário do Ano. Esta alternância de sentimentos

do leitor com relação aos protagonistas é resultado dos truques de perspectiva

operados com eficiência de prestidigitador por João Antônio. Em um conto, ele

afasta o leitor da personagem descrita; no outro, aproxima.

Chegamos então ao quarto "Jacarandá", agora juiz de futebol em “Sufoco”.

Da mesma forma que em Televisão e Guardador, vemos o mundo a partir da

perspectiva do protagonista. A partida é entre o Londrina, anfitrião, e o rival da

capital, o Coritiba. Não nos interessa os jogadores, a não ser quando eles ofendem

o árbitro. A torcida só é importante pelos palavrões e objetos que lhe endereçam.

Toda a mise-en-scène de uma partida de futebol é palco para o drama do juiz.

Jacarandá é malandro, sabe os truques de sua arte, mas não é eficiente em

aplicá-los. Quer contemporizar, apitar para os dois lados, compensar um erro com

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outro, equilibrar as imparcialidades. Quer ser corajoso. Sabe que o melhor é não

olhar para as arquibancadas violentas e hostis que o cercam. Entretanto: “houve um

átimo. Deu, sem querer, de olhos para o povo e um pressentimento ruço lhe correu,

fazendo frio. Aquela gente furiosa não iria esfolá-lo vivo?” (p.134) E, quando faz este

questionamento, o véu de alienação que lhe protegia cai. Não consegue mais

esconder o medo. Perde o pulso da partida. Os erros vão se acumulando. O

diplomata que queria agradar aos dois lados, o negociante esperto, dá lugar ao

trapalhão amedrontado que desagrada a gregos e troianos. Ao final do jogo, zero a

zero, ninguém perde a não ser Jacarandá. Mas o questionamento vai se tornando

mais forte e se aproxima de uma descoberta. De modo similar ao que ocorre com o

Jacarandá de Televisão, a dor do fracasso, a humilhação, proporciona um

alargamento súbito de sua visão. Na hora do banho, já no vestiário, pensa:

Onde é que teria errado? Nas composições, nas manobras, na parcialidade; ou não fora nada disso, a bronca da galera não estaria mais voltada para a corda da sua pele? O descalabro não teria começado quando se meteu no ambiente das arbitragens, jogadas afinal do domínio dos brancos naquele futebol que se dizia o maior do mundo e em que o negro só entrava como jogador, força de trabalho? Isso, talvez isso, e só. (p.135)

Quando, horas depois, ele finalmente deixa o vestiário e ganha a rua, é

emboscado. Suas indagações são confirmadas pelos socos e pontapés que recebe

e que o fazem desmaiar. "Negro safado!", gritam-lhe. Agora, caído no chão,

latejando da humilhação, a dúvida vira epifania. Não é que ele não seja hábil na

condução dos jogos, é que o jogo é de cartas marcadas, não tem jeito: negro, ele

sempre sairá perdendo.

O nosso quarteto é, assim, como um de cordas de Villa-Lobos, com

dissonâncias. São três fracassos e um sucesso. A unidade, entretanto, aparece

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mesmo assim. A consistência está na crítica social. Em uma sociedade com os

valores invertidos, só os perdedores têm interioridade e merecem empatia. O

vencedor é visto de fora, friamente.

A história do guardador Jacarandá compreende três arquétipos

fundamentais do homem do povo brasileiro. Primeiro há um Jacarandá ingênuo, que

não recebe por seus serviços, é maltratado pelos motoristas, e, bêbado, tenta achar

a resposta a esse mau-trato nas invenções mais mirabolantes e crédulas, eximindo

de responsabilidade os motoristas a quem serve; e, após, o ''mau'' e o ''bom''

malandro Jacarandá, duas formas de ser já distintas por Cartola em trecho citado.

Que é o malandro? Se perguntamos a um homem do povo, o ponto da questão está

resumido – aliás com o característico estilo sucinto e elegante dos que não se

conseguem obrigar a ter que explicar algo que deveria ser óbvio – no refrão popular

'malandro é malandro, mané é mané'. Porque toda a conotação negativa que vem

atrelada ao termo “malandro” empalidece quando comparada com a reputação do

mané, o notório estraga-prazer. Assim, na linguagem popular brasileira, a boa

malandragem não é por si só uma atitude ou qualidade positiva, é antes a ausência

das características marcadamente do ''mané", do indivíduo que explana, ''dá

bandeira''. O estilo de vida boêmio normalmente associado com o malandro não

existia sem sua cota de perigos, e ser um sujeito sagaz podia fazer a diferença entre

morrer ou viver em uma madrugada. A popularização do termo, servindo para

adjetivar todo tipo de pessoa, vem por analogia. É também de sagacidade que o

brasileiro pobre precisa para sobreviver, estando acossado não apenas por pobreza,

mas por violência. Daí a distinção entre ''bom'' e ''mau'' malandro: o segundo

desvirtua as características do primeiro ao incorporar a sagacidade e esperteza não

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para enfrentar condições adversas ou conquistar algo sem tomar de outros, mas

para ganho ilícito, sem respeito ao outro.

Jacarandá é apresentado como malandro, definitivamente, quando, após o

período de foco da narrativa em sua ingenuidade, começamos a perceber sua

movimentações. O narrador faz a associação claramente:

Os cabelos pretos idos e, de passagem, a vivacidade, a espertice, o golpe de vista, o parentesco que guardadores têm com a trucagem dos camelôs e dos jogadores de chapinha, dos ventanistas, dos embromadores e mágicos, dos equilibristas e pingentes urbanos. Surgir nos lugares mais insuspeitados e imprevistos, pular à frente do motorista em momento em que o freguês não espera. (p.25)

É o malandro na acepção popular mais elogiosa, o que se vale da esperteza

para sobreviver, passando a ser, portanto, símbolo de todos os excluídos do país.

Contudo, Jacarandá passa por uma outra fase, em que não passa necessariamente

a ser ''mau malandro'' na definição de Cartola, um bandido, mas mais propriamente

ao que o povo chamaria de ''mané'', por afundar-se na bebida e parar na cadeia com

freqüência:

De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo bobeava, o metiam num arrastão. Lá vai para o xilindró. (p.26)

A qualificação de Jacarandá como malandro não é apenas validada pela

epígrafe de Cartola, ou pelo comportamento. Outra identificação clara, através do

samba:

Os olhos brilhavam, quanto, ficavam longe, antigos e quase infantis numa lembrança ora peralta, ora magnífica. O samba. Era como se ele soubesse, lá no fundo. O que marca no som e o que prende e o que importa é a percussão. Mas meneava a cabeça, como se dissesse para dentro: ''deixa pra lá''. (p.29)

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Eis o périplo que justifica o título: do tango para lírica da dor social e

malandragem urbana, de ambos para a realidade brasileira, através samba, e do

malandro, e por fim, tudo para a reatividade de João Antônio face o quadro

brasileiro; além das conotações pessoais e emocionais (é só pensar no que

escrevemos sobre melancolia e indignação no autor) que o título também implica.

1.4. A Solidão do Andarilho Urbano: “Abraçado ao me u rancor”, “Uma

força” e “Tatiana Pequena”

O conto-título de Abraçado ao meu rancor, o de maior extensão do livro, é

uma flânerie nostálgica e amarga de um paulista radicado no Rio que, depois de

anos, revê São Paulo.

“Abraçado ao meu rancor” faz par com “Publicitário do Ano”, o qual, por sua

vez, fecha interessante triangulação com “Televisão”. Adotados outros critérios de

afinidade poderíamos ter colocado estes contos em uma mesma seção: A Tríade

Publicitária. O narrador, jornalista alter ego de J.A., é destacado para cobrir o

lançamento da campanha de incremento de turismo de final de semana da capital

paulista. E tudo indica que o autor dos panfletos cínicos entremeados à narrativa é o

Jacarandá Publicitário do conto anterior. Comparem-se a este respeito as seguintes

passagens:

“Na noite de São Paulo você esquece que o dia vai nascer." (“Abraçado ao meu rancor”: p.73)

“Na noite de São Paulo você vê o dia nascer.” (“Publicitário do ano”: p.56)

“Compre em São Paulo o que o mundo tem de melhor.” (“Abraçado ao meu rancor”: p.79)

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“[Em São Paulo] Você faz a volta ao mundo em oitenta lojas.” (“Publicitário do Ano”: p.55)

“Em São Paulo você faz negócios da China.” (“Abraçado ao meu rancor”: p.82)

“Sobre a Liberdade, bairro japonês, o comunicador prometeu negócios e hábeas-corpus da China.” (“Publicitário do Ano”: p.56)

Isto mostra como os contos do livro estão interligados em uma rede de

semelhanças de família e que o intérprete, ao classificar e agrupar os diversos

contos, não pode senão usar princípios maleáveis, que revelam uma dentre tantas

outras taxonomias possíveis. É por essa razão que nossas escolhas aqui refletem a

intenção de iluminar determinados aspectos, como a homonímia dos Jacarandás, o

tema da prostituição e, no presente caso, a solidão amarga do flâneur

joaoantoniano. Aspectos que julgamos importantes para a compreensão do sentido

do livro ou, ao menos, daqueles sentidos que consideramos relevantes para os fins

do presente capítulo. Que isto, porém, não esconda certo grau, inevitável, de

artificialidade, e que o livro, ainda que seja importante heuristicamente esta divisão,

constitui, como mostraremos no capítulo seguinte, uma totalidade irredutível.

"Por onde andará Germano Mathias?", pergunta o narrador insistentemente.

Em uma entrevista recente, Germano explica as razões de ter sido esquecido pela

mídia: “A primeira é que alguns me acham velho demais para fazer sucesso e a

segunda, é que os produtores das gravadoras são muito jovens e não me

conhecem.” Nascido em 1934, fez sucesso no final dos anos cinqüenta, início dos

sessenta. "Um sambista diferente", como o chamavam então por causa do batuque

na latinha de graxa. Diz também na entrevista que nunca soube explicar como

aprendeu esta técnica que tanto encanta o protagonista do conto. Este é

encarregado pelo redator-chefe da cobertura de uma nova campanha de incremento

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do turismo de negócios na capital paulista. Assim, paulista trabalhando nos jornais

cariocas, encontra ocasião de visitar a São Paulo da infância e juventude. Um

reencontro pleno de estranhezas e melancolia: "A cidade deu em outra", comenta

(p.74). E a evocação de Germano Matias se apresenta como um leitmotiv, sendo

retomada em diversos momentos do conto:

Por onde andará Germano Matias? Magro, irrequieto, sarará, sua ginga da Praça da Sé, jogo de cintura da crioulada da Rua Direita? E o que foi que fez, maluco azoado, de seu samba levado na lata de graxa? (p.72)

Hoje, nove anos depois da morte de J.A., Germano Mathias continua com

paradeiro incerto, vivo, mas esquecido. Lembrado, entretanto, por quem lê João

Antônio em “Abraçado ao meu rancor”. O alter ego do autor flana por uma São Paulo

fantasmagórica, por trás da qual ele tenta reconhecer a dos anos cinquenta e

sessenta, quando Germano Mathias batucava, malemolente, a latinha de graxa.10

O pathos que emana da flânerie compulsiva do protagonista é o do

ressentimento. Primeiro, um ressentimento contra si mesmo, por ter abandonado

suas origens, fazendo durante a vida profissional o percurso que o levou da periferia

ao centro da sociedade. Acompanha a programação oficial, participa do coquetel de

lançamento da campanha turística e envergonha-se. Não passa de peça no

mecanismo social que lamenta, odeia, e diante do qual, como jornalista durante a

ditadura, sofre a impotência das redações sob censura prévia. Segundo, um

ressentimento dirigido à própria cidade. Sente a nostalgia que nasce de um duplo

estranhamento: do espaço e do tempo. As praças não são as mesmas, Sorocabana

10 O “Germano Mathias” de J.A. é, aliás, sem o “h": Matias sem agá fica mais puro e simples. Ou talvez seja apenas um lapso mnemônico do autor.

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mudou até de nome, virou Fepasa, os salões de sinuca e seus imperadores do taco

sumiram, morreram ou “a cidade os comeu” (p.74). Os tempos são outros. Guarda

então o rancor da cidade que não o esperou, mudou, ficou mais densa, hostil e

asfaltada. A sensação de ter sido ultrapassado pelo tempo. A mesma de Germano

Mathias na entrevista citada, velho demais para ser reconhecido pelos jovens. Assim

como a São Paulo de hoje, a nova cidade, não lembra mais a da juventude do

narrador.

No mesmo compasso, mas em outro campo harmônico, o protagonista é

afligido por profunda e porosa melancolia, recebendo influências externas a todo o

momento, exatamente como o seu ressentimento opera. A melancolia está

intimamente associada ao seu caráter específico na antiga teoria dos quatro

humores: seria um excesso de bile negra. É uma teoria já presente, em toda sua

significação e simplicidade criativa, nos pensadores gregos como Hipócrates. Dos

gregos aos ingleses como Robert Burton há um grande salto, e um ainda maior

destes a Walter Benjamin. É a conceituação deste último a que nos interessa.

Benjamin sentia atração por uma obra de Albrecht Dürer, Melencolia 1, na qual um

anjo, estudioso, prossegue em seu estudo, com aparência enfastiada, em um

mundo, geométrico, mas desorganizado. É o homem pensante, fadado à desilusão,

e a alcançar o entendimento apenas quando tudo já foi arruinado. Também é assim

a melancolia para Benjamin, uma conseqüência da compreensão, e é assim a do

personagem de João Antônio, que tem o conhecimento do passado para aquilatar o

valor do presente.

No curso de sua vida, como dissemos, foi se afastando das paisagens

familiares, das origens. Podemos dizer que ele foi, pela força centrípeta do mercado,

pela necessidade de arrumar um lugar ao sol, arrastado das periferias da cidade

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para os núcleos burgueses. Assim, o conto mostra o seu esforço, verdadeiro furor

deambulatório, para gerar o ímpeto inverso, uma força centrífuga. Quer fugir do

centro, voltar para as bordas. Verdadeira odisséia do flâneur, uma volta para casa, a

Ítaca de sua memória. Se, como diz Silva Ribeiro Neto (1981), “vida e obra literária

de João Antônio são absolutamente afins: uma por dentro da outra, uma dando

origem à outra", em “Abraçado ao meu rancor” esta afinidade chega à identificação.

