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ASPECTOS DA PROTEÇÃO AO TRABALHO RURAL SOB O PRISMA DO
PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO AMBIENTAL
ASPECTS OF RURAL LABOR PROTECTION UNDER THE PRISM OF THE PRINCIPLE
OF ENVIRONMENTAL PREVENTION
Saul Duarte Tibaldi1
Edilson Rosendo da Silva2
RESUMO: O texto propõe uma reflexão acerca da evolução do trabalho humano, desde um
passado sombrio em que a prestação de serviços tornava o obreiro completamente indefeso à
doenças e acidentes, diante de suas necessidades de sobrevivência e ausência de salubridade.
Novas concepções de vida e valores sociais se materializaram em direitos e garantias
fundamentais, as quais ganharam contornos constitucionais em muitos países, inclusive no
Brasil, facultando um ambiente de trabalho mais hígido, menos inseguro e mais saudável,
embora tais adjetivos não possam ser aplicados na mesma proporção em favor de
trabalhadores urbanos e rurais. Saúde ocupacional e qualidade de vida ainda não são
elementos presentes com a mesma eficácia em todos os ambientes laborais, especialmente no
campo onde são percebidas frequentes violações de normas protetivas elementares, embora
seja um espaço estratégico da economia brasileira, em especial na região Centro-Oeste. Com
fundamento em proposições de cunho normativo-preventivas, conclui-se pela necessidade de
preservação da integridade humana e não degradação do ambiente produtivo, enquanto
compromisso de Estado socioambiental para a concretude de uma situação apta a
proporcionar ao homem trabalhador o desenvolvimento pleno de suas potencialidades físicas
e psíquicas.
Palavras-chave: Meio ambiente do trabalho; Prevenção; Direitos Fundamentais; Proteção ao
trabalho rural.
ABSTRACT: The text proposes a reflection on the evolution of human work ranging from a
dark past in which the services rendered completely helpless to the worker illnesses and
1 Advogado, Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais - Direito do Trabalho - pela PUC/SP.Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Procurador do Município de Cuiabá-MT. E-mail: [email protected]
accidents in front of their survival needs and lack of sanitation. New conceptions of life and
social values materialized on fundamental rights and guarantees, which won constitutional
contours in many countries, including Brazil, providing a work environment more healthy,
less insecure and healthier, although these adjectives cannot be applied in same proportion in
favor of urban and rural workers. Occupational health and quality of life elements are not
present with the same effectiveness in all work environments, especially in the field where
they are frequently perceived violations of protective elementary standards, although it is a
strategic area of the Brazilian economy, especially in the Midwest. Based on propositions of
law e prevention, it is concluded by the need to preserve the integrity of human and the
environment of productive work as a social and environmental commitment of the state in a
situation able to provide the working man the full development of their potential physical and
psychological.
Keywords: Working environment; Prevention; Fundamental Rights; Protection of the Rural
Labor.
1 ANTECEDENTES
1.1 RECONHECIMENTO DAS PATOLOGIAS LABORAIS
Em 1700, na Itália, o médico Bernardino Ramazzini publica a obra De Morbis
Artificum Diatriba, traduzida ao português como “As doenças dos trabalhadores”3. Esta obra
é reconhecida por fixar um marco na descrição de como a atividade laboral pode exercer
influência danosa sobre a saúde dos trabalhadores.
De um universo de trabalhadores, abrangendo diversas profissões, entre elas:
químicos, coveiros, artífices, notários, etc,; constatou-se a ocorrência sistêmica de alterações e
distúrbios ósseos, musculares, neuroses e estresses diretamente relacionados às atividades
laborais desenvolvidas por estes trabalhadores.
Neste período, século XVIII, a Europa vivia o final da chamada Idade Média, ainda
regulada pelo sistema político/econômico feudal e de produção eminentemente artesanal.
De todo modo, assentou-se, pela primeira vez, um nexo de causalidade entre as
condições ambientais de trabalho da época, e os efeitos adversos à sua saúde provocados pela
exposição continuada de trabalhadores a certos riscos e condições de trabalho, gerando
3 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica á saúde do trabalhador. 6.ed. rev.e atual. São Paulo:
LTR, 2011, p.53.
consenso majoritário de que este estudo pioneiro haja inaugurado um ramo do conhecimento,
ao qual hoje denominamos Medicina do Trabalho.
A partir da Revolução Industrial, constata-se que o trabalho não monitorado ameaça
a integridade do ser humano trabalhador e constitui vetor importante no processo produtivo
em massa, a partir da extinção do trabalho artesanal e da possibilidade de multiplicação do
lucro através das linhas de produção industriais.
Este novo paradigma de produção também causa o inchamento das urbes e
esvaziamento do meio rural, gerando novas situações de aglomeração urbana com suas
naturais dificuldades de alojamento, deslocamento e saneamento urbano. Com efeito, no
período anterior à revolução industrial, menos de 10% (dez por cento) da população da
Europa vivia nas cidades4.
Com o surgimento da máquina a vapor inicia-se a passagem do capitalismo mercantil
para o início da chamada era industrial, ocorrendo grande fluxo migratório, e ocasionando um
inchaço das principais cidades européias da época, que passam a ter favelas e cortiços.
Entrementes, o início do período industrial caracterizou-se pela total ausência de
preocupação regulatória, sob a influência do liberalismo econômico e seu postulado do
“laisser faire, laissez passer” que entendia o contrato de trabalho sob a mesma configuração e
autonomia de contratantes do civilismo herdado dos romanos e, mais recentemente, dos
preceitos do Código Civil Napoleônico.
Em nome das idéias reinantes de “capital”, “lucro” e “liberdade” muitos excessos
foram cometidos em desfavor da integridade física e moral dos mais fracos na relação
produtiva, no caso os trabalhadores.
Esta ordem de coisas criou enorme descontentamento na classe operária, o que
culminou em sensibilizar setores do pensamento político, econômico e até eclesiástico para a
negação da condição humana dos trabalhadores que eram “coisificados” e submetidos a
indignidades constantes, causadoras dos mais diversos prejuízos à sua saúde, integridade e
com freqüência, colocando em risco até mesmo a vida destes cidadãos, como coisa normal.
