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1 1 Música universal ou subcultura ilustrada? Christiane Reis Dias Villela Assano RESUMO Este trabalho propõe uma reflexão sobre a relação dos conceitos do educador Paulo Freire sobre educação bancária e educação dialógica e sua articulação com um conto de Machado de Assis (“Um homem célebre”) em que Pestana, um compositor de “polcas”, desvaloriza sua própria cultura em detrimento da “cultura universal” que permeia a música composta por autores “clássicos” e também, articulando as concepções de Freire com a história do moleiro Menocchio revivido em sua história não-oficial através da pesquisa de Carlo Ginzburg. Dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Paulo Freire Embora a frase de Paulo Freire pareça óbvia ao educador mais crítico e consciente de seus direitos e deveres, a mesma afirmação não parece refletir a realidade de Pestana, pianista e compositor famoso do conto “Um homem célebre”, escrito por Machado de Assis. 1 Pestana freqüentava festas íntimas como as da viúva Camargo, conforme revela a primeira cena do conto em que, após tocar uma quadrilha, a viúva pediu a Pestana que tocasse seu último sucesso: a polca “Não bula comigo nhô, nhô”. O compositor não gostou muito da idéia, mas todos “saracotearam a polca da moda”. O curioso é que a polca, publicada há apenas vinte dias, já era conhecida por toda a cidade. “Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna”. Pestana desejava desaparecer da festa, mas sua fuga só durou até a esquina. Nela, os sons de uma clarineta que passeavam dentro de uma casa, perseguiam Pestana como um fantasma. Ainda fugindo e quase aliviado, o compositor encontrou um homem que assobiava a sua polca acompanhado de um outro homem, que antes em silêncio, “pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa”. O conto torna-se ainda mais interessante com a sua chegada à casa. Aliviado, fugindo de sua música, acalmou-se ao olhar e “cumprimentar uns dez

Assano - Música Universal Ou Subcultura Ilustrada

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Assano - Música Universal Ou Subcultura Ilustrada - Anais ABEM IX - 2000

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    Msica universal ou subcultura ilustrada?

    Christiane Reis Dias Villela Assano

    RESUMO Este trabalho prope uma reflexo sobre a relao dos conceitos do educador Paulo Freire sobre educao bancria e educao dialgica e sua articulao com um conto de Machado de Assis (Um homem clebre) em que Pestana, um compositor de polcas, desvaloriza sua prpria cultura em detrimento da cultura universal que permeia a msica composta por autores clssicos e tambm, articulando as concepes de Freire com a histria do moleiro Menocchio revivido em sua histria no-oficial atravs da pesquisa de Carlo Ginzburg.

    Dizer a palavra no privilgio de alguns homens, mas direito de todos os homens.

    Paulo Freire

    Embora a frase de Paulo Freire parea bvia ao educador mais crtico e

    consciente de seus direitos e deveres, a mesma afirmao no parece refletir a

    realidade de Pestana, pianista e compositor famoso do conto Um homem clebre,

    escrito por Machado de Assis.1

    Pestana freqentava festas ntimas como as da viva Camargo, conforme

    revela a primeira cena do conto em que, aps tocar uma quadrilha, a viva pediu a

    Pestana que tocasse seu ltimo sucesso: a polca No bula comigo nh, nh. O

    compositor no gostou muito da idia, mas todos saracotearam a polca da moda.

    O curioso que a polca, publicada h apenas vinte dias, j era conhecida por toda

    a cidade. Ia chegando consagrao do assobio e da cantarola noturna.

    Pestana desejava desaparecer da festa, mas sua fuga s durou at a

    esquina. Nela, os sons de uma clarineta que passeavam dentro de uma casa,

    perseguiam Pestana como um fantasma. Ainda fugindo e quase aliviado, o

    compositor encontrou um homem que assobiava a sua polca acompanhado de um

    outro homem, que antes em silncio, pegou a tempo na msica, e a foram os dois

    abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da pea, desesperado, corria a

    meter-se em casa.

    O conto torna-se ainda mais interessante com a sua chegada casa.

    Aliviado, fugindo de sua msica, acalmou-se ao olhar e cumprimentar uns dez

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    retratos que pendiam da parede. Entre os retratos, pessoas da famlia e um padre,

    que era doido por msica, sacra ou profana. Entre os retratos, imagens de

    compositores clssicos como Cimarosa, Beethoven, Mozart, Bach, Gluck e

    Schumann.

