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IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem 07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR
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ASPECTOS SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO DE PAISAGEM NA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA
Michele Petruccelli Pucarelli1
Resumo: As cidades e suas transformações socioculturais sempre serviram de fontes de inspiração para o processo criativo de renomados artistas visuais na história da humanidade. Mas, diante do crescimento desordenado das metrópoles como realizar fotografias expressivas deste tipo de paisagem, se os espaços foram engolidos, ficando cada vez mais bloqueados nas grandes cidades? Uma das apostas de solução se encontra nas imagens do fotógrafo alemão Andréas Gursky que reverberam influências ao provocarem rupturas, deslocarem sentidos e forçarem os limites rumo às novas fronteiras visuais ao reunirem tradição e vanguarda. Suas fotografias misturam procedimentos analógicos com tecnologia digital, formatos gigantescos com ampla nitidez e são vendidas por milhões de dólares, reforçando a ideia de que algo significativo mudou na fotografia. E para uma análise sobre alguns destes aspectos de transformação do conceito de paisagem utilizaremos como objeto de estudo uma das monumentais fotografias de Gursky: Copan, de 2002 – uma paisagem urbana de um símbolo mítico da arquitetura da cidade de São Paulo, projetado por Oscar Niemeyer, com suas elegantes curvas a flutuar entre seus mais de cem andares no centro da cidade. Palavras-chaves: Fotografia, Paisagem, Gursky. Abstract: The cities and their social and cultural transformations always served as sources of inspiration for the creative process of renowned visual artists in the history of mankind. But, in front of the sprawl of metropolises how it`s possible to make expressive photographs about this type of landscape, if the spaces were swallowed, getting increasingly locked in big cities? One of the bets solution lies in the images of German photographer Andreas Gursky influences that reverberate to cause disruptions, forcing senses and move towards the boundaries to new frontiers to gather visual tradition and vanguard. His photographs combine digital technology with analog procedures, formats giant with sharpness wide and are sold for millions of dollars, reinforcing the idea that something significant has changed in photography. And for a discussion of some aspects of transformation of the concept of landscape as an object of study will use one of the monumental photographs Gursky: Copan, 2002 - an urban landscape of a mythical symbol of the architecture of the city of São Paulo, designed by Oscar Niemeyer, with its elegant curves floating among its more than one hundred floors in the city center. Keywords: Photography, Landscape, Gursky.
1 Doutorando em Artes Visuais do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV – UFRJ. Professor Palestrante do Curso de Pós-Graduação em Fotografia e Imagem do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro na Universidade Cândido Mendes – IUPERJ – UCAM. Professor da Escola Ateliê da Imagem – Rio de Janeiro. Email: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Em novembro de 2011 uma fotografia de paisagem, intitulada Rhine II, de 1999,
realizada pelo fotógrafo alemão Andreas Gursky foi leiloada por mais de quatro milhões
de dólares na Christie`s, em Nova Iorque. Tal fato evidenciou uma transformação que já
estava em curso de modo gradativo nos últimos anos. A fotografia mudou de status no
mundo da arte, atraindo olhares e reflexões múltiplas sobre este fato. Todavia, esta
mudança não pode ser vista de modo isolado, mas sim, inserida como mais um dos
aspectos das muitas transformações que presenciamos nas últimas décadas, quando, em
meio a um intenso crescimento urbano, em paralelo a uma aceleração de imagens e
informações, testemunhamos significativas modificações nos meios e modos de
produção de vários setores.
Essas modificações, contudo não são resultantes apenas destes anos, mas sim do
acúmulo de transformações que datam desde a segunda metade do séc. XX. Afinal, a
partir desta época, as grandes cidades ocidentais entraram em um ciclo de
transformações que estabeleceram um novo modo de se entender o território. Em suas
condições essencialmente urbanas, com relações socioeconômicas dispersas e
fragmentadas, estas cidades experimentaram um desenvolvimento desordenado
espacialmente que resultou em uma ruptura de percepção em relação às condições de
unicidade de sentidos e contiguidade do espaço que havia na estrutura do universo rural.