Assim, eram comuns os salários exíguos; as jornadas estafantes de 14, 15 horas; os
ambientes de trabalho insalubres; os alojamentos desprovidos da mínima condição sanitária
Destes acontecimentos resulta um destacado aumento na ocorrência de eventos
mórbidos decorrentes da prestação do trabalho. O trabalho, que deveria ser o motor da vida,
passou a originar ambientes em que a morte e a doença prosperavam: seja pelas doenças
4 ZIMEMERMANN NETO, Carlos F. Direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.8.
causadas; seja pela diminuição da expectativa de vida; seja ainda pelo incremento no risco de
acidentes pelo manuseio de máquinas sem o devido cuidado e instrução.
Surge assim o Direito do Trabalho, de forma ainda incipiente, na Inglaterra, mas já
preocupado com a integridade do cidadão-trabalhador. Em 1.802, a Inglaterra aprova a Lei da
Saúde e Moral dos Aprendizes, estabelecendo o limite de jornada de trabalho dos menores em
12 horas/dia, proibindo a estes o trabalho noturno, e obrigando os empregadores a colocar
ventilação e lavar as paredes das fábricas pelo menos duas vezes por ano.
Compreendia-se que a precariedade das instalações estava ocasionando lesões e
perda de muitos trabalhadores, e isto poderia comprometer o lucro do capitalista. Outras
manifestações esparsas são verificadas, ainda na Inglaterra: Em 1.830, o industrial Robert
Dernham institui em suas empresas o serviço de medicina do trabalho. Em 1.833, surge a
“Factory Act”, lei inglesa para as empresas têxteis que proibia trabalho noturno e restringia o
trabalho dos menores; sendo que um médico devia atestar que o desenvolvimento físico da
criança correspondia à sua idade cronológica.
Em sentido esquemático, no plano jurídico, as relações laborais evoluíram do
trabalho escravo (direito real), para o trabalho artesanal (direito pessoal) e, em nosso tempo,
para o trabalho mediante um pagamento (direito obrigacional) predominantemente nas
cidades, mas não exclusivamente.
O trabalho agrícola, e dizemos preferentemente “agrícola” e não “agrário”5, é o que
se desenvolve na lógica da produção de bens econômicos extraídos da terra. A agricultura,
portanto, é a profissão daqueles que cultivam a terra, em qualquer das modalidades dessa
atividade: lavoura, pecuária ou indústria rural. Com o inchaço das ‘urbes’, o trabalho no
campo foi gradativamente sendo superado, mas, não obstante, sobreviveu como importante
meio de produção de riquezas e com o posterior desenvolvimento de tecnologias de
produtividade agrícola.
O pensamento jurídico laboral evoluiu, mas sempre encontrará dificuldades para
conseguir uma resposta jurisdicional adequada no meio rural, aqui e alhures. As formas de
organização da produção, urbanas e rurais, consideram o trabalhador como peça da
engrenagem que produz lucro. Nos seus primórdios, o Direito do Trabalho respondia apenas
com a eventual responsabilização posterior e correspondente indenização nos moldes do
5 Como lembra SANTOS, Saulo Emídio em “Trabalhador Rural: Relações de Emprego”, p. 31-34, “a obrigação
de Direito Agrário estará inserida em uma norma que vise direta e imediatamente a produção, importando a
condição de vida do trabalhador e a sua situação econômica em mero pano de fundo, em uma figura secundária
no contexto da norma.”
civilismo clássico. Mas, a idéia da prevenção não figurava no horizonte da proteção ao
trabalhador nas cidades da Europa neste período e muito menos no campo.
Neste momento inicial da evolução histórica ora descrita, despertam os elementos
que fizeram preponderar no direito a idéia de dignificação do trabalho que leva o capitalista a
cuidar do aspecto específico da saúde do trabalhador, mas aqui ainda cuidando somente de
administrar os efeitos danosos da exposição ao risco.
Considerava-se, portanto, apenas o aspecto patológico que resultava do risco laboral.
Em fases posteriores, a consideração do tema passa a preocupar-se não só com a doença e
tratamento, mas também com a possibilidade de minimizar as ocorrências danosas.
1.2 SAÚDE OCUPACIONAL
Ao final do século XIX, a Igreja Católica interfere, com a encíclica Rerum Novarum,
dando início à doutrina social da igreja e influenciando o reconhecimento do trabalho humano
como integrante do conjunto mínimo de direitos a que se convencionou denominar “Direitos
Humanos”, considerados como de 2ª geração ou dimensão.
A criação de leis protetivas teve um impulso universalizante a partir do final da 1ª
guerra mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, com a produção de Convenções Internacionais
destinadas à proteção da saúde e integridade física dos trabalhadores, buscando dar tratamento
uniformizado com fundamento na justiça social e nos postulados da preservação da dignidade
humana no ambiente de trabalho.
Identifica-se aí um salto qualitativo no tratamento do tema onde se reconhece a
dignidade humana como direito fundamental. Não importa mais apenas a doença, mas sim a
consideração da integridade ética, física e psíquica do trabalhador, com a adoção de práticas
sistematizadas de preservação do ambiente de trabalho como lugar salubre.
Consolidando tal preocupação internacional, temos marcos significativos na década
de 50, século XX, tais como a criação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e a
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1.948 que, em seu art. 23 declara que:
“Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de seu trabalho, a condições
equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego” (grifo nosso). Daí
que a Saúde passa a ser entendida como completo bem-estar físico, mental e social, e não
apenas ausência de doenças.
Se num primeiro momento, restou claro que a atividade laboral causa diretamente
doenças e morte, nesta fase, entende-se necessário agir nas causas das doenças e dos
acidentes, modificando o ambiente de trabalho, com a participação de outros profissionais
especializados, além do médico (engenheiros, arquitetos, terapeutas, psicólogos, etc.).
Ao final do século XIX e princípio do século XX, as concepções de Frederick Taylor
(Taylorismo) e Henry Ford (Fordismo) introduzem na indústria o conceito de eficiência
científica no processo produtivo, que busca otimizar a linha de produção, estabelecendo
padrões de regulagem do tempo no local de trabalho, sem preocupar-se com os limites
biológicos e psíquicos do homem-trabalhador.