A ascendência lusitana do autor, filho de um português de Trás-os-Montes, ecoa

como um dos rancores do conto em uma das muitas passagens autodepreciativas:

E engulo, de certo modo me omito, assisto. Meu avô, vindo de Trás-os-Montes, fosse vivo, fecharia a mão quadrada, lanhada, de carpinteiro – os antebraços enormes – e lhes chapoletaria na cara. (p.78)

A infância passada em Presidente Altino, bairro proletário do município de

Osasco, também repercute em Abraçado ao meu rancor. Enquanto os publicitários

avisam que em São Paulo se compra o que existe de melhor, "a baianada toma frio

até os ossos" e "o povinho de Presidente Altino e do Jaguaré mal tem para comprar

o arroz-e-feijão" (p.79). A força centrífuga a que antes referimos é então movida pelo

ressentimento, pela sensação de culpa de quem, tendo galgado alguns degraus da

escala social, lamenta o afastamento das origens periféricas: “Desaprendi a pobreza

dos pobres e dos merdunchos. E, já, creio, aprendi a pobreza envergonhada da

classe média.” (p.92)

É preciso levar a sério o título do conto e buscar mais fundo a explicação do

rancor da personagem. Por causa da expressão incessante de revolta, ódio e

desprezo que preenche o conto em quase todos os seus parágrafos, poderíamos ser

levados a pensar que o protagonista é espécie de rebelde ou herói da resistência.

Porém, é justamente o contrário. O que define o seu rancor é exatamente a marca

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de ser um ódio não expresso. Com efeito, se lembrarmos que a fluência da narrativa

não é senão monólogo interior, entenderemos que este ódio só é comunicado a nós

leitores. O drama que corrói o narrador é interno, um conflito de consciência que se

mostra todo no abismo que há entre como age e como sente ou pensa. Aos do meio

social que freqüenta, aos do grand monde, refere-se como “ratatuia, cambada,

patuléia”. E repugna-lhe ter que tolerá-los:

Aborrecem-me, que os aturo. Eles faturam. Mas como na mesa deles, engulo e sinto a bebida deles. (...) Vou criando casca, creio que me ensinaram a sorrir na moda, profissionalmente e sem ter vontade. Boa corja é. Mas vou cordial, cordato, milimetrado, direitinhamente. Ou, se convier, ouço com paciência astuta uma besteira atrás da outra. (p.79)

A oposição interior/exterior cumpre novamente neste, como nos outros

contos, papel fundamental. Entretanto, há uma diferença crucial que vale observar.

Em "Guardador" e "Maria de Jesus de Souza", por exemplo, os protagonistas não

são plenamente conscientes de si. Mimi Fumeta e Jacarandá Guardador têm o

hábito da divagação, através do qual se permitem uma breve evasão da realidade

triste que os cerca. Mesmo em "Televisão" e "Sufoco" a consciência plena só

aparece ao final, em rompantes violentos e epífanos. Entretanto, em "Abraçado ao

meu rancor" a consciência-de-si do protagonista-narrador é clara e aguda deste o

princípio. Não há um só instante de auto-engano ou alienação.

Esta diferença é justificada pela própria posição social do protagonista. O

jornalista não é, como os outros, um marginal e um excluído. Ele está inserido na

sociedade. Mas, como tem origens de proletariado, conhece os dois lados da moeda

e está, assim, numa posição privilegiada para fazer o devido cotejo entre os dois

setores radicalmente contrastantes da sociedade. E exatamente por isso o choque

entre o mundo mental e o mundo exterior mostra-se neste caso de modo diverso.

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Enquanto nos outros contos acima referidos a tensão entre interior e exterior não é

sempre vivenciada pela personagem, o jornalista, abraçado ao seu rancor, vive esta

tensão ininterruptamente como luta interior: “Ainda não chiei, azedo; tento manter

uma linha que não tenho. Mas hoje me fica difícil suportar esta cidade três dias

seguidos. Meus fantasmas, vão soltos nas ruas.” (p.94)

Não consegue desvencilhar-se do passado, da contradição entre a cidade

que experimentou na juventude e esta, cujas ruas percorre agora. Cabe citar as

meditações sobre tempo, memória e espaço, presentes em O Espaço Proustiano, de

Georges Poulet. O pensamento de Bergson que abre o livro de Poulet acusa a

inteligência de tentar justapor nossos estados de consciência, não um sobre o outro,

mas tornando-os alinhados um ao lado do outro, dentro do campo de percepção de

nossa consciência individual. Seria o ato de lançar o tempo no espaço. Para Poulet

o mundo de ''Em Busca...'' é composto de fragmentos, como soía de ser em se

tratando de um trabalho que privilegia o recordar. Mas por esse motivo mesmo, e por

tratar-se de um artefato estético, de uma obra escrita, os fragmentos da memória

estão justapostos, não apenas nesse campo da consciência individual do narrador,

mas em uma superfície estética, em um espaço lingüístico. De toda forma, o

narrador proustiano não deplora o ato, antes elevando-o a uma arte.

Mas para o narrador de ''Abraçado ao meu rancor'' a memória não é

redenção. Há uma antífona constante dos slogans turísticos, repetidos ao longo do

conto, a velhos sambas esquecidos; e as perguntas insistentes sobre o paradeiro de

Germano Matias, bem como sobre o pedreiro, o crítico Sérgio Milliet, e outros;

lembra a tópica medieval do ''Ubi Sunt?'', usada por poetas como François Villon

para inquirir o destino daqueles que já passaram, e deixaram os outros entregues à

sorte do presente. O presente do narrador sufoca, e é um presente estendido por

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uma cidade enorme que o surpreende em cada milímetro de mutação. Ela não deixa

espaço para que, como o narrador proustiano, ele desdobre as suas lembranças,

que são lembranças dela mesma. De novo, o exemplo ideal é o da interação entre

as letras antigas e os slogans: no psiquismo do narrador joaoantoniano elas estão

interconectadas com a cidade, então, como as comportar agora se os slogans

irritantes são o que ele, por sua ocupação profissional e situação, atrela à cidade,

ocupando o seu espaço mental? Eis o que representa o presente, a nova cidade:

Mas quem de amigo, desafeto, fariseu, estranho, camaradinha, perguntará? Ninguém perguntará o que me dói. Ela redói. A cidade bate fundo aqui e o que me irrita foi me passarem, empurrarem, ontem no coquetel, antes do porre, um folheto colorido, publicidade de turismo sobre ela. Quem a conhece que a possa açambarcar tão, tão simplesmente? (p.77)

A lembrança de Germano Matias não traz alívio saudosista, não é uma arte

da memória que lhe traga deleite, é apenas mais um bafejo da angústia. Os

fantasmas vêm da sua memória, do tempo passado em Presidente Altino, no Morro

da Geada. Um tempo em que, como diz em outro texto memorialista, “Meus tempos

de menino”:

Nossa pobreza não era envergonhada. Ainda não fora substituída pela miséria nos morros pobres, como o da Geada. Que tinha esse nome a propósito: lá pelos altos do Jaguaré, quando fazia muito frio, no morro costumava gear.11

O narrador, na sua odisséia centrífuga, termina onde começou, onde o

próprio João Antônio teve seus tempos de menino, no Morro da Geada:

11 João Antônio (1996b: 21)

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E toco a subir no escuro o Morro da Geada. Um pensamento me passa, que empurro. Se tivesse de viver de novo aqui, de onde me viria a força? Vinte minutos sozinho, vento ou pernilongos enormes, pretos, na picada do mato e da barba-de-bode. (p.124)

Ao fugir para o centro de sua memória, periferia da cidade, alto do morro, ele

espera encontrar uma solução, ainda que evasiva, para o seu conflito interior. É

possível voltar no tempo e esquecer o que tem vivido desde que deixou a pobreza

feliz da infância para trás para encontrar a vida de rancor da classe média? À mãe é

encarregado o golpe final do conto. Ela quer saber como está a vida atual e se ele

retornará. Resposta que ele não sabe fornecer a não ser através da forma de um

silêncio constrangido e hesitante, diante do qual a mãe diz, colocando ponto final ao

conto: "Sua arte não permite dois amores".

Sua arte não permite dois amores. Já não pode encontrar sua casa no lar

original, o das recordações do menino. Tampouco se sente em casa onde está

atualmente, na classe média. Fica perdido em uma terra de ninguém, cidadão de

dois mundos e de nenhum. É uma solidão de flâneur, de quem anda sem saber o

destino e já não podendo recuperar a origem. A inquietação derivada deste

sentimento de falta de lugar é que explica o ímpeto deambulatório, a qualidade de

errante do narrador:

É andar. É andar. Osasco, Lapa, Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, Centro, Pinheiros, Lapa, na volta. Roteiro é este, com alguma variação para as beiradas das estações de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos de Santa Efigênia. Também um giro lá por aquele U, antigamente famoso, que se fazia entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da zona do Bom Retiro. (p.72)

Algumas personagens de João Antônio, como o Guardador, são errantes

porque vivem na rua, vivem na rua porque são excluídos. O protagonista de

“Abraçado ao meu rancor” não, não erra nas ruas por falta de teto. A sua flânerie é a

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de quem perdeu sua identidade, em algum ponto do caminho que o levou da

pobreza à ascensão social.

Walter Benjamin escreve a respeito dos errantes da Paris do século XIX:

Havia o pedestre que se confundia à multidão, mas havia também o flâneur que exigia um mínimo de espaço e que não estava disposto a abandonar sua vida de ócio de cavalheiro. O modo ocioso como apresentava sua personalidade era o seu protesto contra a divisão de trabalho que transforma pessoas em especialistas. Por volta de 1840 tornou-se moda durante um breve período levar tartarugas para passear pelos arcos. Os flâneurs gostavam que as tartarugas lhes ditassem o ritmo da caminhada.12

“Uma Força” conta a amizade do narrador com um cágado. Mais uma vez,

estamos diante de um pedestre. Obviamente não o pedestre que Benjamin descreve

na citação acima: o cidadão. Aquele que quando vemos na rua sabemos que tem

um rumo certo, que está indo de casa para a igreja, do trabalho para a casa, do

banco para a Igreja, etc. Não, é um flâneur:

Andava nas minhas marchas por aí e como me houvessem esquentado a cabeça com aporrinhações domésticas e rusgas de problemas que não acabam nunca, dinheiro que deveria haver mais, apresentações, exercícios repetidos e cuidados de que não cuido, eu andava. (p.140)

Se o modo como é descrito o flâneur de João Antônio converge e se

assemelha ao arquétipo benjaminiano, isto será discutido mais adiante. Por

enquanto basta notar esta pequena, mas importante coincidência do

cágado/tartaruga. O que interessa neste momento são os pontos de contatos com

os outros contos desta seção.

12 Benjamin (1989: 76)

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O cágado, como já notamos antes, é legítimo emblema da solidão do

andarilho urbano de João Antônio13. Animal que carrega nas costas sua casa,

solitário andarilho, quase todas as personagens joaoantonianas podem identificar-se

com ele, já que vivem sob o signo do cágado. O narrador logo no momento em que

o descobre já apresenta esta cumplicidade e identificação com o animal:

Um cágado me seguia sutil e andarilho, com sua cabeça de cobra, e talvez até tivesse sede como este aqui . Então, eu o apanhei do chão, sem medo ou nojo daquele réptil quelônio, como mais tarde o dicionário me diria. Vai que aquele instante estava acima dos dicionários e eu apenas o apanhei do chão para fazermos amizade. (id., grifo nosso)

O trecho grifado mostra, portanto, como a personagem se projeta no cágado

desde o início. Outros, mais adiante, só reforçam o pacto entre o réptil quelônio e

seu amigo:

“Ah, cágado, passa a viver como pessoa da família e a ser vivente meu." (p.141)

“Ficava entre nós um liame (...)”. (id.)

“Sós e andarilhos, cágado e eu.” (id.)

“Um sentimento me une ao cágado, um tomar conta e não deixar faltar nada.” (p.143)

O título do conto, “Uma força", é a primeira vista enigmático. O conto não

nos oferece, de modo claro, nenhuma explicação para este título. Todavia, podemos

nos perguntar: a que ele se refere? O melhor candidato é justamente o sentimento

de cumplicidade que une a misteriosa relação entre o homem e o cágado. Uma força

atrativa misteriosa coloca-se entre os dois. Quem tem como melhor amigo um “réptil

13 Vide supra p.15.

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quelônio”, com que mantém uma comunicação silenciosa, é um solitário. O que

marca a solidão do amigo do cágado não é muito diferente da misantropia do

protagonista de "Abraçado ao meu rancor". Ambos têm o mesmo desamparo e a

mesma sensação de inadequação ao mundo que os cerca. O primeiro inicia o conto,

como já citamos, descrevendo os motivos que o levaram a perambular: problemas

domésticos, reclamações, falta de dinheiro. Ele ganha a rua para fugir de casa. O

outro foge do centro, onde tem que lidar com suas obrigações profissionais no meio

de gente que lhe repugna, com a ilusão de que na periferia encontrará o lar original.

Os dois têm o desajuste típico do flâneur joaoantoniano e, por conta de sua inserção

social, a culpa característica daquelas personagens que deixam para trás uma

origem humilde. A estes traços se une o da solidão.

Em “Uma força” a solidão é acentuada pela presença de um amor frustrado.

As descrições da relação do protagonista com o réptil quelônio são intercaladas com

referências a uma figura feminina: Aldônia. O narrador passa do cágado para

Aldônia e desta para aquele abruptamente, em uma associação de idéias veloz e

idiossincrática:

Hoje faço uma casa para o cágado.

Não pára sossegada. Chic, chic, chic. Os sapatos pretos ralam na calçada, as canelas lustram, fica mais vermelho ali nas maças do rosto. Provavelmente Aldônia não vê que aqueles movimentos me cutucam. (p.141)

Aldônia é a obsessão amorosa do narrador, a quem observa de longe,

platonicamente. Com relação a ela, seus anseios de aproximação são sempre

frustrados desde o início. Não tem coragem. Quer lhe contar sobre o cágado, mas

desiste:

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Se eu contasse contaria essas coisas a Aldônia, da condição de um cágado e da minha condição. Porque ela é Aldônia e a ela só eu contaria.

Claro, não são coisas de se contar. (p.142)

Aldônia, assim, é amor não realizado. Surge apenas como mais uma marca

da solidão inelutável do protagonista. Ao final só lhe resta dirigir uma oração pelo

cágado:

Meu Deus. Meu Deus e meu pânico.

Tem o Senhor das esferas, tem o Deus fantasiado, esculpido e rezado. Há de haver um, de consciência cósmica. A esse, eu peço pelo cágado. (p.143)

É uma prece de desespero, apanágio dos que, não tendo nada, recorrem ao

sobrenatural como último recurso. Devido à identificação estabelecida entre o

cágado e o narrador, a prece não deixa de ser por ele próprio. Ele e o cágado são

um.

