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84 ISSN 1984 - 3038 Artigo de Revisão Aspectos Ecodopplercardiográficos na Doença de Chagas Echodopplercardiographic Findings in Chagas’s Disease Roberto Pereira 1 RESUMO Como em outras doenças, o ecodopplercardiograma trouxe um grande número de informações na investigação da doença de Chagas, tornando-se um dos exames complementares mais importantes na investigação dos pacientes chagásicos. Dilatação de cavidades, alterações segmentares da contratilidade (encontradas em até 74% dos casos) e lesões apicais do ventrículo esquerdo podem ser facilmente identificadas. Trombos intracavitários são achados frequentes, podendo ser responsáveis por fenômenos tromboembólicos. Disfunções valvulares são detectadas, geralmente associadas às dilatações das cavidades ventriculares. A função sistólica e diastólica também pode ser avaliada, sendo utilizados diversos índices de desempenho ventricular. Aspecto inusitado tem sido observado por nós na forma dilatada, por imagens sugestivas de trabeculações endocárdicas. Em zonas endêmicas, podem ser detectadas associações com outras doenças cardíacas. Descritores: Ecocardiografia, Cardiomiopatia Chagásica, Doença de Chagas SUMMARY Similarly to what has happened, concerning other illnesses, Echodopplercardiography has become one of the most important tools for the evaluation of patients with Chagas’s Disease and it has contributed with a great deal of important information for the investigation of this disease. Dilatation of cardiac chambers, changes in segmentary contractility (a finding present in up to 74% of patients) and apical lesions of the Left Ventricle may be easily identified. Intracavitary thrombi are a frequent finding and these may be responsible for the thromboembolic phenomena. Valve malfunction are detected, usually associated to ventricular dilatation. e systolic function, as well as the diastolic function, may be evaluated, and several ventricular performance indexes may be used. An unusual finding has been observed by us in the dilated form of Chagas’s disease, consisting of endocardial trabeculations. In endemic regions, associations with other cardiac diseases may be detected. Descriptors: Echocardiography; Chagas Cardiomyopathy; Chagas Disease Instituição Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco (PROCAPE) da Universidade de Pernambuco. Hospital Universitário Oswaldo Cruz – Universidade de Pernambuco. Recife-PE Correspondencia Roberto Pereira Rua Setúbal nº 1548 – Ap. 701 – Boa Viagem 51130-010- Recife-PE Telefone: 55-81-2121-5252 [email protected] Recebido em: 26/11/2010 - Aceito em: 15/03/2011 1- Médico Cardiologista e Ecocardiografista. Chefe da Divisão de Métodos Diagnósticos do Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco da Universidade de Pernambuco. Médico Cardiologista e Ecocardiografista. Chefe do Setor de Ecocardiografia do Unicordis - Urgências Cardiológicas. Recife-PE Como em outras doenças, o ecodopplercardio- grama trouxe um grande número de informações na investigação da doença de Chagas, tanto anatômi- cas como funcionais. Em decorrência dessa quan- tidade e qualidade de informações, tornou-se um dos exames complementares mais importantes na investigação dos pacientes chagásicos. Por conta de achados, até então insuspeitados por exames não in- vasivos, como alterações da contratilidade segmen- tar do ventrículo esquerdo 1,2 , chegou-se inclusive a questionar conceitos preestabelecidos como, por exemplo, o de forma indeterminada, já que pacien- tes assim classificados têm, às vezes, demonstrado alterações funcionais. A dilatação de cavidades é uma das manifesta- ções mais frequentes. Acometendo, principalmente, o ventrículo esquerdo, é geralmente difusa, embora ocasionalmente mais acentuada em uma das pare- des ventriculares. Pode ou não vir acompanhada de alterações funcionais nos casos leves, sendo sempre Rev bras ecocardiogr imagem cardiovasc. 2011;24(3):84-88

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ISSN

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4 -

3038Artigo de Revisão

Aspectos Ecodopplercardiográfi cos na Doença de Chagas

Echodopplercardiographic Findings in Chagas’s Disease

Roberto Pereira1

RESUMO

Como em outras doenças, o ecodopplercardiograma trouxe um grande número de informações na investigação da doença de Chagas, tornando-se um dos exames complementares mais importantes na investigação dos pacientes chagásicos. Dilatação de cavidades, alterações segmentares da contratilidade (encontradas em até 74% dos casos) e lesões apicais do ventrículo esquerdo podem ser facilmente identifi cadas. Trombos intracavitários são achados frequentes, podendo ser responsáveis por fenômenos tromboembólicos. Disfunções valvulares são detectadas, geralmente associadas às dilatações das cavidades ventriculares. A função sistólica e diastólica também pode ser avaliada, sendo utilizados diversos índices de desempenho ventricular. Aspecto inusitado tem sido observado por nós na forma dilatada, por imagens sugestivas de trabeculações endocárdicas. Em zonas endêmicas, podem ser detectadas associações com outras doenças cardíacas.