Ganham igual importância os problemas relacionados a: 1) Condições de Trabalho:
ritmos e cargas de trabalho, repetitividade e monotonia, turnos e horários, ruídos, substâncias
químicas, vapores, iluminação, etc. e 2) Organização de Trabalho: divisão do trabalho,
conteúdo da tarefa, sistema hierárquico, relações de poder e responsabilidade, etc.6
Este viés de compreensão do processo produtivo e de novas práticas de controle das
consequências deste processo no organismo humano irradia-se pela Europa e Estados Unidos,
com ênfase na criação e implantação dos comitês urbanos de higiene e segurança.
Todavia, com freqüência, o pensamento jurídico se esqueceu daquele que labora no
campo, de sol a sol, à busca de liberdade, sobrevivência e dignidade. Pouco se fez para
atender às necessidades do trabalhador rural. Até porque as pressões advindas das
organizações sindicais se deram com mais força no âmbito dos conglomerados urbanos.
A cultura jurídica manifesta clara preferência pelo urbano e menosprezo às questões
rurais, reservando a estas meros resíduos de atenção e de planejamento. O trabalhador rural
pugna pela obtenção do que poderíamos chamar de uma “agrocidadania”, como situação que
urge a ser atingida e que irá lhe conferir amplos direitos e prerrogativas, consoante ao
momento social em que vivemos.
Há necessidade, então, da construção de uma realidade jurídica sintonizada com um
novo patamar de importância a ser conferida também aos trabalhadores rurais. Entendamos
esta adaptação como um movimento de modernização, de aproximação valorativa do mais
justo, mais adequado a novos tempos.
6 DEJOURS, Cristophe. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 5.ed. São Paulo:
Cortez-Oboré, 2000, p. 25
1.3 QUALIDADE DE VIDA COMO ATRIBUTO DE CIDADANIA
Por volta da década de 80 do século XX, entra em cena na preocupação de proteção
aos trabalhadores a idéia de qualidade de vida resultante do conjunto de elementos necessários
à dignidade do cidadão trabalhador.
Cada vez mais se observa que não é possível isolar o homem-trabalhador do homem-
social, como se o trabalhador pudesse deixar no portão da empresa toda sua história pessoal
(dignificação do trabalho coloca o homem como valor primeiro).
Instrumento normativo relevante neste sentido é o Protocolo adicional ao Pacto de
San José da Costa Rica sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que em seu art. 6º diz
que toda pessoa tem direito ao trabalho, o que inclui a oportunidade de obter os meios para
levar uma vida digna e decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita, livremente
escolhida e aceita.
Nesse sentido, diz Celso Mello que o direito ao trabalho é o mais importante, ou o
direito básico dos direitos sociais, [...] o que interessa a liberdade de expressão se não se tem
os direitos à saúde, ao trabalho, à alimentação.7
Lembra Arion Romita que a centelha inicial do surgimento do direito do trabalho foi
a criação de um invólucro jurídico, especificamente traçado para preservar a humanidade do
indivíduo que se põe à disposição do fim alheio. Isto gerou uma idéia jurídica alienada da
dimensão humana, preocupada apenas em formatar o contrato de emprego e seus
desdobramentos formais.8
Uma ampliação necessária da concepção do direito do trabalho deve considerar a
dignidade do trabalhador como conseqüência do acesso ao direito fundamental à saúde. E
saúde será entendida como o conjunto resultante do acesso a diversos fatores como
alimentação, habitação, educação, renda suficiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,
liberdade, meio ambiente saudável, prevenção de riscos e serviços de saúde.
Nesse sentido, Miguel Reale invoca valores inatos do homem para advertir que:
Se imaginarmos, na história da espécie, a experiência do direito como um curso de água, diremos que esta corrente no seu passar, vertiginoso ou lento, vai polindo as arestas e os excessos das normas jurídicas, para adaptá-las, cada vez mais aos
7 MELLO, Celso de Albuquerque. A proteção dos direitos humanos sociais nas Nações Unidas. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (org.). Direitos Fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 228 8 ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de Trabalho. São Paulo: LTR . 2005. p. 180 e
396
valores humanos concretos, porque o Direito é feito para a vida e não a vida para o Direito.9
De modo que o trabalho humano além de constituir um instrumento necessário à
garantia da sobrevivência do trabalhador e sua família, deve também ser considerado como
meio de atingir a plenitude individual. Sob o prisma jurídico: atingir a cidadania plena.
A etimologia do vocábulo “cidadão”, de origem burguesa, extrai seu significado da
identificação histórica a direitos inerentes ao homem livre que, por livre opção e/ou
conveniência de caráter político e/ou econômico, passa a viver predominantemente na cidade,
no burgo.
Ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e soberano. Cidadania envolve,
então, aspectos como a igualdade perante a lei; o domínio do próprio destino; a justa
remuneração; a livre expressão; o direito à educação, à saúde, à integridade física e psíquica, à
habitação, ao lazer, etc.; além dos deveres de participação na coletividade, cumprindo normas
e pressionando por transformações.
Esse conjunto de direitos e deveres, indissociáveis entre si, são dependentes da
correlação de forças econômicas e políticas para que possam efetivamente se realizar. Nesse
sentido, o meio produtivo agrícola é especialmente difícil para com aqueles que ali vivem e
trabalham.
Entenda-se cidadania plena como aquela apta a transformar o cotidiano do
trabalhador em algo bom e satisfatório, sob condições garantidas pelo Direito, que respeitem
valores vitais como o desejo humano e a dignidade.
As relações no campo, é certo, têm ritmo próprio e que não é sempre coincidente
com aquele verificado no meio urbano. Peculiares são as relações e os valores econômicos,
sociais e culturais que as acompanham, constituindo uma racionalidade integral que, por
muitas vezes, contrasta com a objetividade urbana.
Os trabalhadores rurais constituem a parcela mais empobrecida e menos organizada
de toda a população produtiva brasileira. No campo grassa o trabalho precário, como coisa
normal. As mais comezinhas condições de segurança ainda não são garantidas com um grau
aceitável de efetividade a estes trabalhadores. É fato incontestável que o trabalhador rural
brasileiro não tem cidadania plena.
9 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 535
2 AMBIENTE DE TRABALHO SAUDÁVEL
2.1 DIGNIDADE HUMANA COMO BASE DA CIDADANIA LABORAL
A idéia de Dignidade Humana é referencial. Sua evolução considerou a dignidade do
homem em relação ora à proximidade de uma divindade; ora à proximidade a um grupo ou
posição social; ora à identificação com uma corrente política ou filosófica.