Em “Tatiana Pequena” temos novamente a cumplicidade muda entre um

homem e um animal e uma frustração amorosa, como em “Uma força”. Como em

“Abraçado ao meu rancor”, o protagonista é um periférico que chegou ao centro, não

sem se sentir como se tivesse vendido a alma durante a trajetória. Nos três contos,

três solitários dos espaços urbanos. O animal aqui é a cadelinha Tatiana do título. O

dono de Tatiana, o protagonista, conseguiu elevar-se socialmente entrando para o

mundo da televisão. Já sabemos desde "Abraçado ao meu rancor" o que resulta de

conseguir vencer na vida: a culpa. Se naquele conto o leitmotiv, a evocação de

Germano Matias, remetia à busca do flâneur pela São Paulo dos tempos da sua

juventude, “Tatiana Pequena” tem como fio condutor as palavras de “um vagabundo

do Méier”:

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Eu já nem sei quantas vezes tenho me lembrado de um vagabundo do Méier, com o seu jeito de me dizer que certos dinheiros se apanham com a mão esquerda. E só. E cair fora, sair para a vida, esquecer.

Que, pegando com a esquerda, a que fica do lado do coração, o favorecido agradece fundo e mais sentido, que apanha o maldito pelo lado certo, conveniente. E a situação já regula. O esquerdo. (p.188)

“É, mas eu não sou homem de toda essa ciência não", retruca o narrador

para si mesmo. "Apanhar com a esquerda" significaria para ele ficar livre de

remorsos, iludir-se com a idéia de que os favores recebidos foram devido ao seu

mérito. Entretanto, aqui novamente não há alienação. Ele sabe que a sociedade em

que vive não é justa e que as pessoas não são premiadas de acordo com seus

méritos. Trabalha na frente das câmeras como apresentador do último telejornal da

noite. Sua participação dura quarenta segundos. Sabe, entretanto, que o que faz

não tem valor. Sabe que é um babaquara. "Babaquara", palavra corrente no léxico

popular dos anos 1978, vem do tupi e quer dizer literalmente "aquele que não sabe

nada, mas manda". É assim que o protagonista se sente, quer dizer, ele sabe que

não sabe nada e, ainda, que age na frente das câmeras como se soubesse. Diz que

“com umas leituras de superfície e na moda, cara ajudando, dentes limpos, barba

feita e um pouco de felicidade, um vagabundo do Méier faria igual papel”. (p.195)

Tatiana é sua cadelinha de apartamento. A ela confessa a intimidade que

não tem nem com Marianita, sua amante, conquistada no mundo da televisão.

Confessa que "a coisa mais fina e bonita deste mundo é o vôo das gaivotas." (p.188)

Nos círculos sociais que freqüenta não tem como expandir sua sinceridade. É

obrigado a retraí-la e dissimulá-la. A mulher que ama, inserida no mesmo jogo social

de falsidade e dissimulação, está mais distante dele do que a cadela com que tem

uma comunicação silenciosa.

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Marianita vai levando um jeito leviano de vida. Vai morrer assim, será assim até morrer? Também, nunca lhe fiz especulação dessas, que isso não é pergunta de gentes do asfalto. Nos morros e cafofos desta cidade é que se fazem certas perguntas. (p.191)

É por isso que de relações desenvolvidas através do jogo social, relações

que, antes de serem pessoais, são estratégicas, emerge a solidão. Não há

cumplicidade possível. Mesmo a intimidade erótica não se desdobra em uma

intimidade real: ele não é capaz de dizer para Marianita o que realmente pensa dela.

Marianita também faz parte do baile de máscaras. Ela é noiva de um funcionário do

alto escalão da emissora, o "doutor BBC". A narrativa do conto gravita justamente

em torno da festa de casamento dos dois. Casamento menos por amor do que por

conveniência. Só em pensamento o narrador expande sua sinceridade para a

amante:

Marianita, ô mulher, Marianita. Seu pessoal não se dá conta do modo como se engana e faz que vai vivendo, morena. É vida mesquinha; regras ruins de se jogar. Nada é espontâneo. Assim, o coração não vibra e a vida é mesquinha. A gente acaba nem se merecendo. Não merecemos aquele quê, aquele um, o raro, o de um se atrair pelo outro. (p.202)

“Tatiana Pequena” pode ser considerado um pequeno estudo sobre a

solidão causada pelas relações estratégicas do mundo social. Marianita, o conto

sugere isso, ama e é amada pelo narrador. Eles poderiam então construir uma

relação pura, fora do jogo social. Entretanto, Marianita parece já estar jogando este

jogo há tempo suficiente para fazê-la esquecer de que se trata de um jogo. Assim

ela vive a aparência como realidade. Aquilo de que se lamenta o narrador é a falta

de espontaneidade. A sociedade é de tal forma que só é viável ter uma relação

genuína com uma cadela. Assim como o protagonista de “Uma força” na sua

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amizade com o cágado, o apresentador de telejornal partilha sua solidão com

Tatiana:

De conversa com ela, tenho aprendido um uso novo dos pronomes, um cabimento diferente a desenvolver nos monólogos noturnos em frente ao mar. E, claro, crio. Criamos. Descobri, possível, uma terceira pessoa invisível, mas existente, útil. E me dirijo a Tatiana, como se falasse a ela. De assim:

- É ela? É ela, a pequena, é Táti?

É como se fôssemos três: eu, Tatiana e a terceira pessoa, a invisível – ela. Fica sendo. (p.199)

Inventa o protagonista, para aplacar a sua solidão, um monólogo a três

vozes. Mas recupera em Tatiana a comunicação espontânea que é sacrificada na

vida social. Relações interpessoais estratégicas são desumanizadoras. Uma pessoa

deve ser um fim em si mesmo. Entretanto, ao empregar na vida social o artifício da

dissimulação, as pessoas são utilizadas como meio, viram instrumentos para a

obtenção de determinado fim. Marianita vale-se da impostura do amor de fachada

para casar com o doutor BBC e, assim, obter uma vida confortável. Com as pessoas

no jogo social transformando umas às outras em instrumentos e em mercadorias

com valor de troca. Um elogio em uma festa pode trazer rendimentos. A arte da

lisonja, do sorriso forçadamente genuíno, aquele que o protagonista emprega

quando está diante das câmeras, é o que se exige para o sucesso na vida. Em uma

sociedade com relações assim desumanizadas, nas quais pessoas são tratadas

como coisas, é natural que animais sejam humanizados.

Outro ponto importante de "Tatiana Pequena" é o contraste entre a

sabedoria genuína e a falsa sabedoria. A genuína é a sabedoria popular, lugar da

espontaneidade. É, por exemplo, o conselho já mencionado do vagabundo do Méier,

“certos dinheiros se apanham com a mão esquerda”, ou o dito da “crioula velha”, que

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resolveu economizar desistindo de comprar cem gramas a mais de carne: “Jacaré

não compra cadeira porque não tem bunda pra se sentar.” (p.189) Ou a experiência

do vaqueiro Mundinho, de quem o narrador se recorda durante a festa: "Mundinho,

simples e firme, vestido de couro, cozinha as coisas com uns olhos redondos, sabe

de pessoas e bichos, desconhece ministros e dólares.” (p198) Esta sabedoria,

nascida da vivência imediata das coisas da vida, contrasta com a sabedoria dos

babaquaras, os que não sabem nada mas, mesmo assim, mandam. O produtor, ao

redor de quem se dispõem os bajuladores durante a festa, é a figura escolhida para

servir de contraponto:

A roda formada o ouve, há os balançares de cabeças, gravemente. A pança sobe e desce dentro da camisa francesa, de preço, e a mão esquerda, fazendo-se solene gira num gesto quase nervoso que mexe também, no peito, o medalhão pendente da corrente de ouro aparecendo logo abaixo dos dois botões abertos entre os pêlos esbranquiçados. (p.194)

O poderoso produtor encarna a sabedoria babaquara. Como diz o narrador,

"nos morros e nas bocadas desta cidade, um tipo desses ganha nome de papagaio,

presepeiro ou, se diz, é um comédia". (id.) Esta oposição, nomeada aqui de

sabedoria babaquara versus sabedoria malandra, está evidentemente associada à

oposição, característica do universo literário de João Antônio, entre o mundo dos

malandros e merdunchos, de um lado, e o mundo dos bacanas e otários, de outro.

Todavia, há especificamente neste conto e, de modo mais geral, no livro Abraçado

ao meu rancor, um desalento na descrição do mundo da malandragem, seja com

malandros velhos, como o Guardador, seja com malandros cooptados pelo sistema

e que vivem sob a égide do ressentimento e da culpa, como em "Abraçado ao meu

rancor" e neste "Tatiana Pequena", que não existia no João Antônio mais jovem, o

de "Malaguetas, Perus e Bacanaço".

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1.5. A Fuga: “Eguns”

“Eguns” fez valer para si uma seção à parte por duas razões: a primeira, por

ser o único conto do livro ambientado fora de um espaço urbano; a segunda, pelo

tom otimista e quase salvífico que lhe é inerente. Passado na Ilha de Itaparica, no rol

sombrio das outras narrativas de Abraçado ao meu rancor, “Eguns” destaca-se como

uma interrupção luminosa. Como se o flâneur joaoantoniano, observador e

participante dos dramas do desamparo e da desolação das grandes cidades,

houvesse saído em férias:

Chega de malbaratar nos cafofos! Chega de bole-bole e de mariolar no guti-guti do brega!

E basta de poluição petroquímica.

Vou pra Ilha de Itaparica.

É de se ver, antes que acabe espetada de espigões. (p.148)

Tivéssemos que escolher, dentre todos os do livro, o conto mais afim a

“Eguns”, este seria “Amsterdã, ai”. Na galeria de desesperanças e opressões de

Abraçado ao meu rancor os dois se destacam como momentos de alívio e desafogo.

Não é mera coincidência que a voz narrativa de ambos, na primeira pessoa,

empregue o olhar do turista. Só na viagem é possível encontrar algum alento. O

mundo da vivência trivial com as repetições de suas mazelas dia após dia somente

pode produzir o estrangulamento dos horizontes. Porém, "Amsterdã, ai", se soa

otimista confrontado com o desconsolo geral de outros contos, comparado com a

luminosidade de “Eguns”, empalidece. Amsterdã, mesmo vista com o olhar curioso

de quem está ali apenas momentaneamente, não consegue esconder suas

características de centro urbano. Suas ruas podem não ser sujas e feias como as da

Lapa de Mimi Fumeta, mas tem suas prostitutas, ainda que, seguindo o senso de

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organização europeu, tenha sido separado um distrito específico para elas. E há

junkies maltrapilhos cambaleando por elas. O lado obscuro e marginal da sociedade

é visto e descrito por João Antônio nas ruas de Amsterdã. Pode ser turismo, mas

está longe do turismo de cartão-postal.

Com “Eguns” tudo é diferente. João Antônio, preciso esteta da miséria

social, abandona durante algumas páginas as descrições do “miserê”. A Ilha de

Itaparica de “Eguns” está tão insulada do contexto de Abraçado ao meu rancor como

uma ilha real do continente. Até o léxico é modificado para que a linguagem se

adapte ao tema descrito. Não há aqui “viração”, “miserê”, “mulambento”,

“merduncho”, “majorengo”, “pivetada”, “patuléia”, “ruço”, ”eira nem beira”, “ratatuia”,

“corja”, “muquinfo”, “bonifrates", “chué” e outras palavras características do

vocabulário joaoantoniano. No pequeno universo insulado em “Eguns” este glossário

não tem lugar.

“Eguns”, a palavra, refere-se aos ancestrais cultuados na festa homônima do

candomblé. No Brasil esta tradição é mantida viva pela nação ketu na Ilha de

Itaparica, na Bahia. É esta festa que é visitada pela prosa de João Antônio. Ela é

descrita com fascínio por ele, mas não é a curiosidade pura e simples, seja a do

gosto pelo exótico, seja a do antropólogo, é uma curiosidade empática. O ritual dos

eguns é mantido desde o tempo da escravatura. Portanto, é uma festa que diz

respeito às origens do povo brasileiro. Por isso, João Antônio identifica-se

visceralmente com as disposições místicas do povo ketu:

Dá-se o engraçado. Se me dá. Nenhuma necessidade de provar a veracidade dessas informações que cantam e dançam, como não chego a sentir medo do egum, nem o ambiente me é estranho. Aturdido e maravilhado, sim e bem.

(...)

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Resistiram ao chicote, aos grilhões, ao pelourinho, à estupidez da escravidão. E estão aí, vivos. Vou lá eu, mestiço ou mulato claro e nascido livre, filho deste com aquela, me meter na investigação dos Eguns? (p.154)

Aqui temos ocasião para explorar mais uma vez o tema da oposição entre a

sabedoria babaquara e a sabedoria malandra. Esta última é a sabedoria autêntica

porque originada do legado do sofrimento. A sabedoria babaquara, por sua vez, é

espúria porque não surge da luta travada diariamente pela sobrevivência. Apenas

quem precisa sobreviver adquire a real sabedoria das ruas. Aqueles das classes

sociais privilegiadas, justamente por causa dos privilégios, não têm ao seu alcance a

escola do sofrimento. Esta experiência só têm os que, como os negros do povo ketu,

possuem vivência literalmente histórica das dores do cotidiano. “Quatrocentos anos",

diz o narrador de "Eguns", ciente disso. (p.154) Assim, seria de surpreender que a

escritura de João Antônio, uma poética da malandragem sofrida, encontra-se seu

lugar de redenção fora do registro do popular. Nada mais natural que a verdade

esteja na boca do povo, um povo com seus quatrocentos anos de tradição.

"Eguns” é uma fuga. Porém, não no sentido de quem busca consolos fáceis

para evadir-se da realidade. “Eguns” representa um encontro com a verdade. O

andarilho solitário de “Abraçado ao meu rancor” busca, mas não encontra e se perde

nos caminhos de São Paulo, assombrado pela cidade de sua juventude. Ele

precisaria torna-se o viajante de "Eguns" para encontrar esta verdade mais longe, no

coração do Brasil.

1.6. O Espaço como Personagem: uma análise de “Guar dador”

A personagem central do conto “Guardador” é um pobre morador de rua de

Copacabana, no Rio de Janeiro, que sobrevive às custas dos trocados que recebe

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dos donos dos carros que estacionam ali por perto da praça em que vive. Ele

poderia morar em qualquer outra grande cidade, por exemplo, São Paulo, como

muitos personagens dos contos de João Antônio.14 Este toque de realismo das

figuras que percorrem sua narrativa é ressaltado pelo próprio autor como nos mostra

Beth Brait em seu livro A personagem:

Fácil compreender que o meu tipo de trabalho parte de uma realidade; é da vida que sugo meus personagens. Mas, pra ser honesto, cada um deles merece uma longa conversa sobre o processo específico de sua criação. Embora dependendo muito do que a vida me dá em termos de gentes, muita vez tenho trabalhado sobre o mais que me dá um clima, um tom, uma.cor, um corpo de mulher ou uma lua enfurecida no céu....

Eles vivem, tenha a certeza.15

Em “Guardador”, a personagem principal é apresentada pela primeira vez ao

leitor ainda sem um nome próprio.

Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco da árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações que a praça vem sofrendo. O espaço ganha mais importância que o sujeito. (p.22)

Seu primeiro traço é o lugar que escolheu para morar: o oco de uma velha

figueira abandonada, “tão esquecida de tratos” como Jacarandá. A identificação não

pára por aí. A velha árvore, mesmo esvaziando-se interiormente, deteriorando-se

pelas mudanças provocadas pelo tempo, assim como Jacarandá, consegue

sobreviver a todo ambiente hostil da praça. Ambos são guardadores. Jacarandá

14 Em seu primeiro livro de contos Malagueta, perus e bacanaço, também estão presentes personagens urbanos e marginais da periferia paulistana. 15 João Antônio apud Brait (2002: 78)

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guarda os automóveis dos bacanas e a figueira abriga o velho homem. Eles são,

assim, os que, além de resistir, desempenham ainda uma função social.

O nome pelo qual é reconhecido o guardador, Jacarandá, é a designação de

uma árvore brasileira de madeira nobre, bastante resistente e escura. A personagem

possui essas mesmas características. É um negro resistente que consegue

sobreviver às adversidades de um morador de rua em um grande centro urbano.

Ironicamente, o guardador, estigmatizado por sua característica de eterno

bêbado, de olho torto, é o incumbido de guardar os carros dos bacanas.

Na noite, o bacana enternado, banhado de novo, estacionou o carro importado, desceu. Entrou na boate ali defronte, ficou horas. Saiu, madrugada, lambuzado das importâncias, empolado e com mulher a tiracolo.

Jacarandá, bebido e de olho torto, vivia um momento em que fantasiava grandezas, tomando um ar cavalheiresco. (p.29)

Como foi visto anteriormente, em outros contos de Abraçado ao meu rancor

– “Televisão”, “Sufoco” e “Publicitário do ano” – alguns personagens recebem este

mesmo nome, Jacarandá. Apesar de diferentes em muitos aspectos (cor, profissão,

classe social, naturalidade etc.), o traço que une estas personagens talvez seja seu

estilo marcadamente nacional, “o tal jeitinho brasileiro”.

Alfredo Bosi bem observa em seu texto introdutório a Abraçado ao meu

rancor, que “coisas simples e fundamentais, como a dignidade de ter nome, as

pessoas parecem ter perdido.” (p.7) É o que sucede ao guardador, que recebe o

apelido de Jacarandá. Não é, portanto, sem motivo que João Antônio pode repetir a

mesma alcunha em outros contos, sem qualquer cerimônia, uma vez que a maioria

de suas personagens vive excluída da vida social.

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Bosi, ainda comentando o livro de João Antônio, ressalta a intensidade do

traço da nostalgia, uma presença marcante em quase todos as personagens.

Na verdade, o que chora o vagamundo da pole inchada e absurda? Chora um tempo em que era fácil misturar espontaneamente arte, boêmia e vida popular. Chora aquelas ondas de gratuidade lúdica onde os pobres ainda podiam mergulhar ando-se o luxo divino de não ter pressa. (BOSI, 2001, p.8)

Este traço nostálgico, sublinhado por Bosi, também marca a personagem do

guardador.

Os olhos brilhavam, quanto, ficavam longe, antigos e quase infantis numa lembrança ora peralta, ora magnífica.

(...)

Jacarandá, bebido e de olho torto, vivia um momento em que fantasiava grandezas, tomando um ar cavalheiresco. (p.29)

Uma outra característica da personagem do guardador é sua habilidade.

Ainda que velho e cansado, não perde o seu “jeitinho” malandro.16 Ele é capaz de

driblar elegantemente todas as adversidades do meio e sobreviver. João Antônio

compara esta qualidade de Jacarandá às dos passistas e mágicos:

Mas um guardador de carros encena bastante de mágico, paciente, lépido ou resignado. (p.23)

Nas pernas, opa, uma agilidade que lembra coisa, a elegância safa de um passista de escola de samba. (p.27)

16 Roberto Da Matta, em Carnavais, malandros e heróis, estuda com profundidade as características da malandragem. No pequeno trecho, a seguir, o autor procura definir alguns tipos de malandro: “... o malandro recobre um espaço social igualmente complexo, onde encontramos desde o simples gesto de sagacidade, que, afinal, pode ser feito por qualquer pessoa, até o profissional dos pequenos golpes. O campo do malandro vai, numa gradação, da malandragem socialmente aprovada e vista entre nós como esperteza e vivacidade, ao ponto mais pesado do gesto francamente desonesto. É quando o malandro corre o risco de deixar de viver do jeito e do expediente para viver dos golpes, virando então um autêntico marginal ou bandido.”

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Em “Abraçado ao meu rancor”, João Antônio revela-se mais desencantado,

recortando um malandro envelhecido, cansado, mas mesmo assim com consciência

crítica.

Já não tem gana, gosto. E nem capricho; acabou a paciência para amigo ou auditórios.

(...)

Os cabelos pretos idos e, de passagem, a vivacidade, a espertice, o golpe de vista, o parentesco que guardadores têm com a trucagem dos camelôs e dos jogadores de chapinha, dos ventanistas, dos embromadores e mágicos, dos equilibristas e pingentes urbanos. (p.25)

Aos trompaços dos anos e minado pelo estrepe dos botequins, ele emperrara a sua parte dessa picardia levípede. (p.26)

1.7. Espaço e ambientação

O conto “Guardador”, de João Antônio (1992), retrata o cotidiano de um

guardador de carros em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, em meados da

década de 1970.

A narrativa transcorre no espaço de uma praça pública, descrita com as

características típicas de um conturbado cotidiano urbano, mas sua atmosfera não

permite que se perca a singularidade da malandragem carioca, ao contrário, esta a

torna mais evidente. A ambientação criada pelo autor reflete a devastação do

espaço público urbano representado pela praça em Copacabana.

Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco da árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações que a praça vem sofrendo. (p.22)

Seria oportuno aqui um parêntese para melhor esclarecer as diferenças

entre o espaço e a ambientação criada pelo autor do conto. Osman Lins, em seu

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livro Lima Barreto e o espaço romanesco, caracteriza bem estes dois conceitos.

Segundo ele,

por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa.17

Ainda nesta mesma tese, Lins estabelece diferenças entre três tipos básicos

de ambientação (franca, reflexa e dissimulada) que julgamos pertinentes para a

análise dos contos de João Antônio. Sinteticamente, poderíamos assim conceituar

cada um desses tipos:

� A ambientação franca é aquela composta por um narrador independente, que

não participa da ação e que se pauta pelo descritivismo, muitas vezes

percebido pelo leitor menos atento como supérfluo.

� A ambientação reflexa é aquela em que “as coisas, sem engano possível, são

percebidas através da personagem”18, sem a colaboração intrusa e

sistemática do narrador que, quase sempre, acompanha a perspectiva do

personagem, numa espécie de visão compartilhada.

� Na ambientação dissimulada, ou oblíqua, “os atos da personagem [...] vão

fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios

gestos”.

17 Lins (1976: 77) 18 Ibid. (82)

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Embora em “Guardador”, a ambientação reflexa e a dissimulada

predominem, por refletirem um narrador mais participativo e dinâmico como costuma

ocorrer no texto de João Antônio, na introdução percebe-se, contrariamente, um

exemplo de ambientação franca, uma vez que ainda não se apresentaram as

personagens e o autor parece comprometido com a descrição do espaço onde se

desenrolará a ação.

A rua ruim de novo.

Abafava, de quente, depois de umas chuvadas de vento, desastrosas e medonhas, em janeiro. Desregulava. Um calorão azucrinava o tumulto, o movimento, o rumor das ruas. Mesmo de dia, as baratas saíam de tocas e escondidos, agitadas. Suor molhava a testa e escorria na camisa dos que tocavam pra baixo e pra cima.

O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra vez, a gente sentia. Ia arriar feio. (p.22)

Mais do que o retrato de um pobre do Rio de Janeiro, a personagem revela

os contrastes. O “Guardador” faz passear pela praça a multiplicidade de conflitos da

vida urbana carioca. É um cenário que aproxima o parque infantil, a igreja, a

prostituição, os meninos de rua, enfim, nela transitam desde velhinhos “limpinhos e

direitos” a “candinhas faladeiras, pegajosas, de olhar mau”.

Como bem frisou DaMatta em Carnavais, malandros e heróis:

A praça representa os aspectos estéticos da cidade: é uma metáfora de sua cosmologia. Nela estão juntos os jardins e é ali que se cristalizam os prédios mais básicos da vida social da comunidade: a igreja (que representa a linha do poder religioso) e o palácio do governo e a prefeitura (representando o poder político).19

19 DaMatta (1997: 94)

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Em “Guardador”, ela realmente desempenha essa função metafórica de

representar o ambiente urbano. João Antônio, entretanto, ressalta, em sua descrição

da praça, o transitar dinâmico dos mais diversos tipos humanos. É como se

tivéssemos uma sucessão de cenas que narram o mundo desses passantes ao

mesmo tempo em que criam uma certa tensão, implícita nesse “conglomerado de

gentes” que coabitam um espaço social tão restrito, uma Babel.

A praça é também a metáfora da violência urbana, que pode estar a céu

aberto ou escondida:

Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões lá de cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade disfarçada para receber turistas e visitantes ilustres.” E “se a gente repara, a batida do pandeiro é triste. (p.26)

O espaço das ruas é descrito como tomado pelo calor: “Abafava, de quente,

depois de umas chuvadas de vento, desastrosas e medonhas, em janeiro.” (p.22) E,

também, preenchido por sons (rumores), atordoado, tumultuado, sujo. As baratas

“agitadas” refletem a aparente movimentação da praça.

Para criar esta ambientação que nos passa a falsa idéia de movimento, João

Antônio abusa do recurso da polaridade metaforizada.

Suor escorria da camisa dos que tocavam pra baixo e pra cima. (p.22)

Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a direita ou para a esquerda. Três motoristas lhe escapam a um só tempo. (p.22)

Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom de vida. (p.23)

Como é possível observar, nos três exemplos apresentados, mais do que

deslocamento no espaço e no tempo, o que se tem na verdade é uma agitação,

caracterizada pela repetição, que acaba por criar a imobilidade. Tem-se, assim, um

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espaço de tensão: nada acontece, mas o tempo todo se tem a impressão de que

algo está para ocorrer.

A trama em João Antônio não se faz a partir do desenrolar de ações que

caminham para um clímax, não é assim que ele cria tensão. Não é assim que ele

trabalha a fábula.20 Na verdade, em “Guardador”, como na maioria de seus contos,

não se buscam acontecimentos excepcionais que atrairiam a atenção do leitor, mas

sim a essência desse cotidiano repetitivo e imobilizante que o autor tão

singularmente transmite. João Antônio assim consegue o que Julio Cortázar sublinha

como essencial para que um conto seja bem-sucedido: permanecer na lembrança do

leitor como algo singular.

... esse ofício consiste entre muitas outras coisas em conseguir esse clima próprio de todo grande conto, que obriga a continuar lendo, que prende a atenção, que isola o leitor de tudo o que o rodeia, para depois, terminado o conto, voltar a pô-lo em contato com o ambiente de uma maneira nova, enriquecida, mais profunda e mais bela. E o único modo de se poder conseguir esse seqüestro momentâneo do leitor é mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão, um estilo no qual os elementos formais e expressivos se ajustem, sem a menor concessão, à índole do tema, lhe dêem a forma visual, a auditiva mais penetrante e original, o tornem único, inesquecível, o fixem para sempre no seu tempo, no seu ambiente, no seu sentido primordial.21

Durante todo o desenrolar da narrativa o que se percebe é a rotina, o dia-a-

dia da personagem do guardador, assim como de todos os anônimos que circulam

pela praça, sem que nada se transforme. A narrativa começa e termina sem que

nada de extraordinário ocorra. Há apenas um movimento cíclico que não aponta

para nenhuma transformação.

20 Os conceitos de trama e fábula aqui citados são os apresentados por Tomachevski no livro Teoria da Literatura: Formalistas Russos, p.176. 21 Cortázar (2004: 157)

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De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo bobeava, o metiam num arrastão. (p.26)

Outra vez. Na noite, o bacana enternado, banhado de novo, estacionou o carro importado, desceu. (p.29)

A ação no conto é tão repetitiva que o autor diversas vezes emprega verbos

no imperfeito para marcar este aspecto permansivo:

Se entre o pessoal, se os mais moços, se os mais fortes não o aporrinhavam com humilhações, desintoxicava ali, quieto nos cantos que lhe permitiam. (p.26)

Mas na continuação, nem semana depois, derrapava. À cana, à uca, ao mata-bicho. Ao pingão. Fazia um carro, molhava o pé. Fazia mais, bebia a segunda e demorava o umbigo encostado ao balcão. Dia depois de dia entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. (p.27)

Em diferentes trechos do conto, o autor coloca lado a lado o sacro e o

profano. Essas duas atmosferas aparentemente antagônicas convivem no espaço

público da praça.

DaMatta, em Carnavais, malandros e heróis, resume muito bem o ambiente

carnavalesco também presente na ambientação da praça em “Guardador”.

A multiplicidade de eventos que ocorrem simultaneamente num mesmo espaço, típica de rituais de inversão como o carnaval, ajuda a transferir as lealdades mais fortes – da família, da casa, da classe etc., essas identidades sociais permanentes e cotidianas – para uma situação, um contexto específico que se define como altamente dramático porque nele ocorrem (entre outras coisas) muitas ações ao mesmo tempo. Não há uma ordem de “entrada” ou de “saída”, como num palco de teatro, ou num evento ordenado em rotina. O mundo social assim apresentado passa, então, a ter um ritmo e uma intensidade maiores e muito mais abertos do que o nosso sistema de classificação pode simplesmente digerir.22

As imagens carnavalescas se unem às da igreja harmoniosamente.

22 DaMatta (1997: 116)

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Pisando quase de lado, vai tropicando, um pedaço de flanela balanga no punho, seu boné descorado lembra restos de Carnaval. E assim sai do oco e baixa na praça. (p.22)

Só no domingo, pela missa da manhã, oito fregueses dão a partida sem lhe pagar. Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a direita. (p.22)

Eles rezando na Catedral e, depois, saindo para flanar. Teriam dois jeitos de piedade – um na Catedral, outro cá fora? (p.24)

Rodas de jogadores de cavalos nas corridas noturnas se misturavam a religiosos e a cantorias do Nordeste. (p.28)

Há motivos biográficos para as escolhas de ambientação e a afinidade do

autor com temas populares tais como o carnaval supracitado. João Antônio, ao vir

para o Rio, interessou-se pela realidade pobre da cidade, mais facilmente

encontrada nos subúrbios, mas que também está presente em Copacabana, bairro

multifacetado, onde todos os tipos sociais podem ser encontrados. O autor passou,

então, a trabalhar com essas personagens marginalizadas do bairro:

Quando em quando, o camburão da polícia cantava na curva da praça e arrastava o herói, na limpeza da vagabundagem, toda essa gente sem registro. (p.26)

No conto “Guardador” o tom e a atmosfera são importantes, observa-se que

Jacarandá alterna dois estados, o de consciência e o de inconsciência (embriaguez).