Como reflexo destas mudanças e das acelerações já citadas, os lapsos entre
processos de memória e esquecimento, sentidos de continuidade e descontinuidade,
além da frequente sensação da falta de tempo, se tornaram mais frequentes e passaram a
fazer parte da experiência cotidiana contemporânea. E todas estas alterações continuam
a ocorrer em sentido crescente, na medida em que a velocidade da cidade amplia suas
transformações, aumentando a sensação de um caos urbano sobrecarregado de poluições
visuais e sonoras, que, por sua vez, deixam as grandes cidades opacas e bloqueadas aos
olhares desse todo que as envolve. Entretanto, se esta opacidade bloqueia e nubla nossa
visão, cabe ao artista recuperar o olhar desta paisagem, urbana, que nos envolve e
reinventar narrativas visuais que ultrapassem a mera descrição, para então, nos revelar
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as imagens que não conseguimos mais avistar a nossa frente e nos permita ver o que
ainda está invisível.
Mas, que tipo de imagem ultrapassaria essa síndrome da aceleração progressiva
das mídias dominantes, que fez as imagens ficarem sem espessura e nos apresentaria
uma nova imagem? Segundo Jean Baudrillard um dos caminhos possíveis desta
procura reside na substituição da epifania triunfal do sentido pela epifania silenciosa do
objeto e suas aparências. Para o autor, o milagre dessa imagem reveladora, ou ainda
segundo as palavras do autor, desta “imagem pura”, se encontra mais próximo da
fotografia do que de qualquer outra expressão, visto que é a “objetiva fotográfica que,
paradoxalmente, revela a inobjetividade do mundo” (BAUDDRILLARD, 1999, 143). E
também, ao gatilho de deslocamento temporal que a fotografia incita em seu jogo duplo
entre a pureza e artificialidade de toda imagem e ainda, porque, “... foi ela que teve a
capacidade de transformar à ‘incultura’ de uma arte outrora mecânica [agora digital], na
mais social das instituições.” (BARTHES, 2009, 26).
E é dentro deste contexto geral de alterações temporais e transformações
espaciais, que destacamos como um dos caminhos para uma nova imagem algumas
obras do fotógrafo alemão Andreas Gursky, que reverberam influências na cena
contemporânea, estabelecendo rupturas, deslocando sentidos e apresentando caminhos
que forçam os limites rumo às novas fronteiras visuais. Seu trabalho atesta a
confluência de dois olhares num único. Ao mesmo tempo o perto e o longe,
promovendo a interação dos duplos que se multiplicam em várias direções. E para servir
de objeto de referência e análise desse trabalho elegemos uma de suas imagens de
paisagens urbanas mais simbólicas, Copan, uma referência arquitetônica da cidade de
São Paulo, projetado em 1951 por outro artista relevante de nossa história, o arquiteto
Oscar Niemeyer.
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1. O OLHAR DIFERENCIADO DE GURSKY
O fotógrafo Andreas Gursky explora as paisagens urbanas sob um olhar
renovado. Suas gigantescas imagens coloridas são marcadas por composições limpas e
com claras estruturas de repetição. Costuma destacar a presença das cores saturando-as,
para facilitar a compreensão geral das muitas formas e elementos justapostos presentes
em suas imagens. Fotografa prédios monumentais e toda uma miríade de pessoas que ali
habitam de forma a se perceber que a multidão dos humanos está presente, mas não se
vê. Seus personagens ali estão como indícios ou vestígios, talvez porque suas imagens
não procurem sujeitos, mas sim à espécie humana e seu ambiente, em uma presença
feita muitas vezes de ausência.