A noção moderna de dignidade humana, centrada na superioridade da natureza do
homem como centro do mundo, ainda que encontre raízes na concepção cristã do Gênesis, só
foi desenvolvida na civilização ocidental a partir do Renascimento.
A consolidação veio após a segunda grande guerra mundial, quando preceitos
internacionais garantidores de um mínimo ético protetivo necessários à vida em sociedade
foram estabelecidos nos textos constitucionais ocidentais.10
Com o avanço das sociedades contemporâneas ocidentais, três concepções11
passaram a disputar espaço com relação ao primado da dignidade humana: 1) a Corrente
Individualista, segundo a qual o homem seria o núcleo central da vida em sociedade e
realizando-se individualmente, realizaria indiretamente o plano coletivo; 2) a Corrente
Transpersonalista, que prega a realização do plural e do coletivo prepondera sempre sobre as
vontades individuais; e 3) a Corrente Personalista, em que é negada a condição apriorística
do individual ou do coletivo, e propõe que cada caso seja analisado conforme os fatos e
circunstâncias peculiares, concedendo-se privilégio para o anseio do particular ou do ente
estatal em cada situação concreta.
A proteção à vida e a saúde integral do trabalhador e sua proteção na legislação
trabalhista, pelo valor intrínseco embutido tem evidente vocação transpersonalista, fiel às
tradições do Direito do Trabalho e sua inspiração original coletivizante, muito antes de
havermos desenvolvido a concepção do que hoje se entende por ‘direitos difusos’.
A própria Constituição Federal plasma em seus artigos 1º e 3º, de forma cristalina, a
precedência dos valores da dignidade da pessoa humana; dos valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa para construir uma sociedade livre, justa e solidária.
10 Assim, nesse sentido, temos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França de 1789; a Constituição Republicana Francesa de 1791; a Encíclica Rerum Novarum de Leão XII de 1891; o Tratado de Versalhes, de 1919; a Constituição da OIT aprovada em 1946 e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, entre outros tratados, convenções e textos constitucionais. 11 GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. Direito Constitucional do Trabalho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 24-25.
A seu turno, o art. 170, II e III, da Carta da República deixa clara a garantia ao
direito de propriedade privada, desde que necessariamente compromissado com o seu
exercício com sentido e função social, o que implica um compromisso democrático e
soberano para que o meio ambiente no âmbito dos empreendimentos e locais de prestação de
serviços propicie aos trabalhadores condições dignas.
No caso de violações específicas das normas trabalhistas de medicina e segurança no
trabalho verifica-se evidente dano ao meio ambiente de trabalho, e desrespeito aos direitos à
dignidade humana do cidadão trabalhador brasileiro, urbano ou rural.
Isto tomando por certo que a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de
normas de saúde, higiene e segurança se constitui em direito social conquistado pelos
trabalhadores urbanos e rurais, nos exatos termos do inciso XXII, do art. 7°, da Magna Carta,
e obrigação do empregador, ex vi dos arts. 154, e seguintes da CLT.
Ingo Sarlet assim define a Dignidade da Pessoa Humana:
[...] qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.12
Em sentido específico, voltado ao Direito do Trabalho, Evaristo de Moraes Filho
assim se expressa: [...] o Direito do Trabalho prolonga a própria personalidade [...] e é por
si só, a raiz da própria existência do homem, pelo que lhe proporciona ou lhe pode
proporcionar de subsistência, de liberdade, de autoafirmação e de dignidade.13
O palco privilegiado desta autoafirmação, para a maioria dos indivíduos, é o seu
local de trabalho. No ambiente de trabalho vemos a concretização individual de anseios,
desejos, realizações, mas também, infelizmente, é onde se verifica a ocorrência frequente de
frustrações, depressões e sofrimento.
2.2 MEIO AMBIENTE GERAL E DO TRABALHO NO BRASIL
Em nosso país, a lei 6.938/81, que estatui a Política Nacional do Meio Ambiente
(PNMA), descreve o meio ambiente, em seu art. 3º, I, como sendo o conjunto de condições,
12
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988. 5.ed.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62 13
MORAES FILHO, Evaristo de. O Direito ao Trabalho. In: Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, Asgráfica, 1974, p. 674.
leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege
a vida em todas as suas formas.
Daí que temos uma definição jurídica que enquadra uma multiplicidade de elementos
que envolvem nossa existência na terra sob várias perspectivas que abrangem aspectos físicos,
químicos, biológicos e da interação comportamental resultante.
Édis Milaré lembra a origem da expressão “ecologia” como derivada do grego oikos
(casa) e logos (estudo); e o meio ambiente, numa concepção ampla, designaria nossa “casa”
como algo que vai além dos limites estreitos da ecologia tradicional, abrangendo elementos
naturais, artificiais e culturais.14
Michael Allaby, por sua vez, expressando definição corrente, define meio ambiente
como a completa extensão de condições externas, físicas e biológicas, na qual um organismo
vive. Meio ambiente inclui considerações sociais, culturais e (para os humanos) econômicas
e políticas [..].15
Julio Rocha16 diz ser o meio ambiente do trabalho caracterizado como a ambiência
na qual se desenvolvem as atividades do trabalho humano. O meio ambiente laboral não se
restringe ao espaço interno da fábrica ou da empresa ou do empreendimento rural, mas se
estende ao próprio local de moradia ou ao ambiente das cercanias do local de prestação de
serviço.
O meio ambiente do trabalho como o local onde se exerce qualquer atividade
laboral17 deve considerar como objeto da tutela ambiental não apenas a situações temporais e
contratuais de trabalho, mas também à perene proteção à saúde e segurança do trabalhador -
que é o titular do direito à vida digna e saudável.