O tempo do conto é quase circular, mas não completamente. Há uma fase de

anestesia da personagem, na qual ela recorre constantemente ao álcool, chegando

a interferir na sua percepção de mundo, uma vez que seus sentidos ficam alterados.

De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo bobeava, o metiam num arrastão. (p.26)

À cana, à uca, ao mata-bicho. Ao pingão. Fazia um carro, molhava o pé. Fazia mais, bebia a segunda e demorava o umbigo encostado ao balcão. Dia depois de dia entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. (p.27)

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Em outros momentos, Jacarandá manifesta uma consciência crítica

analítica. Ela, entretanto, se limita a vislumbres ocasionais, sem conseguir se

transformar em um novo projeto de vida:

Os motoristas caloteiros e fujões, bem-vestidinhos, viveriam atolados e amargando dívidas de consórcio, prestações, correções monetárias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos difíceis de entender.

(...)

Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão.(p.24)

Freqüentemente, para ausentar-se dos conflitos presentes na praça, o

guardador embriaga-se. Assim, ele busca, contraditoriamente, através da alienação,

a fuga do mundo devastado, degradado do espaço público. “A pinga” funciona

metaforicamente como um carro que o transporta para a sua viagem interior.

Jacarandá, bebido e de olho torto, vivia um momento em que fantasiava grandezas, tomando um ar cavalheiresco. (p.29)

Mas um guardador de carros encena bastante de mágico, paciente, lépido ou resignado. Pensa duas. três vezes. E fala manso. Por isso, Jacarandá procura um botequim e vai entornando, goela abaixo, com a lentidão necessária à matutação. (p.23)

Tomar outra, não enveredar por esses negrumes. Nada. Corria o risco de desistir de guardador. Ele sabia, na pele, que quem ama não fica rico. E, se vacilar, nem sobrevive. Para afastar más inclinações, pediu outra dose. (p.24)

É interessante observar, também, a topografia do espaço público e sua

relação com o privado. Jacarandá, durante o conto, coloca-se em uma bolha de

privacidade (o oco da árvore), mas sua intimidade é pública, já que fez da rua sua

casa. E o espaço público condiciona certos comportamentos. Assim, as pessoas que

transitam pelo conto têm um comportamento ditado “pela praça”. A ocupação do

espaço pela igreja, por exemplo, contribui para o aumento da circulação de pessoas

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e carros. Isso faz com que os pedintes sejam muitos. O ato de dar esmola é usual,

mas esconde diferentes motivações. João Antônio é mordaz ao explicitá-las. São

poucos os que agem autenticamente e doam por serem solidários às dores dos

miseráveis. A maioria quer apenas livrar-se do problema e há também os “otários da

classe média” que precisam passar uma imagem de que têm dinheiro. O discurso

formal aparente é de igualitarismo e fraternidade (norma do espaço de todos) mas

se distingue do latente, que destrói a ilusão ideológica que isso tudo traz. O

guardador sabe e tem consciência do fato. Por sua vivência e reflexão, ele é capaz

de ver por trás da máscara das pessoas.

Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria - ninguém espere outro motivo - dá esmola por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público - são uns duros, uns tesos. Para eles, não ter cai mal. Se é domingo, pior. Domingo é ruim para os bem-comportados. (p.23)

Assiste-se ao dia-a-dia de uma praça de Copacabana, com o seu movimento

de gente de todas as classes e tipos, realçando fortemente o convívio dos

contrastes. O autor também morou grande parte de sua vida em frente a uma praça

de Copacabana, Serzedelo Correia, muito semelhante ao ambiente descrito neste

seu conto. É popularmente conhecida, de modo pejorativo, como Praça dos

Paraíbas por concentrar um número expressivo de população pobre nordestina que

se aproveitava desse espaço para reunir-se informalmente.

A praça em Copacabana tinha de um tudo. De igreja à viração rampeira de mulheres desbocadas. De ponto de jogo de bicho a parque infantil nas tardes e nas manhãs. Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos bancos encangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores. (p.27)

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O conto sublinha a banalização da violência e da exclusão presentes no

cotidiano da praça, que metaforiza o urbano. Os que circulam por ela parecem

incorporar toda sorte de agressividade de modo natural. Não só o espaço físico sofre

a deterioração, o desgaste, também as pessoas são vítimas passivas dessa

agressão contínua.

Quando em quando, o camburão da polícia cantava na curva da praça e arrastava o herói, na limpeza da vagabundagem, toda essa gente sem registro. A gente do pé inchado. Ele seguia, de cambulhada, em turminha. Lá dentro do carrão, escuro e mais abafado. (p.26)

Talvez devesse se valer de ajudante, um garoto molambento mas esperto dos descidos das favelas, que mendigam debaixo do sol da praça, apanham algum trocado, pixulé, caraminguá ocioso e sem serventia estendido pela caridade, inda mais num domingo. (p.23)

Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões lá de cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade disfarçada para receber turistas e visitantes ilustres. (p.26)

O espaço da praça, apesar de encarado inicialmente como público é

fronteiriço, um misto de público e de privado. É ocupado da maneira mais diversa,

até mesmo abriga a casa de Jacarandá no oco da figueira. Esta pode ser analisada

como uma modalidade do espaço privado, em versão degradada e empobrecida,

encravada no espaço público, do mesmo modo que o carro pode ser visto como uma

bolha móvel deste mesmo espaço privado, pois dentro dele os sujeitos se sentem

protegidos.

O carro dos bacanas funciona como a extensão das suas casas. Ao saírem

dele, sentem-se ameaçados. O automóvel está no espaço mediano entre o público e

o privado.

O guardador, por conseguinte, é uma figura que está na fronteira (público e

privado), na borda, e sobre ele acumulou alguma espécie de saber, uma certa

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consciência crítica. Apesar de nem mesmo possuir uma casa e ser visto como um

excluído, ele transita pelo espaço dos “bacanas” e até se responsabiliza por suas

propriedades, uma vez que guarda os carros.

Na noite, o bacana enternado, banhado de novo, estacionou o carro importado, desceu. Entrou na boate ali defronte, ficou horas. Saiu, madrugada, lambuzado das importâncias, empolado e com mulher a tiracolo.

O rico, no volante, lhe estendeu uma moeda. A peça, altaneira no porre, nem o olhou: - Doutor, isso aí eu não aceito. Trabalho com dinheiro; com esse produto, não.

Avermelhado, fulo, o homem deu partida, a mulher a seu lado sacudiu, o carrão raspou uma árvore e sumiu. Pneus cantaram. (p.29)

O automóvel para o bacana é uma espécie de metonímia do espaço privado,

representante vicário da casa como o castelo do pequeno burguês, sua morada à

parte da realidade, símbolo da exclusividade, se não do luxo. Já o guardador não

dispõe de carro, nem ao menos de uma casa, mas apenas do seu simulacro, o oco

de uma árvore na praça pública. O espaço em que Jacarandá vive, ou seja, sua

casa, é quase uma toca. Isso contribui para lhe conferir um forte traço de

desumanização.

Por outro lado, a consciência do guardador faz com que ele veja a

propriedade do carro como sinal de superioridade social com desconfiança, uma vez

que muitos dos donos não dispõem de situação financeira para mantê-los, gastando

mais do que poderiam apenas para realçar uma imagem de sucesso.

Os motoristas caloteiros e fujões, bem-vestidinhos, viveriam atolados e amargando dívidas de consórcio, prestações, correções monetárias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos difíceis de entender. Mas tinham de pagar e não Ihes sobrava o algum com que soltar gorjeta ao guardador. Isso. O automóvel sozinho comia-Ihes a provisão. Jacarandá calculou. Motorista que faça umas quatro estacionadas por dia larga, picado e aí no barato, um tufo de dinheiro no fim do mês.

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(...)

Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão. (p.24)

As árvores metaforizam o espaço de proteção. É a velha figueira que em seu

oco abriga Jacarandá (“Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do

tronco da árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações

que a praça vem sofrendo”). São as mangueiras que dão sombra para os jogadores

da praça (“Nem joga dominó ou dama, a dinheiro, com os outros, enfiados na febre

dos tabuleiros da praça na sombra das mangueiras”). Seu verde descansa e permite

a brincadeira das crianças (“O verde das árvores descansa, ah, assobia fino e bem,

ensaia brincar com as crianças da praça”).

Elas resistem, assim, à devastação sofrida pela praça e propiciam

momentos prazerosos àqueles que as procuram, por estarem em um plano

privilegiado.O espaço ganha, então, importância essencial na estrutura narrativa. Ele

dá dinamismo e cria uma atmosfera de tensão e falso movimento. A personagem do

guardador só se concretiza à medida que a metaforização do espaço contribui para

sua caracterização.

1.8. O olhar oblíquo da malandragem

Um narrador comprometido com os valores culturais urbanos, mais uma vez

é assim que se apresenta João Antônio em Guardador. Revelar o mundo da

marginalidade não é tarefa para um analista distanciado. É preciso misturar-se com

essa gente, ficar bem perto para poder olhar o mundo com a ótica que lhe é peculiar.

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É o que afirma Antonio Candido, sobre o estilo de João Antônio em “Na noite

enxovalhada”:

Trata-se de um narrador culto que usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa cidade documentariamente real, e que no entanto ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora.23

Assim, um narrador culto sai à cata dos discursos de todas as gentes,

aproximando as diversas vozes que compõem a Babel em que se transformaram as

grandes metrópoles. Ele se une tão completamente ao universo das personagens

que sua voz vai-se misturando com elas, a ponto de surgir um “a gente”.

O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra vez, a gente sentia. Ia arriar feio. (p.22)

Aquilo lhe bulia – se a gente repara, a batida do pandeiro é triste. Ia-lhe no sangue. Os niquelados agitavam o ritmo, que o tarol e o tamborim lapidam na armação de um diálogo. (p.29)

A linguagem oral predomina, como se quase todo tempo se estivesse junto,

assistindo ao vivo ao desenrolar da cena. Isto pode ser percebido, principalmente,

quando do uso do discurso indireto livre. Algumas vezes esse recurso é tão sutil que

um leitor menos atento pode chegar a confundir a voz do narrador com a de seus

personagens.

Tomar outra, não enveredar por esses negrumes. Nada. Corria o risco de desistir de guardador.

À tarde, houve futebol; suaram debaixo de um sol sem brisa. (p.24)

23 Candido (2004: 11)

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A narrativa, assim, ganha brilho especial, uma vez que a afetividade do

criador em relação às suas criaturas fica explícita, sem perder a lucidez crítica

oferecida pelo distanciamento conferido pelo discurso em terceira pessoa. O autor

consegue, desse modo, unir sensibilidade e reflexão, aproximando classes sociais

antagônicas e universos socioculturais díspares. Ele cria um clima afetuoso

acrescido de um distanciamento construtivo, ainda que mínimo. Isso explica sua

capacidade de apropriar-se do vocabulário da malandragem sem deixar de tratar o

discurso literário e articular a sintaxe com a riqueza de quem conhece e utiliza com

propriedade as diversas variantes lingüísticas, transitando habilmente entre o falar

popular e a linguagem culta.

Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim. Daquela santa mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí – o marido da ilustríssima. Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom de vida. Chefe, chefe... que é que vocês estão pensando? Mais amor e menos confiança. (p.22)

Um outro recurso formal presente no conto é o emprego do discurso direto,

dando voz ao personagem. Em “Guardador” ele é freqüente:

Flagrado na escapada, um despachou paternal, tirando o carro do ponto morto:

- Chefe, hoje estou sem trocado. (p.22)

O rico, no volante, lhe estendeu uma moeda. A peça, altaneira no porre, nem o olhou:

- Doutor, isso aí eu não aceito. Trabalho com dinheiro; com esse produto, não. (p.29)

Jacarandá, cabeça alta, falou-lhe como se ele estivesse:

- Xará eu ganho mais dinheiro que ele. É que não saio do botequim. (p.30)

O discurso direto, contudo, ressalta apenas a utilização do discurso do outro

para justificar o discurso do eu, no caso o narrador. É uma forma de dar cor

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focalizada naquele momento no tecido, na fala. O discurso indireto livre, como já

observado, tem esta função, ao mesmo tempo em que garante maior liberdade

formal ao narrador.

No exemplo a seguir o narrador confunde sua voz com a da personagem,

aproveitando para dar um recado a propósito da conveniência ou não de se possuir

um carro quando não se tem condição para mantê-lo. A crítica aqui é feita pelo

narrador ou pela personagem?

Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão. (p.24)

A qualidade de João Antônio de aproximar classes sociais tão distintas,

permitindo que os excluídos comunguem os mesmos sentimentos, dores, alegrias,

vivenciados pelos privilegiados socialmente, foi também sublinhada por Antonio

Candido em Remate de Males (1999, p.88). Ao nível do discurso, Candido chama

atenção para a capacidade que tem João Antônio de uniformizar de tal modo a

escrita a ponto de fundir as falas das personagens com as do narrador ao empregar

o discurso indireto livre. Eis nesta passagem de “Guardador” um claro exemplo do

que se diz:

Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria - ninguém espere outro motivo - dá esmola por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público - são uns duros, uns tesos. Para eles, não ter cai mal. Se é domingo, pior. Domingo é ruim para os bem-comportados. (p.23)

Mais uma vez a consciência crítica de João Antônio cria uma língua geral

que faz aflorar espontaneamente a essência da marginalidade, a representação

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estilística e cognitiva da sensação de exclusão, presença permanente no restante de

sua obra. Não é à toa que, em diversos momentos da narrativa, o leitor é capaz de

se aproximar intimamente destas personagens marginais e de “seus atos

condenáveis socialmente”.

A representação estilística é, portanto, característica central para a análise

da obra. Quem traçar o percurso estilístico demarcado por João Antônio em seus

contos se encontrará em uma estrada sinuosa. Se por um lado há uma

coloquialidade que sugere a espontaneidade da fala popular em diversos registros,

também há um controle estilístico, penoso e premeditado, que abarca ritmo, léxico e

eufonia, às vezes valendo-se até mesmo de efeitos cacofônicos. Mas é uma visão

ilusória de divisão e antinomia. O artesão João Antônio, escritor consciente de sua

técnica, encontrou na coloquialidade brasileira uma maneira de valer-se do artifício

sem parecer artificioso, pois, se a frase é trabalhada, o seu valor lexical pode ser

facilmente apreendido, e a justa medida da realidade brasileira cotidiana é dada. É

importante apresentar certos aspectos do estilo que permeia os contos, para a maior

compreensão dos mesmos. Propomos para isso o itinerário que segue.