Suas imagens funcionam também como críticas conceituais ao comportamento
consumista da sociedade contemporânea, mas também estimulam reflexões sobre a
composição das grandes cidades desta era. Seu olhar apreende um real para libertá-lo de
qualquer princípio de realidade, propiciando assim o encontro com uma nova potência,
ou ainda, de outra verdade, indo de encontro ao que Baudrillard entende como o desafio
da imagem: “... a imagem tem como desafio anular o princípio de objetividade e
transformá-lo em outra coisa que também não seja o sujeito, pois no ato fotográfico, há
um modo de desaparecimento respectivo do objeto e do sujeito.” (BAUDRILLARD,
2003, 119). E esta concepção refirma à ideia de que Gursky não pensa a fotografia
como uma mídia de representação, mas sim como mídia de construção de realidades
renovadas (BURGI, 2007, 45).
Para tanto se percebe que a construção de suas imagens parte da ideia do quadro
em branco da pintura, a partir do qual organiza sua composição baseado não no que vê a
sua frente, mas no que vê em sua mente. Esta visão estética apurada é fruto de reunião
de prática e teoria no decorrer de sua vida pessoal, estudantil e profissional. Gursky
estudou na Kunstakademie Düsseldorf – Academia de Artes de Düsseldorf, Alemanha,
onde esteve em contato com artistas como Joseph Beyus e teve como mestres Hilla e
Bernd Becher, que revolucionaram a fotografia alemã nos anos 70-80 com seu léxico
industrial. Fez parte então, de uma pequena turma de MasterClass Photography com o
casal Becher, que ainda contava com Thomas Struth, Axel Hutte, Candida Hofer e o
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também renomado Thomas Ruff. Turma esta que é, na atualidade, reconhecida como a
Escola de Düsseldorf.
Desta vivência acadêmica em conjunto com a prática fotográfica que começou
ainda na infância, pelo fato de Gursky ser filho de um fotógrafo publicitário, sua obra
cresceu adquiriu personalidade, apresentando enfim o rigor de um artífice que renova a
longa tradição do mestre artesão. (SENNETT, 2009, 30-31) Suas imagens misturam
processos analógicos com uso de filmes positivos coloridos e tecnologia digital de
imagem na captura e no pós-tratamento. Realiza com maestria o equilíbrio entre luzes
naturais e artificiais com uso de flashes, através de compensações fotométricas
delicadas. Suas imagens possuem composições limpas e são realizadas com câmaras de
grande formato, que além de permitirem grandes ampliações, possibilitam o uso de
longas profundidades de campo – o que assegura mais nitidez para suas imagens.
Esta opção da grande profundidade casada com os tamanhos acima de três
metros para cada fotografia permite uma visada dupla, o longe e o perto, com uma
aproximação de detalhes que normalmente só detectaríamos ao observar de muito perto
este tipo de cena – e que nos faz lembrar as grandes pinturas históricas do séc. XIX. E
para um melhor entendimento destas informações analisaremos em seguida uma de suas
fotografias mais emblemáticas de paisagem urbana, realizada no Brasil, na cidade de
São Paulo em 2002, intitulada Copan.
2. O COPAN ENTRE A ARQUITETURA E A FOTOGRAFIA
A fotografia Copan, de Gursky, é considerada uma das mais expressivas imagens
arquitetônicas da história da fotografia. Esta informação talvez nos ajude a entender o
porquê dela ter sido cotada, em 2007, no mercado internacional de arte, pelo valor
aproximado de 500 mil dólares (THORTON, 2010, 45). Porém, antes da questão do seu
valor econômico ela também reflete a admiração para com um gênio da arquitetura,
além de ser um desafio criativo entre duas representações artísticas. Em termos
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tecnológicos temos um encontro atemporal entre a revolução curvilínea do bruto
concreto armado de uma arquitetura revolucionária e a multiplicidade combinatória dos
pixels existente na alma de toda imagem que utilize a tecnologia digital. Em termos
históricos temos, ao mesmo tempo, uma passagem e um encontro entre o auge de uma
era moderna e as indefinições de uma era pós-moderna; e por fim, temos também um
embate entre saberes múltiplos, como desenhos, pinturas, matemáticas, geometrias,
químicas, físicas, óticas, computação e a questão da perspectiva exata renascentista, que
atravessam fronteiras e séculos.