É nesse diapasão que Raimundo Simão de Melo afirma que dois são os objetos de
tutela ambiental: um imediato – a qualidade do meio ambiente em todos os seus aspectos e
outro mediato – a saúde, segurança e bem-estar do cidadão, expresso nos conceitos vida em
todas as suas formas e qualidade de vida.18
Sebastião Geraldo de Oliveira enfatiza que o meio ambiente do trabalho está inserido
no meio ambiente geral, de modo que é impossível alcançar qualidade de vida sem ter
14
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 75 15
ALLABY, Michael. A Dictionary of Ecology. 2nd edition. Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 143 16
ROCHA, Julio Cesar de Sá da. Direito ambiental e meio ambiente do trabalho: dano, prevenção e proteção jurídica. São Paulo: LTR, 2002, p. 13. 17
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 7.ed. rev.e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 22. 18
MELO, Raimundo Simão de. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente do trabalho e à saúde do
trabalhador. São Paulo: LTR, 2010, p.15.
qualidade de trabalho, nem se pode atingir meio ambiente equilibrado e sustentável,
ignorando o meio ambiente do trabalho19.
Também José Afonso da Silva,20 entende que o meio ambiente do trabalho
corresponde ao complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa e de uma sociedade,
objeto de direitos subjetivos privados, e de direitos invioláveis da saúde e da integridade física
dos trabalhadores que o freqüentam.
A Constituição Federal de 1.988 reconhece saúde e trabalho como direitos sociais
(art. 6º e 194), assegurando redução dos riscos laborais, via normas de saúde, higiene e
segurança (art. 7º, XXII). Além disso, a CF diz que a saúde é direito de todos e dever do
Estado (art. 196), cabendo ao Sistema Único de Saúde (SUS), dentre outras atribuições,
executar as ações de saúde do trabalhador (art. 200, II)
O meio ambiente amplo e geral conforme descrito no art. 225, e o meio ambiente do
trabalho em especial, preconizado pelo art. 200, incisos II e VIII, da Carta da República,
recebem a tutela constitucional no contexto da ordem social, tendo como base o primado do
trabalho, e como objetivos o bem-estar e a justiça social, em consonância com os ditames do
art. 193, da referida Lei Maior.
Portanto, a interpretação sistemática do disposto nos arts. 6º, 7º, XXII, 196 a 200 e
art. 225, §1º, V, da Constituição da República não deixa dúvidas de que a saúde do
trabalhador e o meio ambiente do trabalho foram também alçados a direito social de natureza
constitucional, e cujo cumprimento é imposto por lei ao empregador, conforme se verifica dos
arts. 154 a 201 da CLT (com redação dada pela Lei 6.514/77) e Portarias 3.214/78 e 3.067/88,
do Ministério do Trabalho e Emprego, que regulamentam segurança e medicina do trabalho
urbano e rural, respectivamente.
Em matéria internacional aplicável ao meio ambiente de trabalho, o Brasil ratificou
as Convenções 81, 148, 152, 155 e 161, da OIT. A Convenção 148, que trata da contaminação
do ar, ruído e vibrações, foi ratificada em 14.01.82 e promulgada através do Decreto n°
93.413, de 15.10.86. A Convenção 152, que trata da segurança e higiene dos trabalhos
portuários, foi ratificada em 17.05.90 e promulgada pelo Decreto nº 99.534, de 19.09.90. A
Convenção 155, que trata da segurança e saúde dos trabalhadores, foi ratificada em 18.05.92 e
promulgada pelo Decreto n° 1.254/94. A Convenção 161, que trata dos serviços de saúde do
trabalho, foi ratificada em 18.05.90 e promulgada através do Decreto n° 127, de 22.05.91.
19
OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica á saúde do trabalhador. 6.ed.rev.e atual. São Paulo, LTR, 2011, p. 142. 20
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 20.
A convenção, uma vez ratificada, é inserida no ordenamento jurídico pátrio. Assim,
vem ela complementar, alterar ou revogar o direito interno, conforme seja o caso. É claro que
a efetividade do direito requer a firme atuação do Poder Público, no sentido de exigir e
fiscalizar o cumprimento da norma nacional ou internacional aplicável.
2.3 MONETIZAÇÃO DO RISCO
O Direito, utilizando as palavras de Luis Robortella, [...] persegue incessantemente
renovação e adaptação fenomenológica [...], porquanto [...] é consequência de um processo
dialético integrante de fatos e valores [...], onde [...] o conhecimento jurídico deve ser
cultivado em constante conexão com os dados da experiência. 21
Hoje, em nosso ordenamento jurídico, a segurança, higiene e medicina do trabalho,
são assuntos alçados a um status constitucional, constituindo direito social, público e
indisponível dos trabalhadores. É forçoso que as funções laborais sejam exercidas em
ambiente de trabalho seguro e sadio, cabendo ao empregador tomar as medidas necessárias no
sentido de reduzir os riscos inerentes ao trabalho (inciso XXII, do art. 7º, CF).
Afinal, como diz Leonardo Wandelli, a prestação entregue pelo trabalhador ao
disponibilizar sua força de trabalho leva consigo, inseparável, a pessoa do trabalhador, o
trabalho vivo [...].22
Assim, todo o arcabouço legislativo brasileiro está aparentemente voltado para a
proteção do meio ambiente do trabalho saudável, tendo como objetivo o bem-estar físico,
psíquico e mental.
Não obstante, observa-se uma contradição normativa/pragmática: ao mesmo tempo
em que se pretende eliminar riscos à saúde e à segurança do trabalhador, é dado a este
algumas compensações financeiras e/ou retribuições econômicas, a fim de compensar sua
exposição a um ambiente de trabalho sabidamente inadequado e hostil.
No cotidiano brasileiro ocorre aquilo que João Humberto Cesário denomina de
engodo juslaboral originário23, segundo a qual resulta práxis de aplicação do sistema jurídico
em que se permite que a saúde do trabalhador seja trocada por dinheiro (adicionais),
21 ROBORTELLA, Luis Carlos Amorim. O Moderno Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 1994, p.16. 22
WANDELLI, Leonardo Vieira, O Direito Humano e Fundamental ao Trabalho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo: LTR, 2012, p. 222. 23 CESÁRIO, João Humberto. Técnica Processual e Tutela Coletiva de Interesses Ambientais Trabalhistas. São Paulo: LTR, 2012, p. 59.
remetendo a adequação do local de trabalho a níveis aceitáveis de salubridade a um segundo
plano, em benefício evidente do capitalista e à custa de sofrimento do trabalhador.
Na verdade, o artigo 194 da CLT, preceitua pagamento de adicionais como situação
de excepcionalidade, estatuindo inclusive que o pagamento deve cessar quando eliminado ou
reduzido a níveis toleráveis o risco à saúde.