    O piano era o altar; o evangelho da noite l estava aberto: era uma sonata de Beethoven. (...) As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no cu espera de algum que as fosse descolar, tempo viria em que o cu tinha de ficar vazio, mas ento a terra seria uma constelao de partituras. (ASSIS, 1995, p. 99).

    Altar, evangelho, cu... Como seriam vistos os compositores clssicos por

    Pestana e por seu criador? Por que a msica clssica identificada como a que

    tem um evangelho e um altar?

    O pargrafo seguinte traz algumas pistas. Nele, Machado pergunta: Por que

    no faria ele uma s que fosse daquelas pginas imortais? (o grifo meu).

    Em busca das pginas imortais, Pestana levantou-se inquieto, foi janela,

    procurou um pensamento, mas suas idias pareciam escapar facilmente.

    Entretanto, aps uma pssima noite de sono, Machado deu nova vida a Pestana

    que comeou a tocar alguma coisa prpria, uma polca buliosa... Escreveu a nova

    msica e a levou ao editor, que sugeriu modificaes no ttulo. Em apenas oito dias,

    a polca j era sucesso. Porm, como das outras vezes, e mais depressa ainda, os

    velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Pestana queria compor

    alguma coisa ao sabor clssico, uma pgina que fosse, uma s, mas tal que

    pudesse ser encadernado entre Bach e Schumann, pois acreditava que s seria

    imortal quem compusesse como Bach, Schumann e os homens dos retratos - os

    santos do altar?

    Casando-se com Maria, uma viva de 27 anos, que era tambm cantora,

    Pestana acreditava que comporia obras srias, profundas, inspiradas e

    trabalhadas, bem diferentes da msica fcil - a polca. O casamento pareceu

    funcionar, pois, desde os primeiros dias na companhia da mulher, a inspirao

    vinha visitar o compositor graciosamente. Pestana comeou sua obra imortal e

    comps s escondidas, um noturno. Ao chamar Maria para apreciar sua nova

    obra, ela o interrompeu e disse: Acaba... no Chopin?

    1 As citaes que se seguem so retiradas do conto mencionado.

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    Pestana desesperou-se. O que poderia ser apenas uma impresso da mulher,

    tornou-se realidade quando Maria, de memria, tocou todo o noturno ao piano.

    Pestana no compusera algo novo, mas copiara o noturno do imortal Chopin. O

    compositor pensava aps o episdio que melhor mesmo era ir com as polcas e,

    em outra manh, comps uma nova polca. Algum tempo depois, com a morte de

    Maria, o compositor decidiu abandonar a msica, mas antes esboou um ltimo

    desejo: o de compor um Rquiem para ser tocado na missa de um ano de morte da

    falecida. Mergulhou, ento, no estudo detalhado do Rquiem de Mozart. Contudo,

    aps um ano, o Rquiem ainda no havia sado do papel. Por isso, Machado decide

    incomodar um pouco mais o personagem e faz aparecer, em meio a tantas

    dificuldades, o editor.

    H dois anos, Pestana deixara de alegrar o pblico com suas polcas. Porm,

    apesar do longo tempo de silncio, no perdera a originalidade nem a inspirao.

    J no tentava mais compor como os imortais, mas tambm no perdia uma boa

    pera ou um concerto de artista. Uma febre atacou-lhe e, antes de morrer, deixou

    duas polcas prontas. Segundo Machado de Assis, morreu bem com os homens e

    mal consigo mesmo.

    Embora Pestana fosse um homem clebre, morrera mal porque no queria

    compor a polca, a msica fcil, mas as obras imortais dos retratos que cultuava

    e, por esta razo, poderamos questionar por que Pestana considerava a msica do

    altar como imortal e por que dava importncia maior a um tipo especfico de

    msica. Tentando colocar o conto de Machado de Assis em dilogo com Paulo

    Freire, poderamos afirmar que Pestana parecia no se enxergar como algum que

    tinha o direito da palavra, da composio da msica que o inspirava. Sua histria

    faz-nos refletir sobre a valorizao de uma cultura em detrimento de outras, sobre a