Porém, independente de qual destes saberes tenha sido preponderante, se é que
se possa dizer que um prevaleça, tratava-se de um processo que necessitava resolver,
sobretudo, a questão do como dar conta de se traduzir escalas e profundidades
tridimensionais de uma estrutura gigantesca em um só plano bidimensional – em uma
equação visual até então não resolvida no universo da fotografia. Mas, em síntese, esta
busca acabou por apresentar mais um caminho, ou se quisermos um novo paradigma,
para as fotografias contemporâneas de paisagem urbana.
As construções visuais deste fotógrafo fogem do padrão tanto pela
multiplicidade dos olhares que se alternam em duplicidade entre o longe e o perto assim
como pela liberdade que imprime no uso da cor e luz. No caso especifico da fotografia
do edifício Copan - ver Anexo 01, figura 1, é relevante lembrar que esta é uma imagem
impressa em formato gigante e que a mesma acolhe e mistura a imponência de uma
referência simbólica da arquitetura da cidade de São Paulo e os detalhes ocultos do
cotidiano de milhares de moradores. Mas, para reunir o macro e o micro desta imagem
é preciso entender dos detalhes de sua construção. Precisamos então, atentar para o fato
de que no momento de realização desta obra o fotógrafo estava consideravelmente
afastado do objeto a ser retratado e, sem chão debaixo de seus pés, parecia flutuar em
algum lugar na frente das fachadas gigantescas. Inicialmente, até por uma questão de
método, estudou as muitas fotografias já produzidas e observou com atenção ao redor da
edificação. Procurou organizar visualmente o excesso de informações que havia no
entorno com intuito de elaborar uma composição de síntese. Como meta alcançar uma
interpretação visual que traduzisse a expressividade contida na obra de Niemeyer. Para
tanto, procurou um ângulo que, além de envolver o prédio, propiciasse certo
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achatamento de profundidade, e desta forma, uma diminuição da perspectiva clássica.
Contudo, esta não era uma tarefa simples de se realizar, porque o que estava diante dele
é uma obra monumental e revolucionária para sua época.
Então, entre o prédio em si e a imagem de Gursky, todo um sistema sutil de
possibilidades interpretativas os envolvem. Afinal, estamos diante de duas mentes
brilhantes. De um lado um artista genial, o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. De
outro, um fotógrafo inquieto, o alemão Andreas Gursky – cujo nome já é considerado,
há alguns anos, como uma importante referência artística contemporânea. E sobre os
objetos em questão, duas representações das mais expressivas. Um prédio com 115
metros de altura em formato de onda, construído no meio da selva de pedra da maior
cidade urbana do Brasil e uma também monumental imagem fotográfica de
aproximadamente três metros de comprimento por dois e trinta de altura que, apesar da
grandiosidade, não se revela ao primeiro olhar.
Estamos, enfim, entre criadores e criaturas diante de um jogo de duplos de
muitas faces; duplos estes que se multiplicam em muitos sentidos. Duplos entre a
expressividade artística de uma representação e da posterior representação desta
representação. Duplos entre mensagens icônicas codificadas e não codificadas entre
signos denotativos e conotativos. E duplos, sobretudo, devido à criativa construção
conceitual desta imagem. Não que esta se entregue a primeira vista como já
mencionado, na verdade muito pelo contrário, ela silenciosamente tenta camuflar sua
composição. Mas não se pode afirmar que tente esconder ou negar sua estratégia,
porque elas ali estão expostas, à espera da percepção da solução encontrada como
síntese visual de uma era arquitetônica específica. Contudo, para fugir dessa primeira e
rápida percepção superficial do todo e mergulhar nos detalhes que a revelam por inteiro,
é preciso que se dedique uma apurada atenção, para que uma percepção mais ativa nos
permita a compreensão de sua solução.