Desde já é importante, outra vez, ressaltar a importância da música na obra

do autor. Na escrita do autor encontramos modulações, muitas vezes reforçadas por

rimas, que lembram o ritmo do samba. Uma constante na prosa de João Antônio é o

recurso das aliterações, explorado pelo autor a todo momento. Um exemplo claro de

influência da música, por aludir ao samba diretamente, é o início do conto ''Abraçado

ao meu rancor'':

Por onde andará Germano Matias? Magro, irriquieto, sarará, sua ginga da Praça da Sé, jogo de cintura da crioulada da Rua Direita? E o que foi que fez, maluco, azoado, de seu samba levado na lata de graxa? (p.72)

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É difícil sintetizar como o trecho emula as cadências do samba, o samba que

é o estilo do próprio Germano Matias, mas alguns elementos são nítidos: a rima de

''azoado'' e ''levado'', o trecho '' samba levado na lata de graxa'' com a aliteração

proeminente do ''l' e a assonância do ''a'' repetitivo.

De fato, para uma compreensão total de seu estilo, cumpre buscar os

elementos musicais e poéticos. Conquanto não seja possível provar que o autor se

valeu de artifícios poéticos intencionalmente (seu único poema, ''Choros — Para

Pintagol e Cuíca'', é escrito em versos livres), a poesia é uma constante em sua

prosa. Pela compressão de sentido, modulação rítmica, sinestesia, densidade lírica

alguns trechos passariam por poemas em prosa:

Toda entulipada, colorida de azul, de vermelho, de amarelo como em teus campos incomparáveis, únicos, a explicar, se há sol e se há vento, a arrebentação de um talento em cor como Van Gogh. Sua louraça, ficas engalanada, casa de bonecas. Nem te chamarei de lindinha, és feito a pele de tuas mulheres, louraça de coxas brancas. Sua bonita. (p.162)

De toda forma, a compreensão de certos efeitos prosódicos na prosa

elucida, ao mesmo tempo, a relação de ambas, música e poesia, com o estilo do

prosador. É de se destacar que o próprio João Antônio lança à dupla condição de

poeta e músico o seu venerado Cartola, na epígrafe ao primeiro conto do livro.

Outra nota musical popular da qual João Antônio se aproxima é a dos

repentistas nordestinas, a quem certamente conhecia. Como em muitos prosadores

brasileiros de ouvido atento (José de Alencar e Euclides da Cunha, para citar alguns)

podemos encontrar em João Antônio algum uso, inconsciente ou não, de técnicas

poéticas, como o uso atento de rimas e aliterações, mas também encontraremos

sentido métrico ao escandir algumas passagens. Ocorre que em João Antônio, como

encontraremos em muita da poesia popular, de feira, brasileira, os ritmos podem ser

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quebrados ou perfeito. Os metros quebrados casam muito bem com o privilégio dado

a períodos curtos pelo autor, que analisaremos a seguir. Alguns exemplos, contudo,

podem ser colhidos, de metros clássicos:

A menta, precisava plantar menta. (p.62)

...à luz da lua batendo no quintal... (p.62)

Outro bolero sopra do Brasil Dourado. (p.48)

O primeiro exemplo é a frase que abre o conto ''Televisão''. É um

decassílabo heróico perfeito, com o icto na sexta sílaba métrica. O segundo, outro

decassílabo da mesma lavra, justifica-se como possível artifício intencional pela

aliteração artesanal do ''l'' e o sentido rítmico que lhe dá unidade dentro da frase em

que se encontra. No terceiro há um alexandrino perfeito, de novo com caracteres

internos de aliteração e assonância pronunciados. Estes são exemplos que, se não

podemos provar serem usos técnicos conscientes, apontam para o bom ouvido do

autor. Outros, certamente não intencionais, que fazem a ponte com o ritmo quebrado

sugerido seriam os seguintes:

Destrambelhou-se no sexto minuto... (p.131)

De mais a mais, tem que tem um quê. (86)

Filo o cigarro sovina de um pancrácio... (p.45)

Outro exemplo que atesta a consciência de certos artifícios, em especial o

da rima, nos contos, é o seguinte:

Faço um jogo de palavras que forma alguma coisa rimada. Torresmo, esmo, mesmo. Aqui, neste botequim, a esmo, enquanto bebo e masco o tempo, há quanto tempo não tenho notícias de mim mesmo. (p.108)

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João Antônio privilegia períodos curtos em detrimento de longos. Hábil

manejador dos ritmos, nem todos os seus parágrafos trazem o efeito musical do

stacatto, feito de cortes e paradas abruptas, antes demonstrando a capacidade de

mesclar frases curtas com outras mais longas. Porém nunca encontramos períodos

de verbosidade barroca, escorrendo ao longo de um parágrafo todo. Um dos

recursos mais recorrentes é o início do conto por uma frase curta e abrupta, em

estilo telegráfico. Vemos este recurso em diversos contos do livro, entre os quais

''Tatiana pequena'', ''Uma força'', ''Televisão'', ''Publicitário do ano'', ''Sufoco''. Dois

exemplos ilustrativos, de ''Publicitário do ano'' e ''Tatiana pequena'':

O nome da peça era Jacarandá. (p.54)

A mão esquerda fica do lado do coração. (p.188)

O léxico é a grande chave para o estilo do autor. Como na obra de seu

mestre Lima Barreto, em J.A. a linguagem das ruas tem uma dupla função: estética

e comunicativa. Ao mesmo tempo em que ela serve para tecer um quadro artístico

da realidade brasileira, também serve para dar voz ao povo, o que obviamente só

pode ser feito através da linguagem desse povo. Desta forma, um vocábulo

dificilmente encontrado na prosa de ficção pode assumir função literária, dando

frescor e possibilidades comunicativas novas ao autor, como ''mundrungueiros''

(p.41), ''coisada'' (p.40).

Outra função da linguagem nos contos é aproximar o narrador dos

personagens. Ao contrário de muitos autores que deixam o falar do povo para

breves falas de seus personagens, João Antônio absorve esse linguajar. Ambos,

narrador e personagem, compactuam das mesmas gírias e possibilidades

lingüísticas, havendo aí uma amálgama e compadrio que retiram o autor das alturas

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olímpicas e o põem como participante ativo na crítica e reconstrução da realidade

social brasileira.

A elipse é outro traço estilístico a ser apontado. É proeminente no conto

''Abraçado ao meu rancor''. Nos contos a realidade é entrecortada para ser disposta

em um esquema de imagens embaralhadas, de forma a constituir aquilo que o autor

pretende revelar sobre ela: um olhar irônico, a dor alheia, o absurdo de uma situação

qualquer. O jogo de linguagem que leva a isso no conto citado envolve, além da

elipse, um choque de registros, da linguagem publicitária contraposta à carnadura da

realidade. Eis ambos, a elipse e o choque de registros:

Há no país uma classe de homens sem remédio, os de memória. Tachados de saudosistas, chinfrins e velhos precoces, acabam falando sozinhos. ''Em São Paulo a noite é sempre uma criança. A noite paulistana o embala com toda a alegria que uma noite pode ter. As boates são famosas e animadas, os teatros mais modernos, os cinemas mais confortáveis e atualizados e um mundo de restaurantes.'' Não vá eu, acariocado de araque, retrucar que paulista come por compulsão. (p.114)

O monólogo interior é comumente atribuído como invenção ao autor

Edouard Dujardin, e foi popularizado por James Joyce, no clássico modernista

Ulysses. À miríade de artifícios expressivos de João Antônio, este também não

escapa. Está presente no conto ''Maria de Jesus de Souza''. É a narração, em

primeira pessoa, enfocada desde o ponto de vista íntimo, psíquico, do personagem-

narrador, no mais das vezes com pouco respeito à lógica ou temporalidade. Mimi

Fumeta, a prostituta, encara a vertigem de viver em seu mundo interior, envolta por

seus sonhos de ascensão social, ao mesmo tempo em que é acossada por todos os

lados, no mundo real. Um exemplo do monólogo interior, extraído do conto:

Estou aqui, a nenhum, entristecendo debaixo dos Arcos, ressaca me amargando a boca, este buraco no estômago, a dorzinha fina na

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cabeça. Almoço, que o quê! Estão limpando o concreto dos Arcos e fico, meio de lado, espiando os trabalhadores, um que outro bondinho passa para os altos de Santa Tereza. (p.42)

Nota-se aqui a passagem do monólogo interior para a narrativa pura e

simplesmente, que é a marca do conto. Se não se enquadra nas elipses do autor, é

certamente uma dos pólos de oposições em que João Antônio costumeiramente

trabalha. Basta lembrar dos já mencionados choques de registro lingüístico, e das

ambigüidades entre o autor melancólico e a necessária vontade colérica e utópica

para a denúncia social.

O tratamento dado aos personagens de João Antônio varia com a forma do

conto, e a intenção do autor. Por um lado, há contos em primeira pessoa, como

''Maria Jesus de Souza'' e ''Abraçado ao meu rancor'', no qual o próprio narrador se

descreve como personagem enquanto desvela o seu processo interno; por outro, os

contos narrados em terceira pessoa seguem uma linha de caracterização diferente,

embora um pouco similar. Podemos mesmo dizer que aposta mais na caracterização

do ambiente. O autor não é dado a descrições profundas e análises dos

personagens; mesmo ao descrever o vestuário e a aparência, ele é sucinto:

Lustroso na sua elegância, em uniforme preto, acetinado, oficial, mangas compridas, ele sua no pescoço, nuca, carapinha, sovaco. E nas partes. (p.130)

É uma das maiores descrições de aparência no livro todo. Estamos muito

longe, portanto, do realismo clássico. Também o personagem é caracterizado,

quando é de fato melhor caracterizado (pois há personagens de caracterização

oblíqua), por suas reações conforme progridem os acontecimentos. Quanto aos

personagens oblíquos, é só observarmos o conto ''Eguns''. É um retrato, quase uma

reportagem, de uma situação vivida pelo narrador, na qual os personagens são

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como figurantes. Não nos é dado saber detalhes de suas personalidades, e o foco é

nos acontecimentos e na coletividade. O ambiente é sempre um fator principal:

Talvez, assim, eu veja uma festa de eguns. Rara. No sábado de Aleluia, enquanto no resto da boa terra os candomblés estarão batendo e o Judas sendo malhado. Na praia de Ponta de areia, toda Branca, uma lua alumia feito dia. Em sua casa, o ojé me examina sem pressa, indireto, meio distante, olhando as roupas com uma calma desconhecida. (p.148-9)

O grande personagem, com quem o leitor realmente dialoga, é sempre o

narrador joaoantoniano. Isso nos traz a outro toque de experimentalismo no livro, a

confluência de método jornalístico e autobiográfico. Como Lima Barreto, João

Antonio trabalhou em redações de jornal, e no conto ‘’Abraçado ao meu rancor’’ está

claro que o narrador é um jornalista. Entretanto ambos, impelidos por seus encargos

estéticos de ficcionista, e pela visão da literatura como instrumento de denúncia e

transformação social, fogem da busca por imparcialidade e externalização

recorrentes no jornalismo. Os fatos são narrados, sim, e muitos são fatos que o leitor

estaria habituado a encontrar em jornais, mas há uma pulsação humana que os

envolve e os descortina, para que tomem significado. O narrador é o grande

personagem porque está servindo como instrumento e catalisador a uma realidade

maior do que ele, que urge por ser modificada; não é um panfletário, mas sua arte

abarca o valor denuncista do panfleto, o valor realista do jornalismo, e conduz à

reflexão, mostrando ao leitor a sua responsabilidade social.

1.9 A Cena da Ironia

A ironia permeia a obra de João Antônio, e se constitui até mesmo como

embasamento teórico por detrás de um dos contos, a ser destacado. O guia

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escolhido para a discussão da ironia nos contos é o livro de Linda Hutcheon, Teoria

e Política da Ironia (2000). A primeira epígrafe do livro de Hutcheon é retirada de

uma famosa tese. Esta tese universitária, do filósofo Soren Kierkegaard, iluminará

nossa investigação. Das definições do termo encontradas em ''O conceito de ironia

constantamente referido a Sócrates'' podemos dar o seguinte resumo: A carga da

ironia é negativa, porque ela tenta clarificar dizendo aquilo que algo não é. O

trabalho de Hutcheon demonstra as implicações políticas disto, ''política'' entendida

primeiro como a microfísica do poder que se dá entre uns poucos indivíduos se

relacionando, e, segundo, com suas conotações ideológicas e implicações sociais

maiores.

Como já analisamos, dois fatores repontam com especial proeminência na

tipologia psicológica dos contos de ''Abraçado...'': o ressentimento e a melancolia.

Um terceiro, o pensamento utopista, interessa menos agora. Os dois fatores não

repontam apenas na tessitura dos contos, mas sobretudo na voz narrativa. E um dos

desdobramentos mais visíveis desse fenômeno é o estímulo que o narrador recebe.

Se melancólico, como reagir diante dos fatos? E, se ressentido, como combatê-los?

A arma joaoantoniana mais reluzente é a ironia. E é dentro do contexto social,

histórico e cultural que ela vai agir nesse autor de cunho eminentemente social. Pois

a ironia:

... como definida neste estudo, acontece em alguma coisa chamada ''discurso'', suas dimensões semântica e sintática não podem ser consideradas separadamente dos aspectos social, histórico e cultural de seus contextos de emprego e atribuição. (pág. 36)

A ironia nos contos de João Antônio se espraia ou retrai seguindo a

ordenação de círculos concêntricos. Em um certo conto ela pode estar presente

numa situação, ou característica, específica, como se fosse um aceno esquivo do

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escritor malandro ao leitor, em suma, é um pequeno gesto; enquanto em outra a

ironia engloba o conceito inteiro do conto. Do primeiro molde podemos citar como

exemplo:

Não reportem povo, que ele fede... Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali. (pág. 99)

É a típica bordoada ligeira do narrador, demonstrando sua consternação

com certos tipos. É evidente que o narrador não compartilha da visão acima, e

provavelmente nem os atacados. Constitui um ataque irônico. É o reverso da

utilização descrita por Hutcheon:

Que a ironia possa ser usada como uma arma, sempre se soube: a humilhação social e a farpa satírica tem seus corolários... (p.26)

Sobre o segundo molde, o conto, a que nos referimos no parágrafo de

abertura como a ser destacado, em tom de galhofa e crítica ‘’Publicitário do Ano’’,

serve como tratamento inicial propício. É um conto em que a ironia prevalece, e cujo

tema Publicidade, requer um tratamento teórico do termo. É também o conto do livro

que mais se aproxima daquela ironia particular referida na tese de Kierkegaard, a

socrática, embora não seja o modo dominante da narrativa. Socrática é a ironia

definida pela afetação de ignorância por parte do ironista, meio pelo qual Sócrates

surpreendia e desdenhava de seus interlocutores no deslindar dialético dos diálogos.