    valorizao de um determinado tipo de saber em relao a outros. Sua histria

    faz-nos realizar um retorno ao incio do texto e questionar quantos Pestanas, ao

    ingressarem nas escolas de msica de nosso pas, desvalorizam os diferentes

    saberes que trazem de suas experincias, e, conseqentemente, pensam em

    abandonar o conhecimento que j possuem para que possam aprender a

    verdadeira msica... Infelizmente, constatamos que a maioria de nossas escolas

    ainda trabalha com a concepo bancria de educao, considerando o professor

    como aquele que detm a cultura e o saber, e que, por esta razo, tem a funo de

    depositar, transmitir valores e conhecimentos ao educando.(Freire, 1987, p. 59).

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    O drama de Pestana era fugir da composio da msica fcil, ou seja, das

    polcas, que eram, possivelmente, maxixes escondidos sob o nome europeu,

    porque o nome maxixe tinha origens negras e mestias da Cidade Nova e o seu

    cultivo suspeito por homens do comrcio e mulheres de vida airada (...) a simples

    enunciao do nome maxixe feria a sensibilidade feminina como um desrespeito.

    (Tinhoro, 1991, p.65). No neutra, portanto, a atitude do editor de Pestana, que

    sempre estava atento aos ttulos. Afinal, quem iria comprar uma partitura com um

    nome reles e imoral?

    A atitude de Pestana pode ser mais bem entendida quando refletimos sobre

    o pas colonizado no qual vivemos, em que o colonizador, considerado como o

    civilizado, possuidor da cultura valorizada na sociedade, ou seja, da cultura

    oficial (Bakhtin, 1993). A cultura oficial, considerada universal representa a cultura

    dominante e se distingue, em pases colonizados, da cultura no-oficial

    (dominada), por meio de uma relao de poder e domnio, visto que o universal

    sempre o regional de algum, como afirma Tinhoro. (1998, p.13).

    Para impor a cultura oficial, o colonizador, ao chegar ao Brasil, fez inmeras

    tentativas de destruir a diversidade, impondo uma subcultura ilustrada, para usar

    as palavras de Carol Paz (Colombres, 1989) e levantando altares para a cultura

    do pas colonizador, imitando-o e fazendo de sua cultura, a cultura nacional. A

    subcultura , portanto, o uso da cultura do outro como um altar, um evangelho,

    um cu que no pode ser contestado, como nos mostra Pestana. Una subcultura,

    algo alienado y alienante, que parcializa, discrimina y no cumple en ningn

    momento com la funcin esencial de toda verdadera cultura. (Colombres, op. cit.,

    p.89). Como diria Tinhoro para explicar o termo de Carol Paz, a prpria cultura

    dominante revela-se uma cultura dominada. (Tinhoro, op. cit., p.10)

    Trazemos a histria de Pestana, porque entendemos que, em nome da

    preservao da cultura e do conhecimento ditos universais, muito deixamos de

    aprender com nossos alunos. Sabemos, entretanto, da dificuldade de romper de

    uma s vez com a concepo bancria que permeou a nossa prpria vivncia nos

    bancos escolares, como educandos. Praticar e compreender a concepo

    dialgica de educao significa entender a diferena entre uma relao

    horizontal que valoriza os diferentes saberes e que, portanto v o educador como

    educando e o educando como educador e uma relao vertical que impe uma

    cultura sobre outra e valoriza somente o conhecimento de quem visto como

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    detentor do saber. na postura de quem procura viver uma relao horizontal

    com os educandos-educadores que venho trabalhando no CETEP Niteri2, escola

    em que atuo desde 1998. E refletindo sobre uma educao que valorize os

    diferentes saberes, que penso ser essencial para os professores a afirmao de

    Freire (1987): o dilogo comea na busca do contedo programtico (p. 83). Ao

    propor o dilogo, abrindo-me para uma concepo dialgica de educao, posso

    aprender a riqueza de um heavy metal, posso saborear o conhecimento de uma

    msica antes desconhecida por mim, posso conhecer um pouco melhor o universo

    cultural de meus alunos e eles, ao contrrio do que se poderia pensar numa leitura

    desatenta, tambm podem ampliar seu universo cultural no dilogo que travamos.