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3. A SOLUÇÃO CRIATIVA
Como se pode verificar na figura 1 – ver anexo 01, esta imagem retrata à
esquerda a famosa curva em S da fachada de cor ocre do edifício Copan. Este fachada
expõe por inteiro a homogênea estrutura de concreto com suas linhas elegantes e
sinuosas, perfurada apenas por um contínuo de duas tiras de aberturas horizontais, que
revelam os detalhes de um todo, tais quais as fendas de um longo, belo e misterioso
vestido esvoaçante. Completando a imagem, logo ao lado, apenas separada por uma
pequena relação de escalas entre o primeiro e segundo plano, ergue-se outra grande
fachada bem diferente do minimalismo pictórico da primeira. Esta vem carregada de
informações com três eixos verticais que vão do chão ao teto em destaque. Duas são
escadas de incêndio, a terceira um elevador de carga e bem próximo do centro, em seu
campo frontal de visão, inumeráveis janelas de vidro das mais variadas cores, que
criam um contraponto visual entre as duas fachadas. Cores estas que vão de um
vermelho brilhante colorido ao azul cobalto, do branco ao rosa pálido, passando ainda
pelo laranja e verde claro em uma paleta multicolorida que nos remete as cores do
pintor Mondrian.
Frente a esta sucinta descrição, absorvemos as informações sobre o contraste
entre uma fachada minimalista e outra, sobrecarregada de elementos pictóricos que se
juntam visualmente em um grande bloco que vemos de imediato através de uma
primeira percepção. Mas nela não há nada de muito diferente a se perceber do que nos
habituamos a ver dos muitos prédios que se erguem colados uns aos outros nas grandes
cidades urbanas apinhadas de prédios e arranha-céus construídos uns colados aos
outros. Contudo, esta é uma imagem particular em relação às muitas outras já
realizadas, pois ela escorrega de si mesma em sua suposta naturalidade. Apenas os que
conhecem pessoalmente a edificação ou os mais observadores irão reconhecer que o
que se mostra nesta imagem é na verdade uma montagem. O que temos nesta imagem é
uma soma de duas fotografias: de um lado a fotografia da vista frontal do prédio Copan
e colada ao lado, a fotografia da vista de trás do mesmo edifício – reparem nas curvas
em oposição simétrica e invertida de cada fachada.
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Portanto, foi através da criação de uma imagem dupla por meio de um
minucioso trabalho de pós-tratamento digital que Gursky encontrou a solução para dar
conta de toda a expressividade desta clássica obra da arquitetura modernista. Então,
considerando-se que este projeto é de 1951, que centenas de reportagens e fotografias já
foram realizadas e que esta imagem é de 2002, como explicar que ninguém tenha
pensado antes que a tradução de toda imponência de uma histórica e aclamada obra
arquitetônica poderia ser resolvida pela apresentação da frente e do verso de sua
estrutura em uma montagem conjunta? Questão difícil de elucidar, e que tentaremos
responder a partir de uma breve análise histórica e semiológica, baseada nos conceitos
de Barthes e ainda se apropriando do modo como Martine Joly os decodificou “... além
da mensagem literal ou denotada, evidenciada pela descrição, existe uma mensagem
‘simbólica’ ou conotada, vinculada ao saber preexistente e compartilhado do leitor.”
(JOLY, 2001, 75).