O narrador joaoantoniano não tem esse contato dialogal com o objeto de sua

ironização, mas comunica ao leitor o seu desdém pelo personagem, em algum casos

valendo-se desse método irônico do sábio grego.

No entanto, o conto abre com uma representação do personagem que só

pode ser caracterizada como ''irônica'' no sentido crasso do termo, no qual há

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afetação e desdém, mas não há a antítese entre o que se diz e o que se quer

realmente dizer, e nem uma carga de sabedoria escondida por detrás de um

simulacro de simplicidade. A frase inicial já denota esse movimento de ''ironização''

no sentido crasso:

O nome da peça era Jacarandá. (pág. 54)

Sobre esse tipo de caracterização popular da ironia, que foge ao seu

conceito retórico clássico, diz Hutcheon:

Muitos autores escreveram sobre como se alterou a maneira de ver a ironia como um tropo retórico clássico para tratá-lo como um conceito de vida. (pág. 17)

Esse sentido crasso é aquilo que se tornou o ‘’irônico’’ da fala popular.

Voltando ao texto, logo em seguida, contudo, nos deparamos com uma seqüência

de dois golpes rápidos de ironização, no sentido academicamente correto:

...graças, principalmente, a uma súbita, inexplicável e curiosa herança, chegada de parentes distantes. (pág. 54)

E:

Passou por cima dos defeitos da Rua Augusta e alertou leitores. (pág. 55)

Os exemplos se multiplicam ao longo do conto, dos três modos

apresentados: uma ironia em sentido crasso, mera crítica com ar dissimulado; uma

ironia socrática, insuflada através de ar de ingenuidade; e finalmente uma ironia em

sentido restrito. É claro, pela caracterização do personagem, que o narrador

joaoantoniano não nutre simpatias por ele. Quando não é ''a peça'', é o ''poeta do

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momento'', ou ''o tipo''. Entre outros motivos, deve-se apontar a ojeriza declarada de

João Antônio à classe média, por ele chamada de ''mérdea'' (v. ‘’Abraçado ao meu

Rancor’’, p. 82), com o agravante de ele próprio se ver inserido nessa classe, a total

contragosto. Jacarandá, o publicitário, é a súmula de tudo o que João Antônio dizia

desprezar nesse estrato social:

Com este embrulho no estômago, pesadão e ressacado, pertenço a que classe senão a ela? A que usa óculos escuros para tapar a lágrima, o luto, a esbórnia. E o caráter. (pág. 82-3)

Jacarandá é, ademais, uma figura anteposta ao malandro, ao flâneur,

cultivado por João Antônio. O publicitário é um malandro, mas o malandro sem

malícia, que não tira vantagem das adversidades, e sim de circunstâncias

favoráveis: teve o destino pago e formado pelo pai rico.

O retrato da publicidade no conto, como dito anteriormente, pode ser

caracterizado como o de uma ''ironia dissimulada''. Nesse caso, a publicidade lidaria

com mensagens lúdicas, muitas vezes não correspondentes à realidade. O exemplo

mais aproximável dessa tipificação pelo narrador é o seguinte:

Sobre a Rua José Paulino, a Oriente e a 25 de Março, nada de preconceitos inconvenientes, embora existentes e mundiais. (pág. 55)

Entretanto, uma segunda caracterização, mais analítica, da publicidade,

pode ser retirada do conto: seria um movimento de sístoles e diástoles da

representação de um dado objeto, o que não corresponde àquele escamoteamento

do real significado que seria a ''ironia dissimulada''. Em alguns dos trabalhos

relatados o publicitário engrandece a cidade de São Paulo:

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Em São Paulo, a noite, uma criança, é suave, e as boates, famosas e animadas. Os teatros, mais modernos; os cinemas, mais confortáveis e atualizados. As mulheres, mais elegantes. Restaurantes? Os melhores da América do Sul e, como remate, na noite de São Paulo você vê o dia nascer. Conforme o poeta, o visitante ainda compra flores e certo ar de belle époque no Largo do Arouche. (pág. 56)

O que se trata, apenas, de enfocar aspectos positivos e engrandecê-los

verbalmente. Já o conflito entre árabes e judeus, citado acima, é dispensado com

uma miniaturização do problema, através da localização do mesmo em um ambiente

menor e diferente daquele em que o seu epicentro (o Oriente Médio) se encontra.

João Antônio opta pelo efeito rascante da ironia, bem como pelo ataque

frontal e o retrato desprendido do sórdido, com fito de trazer ao leitor o efeito

catártico. Não para purgar suas emoções, mas para que os sentimentos convulsos

trazidos por um país cheio de marginalização e inclemência reverberem nesse leitor.

Não são contos analíticos. Não há análises econômicas, receitas para problemas

sociais, piscadelas a programas ideológicos específicos e, ao mesmo tempo, não

são contos desinteressados, escritos por um autor olímpico, vendo tudo das alturas.

A ironia dos contos está no grupo de ironias ''intencionais'', demarcação

epistemológica ainda inteiramente em voga, segundo Hutcheon:

...as mais influentes teorias sobre a ironia têm afirmado que existem ironias 'estáveis' que são intencionadas, às claras e capazes de serem reconstruídas pelo interpretador (Booth, 1974: 6). Essas são geralmente chamadas de ironias 'intencionais' (Muecke, 1969: 42). (2000, p.169)

Portanto, o julgamento do autor se dá no trato direto dos personagens e

situações, de maneira interessada. A ironia é a arma que revela os interiores do

símbolo (um personagem, uma circunstância) ao leitor. Diz Hutcheon:

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Este estudo argumenta que existe uma 'carga' afetiva na ironia que não pode ser separada de sua política de uso se ela for dar conta da gama de respostas emocionais (de raiva a deleite) e os vários graus de motivação e proximidade (de distanciamento desinteressado a engajamento apaixonado). (ibid.,p.33)

Raiva, indubitavelmente é um dos elementos que devemos analisar.

Tomemos o seguinte exemplo, daquele conto apropriadamente denominado

''Abraçado ao meu Rancor'':

Afinal, num festival de bonifrates misturados a cartolas e grandalhões, asneiras também pode valer como espírito. E há quem dê a isso o nome de elegância. ''Compre em São Paulo o que o mundo tem de melhor''. (pág. 79)

Após um jogo tortuoso, extenso de parágrafos, mostrando o desprezo e a

raiva que o narrador joaoantoniano sente pelos presentes no coquetel, o remate vem

com uma citação deveras irônica, de um slogan publicitário. Lembrando que

publicitários eram os presentes desprezados naquele coquetel. É um slogan que

remete àqueles do conto ''Publicitário do Ano''. É bastante claro que os parágrafos

anteriores ao slogan citado o desconstroem, sobretudo a frase que o precede,

tornando-o uma assertiva irônica. Eis a ironia como forma de extravasar raiva.

O segundo elemento mais importante nos contos é a ironização mais

desinteressada, típica do povo brasileiro, como escape humorístico. Vamos ao

exemplo:

Com a glória e o dinheiro do prêmio, o tipo comprou férias, pegando o primeiro avião e indo repousar do árduo trabalho nas areias de Copacabana. (pág. 57)

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Pelas descrições apresentadas no conto ''Publicitário do Ano'', o trabalho

não era nada árduo, constituindo portanto uma gozação. É a voz do homem do povo

encarando os ganhos do bacana.

A relação da ironia com o humor é conturbada, tanto no quesito teorização

quanto na aplicação histórica da ironia como elemento humorístico. As seguintes

passagens de Hutcheon iluminam a questão:

Se, como já se disse, há uma escassez de trabalhos eruditos de peso sobre a linguagem do humor (Chiaro, 1992: 1), talvez isso ocorra em parte porque a linguagem da ironia tenha parecido um objeto de estudo acadêmico mais apropriadamente 'sério'. (p.48)

Por outro lado, a ironia como forma de humor tem sido vista também como o que 'desarma' e, conseqüentemente, dá acesso a material que não é, na verdade, muito engraçado: como os estereótipos raciais nos fotos-textos de Weems (Felshin, 1991: 11) ou as pinturas de Colescott. (p.48)

Contudo, o exemplo pinçado de João Antônio não se inscreve na

problemática levantada por Hutcheon, podendo-se mesmo dizer que é

representativo humor tipicamente brasileiro, emulado pelo autor. E esse humor

popularesco é tudo menos ofensivo. A controversa definição do brasileiro como

''homem cordial'' criada por Sérgio Buarque de Hollanda caberia aqui, se

entendermos cordial como aquilo ligado ao coração (do latim cordis, coração). O

brasileiro reage àquilo que é definido por Hutcheon como ''ironia de situação'' (pp.

18, 26), que é um acontecimento de caráter irônico, como um degustador de vinhos

perder o paladar, com um humor típico, que, podendo ser doloroso ou não, revela

toda a sua emotividade transparente.

Exclusas as motivações emocionais que investigamos, tomemos um outro

uso do artifício da ironia exposto por Hutcheon:

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Um 'modo de combate', a ironia se torna uma ''paixão negativa'', para deslocar e aniquilar uma representação dominante do mundo (Terdiman, 1985: 12)... Segundo esse conceito, a intimidade da ironia com os discursos dominantes que ela contesta - ela usa sua própria linguagem como o seu dito - é sua força, pois ela permite ao discurso irônico tanto ganhar tempo... quanto 'tornar relativas a autoridade e a estabilidade [do dominante]' (Terdiman, 1985: 15), em parte apropriando-se de seu poder (Chambers, 1991: xvi). (p.54)

Não é necessário apontar qualquer conto particular para elucidar como isso

se dá na obra. João Antônio é refratário à visão de mundo da classe média ou

burguesa, ou, posto em melhores termos, visão de mundo elitista. É contra o não se

importar, contra o olhar que circunvaga, avistando aquela prostituta sofrida que é

abusada por policiais, a cidade decadente e ainda decaindo, a vida boa do

publicitário espertalhão, e tanto mais. Como diz o professor Antonio Candido:

...João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima de sua triste realidade. (1980, contracapa)

Portanto, às vezes cabe ironizar a situação desfavorável, e no mais das

vezes, aquilo com que não se concorda, para desmontá-lo. O rancor é aliviado pela

bordoada irônica, que quer trazer o olhar do leitor para a crueza da sociedade, e

desmarginalizar os marginalizados que agora não tem apenas voz, mas imagem,

através dos contos. Contudo:

Como eu venho argumentando, a natureza transideológica de sua política significa que a ironia pode ser usada (e tem sido usada) ou para minar ou para reforçar ambas as posições conservadora e radical. (p.50)

Não é necessariamente político o posicionamento de João Antônio, se

entendermos por político o que Hutcheon refere acima, partidarização. É um

posicionamento político instintivo, humanístico, que não dá soluções, mas lida

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diretamente com a realidade da coisa. É entre a tensão do grito de combate, do

ressentimento contra o estado de coisas, e o descaso com o ridículo desse estado

de coisas, que atua a ironia no conjunto dos contos. A cena da ironia, para usar um

termo de Hutcheon, é de fato social e política no universo de ‘’Abraçado ao meu

Rancor’’, mas para um autor sem bandeira específica para hastear, a sua função é

eminentemente emocional.

1.10 A Face Humana de João Antônio

João Antônio, presente nos contos, no narrador (independente da forma de

narração), e na mundividência geral do livro, afigura-se sempre como se do canto de

sua boca escorresse um travo amargo. É algo de sua personalidade que já havia

aflorado nos princípios da carreira. O malandro, ao exemplo de poetas do samba

como Cartola, esconde o eterno romântico desiludido. Na tese de doutorado de

Vima Martin, ''A Evocação da Marginalidade - Um estudo sobre Malagueta, Perus e

Bacanaço, de João Antônio, e Luanda, de Luandino Vieira'', há todo um capítulo que

analisa esse espectro emocional do autor, antepondo-o, quase por contingência, a

um capítulo seguinte, sobre Luandino Vieira e seu pensamento utopista.

A tese de Vima Martin traça, desde uma carta escrita por João Antônio aos

25 anos, até a alta idade, em 1986, a persistência desse traço na personalidade do

autor, e como se dá a dialética interna do mesmo, a melancolia, em relação à função

contestatória de sua literatura. Vejamos quem é o jovem autor:

Estou lúcido e apenas reduzido à minha solidão.

E:

E escrever é esta renúncia e esta solidão. (p.25)

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E quem é o autor, anos à frente:

É uma figura melancólica, vítima de seu sonho... (p.25)

No entanto, há um interstício entre ambos, que não decorre da separação

dos anos, mas da existência de uma consciência social aguda, que guia a mão do

autor tanto quanto as sutilezas de seu psiquismo interno. É aquela encontrada por

Vima Martin em uma entrevista, que diz a respeito da sua literatura:

Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e modificação desse povo. (p.24)

Examinaremos posteriormente quais são os contornos que adquire a

melancolia joaoantoniana na voz narrativa e no universo literário correspondente,

mas antes lembremos outro ponto destacado por Vima Martin, para iluminá-lo com

uma anteposição ao autor Luandino Vieira. É o seguinte: a melancolia de João

Antônio alonga seus dedos até tocar o ideário político do autor. É, por vezes, um

desiludido, desacreditado das melhorias em seu país. Pensa mesmo em sair dele.

Como um homem assim pôde pensar em transformação e subscrever as palavras de

guerra contra o imobilismo citadas acima? É clara a distinção entre o João Antônio

homem, e o artista. O ato de escrever é catártico e transformador, portanto o que era

desespero converte-se em energia, capacidade de ação. É o próprio autor quem o

põe:

24 Entrevista publicada como prefácio à edição do conto ‘’Malagueta, Perus e Bacanaço’’. São Paulo: Ática, 1998, p.9. Ibidem.(p.14)

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Dias sem falar, cansaço no amor próprio (sei lá o que é amor...) sou um sujeito que só sente bem escrevendo. Aí, a minha timidez vai embora e eu mando o mundo às favas. (p.25)

Exemplo de escritor mais despojado da soturnidade é o angolano Luandino

Vieira, combatente utópico infatigável, aliás recentemente laureado com o

prestigiado Prêmio Camões, o qual recusou sem pudor ou precavimento. É um autor

de tendências marcadamente revolucionárias, que não se furta a crer na

possibilidade da utopia, vista como realidade palpável, e emergencial. O resultado

em sua literatura é:

Em tempos revolucionários, o escritor angolano forja um discurso transgressor e utópico que vai reivindicar literariamente – e politicamente – identidade e autonomia para seu país. (p.21)

A diferença entre João Antônio e Luandino é aquela entre o romântico (não o

utopista, mas o derrotado)26 e o pragmático. João Antônio parece mesmo apresentar

uma imagem cética de personalidades como Luandino, através de sua

representação na nefelibata Mimi Fumeta do conto ‘’Maria de Jesus de Souza’’, que

acaba passando o dia a apanhar da realidade enquanto sonha com o futuro que não

vem. Contudo, Luandino Vieira não é aquele que sonha com o futuro, mas o que o

planeja. João Antônio é o sonhador, e de seu sonho é ‘’vítima’’...