Nos meios produtivos, é certo, formou-se uma cultura pragmática segundo a qual
basta pagar o adicional, cujo valor é ínfimo, resultando autorizado o desrespeito aos valores
humanos mais básicos. Se o patrão paga, entende que pode ferir. E muito empregado pensa
que como recebe, tem o dever de se expor ao ferimento e, levado a uma satisfação enganosa,
não reclama a melhoria das condições de trabalho.
Mais grave ainda é que percebemos iniciativas de entidades sindicais e associativas
dos trabalhadores apenas no sentido de reivindicar e preservar os adicionais, nada fazendo
para pressionar a que as empresas e organizações venham a investir em prevenção, numa
visão distorcida de custo/benefício que se manifesta em focos insuspeitados entre os próprios
trabalhadores e suas entidades representativas.
Sebastião Oliveira ressalta a obviedade consistente em que a opção de instituir
recompensa monetária pela exposição aos riscos desvia a preocupação com o problema
central, que é a saúde do trabalhador.24
Esta idéia de monetização do risco é duramente criticada pela doutrina, mas aceita de
forma condescendente por patrões, empregados, sindicatos, e até pela jurisprudência dos
tribunais trabalhistas.
A monetização não garante saúde, nem segurança ao trabalhador, pelo contrário, o
coloca numa condição de maior vulnerabilidade, até porque a vida não é uma mercadoria que
possa ser valorada, o que por si só, já ofende o princípio da dignidade humana.
Raimundo Melo25 adverte que o maior investimento de uma organização não deve
ser em equipamentos, tecnologia e capital de giro, mas nas pessoas que ali trabalham - o
capital humano - pois, conforme diz, o homem doente, infeliz e sem educação adequada não
tem condições de acompanhar os processos de produção cada vez mais sofisticados e ser útil
aos objetivos do capitalismo.26
24
OLIVEIRA.Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 6.ed. rev.e atual. São Paulo: LTR, 2011, p.155. 25
MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador . 2.ed. São Paulo: LTR, 2006, p. 65. 26
Ibdem, p. 67.
Este problema do trabalho subordinado tem sido investigado pela vanguarda
científica laboral, no mais das vezes, segundo eixos ligados à realidade urbana: ao incremento
de formas autônomas e heterônomas na composição de conflitos; à possibilidade de
distribuição de lucros e conseqüente aumento de produtividade com ganho social, etc.
Da realidade produtiva agrícola do interior do Brasil a vanguarda não se ocupa, ou o
faz de maneira periférica. As necessidades primeiras e urgentes do trabalhador rural
brasileiro, a serem realizadas, ainda são aquelas atinentes à sobrevivência e liberdade
individuais, em seus níveis mais básicos.
O Brasil é quase um continente. E um continente complexo e desigual que comporta
as mais diversas realidades no que diz respeito ao perfil econômico de cada região, tendo
como nota comum apenas a disseminação da concentração da riqueza nas mãos de poucos.
Para tanto, exige-se a defrontação dos princípios e conceitos juslaborais às
particularidades de regiões plenamente produtivas em relação a outras menos dinâmicas, e
com pouca ou nenhuma organização de classes.
3 PRINCÍPIO AMBIENTAL DA PREVENÇÃO E O TRABALHO RURAL
3.1 AMBIENTE DE TRABALHO AGRÍCOLA
Para a maioria, a origem da palavra trabalho está no instrumento de tortura para
aumentar a produção agrícola denominado tripalium. Alguns autores, entretanto, sustentam
que trabalho deriva do latim trabaculum, por sua vez derivado do latim trabs que significa
trave, viga usada também para ferrar animais.
De todo modo, parece patente que a identificação de trabalho a desconforto físico e
psíquico tem origem campesina.
As condições protetoras da saúde e da higiene nos locais de trabalho rural são, em
regra, deploráveis, aptas à ocorrência de acidentes, doenças (com suas seqüelas) e até
mortes.27
A documentação da relação de trabalho subordinado existente entre patrão e
empregados rurais é extremamente precária quanto a registros e recibos discriminados.
Os locais de alojamento em geral carecem de salubridade mínima, sujeitando os
trabalhadores à exposição a locais inadequados quanto ao mobiliário, banheiros, fornecimento
27 CESÁRIO, João Humberto. Técnica Processual e Tutela Coletiva de Interesses Ambientais. São Paulo: LTR, 2012, p.143.
de água – isto quando não são expostos às intempéries da natureza, e a risco de ataque de
animais silvestres.
O deslocamento diário para o local de trabalho é problemático, muitas vezes em
carrocerias de caminhão ou trator, sem a obediência às regras mais comezinhas de segurança
preceituadas em lei.
O chamado “bóia-fria” ou volante, exemplo maior, deixa sua casa pela madrugada e
só volta pelo final do dia, realizando sua refeição em sua marmita ou “matula” não aquecida,
fria – o que lhe empresta a denominação – em meio às plantações.
De outro lado, há exigência dos trabalhadores de jornadas exaustivas, submetidos a
temperaturas extremamente desconfortáveis, sem fornecimento de materiais de proteção, e
muitas vezes, além do suportável quanto aos limites físicos e psicológicos.
Como técnica de convencimento, também é frequente a ocorrência de coação física e
psicológica, bem como a exploração do trabalho infantil, sem que haja estrutura de
fiscalização capaz de abranger a grande área territorial brasileira, e superar as dificuldades de
acesso e locomoção do auditor.