Descritores: Ecocardiografi a, Cardiomiopatia Chagásica, Doença de Chagas

SUMMARY

Similarly to what has happened, concerning other illnesses, Echodopplercardiography has become one of the most important tools for the evaluation of patients with Chagas’s Disease and it has contributed with a great deal of important information for the investigation of this disease. Dilatation of cardiac chambers, changes in segmentary contractility (a fi nding present in up to 74% of patients) and apical lesions of the Left Ventricle may be easily identifi ed. Intracavitary thrombi are a frequent fi nding and these may be responsible for the thromboembolic phenomena. Valve malfunction are detected, usually associated to ventricular dilatation. Th e systolic function, as well as the diastolic function, may be evaluated, and several ventricular performance indexes may be used. An unusual fi nding has been observed by us in the dilated form of Chagas’s disease, consisting of endocardial trabeculations. In endemic regions, associations with other cardiac diseases may be detected.

Descriptors: Echocardiography; Chagas Cardiomyopathy; Chagas Disease

InstituiçãoPronto Socorro Cardiológico de Pernambuco (PROCAPE) da Universidade de Pernambuco. Hospital Universitário Oswaldo Cruz – Universidade de Pernambuco. Recife-PE

CorrespondenciaRoberto PereiraRua Setúbal nº 1548 – Ap. 701 – Boa Viagem51130-010- Recife-PETelefone: [email protected]

Recebido em: 26/11/2010 - Aceito em: 15/03/2011

1- Médico Cardiologista e Ecocardiografi sta. Chefe da Divisão de Métodos Diagnósticos do Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco da Universidade de Pernambuco. Médico Cardiologista e Ecocardiografi sta. Chefe do Setor de Ecocardiografi a do Unicordis - Urgências Cardiológicas. Recife-PE

Como em outras doenças, o ecodopplercardio-grama trouxe um grande número de informações na investigação da doença de Chagas, tanto anatômi-cas como funcionais. Em decorrência dessa quan-tidade e qualidade de informações, tornou-se um dos exames complementares mais importantes na investigação dos pacientes chagásicos. Por conta de achados, até então insuspeitados por exames não in-vasivos, como alterações da contratilidade segmen-tar do ventrículo esquerdo1,2, chegou-se inclusive

a questionar conceitos preestabelecidos como, por exemplo, o de forma indeterminada, já que pacien-tes assim classifi cados têm, às vezes, demonstrado alterações funcionais.

A dilatação de cavidades é uma das manifesta-ções mais frequentes. Acometendo, principalmente, o ventrículo esquerdo, é geralmente difusa, embora ocasionalmente mais acentuada em uma das pare-des ventriculares. Pode ou não vir acompanhada de alterações funcionais nos casos leves, sendo sempre

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acompanhada dessas alterações nas grandes dilata-ções. Pode ainda comprometer o átrio esquerdo e as cavidades direitas (Figuras 1, 2 e 3).

As alterações segmentares, mais bem identifi-cadas ao exame ecocardiográfico do que pela cine-angioventrículografia3,4, são encontradas com uma incidência de até 74% dos casos. Acometem, prin-cipalmente, a parede posterior do ventrículo esquer-do, sendo o septo interventricular e as paredes ante-rior e lateral, deste ventrículo, comprometidos com menos frequência5-8. Essas modificações contráteis podem ser indistinguíveis das encontradas na car-diopatia isquêmica (Figuras 4 e 5).

Figura 1: Imagem paraesternal eixo longo. Ventrículo esquerdo dilatado e esférico

Figura 2: Imagem apical 4 câmaras, apresentando ecogenicidade espontânea em ventrículo esquerdo dilatado

Figura 3: Ventrículo esquerdo em modo M, dilatado e com hipo-contratilidade difusa

Figura 4: Ventrículo esquerdo em modo M, com hipocontratili-dade mais acentuada na parede posterior

Figura 5: Ventrículo esquerdo em modo M, com hipocontratili-dade difusa e acinesia anteroseptal

A região apical do ventrículo esquerdo pode ser atingida, apresentando hipocinesia ou, caracteristi-camente, dilatação aneurismática, muitas vezes em dedo de luva ou mamilares.