Examinemos os detalhes de pessimismo e reação, social, ao pessimismo,

nos contos de Abraçado ao meu rancor, começando pelo conto homônimo. Após a

25 Carta a Ilka Brunhilde Laurito, cedida por Rodrigo Lacerda. Citada em MARTIN, Via Lima de Rossi. A Evocação da Marginalidade. (p.12) 26 Evitamos caracterização mais precisa, como ‘’byroniano’’, por dois motivos: diferença abismal de escolas literárias, e a participação efetiva de Byron, e outros românticos, em movimentos revolucionários.

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descrição anatômica e dissecação da cidade perdida do seu passado, São Paulo, o

narrador chega a algumas conclusões. Eis uma:

A esferográfica garatuja. Este país é um azougue. Corrijo. Este país é um açougue. (p.109)

São movimentos descendentes que se repetem ao longo do conto. No

entanto, não devemos nos inquirir se a uma representação tão crua e insistente dos

fatos do país já não é ela mesma uma forma de contestação? É evidente a vontade

de contaminação emocional por trás de tão reiteradas expressões de abatimento. No

entanto não é esse o clamor mais claro da luta do autor por mudança. A vontade

combativa de João Antônio se expressa nos momentos em que se confronta

diretamente, no ‘’corpo-a-corpo’’, com aqueles a quem culpa pelas agruras do país:

Se humilharam as nossas cidades e as fizeram perder a identidade e a vergonha, se mais da metade da população – isto, dance conforme a música e use população e não povo, lavrador e não camponês – passa fome ou não tem onde morar, isso não está dizendo nada. O escriba fará trabalhos edificantes e modernosos. E bem, que álibi há sempre um. Na Índia ou no Camboja as desgraças são mais monstruosas. (p.92)

Em menos de um parágrafo são desferidos ataques a (supõe-se) os políticos

brasileiros, o pernosticismo da classe média e de sua profissão, aos escritores

alienados da realidade nacional, e a tudo e todos através de uma breve ironia, na

última frase. Não é apenas um lamento, mas um diálogo com o leitor, para que ele

demovê-lo da inércia e ver, com João Antônio, o seu quinhão de responsabilidade

para com a situação circundante.

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CAPÍTULO 2

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CAPÍTULO 2

O Geral, o Particular, e a Conclusão

Cumpre dizer a posição de Abraçado ao meu rancor' na obra total de João

Antônio. O livro de estréia de João Antônio, Malagueta, Perus e Bacanaço, marca,

desde logo, o quanto é incomum o seu autor – pois trata-se de uma obra que já se

vê adornada pelo estatuto de ''clássico'', embora seja o livro de estréia. Se nela

encontramos a promessa de uma obra que se mantém fiel a um projeto ou estilo

original, com apenas algumas guinadas fortes ao longo da carreira, mais de cunho

jornalístico do que literário, também encontramos material de cotejo para fortes

mudanças estilísticas e certos refinamentos conquistados nos anos seguintes.

Um salto editorial enorme, do lançamento de Malagueta, Perus e Bacanaço''

em 1963, desemboca no seu segundo livro, Leão-de-Chácara, em 1975, resultando

em sucesso de vendagens. Contudo outros livros foram escritos pelo autor entre o

lançamento de um livro e outro. Mas são esses dois os que nos interessam em

particular, por serem ''irmãos'' de ''Abraçado...''. Os outros livros flertam com o

jornalismo literário, seguindo os passos do ''new journalism'' americano, ou, como

Copacabana, trazem uma concisão, de temática e estrutura, estranha àqueles.

Dedo-duro é a exceção, mas parece não compartilhar do mesmo fôlego que os livros

que separamos para cotejo; de toda forma, será referido. Malagueta, Perus e

Bacanaço, livro que João Antônio teve de reescrever a partir das notas, por ter

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perdido o original em um incêndio27, desde já surpreende em alguns aspectos, se

pensarmos na sua obra posterior. O léxico ainda não traz o barroquismo urbano

surpreendente de Abraçado ao meu rancor, o que nos traz a ponderações

interessantes: seria o trabalho de pesquisa do autor aquilo a evoluir com o passar

dos anos, ou o próprio falar das ruas, que assumiu maior autonomia? Apostamos na

primeira opção, por intuição e certeza de alguns dados. O artesão que adiou tanto o

lançamento do segundo livro, por devoção ao seu potencial estilístico28, certamente

apostou em um trabalho lento de apuração vocabular, a partir do que ouvia nas ruas.

E é mesmo algo de progressivo e lento, uma maturação, pois em Leão-de-Chácara,

se não há algo que se aproxime de contos como ''Maria de Jesus de Souza

(Perfume de Gardênia)'' quanto ao léxico, certamente encontramos uma progressão,

deparando-nos com palavras como ''esporro'' (p.112) ou ''zanzo'' (p.113).

Ainda assim, ''Abraçado ao meu rancor'', é um grande salto, talvez mesmo

uma ruptura, com o resto, por trazer trechos como:

O jornaleiro berrando. E o sol me dando de chapa. Remexo a bolsinha, cato o que restou. Uns caraminguás muito dos fuleiros, caquerados, e uma nota de cinqüenta (p.38)

Essa cambada vai ficar sabendo que Mimi Fumeta é o cacete. Meu nome, desde que me entendo, é Maria de Jesus de Souza. E, meu Deus, preciso fazer um ganho. Não 'güento mais miserê. Se isto for vida, berimbau é gaita-de-fole e paralelepípedo, pão-de-ló. Aturo zoada de pilantra a noite inteirinha, e na virada, ganho o quê? O que Luzia ganhou atrás da horta. Aquele escamoso que me carreou pro hotel não passava de um teso, um durango kid do capeta. Mas pisou no Casanova e me baratinei. (p.36)

Dando quase um sabor de prosa clássica a passagens dos livros anteriores:

27 Cartas aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas, p.80. 28 Leão-de-Chácara, Apresentação de Tania Macêdo, p.6

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O diabo é que vivo agitado, as idéias coladas nela, nos braços, nas ancas, não sei. Impossível desguiar. Olhei para aqueles cabelos, dei com o corpo inteiriço. Desejei. Sonhei. Com os olhos de Fujie, sonhei com a boca, com Fujie inteira. (Malaguetas, Perus e Bacanaço, p.57)

Jornal que compro não abro, vai debaixo do sovaco. Lerdo, pesado até a pedra do Leme, quietamente. À frente não há luzes, mas o mar escuro; passo o calçadão, as areias e me sento nas beiradas. Mando ao diabo uma lembrança. Mas sinto um medo. Um vento frio batendo na cara e me vem um samba, dos antigos, besteirada, engrupimento, gemido lá no inferninho. (Leão-de-Chácara, p.67)

Ademais, há uma grande mudança no tom, de ambos os predecessores a

Abraçado ao meu rancor. Os contos trazem maior amargura, os abismos da

realidade social brasileira aparecem com maior largura. O próprio passeado, que

permeia, por motivos cronológicos óbvios, os livros antecedentes, adquire uma aura

paradisíaca nos contrastes fortes presentes sobretudo no conto homônimo, mas

também ao longo de todo o livro. Os malandros de ''Abraçado...'' carregam

melancolia e frustração, enquanto os malandros do início, se não são heróicos e

alegres, tem menos da melancolia e do derrotismo que os últimos. Nos primeiros há

algo do pícaro, do herói malandro e sorridente do povo, como representado na

antiga literatura espanhola, e, a partir dela, em tantas outras. O melhor analista dos

primeiros malandros é o próprio João Antônio:

Amo. Malucamente adoro três vagabundos numa noite paulistana com suas misérias, camaradagens e um relógio de pulso. (...) É nessa batida o conto. Vai num intenso rebolado em que Bacanaço é rufião, Malagueta é um trapo e Perus, um menino. O drama é de Perus, coitado. Sozinho no meio dos outros, ilhado, fazendo as coisas por fazer. Bacanaço é um safado e Malagueta é um cínico. (p.5)29

O que, Malagueta, se esconde nesta sua cabeça, que eu não sei como conto? Que é essa ruga aí no canto da boca, Malagueta? (...)

29 Citado em “O Primeiro Amor” de João Antônio de Rodrigo Lacerda, encarte a Malagueta, Perus e Bacanaço. Cosac etc.

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Perus é tímido, mas genioso como ele só. Coitadinho. Sempre fugindo. Viva Bacanaço, que é o mais fácil de todos! Cáften sem-vergonha. Mas um pelo outro, são três terríveis. Três piranhas. Domá-los, João Antônio, domá-los. (p.6)30

Essa mesma ebulição vital não é compartilhada pelos malandros

posteriores. E, como visto, Perus é o protótipo desses malandros posteriores. Mas o

seu desajuste social não se dá com a sociedade como um todo, como o daqueles

que figuram no livro mais recente, e sim dentro do seu pequeno grupo, no

microcosmo de seus contatos. A evolução da figura do malandro, atingida em

‘’Abraçado...’’ pode ser exemplificada com Jacarandá, do conto ‘’Guardador’’.

Jacarandá, como reafirmaremos na conclusão, é um ensaio de ‘’personagem maior’’,

e o mesmo parece aflorar de Malagueta, Perus e Bacanaço, os três malandros que o

antecedem. É como se os dois grupos fossem ensaios de um grande personagem

coletivo, um malandro ou pícaro que seria a suma das personagens de João

Antônio. Voltando à exemplificação, a grande vitalidade apolínea dos primeiros

malandros passa a uma melancolia dionisíaca no Jacarandá que os sucede.

Portanto:

Dia depois de dia entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. Ia longe o tempo em que dormia em quarto de pensão. E nem lembrava de olhar o mar. Enfiava-se, se encafuava no oco do tronco da árvore velha, tão esquecida de trato. (p.27)

A transmutação do malandro, assumindo maior densidade psicológica e

sofrimento, vem a mostrar que Abraçado ao meu rancor, mesmo considerando

Malagueta, Perus e Bacanaço como obra máxima, é o livro em que o arrebatamento

30 Idem.

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e a emoção do autor, bem como o retrato das mazelas sociais, atingem o ponto

máximo.

Ao longo de nosso périplo, como ao longo do périplo de outros analistas da

obra de João Antônio, alguns problemas foram propostos, e alguns quiçá resolvidos,

mas esperamos que ambos os descobrimentos, problema e solução, não encubram

o puro alumbramento que a análise, pondo em relevo a magia lírica do autor,

porventura tenha causado, muito menos por si mesma, e mais por estar associada a

uma tal literatura. Literatura que se realista certamente é, o é de um modo lírico.

Este foi o primeiro ponto de destaque a ser levantado, e de certa forma foi a variável

encoberta a determinar todas as demais equações, mesmo que, como apontamos

no início, a diretriz principal tenha sido a relação entre espaço social e espaço

psicológico. Mas não há nada de antagônico na frase anterior, apenas de

tautológico: é desse choque que nasce, em grande parte, o sopro lírico do livro. Com

que artesanato e quais outras matérias vitais puderam tais contos ser escritos? O

nomadismo literário foi um elemento. A constância de uma voz e de diversos

problemas e pulsações vitais idênticas mantendo-se firmes mesmo em cenários

diferentes, este é um grande poder da lírica, a permanência do ''um'' no ''múltiplo''.

Precisamos também que o conto de João Antônio não se adequa aos moldes

clássicos do gênero. Em linguagem metafórica dir-se-ia que o lirismo e o

arrebatamento transbordam do modelo clássico, e por consegüinte temos contos

heterodoxos como ''Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)''. A decadência

urbana é tema perceptível de ''Amsterdá, ai'', bem como de ''Abraçado ao meu

rancor'', mas o segundo é um conto interiorizado, o que demarca o primeiro em uma

fronteira especial do livro e talvez explique o seu tom otimista, raro na literatura de

João Antônio.

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O quarteto dos ''Jacarandás'' se agrupa não por mero fetiche onomástico do

autor, que nomeou ao longo da carreira diversos personagens com esse nome.

Vimos como Jacarandá é um ensaio de personagem maior em sua obra, um

descendente das personagens universais que fascinavam o autor. Na realidade ele

é a aplicação prática da teoria do autor sobre tal universalidade, a de que a

universalidade parte da aceitação do particular. Se Ivan Illitch é universal porque

essencialmente russo, cada Jacarandá busca a eminência para todos os homônimos

ao fundar-se no local de origem.

O trio do ''andarilho urbano'' revela a relação, amargurada por vezes, do

autor com a publicidade, mas tal aspecto talvez seja apequenado diante das

questões maiores que o conto ''Abraçado ao meu rancor'', membro do grupo,

revelou. Neste maior conto do livro, pilar de sustentação do mesmo, vemos de novo

a busca pelo passado perdido transfigurado em cimento ao ser focado na cidade. É

também uma grande dramatização da solidão do autor, traço marcado de sua

personalidade, e portanto constitui a cena em que sua melancolia é destrinchada. É

a solidão de quem perdeu sua origem.

Passamos então a outro conto, que, como ''Amsterdã, ai'', irrompe tal luz no

meio do pessimismo do contista. Ao contrário de ''Amsterdã, ai'' não se trata de uma

esperança vaga presa entre a degradação de uma cidade, mas da pura alegria de

uma comunidade e da beleza de um espaço, contagiando o narrador.

A ambientação nos contos é demonstrada, pela análise de ''Guardador'',

como verdadeiro eixo de comunicação e construção estética para o contista,

alcançando virtuosismo raro na literatura. A surpresa advém da confluência entre

ambiente e personagem, nesse conto. Pois a construção literária do espaço influi na

caracterização do guardador.

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O papel da ironia nos contos, como o da ambientação, é multimodal, mas

nota-se que embora sirva a funções sociais e políticas, na realidade extravasa a

emoção do autor frente a essas modalidades. O que leva o próprio autor, João

Antônio – homem que se revela um melancólico e pessimista, embora seja impelido

por seus sonhos, e não deixe de se abismar com as injustiças que por sua filosofia

pessoal já espera – a criar a dialética interna que guiará sua arte.

A arte de João Antônio é isso: um coro de vozes e um quadro de ambientes

a ilustrarem um homem e sua voz, clamando por justiça, e transfigurando sua dor

em uma ária que ultrapassa o egoísmo da lamúria pessoal e atinge o bem da

coletividade.

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