Dentre os impactos da cadeia produtiva do agronegócio, alguns de maior relevância
estão relacionados à contaminação por agrotóxicos que causa sérios prejuízos à saúde coletiva
e ao ambiente de trabalho, contaminando a lavoura, os trabalhadores e o entorno, e causando
poluição e intoxicação em níveis alarmantes.28 Raimundo Mello, inclusive, diz que o Brasil
consome 1/5 de todo o agrotóxico utilizado no terceiro mundo. 29
O mesmo autor chama a atenção para a gravidade e desproporção do desrespeito aos
direitos dos trabalhadores rurais, causando doenças e mortes. Informa ainda que:
enquanto no setor urbano 1,29% dos acidentes terminam em morte, no campo esse índice aumenta para 2,57% e o número de acidentes não registrados é bem maior, pela informalidade maior [...]; e arremata com a precisa constatação de que “ [...] conforme a OIT, os trabalhadores agrícolas, em relação aos urbanos, correm o dobro de riscos de morrer no local de trabalho.30
28 Nesse sentido, há alentado estudo que identifica e estuda do ponto de vista da saúde coletiva a realidade agrícola no Estado de Mato Grosso dos professores da Universidade Federal de Mato Grosso, PIGNATTI, Wanderley; BELO, Mariana Soares da Silva Peixoto; DORES, Eliana Freire Gaspar de Carvalho;MOREIRA, Josino Costa e PERES, Frederico denominado Uso de agrotóxicos na produção de soja do estado do Mato
Grosso: um estudo preliminar de riscos ocupacionais e ambientais. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572012000100011>. Acesso em: 02 set.2013. 29 MELO, Raimundo Simão de. Dignidade Humana e Meio Ambiente do Trabalho, In: FREITAS JUNIOR, Antonio Rodrigues de, (org.). Direito do Trabalho: Direitos Humanos. Belo Horizonte: BH Editora, 2006, p. 496. 30 Ibidem, p.495
Todos estes elementos influem numa condição especialmente difícil para o préstimo
do serviço subordinado agrícola, elevando os índices de doença e subnutrição, sem mencionar
o dano psicológico a que é submetido o trabalhador.
Como se vê, as relações de trabalho na agricultura estão impregnadas de vícios que
resultam em uma situação crudelíssima para os trabalhadores. Juridicamente, as relações de
emprego rural não diferem, em essência, das urbanas. Inclusive, nesse sentido, Rusinete Lima,
com razão, diz que, especificamente, inexiste teoria da relação de trabalho rural.31
E o incremento da tecnologia na realidade do trabalho rural não auxilia como deveria
na melhoria deste cenário. Herbert Marcuse já havia notado que o trabalho mecanizado
trouxe ao trabalhador uma escravidão exaustiva, entorpecedora, desumana, ainda mais
desumana por ter causado [...] isolamento dos trabalhadores.32
Mas, de modo geral, a literatura técnica laboral ainda analisa apenas as causas dos
sinistros e seus efeitos sobre os trabalhadores durante o ato do trabalho. O suporte dessas
análises baseia-se no estudo do processo e da organização do trabalho, enfim, nas relações de
exploração-dominação existentes na prestação do trabalho subordinado. Daí decorrem
situações acidentárias e indenizatórias. Pouco se fala a respeito da prevenção. E muito menos
da prevenção no trabalho rural.
3.2 PREVENÇÃO NO AMBIENTE DE TRABALHO RURAL
Os princípios basilares do direito do trabalho, em especial aqueles da Proteção ao
Hipossuficiente, o da Razoabilidade e o da Primazia da Realidade, devem socorrer o
indivíduo do campo norteando o legislador e o intérprete da lei na construção de uma
dogmática do trabalho com maior eficácia e justiça.
De outro lado, deve-se conjugar a prevenção como espinha dorsal do direito
ambiental de modo a sustentar proteção ao meio ambiente do trabalho por medidas que
resguardem a saúde e a segurança do trabalhador.
O principio da prevenção constitui um dos mais importantes axiomas do direito
ambiental. 33 A sua importância está diretamente relacionada ao fato de que, se ocorrido o
dano ambiental, a sua reconstituição é praticamente impossível. A saúde do trabalhador,
31
LIMA, Rusinete Dantas de. O Trabalho Rural no Brasil. São Paulo: LTR, 1992, p. 47. 32 Apud FIGUEIREDO, Guilherme Purvin. Direito Ambiental e a saúde dos trabalhadores. São Paulo: LTR, 2000, p. 28. 33
NOGUEIRA, Sandro D’Amato. Meio ambiente do trabalho: O princípio da prevenção na vigilância e na saúde ambiental. São Paulo: LTR, 2008, p.17.
perdida ou seriamente abalada em virtude do trabalho, por vezes não propicia recuperação, ao
menos não no sentido da plenitude e integridade.
Daí que Raimundo Melo considera o princípio da prevenção como um
“megaprincípio ambiental”34, posto que é o princípio-mãe da ciência ambiental e tem
fundamento no Principio 15, da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, de 1992.
A Constituição Federal Brasileira tutela a saúde e a segurança do trabalhador. Em
última análise, a própria vida. O cidadão-trabalhador é integrante de uma sociedade, titular do
direito ao meio ambiente e, portanto, à sadia qualidade de vida em seu cotidiano laboral.
A salubridade do trabalho mantém tanto o equilíbrio do meio ambiente como a plena
saúde dos trabalhadores e dos habitantes do entorno da sede da prestação dos serviços,
constituindo tutela difusa da proteção à saúde, direito de todos, da massa de trabalhadores, e
da coletividade em geral.
O princípio da prevenção é muito próximo ao principio da precaução, embora não se
confunda com aquele. A prevenção trabalha com risco certo, ao passo que a precaução lida
com o risco hipotético, abstrato ou potencial; na prevenção existe a probabilidade de acidente,
traz ínsita a idéia de perigo; já na precaução ocorre a probabilidade do risco apenas, a idéia é
de risco, exigindo prudência35.
Estes dois princípios ambientais, aliados a uma ética de responsabilidade e
envolvimento dos agentes de produção, podem e devem ser aplicados às soluções jurídicas
ligadas ao meio ambiente do trabalho, em particular quanto ao trabalho rural por suas
características especiais.
A relevância do principio da prevenção é marcante, mesmo do ponto de vista
econômico, pois em vez de reparar eventuais prejuízos por danos causados ao meio ambiente,
o que demanda altos custos, é mais sensato tentar evitá-los, impondo-se a adoção de medidas
preventivas que antecipem os riscos. Afinal, “mais vale prevenir do que remediar”.
No meio ambiente do trabalho, se não adotadas medidas antecipatórias e preventivas,
teremos acidentes de trabalho e/ou lesões decorrentes da falta de proteção à saúde e a
segurança do trabalhador. Por isto, é imperioso o investimento em equipamentos de proteção
individual e coletiva, de maquinário e mobiliário adequados, bem como de um ambiente
34
MELLO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. 2.ed. São Paulo: LTR, 2006, p.41. 35
STEIGLEDER, Annelise Monteiro; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; CAPPELI, Silvia. Direito ambiental. 6.ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010, p.52.
hígido e salubre. Mas, entre a previsão normativa e a internalização de uma consciência
preventiva no cotidiano das pessoas, existe uma distância muito grande a ser percorrida.