Trombos intracavitários são achados frequen-tes, quase sempre associados a áreas hipocinéticas

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de formas dilatadas, podendo ser responsáveis por fenômenos tromboembólicos (Figura 6).

relaxamento ventricular, mas, com a evolução da disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, podem advir formas restritivas, associadas então a disfun-ções sistólicas severas deste ventrículo10,11. Os índi-ces da função do ventrículo esquerdo aferidos pela ecocardiografia têm boa correlação com o prognós-tico da doença chagásica12.

Temos observado em pacientes chagásicos, com forma dilatada, a presença de imagens ecocardiográ-ficas sugestivas de acentuadas trabeculações endocár-dicas no ventrículo esquerdo, dificilmente vistas em pacientes não chagásicos. Essas imagens são muito características, às vezes, simulando miocárdio não compactado, mas apresentando relação de até 6:1 entre as trabeculações e a espessura do miocárdio normal13 (Figuras 9 a 15).

Figura 6: Presença de grande trombo apical no ventrículo esquerdo

Disfunções valvulares são facilmente detectadas pelo ecodopplercardiograma e são associadas às di-latações das cavidades ventriculares. O tamanho das cavidades atriais guarda maior relação com a disfun-ção ventricular respectiva do que com a regurgitação valvular, sendo esta geralmente leve ou moderada.

A disfunção sistólica é avaliada pelo modo M ou bidimensional, sendo este último de melhor acurá-cia quando existem alterações regionais da contrati-lidade. Utiliza-se, geralmente a fração de ejeção e a fração de encurtamento sistólico para avaliar, quan-titativamente, a função sistólica do ventrículo es-querdo, mas outros índices são também utilizados, como a dp/dt, velocidade de encurtamento circun-ferencial8,9 etc. A avaliação da função do ventrículo direito é menos acurada.

A disfunção diastólica do ventrículo esquerdo é avaliada pelo padrão de fluxo transmitral (Figura 7) e também por técnicas de Doppler tissular (Figura 8), incluindo strain e strain rate, e ainda por justaposição dos modos M e Color no fluxo de via de entrada do ventrículo esquerdo. O índice de performance mio-cárdica (Índice de Tei) tem sido utilizado para avaliar a função ventricular global, esquerda ou direita.

A análise funcional, principalmente da função diastólica, tem mostrado alterações em formas an-teriormente consideradas indeterminadas, havendo mudança no conceito atual dessa forma da doença chagásica. Inicialmente, as alterações ocorrem no

Figura 7: Fluxo transmitral em via de entrada do ventrículo esquerdo, demonstrando padrão restritivo de disfunção diastólica desta câmara

Figura 8: Doppler tissular do anel mitral, revelando disfunção dias-tólica do ventrículo esquerdo

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Figura 9: Imagem paraesternal eixo longo, mostrando trabeculações no septo interventricular, passíveis de ser confundidas com abscessos

Figura 10: Corte transverso apresentando imagens de trabeculações endocárdicas no ventrículo esquerdo

Figura 11: Corte apical apresentando imagens de trabeculações endocárdicas do ventrículo esquerdo

AD: átrio direito; AE: átrio esquerdo; VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo

Figura 12: Corte transverso, algo tangencial, evidenciando melhor as trabeculações endocárdicas no ventrículo esquerdo

Figura 13: Corte transverso tangencial, revelando trabeculações en-docárdicas no ventrículo esquerdo

Figura 14: Corte apical tangencial, revelando trabeculações endo-cárdicas no ventrículo esquerdo

Pereira R. Aspectos ecodopplercardiográficos na doença de chagas

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Em zonas endêmicas podem ser detectadas as-sociações de outras doenças cardíacas, como lesões valvulares reumáticas, por exemplo, com a cardio-patia chagásica.

Figura 15: Imagem 5 câmaras, evidenciando trabeculações endocár-dicas mais acentuadas na região apical do ventrículo

Referências

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11. Caeiro T, Amuschastegui LM, Moreyra E , Gibson DG. Abnormal left ventricular diastolic function in chronic Chagas’ disease: an echocardiography study. Int J Cardiol. 9(4):417-24.

12. Ortiz J, Matsumoto AY, Silva CES – O ecocardiograma na avaliação prognóstica da insuficiência cardíaca. Arq Bras Cardiol. 1988;51(1) 1:89-91.

13. Pereira R. – Recursos diagnósticos na cardiopatia chagá-sica. Ecocardiografia. In: Malta J. Doença de Chagas. São Paulo: Sarvier; 1996.

Rev bras ecocardiogr imagem cardiovasc. 2011;24(3):84-88