4. ANÁLISE HISTÓRICA E SEMIOLÓGICA
O edifício Copan já nasceu envolto de números superlativos que fizeram dele
uma referência arquitetônica. O projeto deste prédio foi encomendado ao arquiteto
Oscar Niemeyer para o IV Centenário da cidade de São Paulo. Com 115 metros de
altura, 35 andares – incluindo três comerciais, além de dois subsolos, e cerca de dois mil
residentes, é considerada a maior estrutura de concreto armado do Brasil. Possui 1.160
apartamentos distribuídos em seis blocos, sendo considerado o maior edifício
residencial da América Latina. Localizado num dos pontos mais movimentados do
centro da capital paulista, o edifício Copan foi, desde antes de sua inauguração uma
obra marcada por simbologias de futuro e durante os anos 1950, 1960 e 1970 era
reconhecido como a imagem de uma São Paulo moderna. (RHEDA, 2010, 27)
Entretanto, por mais que suas belas e arrebatadoras curvas representassem uma
revolução frente a um período tomado por ângulos retos, também podemos dizer que o
Copan simboliza os enormes e monolíticos exemplares de uma estrutura arquitetônica
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rígida em busca de um funcionalismo pragmático. Essas megaconstruções utilitaristas
foram sendo construídas de forma arbitraria e desordenada em vários países na Ásia,
América Latina e Central e se multiplicaram como metástases pelo corpo das cidades
urbanas desde os anos 80. Contudo, não podemos deixar de frisar que o movimento e
a dinâmica do desenho de Niemeyer no projeto deste prédio desorganizam o esquema
rígido de cubos fechados que eram empregados nessas gigantescas construções. De
qualquer modo as belas e sinuosas curvas não anulam a natureza pesada e opressiva que
caracterizam estas megaconstruções urbanas com suas massas de concreto pesadas onde
o sujeito está sempre perdido em seu interior - a despeito de toda uma ênfase pós-
contemporânea de valor ao indivíduo.
Esta situação é silenciosamente denunciada na imagem de Gursky. Percebem-se
nesta imagem que muitas pessoas ali estão, mas não a vemos. Elas estão ausentes,
presentes se muito como vultos e sombras fantasmagóricas passíveis de serem sentidas
por trás das vidraças. Mesmo ao observador é dada pouca permissão para estar presente,
porque a imagem flutua soberana por sobre tudo e todos, ganhando uma temporalidade
própria em seu lento, silencioso e distante movimento. E não poderia ser diferente,
porque de dificuldades e distâncias é feita sua natureza primordial. Afinal, esta
fotografia exigiu esforços de realização nada comuns para o universo fotográfico
mundial e brasileiro, em especial. Como se pode imaginar numa localização onde todo
espaço urbano é ocupado por prédios e arranha-céus, encontrar a distância adequada
para enquadrar todo um edifício gigantesco é tarefa árdua e às vezes impossível. Exige
pesquisa arquitetônica e urbanística da área, logística de tráfego, assim como de
transporte e equipamentos específicos. Além de recursos financeiros para aluguéis de
helicópteros especiais que flutuem no ar com estabilização, gruas especializadas e
aluguéis de apartamentos estratégicos. Porém, todo este esforço continua apenas a
traduzir outra descrição, sistemática e operacional, deixando de lado todo um sistema de
signos e sentidos latentes, o que no caso do edifício Copan, o fez ser considerado como
um símbolo maior da cidade. E por sobre todas estas considerações o fato desta imagem
apresentar uma quebra de paradigma para se pensar que a fotografia não termina mais
no disparo do obturador do equipamento fotográfico, e sim diante da tela do
computador junto aos programas de edição de imagens digitais.
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Mas, tanto como imagem escultural ou como imagem fotográfica, ambas nos
remetem a um dos principais problemas da semiologia das imagens: “... ora a imagem é
tida como um sistema pobre em relação à língua, ora como se lhe fosse impossível
alcançar a riqueza inesgotável dela por si própria.” (BARTHES, 2003, 126). E, por se
saber que a imagem se encontra num limiar de sentidos é que se torna necessário que se
percorra outro procedimento de análises em busca das possíveis significações e
mensagens.