Enfatiza Fabio Fernandes que a efetiva prevenção depende da formação e da
disseminação de uma consciência ecológica, cujo pressuposto reside na educação
ambiental.36
Quando falamos em prevenção no ambiente do trabalho rural, estamos a falar de
riscos ambientais que podem ser causados por agentes físicos, como ruídos, vibrações,
temperaturas extremas; por agentes químicos, tóxicos, poeira, gases e vapores, além dos
agentes biológicos, como bactérias, fungos, vírus, etc., presentes no ambiente laboral. Sob
este aspecto, talvez o mais difícil seja estabelecer até que ponto um risco pode ou não ser
suportado.
A interpretação conjunta da Constituição Federal, em art. 7º, mais a Lei 5.889/73,
que dispõe sobre o trabalho rural, bem como a CLT e as NRRs, não deixa dúvidas de que, em
todos os locais de trabalho rural, independentemente da natureza jurídica da relação de
trabalho rural existente, devem ser observadas as normas de medicina e segurança
estabelecidas em portarias do Ministério do Trabalho, as quais têm fundamento nos arts. 154 e
seguintes, da CLT. Portanto, esses dispositivos legais da CLT e as referidas portarias,
aplicam-se a todos os locais de trabalho rural.
A responsabilidade pelo cumprimento das normas regulamentares rurais (NRRs)
recai sobre o empreendedor rural, na medida em que, nos termos do art. 21 da Convenção
155, e art. 12 da Convenção 161, da OIT, as medidas de segurança e higiene e de
acompanhamento da saúde do trabalhador não devem implicar em nenhum ônus financeiro
para os trabalhadores.
No caso de não observância das normas contratuais e regulamentadoras de
segurança, higiene e medicina do trabalho, o empregado dispõe das seguintes alternativas: a)
reclamar perante a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) e/ou ao Serviço
Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT); b) denunciar a
irregularidade junto ao Ministério do Trabalho, ou Ministério Público do Trabalho; c)
requerer judicialmente a eliminação ou neutralização do agente agressivo; d) requerer
indenização por danos materiais e morais sofridos; d) interromper a prestação dos serviços
(jus resistentiae – art. 161, §6°, CLT); e) postular a rescisão indireta do contrato de trabalho
(art. 483, CLT). 36 FERNANDES, Fábio. Meio ambiente geral e meio ambiente do trabalho: uma visão sistêmica.São Paulo: LTR, 2009, p.106.
Em caso de acidente de trabalho, além da indenização previdenciária (responsabilidade
objetiva), pode o empregador postular o pagamento de indenização por danos materiais ou
morais, em havendo a concorrência de dolo ou culpa do empregador quando da ocorrência do
acidente de trabalho (responsabilidade subjetiva), conforme inciso XXVIII, do art. 7°, e do
inciso X, do art. 5°, da Magna Carta.
A responsabilidade alcança não só o real empregador, bem como todos aqueles que, de
alguma forma, possam ter contribuído para a ocorrência do acidente. Assim, no caso de
terceirização de serviços, podem responder civilmente pelos danos causados ao trabalhador o
empregador e o tomador dos serviços. Tal responsabilidade é subjetiva, mas também
solidária, nos termos do artigo 1.518, do Código Civil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história do trabalho humano mostra que o homem sempre buscou tirar proveito do
trabalho do seu semelhante, sendo que nos tempos primórdios as jornadas eram extenuantes,
não havia condições mínimas de saúde e segurança no ambiente laboral.
Vislumbra-se no meio rural, além de um espaço produtivo estratégico, também um
espaço de residência, de serviços, de lazer, além de constituir patrimônio ambiental e cultural.
As zonas rurais já não são meros espaços bucólicos, onde nada ocorre exceto um
lento declínio. O campo é guardião de uma dinamicidade própria a ser decifrada.
Tradicionalmente, a situação da produção agrícola brasileira, de pouca atenção
fiscalizatória quanto às condições satisfatórias de segurança na prestação do trabalho agrícola,
apenas gera mortes, mutilações e aleijões.
Percebe-se que não se efetuou, ainda, a perfeita sintonia entre os postulados de
proteção trabalhista e a realidade de contornos particulares vigentes no meio rural, havendo a
necessidade de reverter um quadro de evolução histórica francamente desfavorável, em
especial à nossa realidade de país com economia fortemente ancorada na produção agrícola.
As transformações de abordagem estrutural-trabalhista são necessárias, de modo que
a iniciativa dos empresários, a união dos trabalhadores e a ação estatal convirjam para a
diminuição do enorme passivo social que representam as vítimas desnecessárias de doenças,
acidentes e óbitos, resultantes do esforço de produção e subsistência, necessários às
sociedades capitalistas ocidentais.
O Direito tem por responsabilidade fornecer proposições normativas coerentes com
os problemas enfrentados pelo amplo espectro de uma sociedade determinada; bem como
coerentes com os valores eleitos por esta sociedade, por sua relevância, como dignos de serem
preservados.
A Constituição Federal já nos fornece base suficiente ao estabelecer preceitos, já
referidos, de preservação da integridade humana e da não degradação do meio ambiente com
um dever objetivo de preventividade como elemento axiológico inerente à convivência social
em um Estado capitalista que elege como princípios fundamentais, ao mesmo tempo, a livre
iniciativa, a dignidade humana e os valores sociais do trabalho.
Afinal, como lembra Canotilho, a adoção da prevenção como orientador de ações e
políticas públicas caracteriza a segunda dimensão do Direito Ambiental, a qual deve ser
embasada também numa especial sensitividade ecológica.37
Cumpre, portanto, pensar e criar um novo paradigma legislativo, cultural e
comportamental que privilegie a prevenção quanto a situações aptas causar doença, sinistro e
mal estar, considerando as características próprias do trabalho rural, sua dinâmica e
complexidade, envolvendo os agentes de produção (patrão, empregado e seus entes
associativos), bem como os agentes de poder (Ministério Público, estrutura de inspeção,
advogados e Poder Judiciário) na concretização coletiva de algumas poucas, mas essenciais
palavras-chave, quais sejam: comprometimento, participação e criatividade.
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