    Ampliando nossos conhecimentos cotidianamente, aprendemos que paralelamente

    cultura das classes dominantes, existem outras culturas que, ao no aceitarem a

    imposio de uma outra cultura, criam modos de fazer (Certeau, 1996), criam

    formas diferentes de ler o mundo. Leituras como as de Menocchio, moleiro que,

    perseguido pela Inquisio, entenderia facilmente que as polcas de Pestana no

    eram to puramente populares e, tampouco, os santos Beethoven e Schumann

    estavam isolados de uma cultura popular para criar uma msica imortal. Atravs

    das leituras de mundo feitas por Menocchio, Pestana entenderia que as culturas

    circulam e esto em permanente dilogo, numa relao de circularidade, ou seja,

    num relacionamento circular feito de influncias recprocas, que se movia de baixo

    para cima, bem como de cima para baixo (Ginzburg, 1996, p.13). As palavras alto

    e baixo no aparecem no texto de Ginzburg por acaso. O autor tambm trabalha

    com os livros de emblemas da poca em que viveu Menocchio. Nos livros de

    emblemas, coletneas de lemas e provrbios acompanhados de imagens,

    aparece constantemente a proibio de se conhecer as coisas altas. O alto, na

    religio, era Deus; no cosmos, era o cu; e na poltica, o poder. Quem ousava

    conhec-lo poderia ser castigado. O alto servia na poltica, para manter a hierarquia

    social e poltica; na religio, para manter o poder da Igreja; e no cosmos, para

    desencorajar o questionamento do Universo. O lema Daquilo que est acima de

    ns, no devemos nos ocupar, aparece nos livros de emblemas. Entretanto, aos

    poucos, o alto vai sendo derrubado e os limites para conhec-lo vo ficando frgeis.

    No sculo XVI, com o desenvolvimento da astronomia, os homens comuns

    2 Centro de Educao Tecnolgica e Profissionalizante de Niteri. Pertence Fundao de Apoio Escola Tcnica (FAETEC) - Rio de Janeiro.

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    comeam a penetrar nos segredos do poder. Mas Pestana no concebia desta

    forma o conhecimento que possua e valorizava somente os santos do altar, j

    que no via a possibilidade do dilogo entre as culturas, preservando assim, uma

    concepo aristocrtica de cultura, ou seja, referindo-se cultura das classes

    subalternas como uma deformao da cultura da classe dominante. E porque via

    a dualidade civilizao x barbrie, formas cultas de arte y formas brutas de arte,

    como diria Colombres (1989), que Pestana ficava preso s grades do compositor

    de msica imortal. porque via a cultura universal como melhor e maior, que

    mantinha um ponto de vista eurocntrico, e ento, imitava Chopin, mesmo sem ter

    conscincia da cpia.

    Sem pretender consolidar ou cristalizar minha prtica, mas mant-la em

    permanente construo, penso que abolindo as fronteiras entre as diferentes

    culturas sem demarc-las rigidamente, que podemos construir uma prtica

    democrtica em que os nossos pestanas possam aprender a valorizar a sua

    cultura, em que nossos educandos-educadores conscientes e crticos possam

    compreender o direito e a importncia de dizerem a sua palavra.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ASSIS, Machado de. Um homem clebre. In: O alienista e outros contos. So Paulo, Moderna,

    1995. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento - o contexto de Franois

    Rabelais. Braslia: Hucitec, 1993. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1996. COLOMBRES, Adolfo. Sobre la cultura y el arte popular. Buenos Aires: Ediciones del sol, 1987. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 1987. GARCIA, Regina Leite, VALLA, Victor Vincent (org.). A fala dos excludos. Caderno CEDES - 38.

    Campinas: Papirus, 1996. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais - morfologia e histria. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1991. __ . Os queijos e os vermes - o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela Inquisio. So

    Paulo: Schwarz, 1996. MARTINS, Jos de Souza. Dilemas sobre as classes subalternas na Idade da Razo. Caminhada

    no cho da noite. So Paulo: HUCITEC, 1989. MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria

    Municipal de Cultura, Dep. Geral de Inf. Cultural: Diviso de Editorao, 1995.

    TINHORO, Jos Ramos. Pequena histria da msica popular: da modinha lambada. So Paulo: Art Editora, 1991.

    ___. Histria social da msica popular brasileira. So Paulo: Editora 34, 1998.