Inicialmente no que tange a mensagem não codificada deve-se esclarecer que
esta se compõe de três elementos: as formas, as cores e a composição. Percorrendo com
os olhos a imagem de Gursky percebem-se expressivos conjuntos de formas, com
predominâncias geométricas que procuram por um equilíbrio a partir da busca de
simetria entre as duas imagens que foram compostas em uma única. E a intenção do
olhar sobre as formas é reforçada nos pequenos detalhes através das inúmeras janelas
coloridas, cujas formas ganham mais destaque pela distribuição das cores no seu todo.
Percebemos ainda que essas cores aparecem em um delicado equilíbrio de distribuição
por não serem repetidas umas próximas às outras, e pelo fato de várias estarem
levemente saturadas em relação às demais. Quanto aos elementos de composição a
imagem é praticamente toda fechada pelas massas constitutivas das duas fachadas, em
frente e verso. A escolha por um ângulo zero em relação ao ponto central da estrutura
provoca a sensação de achatamento da perspectiva clássica, que só não é total devido às
sinuosas curvas da construção do edifício. Mas a opção de uma construção de
montagem digital feita de modo naturalista, sem chamar a atenção para o efeito técnico
da fusão – como já revelado, dão a composição final um valor original no contexto
contemporâneo, demonstrando ser a fotografia uma arte liberta para muitas
potencialidades expressivas.
Contudo, para além da análise de sua estrutura – que fazem parte de uma
percepção quase imediata de primeiro nível temos toda uma sequência de percepções
que nos conduzem para uma análise que está diretamente ligada a sua construção
histórica e cultural, que neste caso evolui de uma era moderna para uma era pós-
moderna. No contexto do Copan, em especial, é possível refletir que apesar de toda
relevância, valores e símbolos de modernidade que esta obra representou, o tempo
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passado confirmou o postulado de Barthes de que é a história que transforma o real em
discurso e somente ela tem o poder sobre a vida e morte de todo mito. Porque,
atualmente o Copan, enquanto mito arquitetônico vive seu ocaso, pois como obra
escultural não consegue mais ocultar sua decadência em função dos problemas
estruturais internos como, por exemplo, não haver contato ente os apartamentos e as
portarias e das brigas entre as varias classes sociais que ali habitam – o prédio possui
três blocos de apartamento variados, tendo desde habitações amplas e espaçosas de
quatro quartos até outras mínimas, gerando choques de convivência. Entretanto, como
obra imagética, o Copan de Gursky ganha novos horizontes e se multiplica em
possibilidades de renovação da imagem contemporânea, reacendendo deste modo o
valor mitológico do Copan.
CONCLUSÃO
Nessa imagem Gursky revela um olhar que vem confirmar a posição de que a
fotografia não mais se prende ao estatuto de ser um documento comprobatório de nada,
posto que ela, como expressão artística sempre apresentará a interpretação de uma
situação ou cena. Mas essa imagem vai além, apresentando para a área da imagem
documental arquitetônica um horizonte inovador, do retrato inventado a partir de
objetos existentes. Ou ainda, uma narrativa ficcional a partir de elementos documentais.
E na reunião de todos estes elementos talvez residam algumas das razões que
fazem com que não somente esta imagem, como algumas outras de Andreas Gursky
adquiram respeitabilidade e um alto valor no mercado de arte. A fotografia, 99 Cent II,
de 1999, alcançou a cifra de 3,35 milhões dólares em leilão realizado em fevereiro de
2007 na Sotheby’s e mais recentemente, em outubro de 2011, a obra Rhine II, de 1999 -
ver em Anexo 01, figura 2, foi vendida pela impressionante cifra de quatro milhões de
dólares, se transformando na mais cara fotografia de todos os tempos – e dando ainda
mais reverberação a um olhar diferenciado que abriu novos caminhos para se observar
as cidades na cena contemporânea.
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Mas, por detrás desses altos valores não se pode esquecer que há um delicado
jogo entre o senso comum e o plano estratégico de galeristas e marchands, pois o artista
contemporâneo está bem longe do protótipo de artista maldito, exilado da sociedade
como sempre se remete a figura de Van Gogh. Hoje o artista usa de modo inverso este
jogo entre os outsiders e os estabelecidos (ELIAS, 2000, 23) para que sua credibilidade
permaneça inabalável junto ao público. Então: “voluntária ou não, a exibição do artista
como anti, fora ou além das regras de mercado de consumo é tido como uma tática
certa.” (CAUQUELIN, 2005, 48) Porque assim perpetua-se a ideia de distanciamento
do artista com relação ao interesse financeiro sobre sua obra.
Contudo, muito antes de se pensar nas questões de mercado, que muitas vezes
correm em paralelo à produção dos artistas, devemos valorizar todo o processo de
construção de sua carreira que, nestes últimos anos, se encontra em um momento de
ápice. A presença de um leve toque crítico aliada a uma composição esmerada e ao rigor
técnico reflete sua faceta de exímio artífice contemporâneo, e várias imagens de Gursky
reafirmam a influência direta dos ensinamentos recebidos de Hilla e Bernd Becher. Na
imagem do Copan transparece o modo similar de enquadramento frontal de forma a
achatar sua perspectiva. Contudo, as referências visuais de Gursky se multiplicam em
variados caminhos que vão desde as pinturas da idade Média em torno do século XVI e
XVII como, por exemplo, às de Pierre Bruegel e Diego Velásquez à filósofos como de
Walter Benjamin, de quem Gursky se apropriou com rara eficiência sobre o conceito de
se pensar e fazer a arte como fotografia.
Neste sentido é relevante lembrar que em texto original de 1931, o filósofo
alemão citava a reprodução fotográfica da arquitetura como um importante exemplo do
conceito de inversão do processo artístico. (BENJAMIN, 1996, 104) Utilização esta
que, independente de ter sido transformada, juntamente com o próprio conceito de
arquitetura, perpetua a ideia original de que é na arte, como fotografia, que se encontra a
possibilidade de outro entendimento do mundo. E, é dentro deste contexto que surge
uma nova ideia de cidade, pois as imagens de Gursky ajudam a revelar outro modo de
se ver as cidades com suas paisagens bloqueadas. Seu olhar ultrapassa a ideia de um
fotógrafo que procura limpar a cena para realizar o seu clique e o aproxima do olhar de
um pintor a se questionar em como ocupar seu quadro branco. E sob esta luz de direção
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podemos sugerir que Gursky é um pintor-fotógrafo, assim como Niemeyer foi um
pintor-arquiteto. Mas, apesar da importância internacional e das influências que Andreas
Gursky reconhecidamente multiplica pelo mundo, seu trabalho ainda é pouco debatido
no Brasil, o que é no mínimo curioso, pois esta imagem do edifício brasileiro é uma de
suas fotos mais famosas e valorizadas.
Enfim, as imagens de Andreas Gursky nos ofertam uma nova passagem visual,
talvez por conseguirem realizar o jogo essencial de liberar o real do seu princípio de
realidade. Portanto, diante das atuais cidades com suas paisagens sufocadas em meio
aos excessos urbanos de poluição visual, estudar e analisar a imagem do Copan dando
conta de suas simbologias em comparação as da obra de Niemeyer, talvez nos permita
demonstrar que a imagem contemporânea não possa mais ser fruto de uma só visada,
mas sim da soma de partes, como é o caso desta imagem de Gursky, que, deste modo,
nos apresenta soluções que permitem novas construções visuais a partir de se pensar a
fotografia não mais como uma mídia de representação, mas sim de construção de
realidades renovadas, cujo conceito encontra sua melhor tradução por intermédio das
ampliações monumentais que revelam, ao mesmo tempo, o jogo duplo entre o detalhe
que se esconde no micro e o entendimento do todo que só é possível na visão macro.
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